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as novas configurações da economia,
da violência e dos espaços comunicacionais
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
Marília
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
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Vice-Diretor
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
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Parecerista:
Marcelo Fernandes de Oliveira - Faculdade de Filosoa e Ciências/UNESP - campus de Marília
Ficha catalográca
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Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2018, Faculdade de Filosoa e Ciências
D576 Dilemas da sociedade brasileira contemporânea : as novas congurações da economia, da
violência e dos espaços comunicacionais / Luis Antônio Francisco de Souza, Lays
Matias Mazoti Corrêa, orgs. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2018.
180 p. : il.
Inclui bibliograa
Apoio: CAPES
ISBN 978-85-7983-991-7 (Impresso)
ISBN 978-85-7983-992-4 (Digital)
1. Brasil – Política e governo. 2. Brasil – Condições econômicas. 3. Violência – Brasil.
4. Comunicação – Aspectos sociais. I. Souza, Luis Antônio Francisco de. II. Corrêa, Lays
Matias Mazoti.
CDD 320.981
CAPES, Processo PAEP Nº 23038.003568/2015-45
DOI https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7983-992-4
Sumário
Prefácio
Lays Matias Mazoti Corrêa .............................................................. 07
Apresentação
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa .......... 09
Notas sobre os impactos da crise estrutural do capitalismo no Brasil
Francisco Luiz Corsi ....................................................................... 13
Novas tendências da militarização da Segurança Pública no Brasil
Luís Antônio Francisco de Souza; aís Battibugli;
Luana de Carvalho Silva Gusso ....................................................... 29
Qual África? Diálogos entre africanos e afro-brasileiros no Brasil
Egor Vasco Borges ............................................................................ 47
Da colonização à contemporaneidade: discutindo a violência
contra povos indígenas no Brasil
Michele Carlesso Mariano; Franz Arnaldo Cezarinho ........................ 71
Vidas no limite: experiências de sobrevivência de mulheres
em situação de violência doméstica em Marília-SP
Camila Rodrigues da Silva; Zuleika de Andrade Câmara Pinheiro .... 89
Mídias digitais, processos sociais e subjetividades: notas preliminares
para uma abordagem sociológica
Felipe Padilha; Lara Facioli ............................................................. 113
A internet como espaço público de ação e produção de
visibilidades
Juliana Laet; Késia Maximiano ........................................................ 137
Entre o passado e o presente: música popular e cinema no
Centro-Oeste Paulista
Lays Matias Mazoti Corrêa; iago Henrique de Almeida Bispo ....... 153
Sobre os Autores ............................................................................ 173
7
Prefácio
É com imensa satisfação que apresentamos a todas/os leitoras/
es a coletânea Dilemas da sociedade contemporânea: as novas congurações
da economia, da violência e dos espaços comunicacionais. A presente obra
é decorrente do I Seminário Internacional de Pós-Graduação em Ciências
Sociais – Brasil Contemporâneo: perspectivas e desaos realizado de 22 a
24 de setembro de 2015, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília-SP e o objetivo de sua
publicação concentra-se em divulgar pesquisas que foram debatidas no
evento supracitado.
Essa coletânea expressa o resultado nal de um trabalho intenso e
consistente realizado pelas/os discentes do PPGCS da UNESP/Marília. Or-
ganizados através do Grupo de Estudos Mundo Contemporâneo (GEMUC)
as/os pós-graduandas/os apresentaram um protagonismo inédito, desaan-
do a verticalização acadêmica de produção e promoção do conhecimento
cientíco. Para o devido reconhecimento do empenho e do desao en-
frentado, congratulamos todo o trabalho efetuado por Annelise Faustino
da Costa, Camila Rodrigues da Silva, Egor Vasco Borges, Franz Arnaldo
Cezarinho, João Vicente Nascimento Lins, Juliana Larissa, de Laet Gomes,
Késia Maria Maximiano de Melo, Michelle Carlesso Mariano, Rodrigo
Bischo Belli, Tamires Barbosa Rossi Silva, iago Henrique de Almeida
Bispo e Zuleika Câmara Pinheiro. Estendemos nossos agradecimentos ao
8
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Prof. Dr. Antônio Mendes da Costa Braga, Prof. Dr. Edemir de Carvalho e
Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza - coordenador geral do evento e
organizador dessa coletânea - pelo amplo incentivo prestado; e aos órgãos
de fomento – PROPG/UNESP, CNPQ e CAPES – que contribuíram -
nanceiramente para a realização do evento e publicação dessa obra.
Por m, acreditamos que a tão almejada excelência acadêmica
não pode ser alcançada sem o profícuo diálogo e trabalho conjunto de
sujeitos em seus mais variados níveis de formação. Iniciativas como essas
contribuem signicativamente para todas/os, em especial para as/os pós-
-graduandas/os, estimulando-as/os na apreensão da indissociabilidade da
tríade acadêmica: ensino, pesquisa e extensão. A presente obra expressa
esse pensamento, assim como nossos anseios e esforços empreendidos na
construção de uma universidade pública mais democrática, constituída
por sujeitos e temáticas plurais.
Desejamos a todas/os uma ótima leitura!
Lays Matias Mazoti Corrêa
Coordenadora do GEMUC/2015
Professora Assistente da UFV, campus de Rio Paranaíba-MG
Doutora em Ciências Sociais pela Unesp, campus de Marília-SP
9
ApreSentAção
Os artigos que compõem a presente coletânea estabelecem uma
relação sagital com o presente. Os temas que estão hoje no centro do de-
bate sobre a sociedade brasileira são abordados nos artigos, mas de ma-
neira indireta. A coletânea coloca os problemas do país numa perspectiva
diversa daquela do noticiário. No Brasil contemporâneo, a economia está
em crise, em razão da estagnação e da fuga de capitais. A crise de legiti-
midade da política, que se agravou em 2013, com os movimentos de rua,
mostra a total incomunicabilidade entre os anseios populares e a estrutura
esgarçada da política partidária. O processo de judicialização da política
mostra-se forte quando ações legais contra a corrupção ultrapassam cer-
tos limites constitucionais e se transformam em verdadeira caça às bruxas.
Os artigos desta coletânea não deixam de abordar estes problemas, mas
a perspectiva aqui é colocar no centro da discussão as velhas mazelas e
os antigos desaos da sociedade brasileira. Esses problemas ainda não en-
contraram espaço público suciente para serem enfrentados a partir de
uma razão política crítica. Ainda são temas considerados marginais numa
sociedade que se vê no espelho da modernidade a partir do modelo do
neoliberalismo, do risco econômico generalizado e da incapacidade de
redução das margens aviltantes das desigualdades sociais e de acesso aos
benefícios do desenvolvimento. Além da desmontagem da política, no in-
terior da desconança em partidos e políticos, o Brasil contemporâneo
ainda deve à sua população, de uma forma geral, a efetivação das garantias
constitucionais, a redução da violência e a distribuição da renda. No país,
10
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
ainda lidamos, neste momento de mudanças globais problemáticas, com
o aumento do apelo securitário em torno do uso sistemático de técnicas
militares para o “combate” ao terrorismo e ao fortalecimento das bandeiras
políticas conservadoras. Ainda lidamos com problemas que perduram des-
de meados do século XX: violência policial, baixa capacidade de inserção
brasileira no cenário da economia mais dinâmica do mundo, violência de
gênero, violência étnico-racial, violência contra comunidades indígenas,
espoliação urbana, aumento da fragilidade das condições de vida das fa-
mílias e uma constante sensação de que o Estado não é mais capaz de dar
soluções para os problemas locais e para os desaos globais. A agenda de
pesquisa desvelada por esta coletânea ainda coloca a questão da dissemi-
nação da internet, seu uso como forma de ação política orquestrada, os
efeitos da massicação da cultura, assim como os enigmas da persistência
do racismo em nossa sociedade. São contribuições importantes que se des-
dobram e abrem espaço para novas perspectivas de pesquisa e de busca de
soluções para os problemas aqui colocados.
Num primeiro bloco de estudos, o leitor encontrará o estudo
de Francisco Luiz Corsi, “NOTAS SOBRE OS IMPACTOS DA CRISE
ESTRUTURAL DO CAPITALISMO NO BRASIL”, que aborda o pro-
blema da crise estrutural do capitalismo, a partir das políticas econômicas
adotadas pelos governos Lula e Dilma. O capítulo mostra que, não obs-
tante a adoção de medidas saneadoras da economia, esses governos não
foram capazes de romper com o modelo de dependência em relação ao
capitalismo global, que coloca a economia brasileira ainda como fornece-
dora de commodities para o mercado externo. Sem uma mudança subs-
tantiva nesta política econômica, o país continuará sofrendo crises periódi-
cas cujos efeitos são perturbadores. Encontrará também o estudo de Luís
Antônio Francisco de Souza, aís Battibugli e Luana de Carvalho Silva
Gusso, sobre as “NOVAS TENDÊNCIAS DA MILITARIZAÇÃO DA
SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL”. Os autores apontam para as
limitações do aparato estatal em relação ao controle social, à transparên-
cia e à efetividade das políticas sociais. Essas limitações são traduzidas em
incompletudes da esfera política e da esfera das políticas públicas que per-
mitem o aggiornamento da opção pela militarização da segurança, como
resposta à escalada da violência, da criminalidade, do crime organizado e
11
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
da desestrutura urbana. Esta tendência atual, que também se reete nas
ações de segurança no mundo global, reforça o modelo do combate da
criminalidade com estratégias de caráter essencialmente militar.
O tema da violência ainda está presente na discussão de Miche-
le Carlesso Mariano e Franz Arnaldo Cezarinho presente no capítulo “DA
COLONIZAÇÃO À CONTEMPORANEIDADE: DISCUTINDO A
VIOLÊNCIA CONTRA POVOS INDÍGENAS NO BRASIL” Os autores
nos oferecem um relato apassionato sobre os povos indígenas no Brasil, que
enfrentam condições de violência estrutural e racismo institucional desde
muito tempo na história do país. Os autores dão ênfase à Proposta de Emen-
da Constitucional, PEC nº 215, que pretende alterar as regras do processo
de demarcação de terras. Caso seja aprovada, implicará continuidade das
violências históricas contra os indígenas e seus territórios. A violência ainda
é tematizada por Camila Rodrigues da Silva e Zuleika de Andrade Câmara
Pinheiro no capítulo “VIDAS NO LIMITE: EXPERIÊNCIAS DE SO-
BREVIVÊNCIA DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA. MARÍLIA, SP”. Aqui, as autoras discutem, a partir dos re-
latos de mulheres em situação de violência doméstica, como elas vivenciam a
violência, a dor e o sofrimento. E como, no processo de retomar controle de
suas vidas, procuram superar a vergonha por meio da ação da justiça e da ne-
cessidade de recontar suas histórias, como alternativa ao silencio e à vontade
de esquecer a violência sofrida. Ainda na chave da violência, há a contribui-
ção de Egor Vasco Borges, com o capítulo “QUAL AFRICA? DIALOGOS
ENTRE AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NO BRASIL”. Neste, o
autor, a partir de uma perspectiva pós-colonial, reete sobre o racismo brasi-
leiro. A análise é reveladora na medida em que mostra as sutilezas do racismo
e sua presença constante nas práticas e nos discursos das pessoas, que tem
diculdade de se colocar diante do espelho da alteridade.
Na coletânea há um bloco sobre o tema da esfera pública. São per-
tinentes a esta discussão os trabalhos de Felipe Padilha e Lara Facioli que,
no capítulo “MÍDIAS DIGITAIS, PROCESSOS SOCIAIS E SUBJETI-
VIDADES: NOTAS PRELIMINARES PARA UMA ABORDAGEM SO-
CIOLÓGICA”, colocam várias questões sobre os processos de produção e
disseminação das mídias digitais. Os autores discutem o impacto destas na
produção de novas subjetividades, bem como os efeitos do ciberespaço numa
12
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
nova e ampliada forma de regulação social, no contexto brasileiro. Nesta di-
reção, Juliana Laet e Késia Maximiano, no capítulo “A INTERNET COMO
ESPAÇO PÚBLICO DE AÇÃO E PRODUÇÃO DE VISIBILIDADES”,
exploram os novos temas ligados à expansão do uso do espaço virtual como
possibilidade de construção de identidades e subjetividades. A internet pode
se construir, e vem se constituindo, como espaço de ação politica. Adicional-
mente, a internet tem servido ao propósito de dar expressão àqueles grupos
sociais tradicionalmente sem acesso ao espaço da comunicação política, a
despeito dos problemas e das limitações, novas visibilidades e novas formas
de atuação política estão emergindo no contexto do espaço virtual brasileiro.
Pode ser considerada uma contribuição nesta direção a reexão proposta por
Lays Matias Mazoti Corrêa e iago Henrique de Almeida Bispo que, no
capítulo, “ENTRE O PASSADO E O PRESENTE: MÚSICA POPULAR
E CINEMA NO CENTRO-OESTE PAULISTA”, colocam o problema de
como os processos de modernização econômica e social implicam a constru-
ção e reconstrução dos espaços tradicionais da memória. No caso especíco
da música e do cinema no interior paulista, os autores perguntam como cor-
reu a transformação complexa que recria um modelo cultural considerado
tradicional e o coloca como parte de um mercado fonográco e cinemato-
gráco globalizado.
Os temas da crítica contemporâneos estão colocados de forma
abrangente, dinâmica e instigante nos capítulos da coletânea. Os autores
apontam para problemas persistentes no cenário do Brasil contemporâneo,
todavia não se conformam com as formas de regulação do espaço social
ou com a degradação das condições de vida da população brasileira. Os
autores também apostam num vir-a-ser, mesmo que este se manifeste na
forma da ação política assentada no espaço virtual ou na esfera da cultu-
ra. A mensagem está dada. E como tal, esta a espera de seus destinatários
não passivos, aqueles que sabem ler que o presente estabelece uma relação
sagital com futuro. Espero que estes trabalhos de inspiração e aspiração po-
líticas possam ser inspiradores para novas pesquisas e novas indagações, so-
bretudo quando o Brasil parece hesitar diante de seu problemático legado.
Luís Antônio Francisco de Souza
Lays Matias Mazoti Corrêa
13
notAS Sobre oS impActoS dA criSe eStruturAl
do cApitAliSmo no brASil
Francisco Luiz Corsi
introdução
As presentes notas têm por objetivo discutir os impactos da crise
estrutural do capitalismo global aberta a partir de 2007 na economia bra-
sileira, mais especicamente no que se refere ao crescimento econômico e
a política econômica. Os impactos da referida crise foram múltiplos e não
temos aqui a pretensão, dentro dos limites do presente artigo, de esgotar
a discussão. As notas que seguem visam apenas tecer breves comentários
sobre alguns pontos que reportamos importantes para a compreensão da
atual conjuntura da economia brasileira.
Para entendermos os impactos da crise no Brasil será preciso dis-
cutir primeiro a natureza da crise e, sobretudo, como o Brasil se inseriu
nas últimas duas décadas na economia mundial. Consideramos que isso
implica discutir a reconguração do capitalismo resultante da crise de so-
breacumulação da década de 1970 e como a periferia do sistema se inseriu
neste processo. Sem dúvida que não é possível entender a evolução da
economia brasileira unicamente levando-se em conta as tendências e as
determinações do capitalismo global, por mais importantes que elas sejam.
É também fundamental para entendermos as razões da crise atual por que
passa o Brasil abordar um conjunto de determinações internas, que se ar-
14
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
ticulam as externas, mas que guardam certa autonomia. Especial atenção
será dispensada a política econômica adotada pelos governos Lula e Dilma
no seu primeiro mandato. O artigo segue os passos acima delineados.
A periferiA no contexto de criSe do cApitAliSmo globAl
De forma muito esquemática, podemos armar, seguindo Che-
nais (2005), Brenner (2003) e Harvey (2011), que o capitalismo desde a
década de 1980 cou mais instável que no passado. As crises, que são ine-
rentes a própria dinâmica contraditória da acumulação de capital, caram
muito frequentes e isto decorre, em grande parte, da maneira pela qual os
países desenvolvidos, particularmente os EUA (Estados Unidos de Ameri-
ca), os grandes bancos, as grandes empresas e os fundos de investimentos
encaminharam a reestruturação do capitalismo, sob a égide política e ide-
ológica do neoliberalismo, a partir da década de 1980.
A crise estrutural aberta em 1974, que pôs m aos chamados
“30 anos gloriosos”, foi resultado de vários processos intimamente articula-
dos, quais sejam: perda de competitividade da economia norte-americana,
esgotamento do fordismo, ascensão das lutas de classe no mundo, crise
do sistema monetário internacional, crescente peso do capital nanceiro,
queda da taxa de lucro (cuja queda foi um dos principais determinantes
da crise de sobreacumulação de capital), crise energética e crise de hege-
monia dos EUA. Reagindo a crise, o capital buscou reestruturar o siste-
ma com o objetivo de controlar a contestação social, recuperar a taxa de
lucro, e recompor a hegemonia norte-americana. As principias linhas da
reestruturação do capitalismo foram as seguintes: desmonte do Estado de
Bem-Estar Social; abertura das economias nacionais; desregulamentação
dos mercados nanceiros; reestruturação produtiva, com a introdução da
chamada acumulação exível de capital; nova onda de inovações tecnoló-
gicas e reconguração espacial da acumulação de capital.
Não seria possível aqui discutir esses processos em detalhes. In-
teressa para os nossos propósitos abordar alguns de seus desdobramentos
para a periferia. Um dos pontos centrais foi a hegemonia do capital nan-
ceiro. O inchaço da esfera nanceira, iniciado 1970, se aprofundou a partir
da década de 1980, viabilizado pela abertura das economias nacionais, pela
15
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
desregulamentação nanceira e pelo desenvolvimento de novas tecnologias
da informação. O pano de fundo deste processo consistia nas crescentes
diculdades de valorização do capital na esfera produtiva, sobretudo nos
países centrais, não obstante os salários terem crescido abaixo da produti-
vidade a partir do início dos anos 1980 e, desta forma, terem propiciado a
recuperação das taxas de lucro (BRENNER, 2003; CHESNAIS, 2005). A
existência de crescente capacidade produtiva em escala global, em grande
medida decorrência da abertura de novo espaço de acumulação de capital
na Ásia (aspecto que discutiremos mais adiante), que também derivou da
reestruturação do capitalismo, inibe a acumulação no centro do sistema,
dado os problemas de competitividade das economias centrais. O incre-
mento da concorrência estimula os capitais aí formados a valorizarem-se
em outras regiões ou na esfera nanceira. Soma-se a isso o crescimento
endógeno desse capital ctício valorizado na própria especulação, gerando
volumes gigantescos (HARVEY, 2011).
Neste contexto de sobreacumulação crônica, os investimentos
esmorecem. As pressões para conter os salários também contribuem para
reduzir a demanda agregada. A expansão da economia passou a depen-
der cada vez mais do endividamento das famílias, das empresas e do setor
público. A valorização ctícia também depende do endividamento gene-
ralizado. O endividamento, portanto, tornou-se peça central do padrão
de valorização no capitalismo globalizado. A insuciência da acumulação,
que decorre da própria sobracumulação, implica que um volume cada vez
maior de capital ter de valorizar-se na especulação. Não por acaso, o capita-
lismo global passou a depender de forma crescente de bolhas especulativas,
que se sucederam com maior frequência desde meados da década de 1980
(BRENNER, 2006; HARVEY, 2011).
A hegemonia do capital nanceiro teve enorme repercussão para
os países em desenvolvimento. Como uma das consequências da forte ma-
joração das taxas de juros nos EUA, no início dos anos 1980, a crise das
dívidas externas pôs de joelhos vastas áreas da periferia, sugando enormes
quantidades de excedente via pagamento das dívidas, o que contribuiu
para a valorização do crescente volume de capital ctício em circulação
no mercado mundial, e jogou esses países em profunda crise econômica
e social, além de preparar o terreno para a desregulamentação comercial
16
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
e sobretudo nanceira dos anos de 1990, que transformou a maior parte
da dessa zona em um espaço de valorização desse capital ctício e de acu-
mulação por espoliação (HARVEY, 2007), conferindo a mesma enorme
instabilidade, evidente nas crise que assolaram o México, o Leste asiático,
a Rússia, o Brasil e a Argentina nos anos de 1990.
Outro ponto fundamental para a compreensão do papel da pe-
riferia no capitalismo global foi a ascensão de um novo polo dinâmico de
acumulação de capital no Leste asiático. Observa-se crescente formação de
cadeias globais de produção. O capital buscou incorporar novos espaços de
acumulação, nos quais pudesse dispor de mão-de-obra barata, qualicada
e disciplinada. O objetivo era recompor o exército industrial de reserva
em escala global. As grandes corporações passaram a coordenar e controlar
processos globais de produção e distribuição, cujas fases encontram-se es-
palhadas geogracamente. Isto foi feito por meio de empresas organizadas
em rede. Neste processo a região do Leste asiático recebeu enorme uxo de
capitais (CARNEIRO, 2002; BASUALDO; ARCEO, 2006).
Os impactos da reconguração espacial do capitalismo no centro
e na periferia do sistema denotam que o desenvolvimento é desigual e
combinado. Alguns poucos países do Leste asiático entraram em uma fase
de grande crescimento e se inseriram de maneira dinâmica no processo de
mundialização. Isto se deveu a uma série de determinações geopolíticas,
econômicas, sociais e políticas. A ascensão do Leste asiático não pode ser
entendida sem considerar o papel do Japão, que intensicou suas expor-
tações de capital e tecnologia para a região a partir dos anos 1980, e dos
EUA, que ao buscarem conter a URSS (União das Republicas Socialistas
Soviéticas) contribuíram para o desenvolvimento da região, abrindo seu
enorme mercado para as mercadorias asiáticas e contribuindo para a rein-
serção chinesa na economia mundial (MEDEIROS, 2008).
Todavia, as transformações estruturais na economia mundial
isoladamente não explicam o crescimento do Leste asiático. É preciso
levar em conta as peculiaridades nacionais. Porém, é possível detectar al-
gumas características comuns, quais sejam: crescimento calcado, em boa
medida, nas exportações de manufaturas; controle por parte do Estado
de variáveis fundamentais da economia, como câmbio, taxa de juros e
crédito; coordenação estatal dos setores estratégicos e esforço autônomo
17
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
de produção de tecnologia, o que implicou pesados investimentos públi-
cos e privados em educação e pesquisa. A experiência chinesa, parte des-
se processo, apresenta uma série de peculiaridades impossíveis de serem
tratadas aqui, mas cabe mencionar que a revolução chinesa foi sobretudo
uma revolução nacional, pautada por um projeto de transformar a China
em grande potência (MEDEIROS, 2008).
Os países da América Latina, que seguiram uma estratégia de de-
senvolvimento distinta, baseada na substituição de importações, entraram
em uma fase de baixo crescimento e instabilidade por duas décadas. A crise
de sobreacumulação e os impasses econômicos e políticos da região leva-
ram ao desmonte do modelo desenvolvimentista, que começou a partir da
implantação das ditaduras no Chile, em 1973, e na Argentina, em 1976.
Na década de 1980, as economias latino-americanas foram assoladas pelas
crises da dívida externa, inacionárias e scais e tornaram-se exportadoras
líquidas de recursos para os países desenvolvidos. Sob pressão dessas crises,
dos EUA, do FMI (Fundo Monetário Internacional), do capital nanceiro
global e de amplos setores internos das classes dominantes, vários gover-
nos da região adotaram, com pronunciados matizes nacionais, planos de
estabilização, abertura e desregulamentação de suas economias e amplo
processo privatização, inspirados no chamado Consenso de Washington.
De maneira geral, os Estados perderam, em parte, o controle sobre suas
economias nacionais, quando por exemplo deixaram de ter moeda própria
ao ancorarem suas moedas no dólar, e deixaram de ter condições de coor-
denar e liderar o desenvolvimento (CARNEIRO, 2002).
No Brasil, a crise da dívida externa, a crise inacionária e a crise
scal, que colocaram em xeque o modelo desenvolvimentista, associadas a
possibilidade de vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 1989,
contribuíram para unicar os diferentes setores das classes dominantes
em torno da candidatura Collor e de seu projeto neoliberal. A adoção
de políticas neoliberais implicou em uma reacomodação das frações das
classes dominantes. Observou-se o fortalecimento dos setores nanceiros
e do agronegócio. Setores de classe fortemente articulados com o capital
estrangeiro e favoráveis a uma maior abertura da economia brasileira. Os
setores do capital mais vinculados ao mercado interno perderam terreno
nesse novo contexto.
18
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
O projeto neoliberal, inspirado no chamado Consenso de Wa-
shington, ganhou consistência no governo FHC (Fernando Henrique Car-
doso), que adotou uma política de estabilização baseada na âncora cambial,
na abertura e desregulamentação da economia nacional e na redução do
papel do Estado na economia, em especial por meio de amplo programa
de privatização das empresas estatais. Esta política controlou o processo
inacionário, mas ao implicar em deterioração das contas externas, exigia,
em um contexto de instabilidade da economia mundial, a constante ma-
joração das taxas de juros com o objetivo de atrair um uxo crescente de
capitais externos, necessários para fechar o balanço de pagamentos, o que
resultou, entre outros pontos, em baixo crescimento econômico, desem-
prego, expansão da dívida pública e vulnerabilidade externa. Esse processo
desembocou na crise cambial do nal dos anos 1990.
A âncora cambial foi abandonada. Em sua substituição o governo
FHC introduziu as metas de inação, o câmbio exível e a meta de supe-
rávits primários. Medidas que continuaram a garantir os interesses do ca-
pital nanceiro. Qualquer ameaça da inação superar as metas implica na
elevação dos juros e na obtenção de superávits primários cada vez maiores.
O resultado tende a ser crescimento medíocre, altas taxas de desemprego,
polpuda remuneração ao capital nanceiro, submissão da política econô-
mica aos interesses rentistas e câmbio valorizado. Por meio do superávit
primário, da manutenção em patamar conável para o capital nanceiro
da relação Dívida/PIB (Produto Interno Bruto) e do controle da inação o
Estado precisa mostrar que tem condições de pagar suas dívidas.
Paralelamente, FHC com o objetivo de melhorar as contas exter-
nas, em um contexto de redução dos uxos de capital para a periferia em
virtude das crises asiáticas, russa, brasileira, argentina e da bolsa de valores
das empresas de alta tecnologia nos EUA, adotou uma série de medidas
para favorecer o agronegócio, embora àquela altura não fosse previsível o
boom de commodities que se desencadearia a partir de 2003. Ao adotar essa
política preparou o terreno para o Brasil adequar-se à reorganização da di-
visão internacional do trabalho decorrente ascensão do Leste asiático como
centro dinâmico da acumulação de capital, que começava a se consolidar a
partir da superação da crise asiática.
19
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
A China, depois da crise asiática de 1997, se tornou paulatina-
mente no centro da economia da região. Este país, antes da desaceleração
recente de sua economia, parecia tender a criar sua própria periferia. A
América Latina, entre 2003 e 2010, parecia estar sendo atraída pela força
gravitacional da China de forma inexorável, pois o acelerado crescimento
chinês elevou os preços das commodities, que também subiram devido
à especulação. A melhora dos termos de intercâmbio da América Latina
contribuiu para expansão da economia e para a redução da vulnerabilidade
externa, possibilitando políticas econômicas expansivas. O crescimento
da região decorreu também dessas políticas econômicas expansivas e das
medidas distributivas da renda adotadas por alguns governos latino-ame-
ricanos. Para os países mais desenvolvidos da região, a ascensão chinesa
contribuiu para uma certa involução estrutural ao reforçar a posição dos
mesmos como exportadores de produtos primários e de produtos manu-
faturados intensivos em recursos naturais e força de trabalho, com baixo
valor agregado. Exemplo foi a reprimarização da pauta de exportação de
países como o Brasil (MEDEIROS, 2008; CANO, 2014). A crise desen-
cadeada a partir de 2008 parece ter arrefecido essa tendência.
O prenuncio da crise de 2008 foi o estouro da NASDAQ, em
2001. À época, parecia que o capitalismo estava diante de uma grande
crise. As previsões pessimistas não se conrmaram naquele momento. A
resposta dada à crise de 2001 contornou momentaneamente o problema
da sobreacumulação. O governo dos EUA, que liderou o combate à crise,
adotou uma política expansiva, pautada na redução dos juros, na amplia-
ção do crédito, na expansão do gasto público (em boa medida vinculados
as ações militares no Iraque e no Afeganistão) e no corte dos impostos,
com o objetivo de estimular o consumo e os investimentos (BRENNER,
2006, p. 128-133).
As taxas de juros dos empréstimos hipotecários de longo prazo
declinaram consideravelmente entre 2000 e 2003 (cerca de 40%) e mais
suavemente até 2006. O resultado foi o aquecimento do mercado imobili-
ário, que já estava em expansão desde os anos 1990. O aquecimento desse
mercado estimulou o conjunto da economia norte-americana. A elevação
do valor dos imóveis estimulou ainda mais o endividamento das famílias e
inou a bolha especulativa. A recuperação da economia baseou-se no cres-
20
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
cente endividamento das famílias, das empresas e do Estado e na expansão
da bolha imobiliária (BRENNER, 2006, p. 128-130; HARVEY, 2011).
A expansão norte-americana contribuiu por meio do aumento dos
décits comerciais acelerar o crescimento da economia mundial, em especial
o Leste asiático, que a partir de sua relação simbiótica com a economia nor-
te-americana se rmou como um polo dinâmico de acumulação de capital,
responsável, em parte, pela fase expansiva 2003-2007 (BELLUZZO, 2009).
A expansão imobiliária no EUA sustentava-se em imenso volume de emissão
de títulos hipotecários, dos quais uma quantidade razoável era de solvência
duvidosa. Através da especulação global estes títulos espalharam-se pela eco-
nomia mundial (CHESNAIS, 2012; HARVEY, 2011).
A elevação dos juros nos EUA, em 2006, para deter as pressões
inacionárias e para desarmar a bolha especulativa precipitou a crise. O
resultado foi a elevação da inadimplência, que atingiu, em 2007, 2 milhões
de famílias. A demanda e os preços dos imóveis retraíram-se. Processo refor-
çado pela recolocação dos imóveis retomados pelas execuções hipotecárias
no mercado. A explosão na inadimplência fragilizou as instituições nan-
ciadoras da expansão imobiliária e toda a rede de especulação formada a
partir dessas operações de nanciamento em escala mundial. Este processo
foi potenciado pela existência de outras bolhas imobiliárias na Espanha, na
Inglaterra e na Irlanda. É importante frisar que a crise em pauta é uma crise
de sobreacumulação, que se manifesta sobretudo pelo acumulo explosivo
de capital ctício, que apresenta crescente diculdade em valorizar-se, mas
também existe excesso de capacidade produtiva em escala global, particu-
larmente em alguns países asiáticos e centrais. A resolução desse problema
indica que a crise será longa (HARVEY, 2011, p. 9-12).
A rápida ação dos bancos centrais dos países desenvolvidos e de
alguns países emergentes, que garantiram os depósitos e injetaram bilhões
de dólares na economia para evitar o colapso da liquidez, salvou o capital
da debacle nanceira (BELLUZZO, 2009). Mas o enorme volume de
ativos tóxicos nas carteiras de inúmeros bancos, fundos de investimento
e companhias de seguros disseminou a crise. Inicialmente a crise concen-
trou-se no centro do sistema. EUA, Japão e União Europeia sofreram forte
retração. A zona do euro foi particularmente atingida e entrou em um pro-
cesso de estagnação e crise que se estende até os dias de hoje, sobretudo em
21
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
sua periferia. A retração do centro do sistema, em um segundo momento,
afetou o conjunto da periferia, que no início da crise parecia mais resistente
a seus efeitos. Vários países periféricos passaram a apresentar crescente ten-
dência de desaceleração econômica, em especial a China, o que impactou
vastas regiões da periferia que tinham neste país um importante mercado
para as suas commodities. É neste contexto que temos que entender os
impactos da crise do capitalismo global na economia brasileira.
A criSe e o brASil
A crise atingiu a economia brasileira pela retração do comércio,
pela diminuição do crédito, pela saída de capitais, pela queda do preço das
commodities e pela diminuição acentuada dos uxos de capitais. Um dos
resultados foi a desvalorização da moeda. Os bancos nacionais restringiram
o crédito. A redução da liquidez afetou o conjunto da economia. Devido a
especulação, muitas grandes empresas brasileiras caram à beira da insol-
vência. Os investimentos e o consumo caíram. Em 2009, o PIB encolheu
0,9% (BARBOSA, 2013, p. 80-81).
O governo Lula reagiu a crise adotando medidas anticíclicas,
quais sejam: redução do depósito compulsório dos bancos, aumento da
emissão de moeda, majoração do gasto público (maior dispêndio com os
programas sociais, com o seguro desemprego, com a previdência social,
com os salários do funcionalismo e com os investimentos em infraestru-
turas relacionados ao Programa de Aceleração do Crescimento - PAC),
redução do superávit primário, desonerações scais, ampliação do crédito
e expansão da atuação do BNDES no nanciamento a longo prazo dos
investimentos a juros reduzidos (BARBOSA, 2013, p. 81-83). Contudo,
o governo demorou para reduzir a taxa de juros, que continuou uma das
maiores do mundo.
O resultado dessas medidas foi a recuperação da economia, que
cresceu 7,5% em 2010, puxada pelo incremento do consumo e do investi-
mento. A rápida recuperação baseada na expansão do mercado interno co-
meçou, contudo, deixar mais evidente os limites do padrão de acumulação
que vinha sendo implementado desde 2003.
22
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
O governo Lula manteve os pilares centrais da política macroeco-
nômica de seu antecessor descritos acima. Um dos resultados dessa política
foi a tendência a apreciação cambial, que teve forte inuência negativa
sobre o setor industrial e sobre as contas externas. A manutenção dessa
política respondia sobretudo aos interesses do capital nanceiro, pois eram
a garantia de valorização a alta taxas do capital ctício em um mundo onde
as taxas de juros tendiam a ser baixas.
Embora a política macroeconômica de FHC tenha sido mantida
em suas linhas gerais, sem confrontar o capital, Lula implementou medi-
das expansivas, destinadas a dinamizar o mercado interno e a enfrentar o
problema da miséria e da desigualdade social. Dentre as quais destacam-se
as seguintes: o programa bolsa família, a política de majoração do salário
mínimo, a política de aumento de gastos com a educação, ampliação do
crédito; o lançamento do PAC e a utilização do Banco Nacional de De-
senvolvimento Econômico e Social (BNDES) como instrumento de polí-
tica industrial. Essas medidas foram importantes para Lula articular ampla
uma base política e social para o seu governo (SICSÚ, 2013).
Em um quadro de expansão da economia mundial, o resultado
foi um crescimento bem superior ao período anterior, sustentado pelo au-
mento do consumo, do investimento e das exportações, acompanhado de
melhorias nos salários e no emprego. A situação scal melhorou e as reser-
vas internacionais do país cresceram (SICSÚ, 2013).
No entanto, o forte crescimento de 2010 aguçou as contradi-
ções do padrão de acumulação, o que começou a car evidente quando
a inação encostou no teto da meta de 6,5%. O governo temeroso de
um descontrole inacionário elevou a taxa de juros e o depósito com-
pulsório dos bancos e reduziu moderadamente os gastos público. A
elevação dos juros atraiu grande volume de capital especulativo para o
Brasil, resultando em maior valorização do real. Esse processo, somado
a melhora dos preços das commodities, aprofundou a valorização da
moeda. (BARBOSA, 2013, p. 84).
As altas taxas de juros e câmbio excessivamente valorizado re-
sultaram na deterioração das contas externas quando da crise mundial.
Depois de superávits entre 2003 e 2007 nas transações correntes, os dé-
23
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
cits voltaram e se agravaram. O balanço de pagamentos tem sido fechado
graças aos investimentos externos diretos e aos voláteis investimentos em
carteira. (GONÇALVES, 2013, p. 102-104, 124-125). Mas é preciso assi-
nalar que o nível elevado de reservas e a política scal permitiram suportar
a crise mundial, sem que esta se desdobrasse, como nos anos 1990, em
crise nanceira interna (BELLUZZO, 2009).
Juros altos e câmbio valorizado impactaram negativamente o
setor industrial, que sofreu forte concorrência de produtos importados,
pois muitos países, como a China, levaram a cabo uma política de rebai-
xamento dos preços de seus produtos manufaturados e de desvaloriza-
ção cambial. Embora a economia tenha crescido, parte da demanda tem
vasado para o exterior. A indústria tem perdido terreno nos mercados
internos e externos. Esta situação se reete no nível baixo dos investi-
mentos em relação ao PIB ao longo da última década. O crescimento
dos investimentos públicos foi insuciente para alterar a situação. Ob-
servam-se fortes indícios de desindustrialização no Brasil. Este processo
tem sido acompanhado no período recente pela reprimarização da pauta
de exportações (GONÇALVES, 2013).
Ao termino do governo Lula, em um contexto de grave crise in-
ternacional, apesar do crescimento econômico, uma série de problemas se
acumulavam, quais sejam: deterioração das contas externas, excessiva valo-
rização da moeda, taxas de juros extremamente elevadas, perda de terreno
do setor industrial, reprimarização das exportações, gargalos importantes
na infraestrutura, perda de competitividade no setor industrial, declínio
da produtividade e taxa de investimento insuciente para sustentar o cres-
cimento. Parte considerável desses problemas derivava da manutenção do
arcabouço macroeconômico neoliberal, que parece ser incompatível com
um crescimento voltado para o mercado interno, à medida que inibe os
investimentos e induz ao retrocesso estrutural da economia.
No geral, o governo Dilma manteve a política econômica do seu
antecessor. Pressionada pela alta da inação, Dilma a partir do início de
2011 restringiu o crédito, aumentou o compulsório e as exigências de ca-
pital dos bancos, aumentou o IOF (Imposto sobre operações de crédito,
câmbio e seguro - ou relativas a títulos ou valores imobiliários incidências)
24
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
sobre as operações de crédito pessoal, elevou os juros e conteve o gasto
público, mas não cortou os gastos com os programas sociais.
Medidas que somadas ao recrudescimento da crise internacional
em 2011 acarretaram uma desaceleração do PIB neste ano e em 2012. O
governo mostrou-se incapaz de aumentar substantivamente seus investi-
mentos em áreas estratégicas, como em infraestrutura. Dilma a partir de
agosto de 2011 tentou reverter o baixo crescimento reduzindo a taxa básica
de juros, tentando desvalorizar o câmbio, exibilizado a postura em relação
à meta da inação e adotando medidas de controle dos preços administra-
dos pelo Estado. O governo parecia estar disposto a modicar a política
macroeconômica neoliberal. A taxa básica de juros, em outubro de 2012,
atingiu a cifra de 7,25%, aproximando-se, em termos reais, das taxas vi-
gentes nas principais economias do mundo. Além de incentivar o consumo
e o investimento, a redução dos juros reduzia o peso da dívida pública no
PIB. Ao mesmo tempo, outras medidas de estimulo foram adotadas. O go-
verno esperava que essas medidas zessem com que a economia retomasse
uma trajetória de crescimento acelerado (SICSÚ, 2013).
Os setores rentistas caram bastante descontentes com essas me-
didas e com o largo apoio da grande imprensa passaram a pressionar cada
vez mais o governo para alterar sua política. Os liberais avaliavam como
inadmissível a aparente exibilização da política macroeconômica.
As medidas adotadas por Dilma, contudo, não conseguiram re-
verter a desaceleração da economia e as pressões inacionárias, que de-
rivavam de vários fatores, a saber: 1- elevação dos preços no setor de
serviços em virtude do alto nível de emprego e do crescimento dos salários;
2- elevação dos preços dos produtos agrícolas devido a problemas de que-
bra de safras; 3- elevação dos preços das commodities; 4- manutenção de
mecanismos de indexação de preços, principalmente dos controlados pelo
Estado. Os preços subiram apesar do fraco desempenho da economia, o
que indica não ser o excesso de demanda, como asseveram os ortodoxos, a
causa da inação. (SICSÚ, 2013).
As causas do fracasso da política de Dilma são as seguintes: 1-
cenário internacional adverso; 2- efeitos defasados das medidas restritivas
adotadas no primeiro semestre de 2011; 3- deterioração das expectativas
25
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
dos empresários; 4- diculdade de o Estado deslanchar os investimentos
no setor de infraestrutura para enfrentar os pontos de estrangulamento
da economia; 5- juros altos e 6- câmbio apreciado. A associação de juros
altos e câmbio valorizado inibiu o investimento, sobretudo o industrial
e desviou parte importante do crescimento da demanda para o exterior,
o que teve efeitos deletérios sobre o setor industrial em um contexto de
acirramento da concorrência internacional. Aqui se encontram os moti-
vos principais para a continuidade do baixo crescimento. O crescimento
do consumo, que vinha sendo o principal elemento da expansão da eco-
nomia desde 2003, não mais conseguia cumprir essa função, pois o endi-
vidamento das famílias apresenta limites ao que se soma o desequilíbrio
das contas externas.
A manutenção dos juros sistematicamente acima da média inter-
nacional, em um contexto de elevada liquidez global manteve a tendência
de apreciação do real até ns de ns de 2014 e início de 2015. Na situa-
ção de crise mundial e de acirrada concorrência, a valorização da moeda
é um dos elementos fundamentais para explicar a crescente deterioração
da balança comercial. A valorização também estimulou as remessas para o
exterior, o que também contribuiu para os crescentes décits das transa-
ções correntes. O Brasil se defronta com o agravamento do problema da
vulnerabilidade externa.
Neste contexto, a grande imprensa, principal porta voz dos seto-
res mais conservadores, intensicou as críticas a incapacidade do governo
em conter uma pretensa crise inacionária, que não existe. Passou a de-
fender de maneira cada vez mais furiosa a elevação dos juros, a contenção
do crédito e o corte severo dos gastos públicos e de direitos sociais. Para-
lelamente, desencadeou-se uma série de movimentos sociais reivindicando
melhorias nos transportes urbanos, na educação e na saúde e o m da
corrupção generalizada no setor público. Movimentos heterogêneos, com-
postos por vários setores de classe com interesses e reivindicações distintas.
Esses movimentos acuaram o governo, que foi pego de surpresa, sobretudo
pela abrangência das manifestações. Estes movimentos evidenciaram os li-
mites das políticas sociais focalizadas do governo e indicam a necessidade
de políticas universais.
26
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Sob fogo cruzado, o governo Dilma cedeu às pressões conserva-
doras e elevou os juros com o objetivo de deter a inação. Esta medida
contribuiu para aprofundar a desaceleração da economia, ao que se soma
o quadro internacional instável. A situação de crescente vulnerabilidade
externa, o baixo crescimento econômico, a perda de terreno do setor
industrial, a persistência das pressões inacionárias, a reprimarização das
exportações, a necessidade de ampliar substantivamente os investimentos
nas áreas sociais, na infraestrutura e na proteção ao meio ambiente co-
locam questões de difícil solução a curto ou médio prazo. Na campanha
eleitoral do ano passado, Dilma indicou que enfrentaria esta situação
buscando uma alternativa ao ajuste recessivo, embora sinalizasse desde a
retomada da majoração dos juros pelo Banco Central uma guinada para
uma política de contenção. Esta postura foi reforçada após a vitória elei-
toral de novembro de 2014.
Apesar da vitória eleitoral, o governo rapidamente anunciou que
implementaria uma política recessiva, o que não foi suciente para acalmar
as oposições inconformadas com a derrota e decididas a retomar o poder.
Em pouco tempo, as condições de governabilidade se deterioraram sob
a pressão da deterioração da situação econômica (em parte causada pelas
próprias medidas recessivas adotadas pelo governo), da persistência da crise
internacional, da onda de casos de corrupção, da campanha diuturna da
impressa contra seu governo e pela implosão de sua base no Congresso.
Símbolo dessa linha política foi a nomeação de Joaquim Levy, indicado di-
retamente pelo capital nanceiro para ocupar o Ministério da Fazenda. Ao
optar por essa estratégia fechou a possibilidade de articular apoio popular
contra a austeridade e em favor do emprego o dos salários.
Esta política levou o governo Dilma a se afastar dos setores po-
pulares ao mesmo tempo em que sua base de sustentação no Congresso se
esfarelou. O governo enfrenta acirrada oposição da esmagadora maioria da
classe dominante e das classes médias. O espaço parece aberto para saídas
mais à direita, em consonância com o encaminhamento da crise estrutural
do capitalismo global, que até o momento tem sido conservador.
27
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
conSiderAçõeS finAiS
As políticas econômicas de Lula e de Dilma buscaram manter
o arcabouço macroeconômico neoliberal herdado de FCH e ao mesmo
tempo implementar medidas voltadas para a expansão do mercado interno
e para enfrentar os históricos problemas sociais brasileiros. Esta linha de
ação mostrou-se possível enquanto a economia mundial cresceu a taxas
elevadas, o que permitiu reduzir momentaneamente a vulnerabilidade ex-
terna e controlar a inação, à custa de uma das mais elevadas taxas de juros
do mundo e de persistente valorização cambial. Os efeitos dessa estratégia
foram deletérios para a economia brasileira. A crise mundial e a política
macroeconômica neoliberal, calcada sobretudo no câmbio valorizado, nas
altas taxas de juros, nas metas inação e no superávit primário, inviabili-
zaram essa estratégia, pois a medida que a inação chegou perto do teto
da meta o governo aumentou os juros, o que desestimulou o consumo e o
investimento e contribuiu para valorizar ainda mais a moeda, em um con-
texto de elevada liquidez internacional e deterioração das contas externas.
Os estímulos a demanda, adotados para neutralizar a crise, vazaram, em
grande parte, para o exterior. Parte dos subsídios recebidos pelas empresas
foram desviados para aplicações nanceiras. Com a retração da indústria
e do investimento o crescimento foi decrescente e acompanhado de maior
vulnerabilidade externa. Este quadro projetou-se para o segundo mandato
de Dilma, que ao invés de romper com a terapia recessiva a aprofundou,
distanciando-se da sua maior base de sustentação, os trabalhadores, que
poderiam se mobilizar para a manutenção do emprego e dos salários. A po-
lítica recessiva imposta pelos interesses do capital globalizado fragiliza a po-
sição do Brasil e joga a maior parte do ônus da crise sobre os trabalhadores.
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29
Novas tendências da militarização da
Segurança Pública no Brasil
Luís Antônio Francisco de Souza
aís Battibugli
Luana de Carvalho Silva Gusso
introdução
Ponto fundamental para a compreensão dos atuais dilemas da
segurança pública brasileira reside no fato de que a Constituição de 1988
não avançou signicativamente na reforma do aparato de segurança e justi-
ça criminal do país herdado do regime militar. As instituições policiais não
foram sucientemente adaptadas para a vivência do estado de direito, para
atuar nos ditames da legalidade, transparência, eciência com sistemas de
avaliação, controle e accountability independentes e conáveis (FÓRUM
BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2009, p. 6; FONTOURA;
RIVERO; RODRIGUES, 2009, p. 148). O modelo institucional de segu-
rança pública no pós-88 conservou ampla margem de autonomia dos esta-
dos regionais na gestão da segurança local. Com isso, o sistema se apresenta
descentralizado e multiplamente descoordenado (BATTIBUGLI, 2009, p.
40-46; CRISTINO, 2008).
Devido a essa ausência de reformas estruturais no modelo de
segurança pública, o governo federal pouco atuou na segurança pública
local, deixada sob-responsabilidade dos governos estaduais. Nos anos 90,
diagnósticos sobre a (in)segurança pública no país apontaram três tipos de
30
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
problemas a serem enfrentados: a) autoritarismo e violência ilegal; b) grave
situação das polícias e penitenciárias estaduais; e c) criminalidade violenta
crescente (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,
2007, p. 268).
Nesse contexto, a partir dos anos 2000 o governo federal se in-
cumbiu da tarefa de criar e coordenar um Sistema Nacional de Segurança
Pública (SNSP) ao lançar o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP),
que estabeleceu quinze compromissos para aperfeiçoar o setor, dentre os
quais, a redução da violência urbana, eliminação de chacinas e execuções
sumárias. Em 2007, é lançado o Programa Nacional de Segurança Públi-
ca com Cidadania (Pronasci), para efetivar diretrizes do PNSP e articular
ações de segurança e políticas sociais com proteção e respeito aos direitos
humanos na esfera federal, estadual e municipal (FONTOURA; RIVE-
RO; RODRIGUES, 2009, p. 171; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2010,
CRISTINO, 2008). Entretanto, em paralelo ao projeto de “segurança
cidadã”, o governo federal também optou por regulamentar a utilização
direta das Forças Armadas (FA) na segurança pública, como atribuição
subsidiária, em “Operações de Garantia da Lei e da Ordem” (Op. GLO),
como polícia ostensiva, com aval do Presidente da República (BRASIL,
1999, Lei Complementar 97; BRASIL, 2001, Decreto 3.897).
As forças policiais (militarizadas) passam a oscilar entre o dever
de “enfrentar” ou “combater” a criminalidade utilizando os recursos apre-
goados pela força e pela doutrina de segurança (o uso da arma, da violên-
cia, da força e da hierarquia) e o dever de promover cidadania a partir da
segurança. Uma lógica que fomenta o caminho para uma cidadania con-
cebida a partir da pacicação social e do enfrentamento dos inimigos da
ordem pública, Uma ambiguidade perigosa que, evidentemente, nos alerta
para problema ainda não totalmente resolvido nas jovens democracias con-
tinentais (BAYLEY, 2001; LIMA, 1995)
1
.
Tematizar o recrudescimento da militarização da segurança pú-
blica brasileira demanda análise dos processos históricos, sociais e jurídicos
dos modelos, das doutrinas, dos procedimentos e da formação de pessoal,
adotados a partir do discurso militarizado para a realização de atividades de
1
A tendência é regional, por várias razões. Para uma visão geral, ver Revista Latinoamericana de Seguridad
Ciudadana. Militarización de la seguridad ciudadana. Número 12, 2013.
31
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
segurança de natureza civil (ZAVERUCHA, 2005, 2010). Deve-se apon-
tar para os contornos de poder delineados pela atuação das Polícias Mili-
tares em todo o país. Como principal corporação policial, é responsável
pelo policiamento ostensivo e preventivo, sendo organizada militarmente
e, embora, legalmente subordinada ao poder executivo estadual, em última
instância, continua atrelada ao modelo militarizado do Exército brasileiro
(ZAVERUCHA, 2005, 210; AGUILAR, 2012).
De modo geral, as doutrinas de segurança costumam atribuir às
instituições militares o monopólio estatal da força física por meio do uso
autorizado e legal da arma. Modelo de uso da força que ora transita pela
legitimidade – atribuída legalmente; ora pela coação – devido ao abuso
de autoridade. Embora a autorização para o uso da força seja uma carac-
terística fundadora destas duas instituições, é importante ressaltar que a
polícia é caracterizada pela ausência do uso sistemático da força enquanto
que o exército preconiza o uso da arma como instrumento dissuasório por
excelência. Além do mais, a doutrina militar, o armamento, a instrução e
o treinamento da Polícia e do Exército são distintos. Em termos de con-
cepção e de prática, a polícia não deve aprender nem usar táticas de guerra,
assim como o Exército não deve ensinar ou usar técnicas de policiamento
em contextos urbanos, por exemplo. Mas, em países como o Brasil, as
competências policiais e militares não estão claramente denidas, como se
nota na falta de lei complementar do parágrafo 7º do art. 144 da CF de
1988, sobre a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela
segurança pública. A segurança pública acaba por se confundir com segu-
rança nacional. O país adotou modelo de polícia que ainda está fortemente
atrelado à defesa do Estado. No Brasil, “o processo de policialização das FA
ocorre simultaneamente ao de militarização da Polícia.” (ZAVERUCHA,
2005, p. 19).
Pensando com Michel Foucault, as novas tecnologias de poder
e de controle caminham na direção de um governo “dos homens e das
coisas” (FOUCAULT, 1999, 2008) focado na gestão da população e da
administração das vidas selecionadas a partir de diversos critérios, como a
eciência para o trabalho e a utilidade econômica. Nesse sentido, estaría-
mos no percurso de um processo histórico cujo escopo é a politização da
vida útil a partir de mecanismos de poder e de saber cada vez mais rena-
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
dos com a produção e manutenção da vida populacional. Tais mecanismos
são descritos por Foucault como mecanismos de segurança, destinados a
controlar o nascimento, a mortalidade, a reprodução e a manutenção co-
tidiana das vidas úteis. São estratégias de poder reiteradas pela lógica da
manutenção de um “bom” corpo populacional requerendo dispositivos de
seleção, proteção e garantia dos corpos humanos. Eis a entrada dos saberes
demográcos, estatísticos, biológicos, geográcos e médicos nas análises
sobre a população e, concomitantemente, a incursão da vida em uma po-
lítica de segurança.
Se a vida populacional se torna um alvo de poder (ou biopoder),
os mecanismos de segurança não serviriam apenas para “proteger e man-
ter” as vidas úteis politicamente. Faz parte destes mecanismos a elaboração
de estratégias de seleção e de segregação das vidas desprezadas. Uma gestão
da vida humana que preserva e exclui segundo os dispositivos de poder
associados. A partir deste cenário, é possível inferir que a gestão da crimi-
nalidade se torna instrumento interessante para lógica de poder pautada
sobre a vida humana.
É nesse sentido que diversos autores, entre eles Foucault, deli-
mitam cenário social designado como sociedade punitiva ou sociedade de
controle. Um cenário em que a lógica da punição e do enfrentamento da
criminalidade obedeceria à lógica dos mecanismos de segurança, ou seja,
obedeceria às estratégias de seleção, de controle e de punição para parcelas
da população mais vulneráveis. Esta é uma estratégia tão vitoriosa que o
próprio termo “segurança” se tornou uma espécie de senso comum para
ações de controle populacionais por meio de estratégias, não raro, ligadas a
um macro sistema de justiça penal, cuja forma englobaria os aparelhos po-
liciais, judiciais e penitenciários. Nesse sentido, especialmente em relação
à formação das polícias, um governo centrado na gestão da vida articula
de modo bastante preciso uma instituição de controle que intervém dire-
tamente na vida humana, selecionando e “prendendo” aqueles que estão
para além da utilidade do sistema econômico ou a docilidade do poder. As
polícias em uma sociedade de controle tem seu papel institucional cons-
tantemente preservado e rearmado como um mecanismo vital para a se-
gregação das parcelas inadequadas das populações.
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Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
eStAdo, políciA e ordem SociAl
A segurança interna dos Estados Nacionais, no mundo ocidental,
foi construída como extensão do militarismo. As forças de vigilância e o
policiamento rural e urbano foram extensão das funções das organizações
militares. A segurança interna pode ser compreendida como extensão da
guerra pelos meios da violência, mas também por outros meios, como é o
caso da justiça.
O modelo de polícia dos países europeus continentais foi cons-
truído, neste processo, como polícia do rei, que o defende contra os inimi-
gos externos e contra os súditos rebelados ou inéis. A divisão de funções
policiais começa a se dar entre policiamento militarizado e o policiamento
enquanto gestão política da população. As guarnições militares, estaciona-
das em várias regiões do território, começam a dividir suas atribuições com
a polícia que neste momento era parte da estrutura judicial. Basicamente
este é o modelo francês que será exportado para vários países após a era
napoleônica: gendarmerie e polícia nacional. Com variações importantes,
este modelo será adotado no continente sul-americano. E a gendarmerie
cada vez mais assumirá a função de policiamento armado e preventivo
e, gradualmente, assumirá um papel destacado na gestão governamental
(FOUCAULT, 2008; DIEU, 1993).
O modelo anglo-saxão, baseado na common law é uma experi-
ência diversa. A polícia é tida como extensão da comunidade, os policiais
são cidadãos jurados e armados que cumprem mandato comunitário.
O policiamento como forma local de auto-vigilância. Durante muitos
anos nos séculos XVII e XVIII os ingleses não aceitavam a presença da
polícia como um exército aquartelado. Esta situação muda em parte com
a criação da Polícia Metropolitana de Londres (1829). Referência para
as polícias modernas, criadas durante o século XIX e XX, a Policia Me-
tropolitana será composta por policiais civis, uniformizados, sem uso de
armas de fogo, voltados para o controle da ordem pública, de forma per-
manente, contínua e estratégica. Ao invés do policiamento se dar, como
no modelo continental, em situações casuais, com o uso de companhias
ou grupos de homens armados percorrendo aleatoriamente o espaço so-
cial em busca de malfeitores, o famoso bobby inglês percorre seu setor de
policiamento diuturnamente, conhecendo os moradores e os problemas
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
locais e construindo a conança entre governo e cidadãos (REINER,
1992; WADDINGTON, 1999).
breve hiStóriA dA políciA no brASil
Em 1969, ditadura militar extingue a Guarda Civil e funde sua es-
trutura à Força Pública, que passa a ser denominada de Polícia Militar (PM).
A PM passa a ter competência exclusiva pelo policiamento ostensivo, sendo
vedada a criação de qualquer outra polícia fardada pelos estados. A partir
deste momento, de forma explícita, a Polícia Militar será considerada reserva
do Exército. Com a criação da PM, as diferenças entre o policiamento farda-
do e civil se acirram. Neste período também foram criados batalhões que ti-
veram importante papel na repressão política e na montagem da máquina de
exceção do estado brasileiro: a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (ROTA) e
o Batalhão de Choque. A Rota, tropa de elite do militarismo autoritário, terá
em suas contas as maiores taxas de letalidade policial do período e, mesmo
hoje, ainda ostentam alto grau de violência em suas ações. O batalhão de
choque teve e ainda tem papel de destaque no controle de multidões, gre-
ves e manifestações públicas, sendo conhecido por sua terrível participação
no Massacre do Carandiru em 1992, quando 111 detentos foram mortos
(BATTIBUGLI, 2007; SOUZA, 2009; ZAVERUCHA, 2005).
A responsabilidade pelas forças policiais brasileiras, com exceção
da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia dos Portos, é
do Poder Executivo. As polícias respondem aos governadores dos Estados.
As Assembléias Legislativas estaduais são responsáveis pela denição de
seus regulamentos, da aprovação dos efetivos, do orçamento e das princi-
pais funções legais das forças policiais, mas os comandantes e os delegados-
-gerais têm importante autonomia para denir suas prioridades e políticas.
Como a segurança no Brasil ainda é vista como questão de Estado, o pro-
cesso de agenda setting ainda é cercado de obscuridades e inconsistências.
A CF de 1988 constitucionalizou o modelo tripartite da estru-
tura policial brasileira: Polícia Federal, Polícia Civil (PC) e Polícia Militar
(PM), com as Forças Armadas como garantia de que o sistema não ul-
trapassará seus limites (FONTOURA; RIVERO; RODRIGUES, 2009;
SOUZA NETO, 2008). De toda forma, a CF de 1988, pela primeira vez
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Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
na história brasileira, vai dedicar um capítulo à segurança pública. Como
arma Zaverucha (2005, p. 75-76), “a Constituição de 1988 nada fez para
devolver à PC algumas de suas atribuições existentes antes do início do
regime militar”, o que contribuiu para que hoje esteja “consolidada a mili-
tarização da área civil de segurança.” Pinheiro (1991, p. 51) é mais enfático
ao armar que a Constituição de 1988 reiterou a organização dos apare-
lhos repressivos formulada durante a ditadura: a Constituinte reescreveu o
que os governos militares puseram em prática. Não há transição, mas plena
continuidade. Mas o debate sobre a militarização da segurança pública não
se esgota por aí. Os municípios, que historicamente já tiveram sua cota de
responsabilidade na área da segurança, desde a Constituição de 1988 pas-
saram a ter a prerrogativa de criar suas guardas policiais. Na Constituição,
entretanto, os municípios poderiam criar guardas apenas para ajudar na
scalização de serviços públicos e na proteção de patrimônios municipais.
Mas, desde então várias cidades brasileiras vêm formando seus pequenos
exércitos de policiais armados, muitos dos quais carreando poderes de po-
lícia ou auxiliando as polícias em funções essencialmente de combate ao
crime (SENTO-SÉ, 2005). O efetivo de policiais armados vem crescendo
acompanhando a pressão midiática por mais segurança e, por que não di-
zer, acompanhando de perto o crescimento exponencial do mercado pri-
vado de segurança.
Embora na última década os crimes de homicídio, cometidos por
policiais militares em serviço, sejam passíveis de julgamento pela justiça
comum, mediante processo investigatório que se inicia tanto na caser-
na quanto na delegacia de Polícia Civil, os policiais militares ainda estão
submetidos à justiça castrense. Seus crimes ou desvios são investigados e
julgados por meio de mecanismos e comissões disciplinares militares. O
policial no seu trabalho civil responde à Corregedoria de Polícia que tem
características essencialmente militares e é uma forma de controle disci-
plinar interno. Nos últimos anos no Brasil as Ouvidorias de Polícia foram
criadas, mas estas não têm poder de investigação, resumindo-se a coletar
denúncias e encaminhá-las às autoridades processantes. O controle externo
das polícias militares ainda é pouquíssimo desenvolvido no país o que dá às
polícias militares ampla margem de arbítrio em função essencialmente civil
que é a da segurança pública.
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
A Constituição Federal (CF) de 1988 não alterou o Código de
Processo Penal Militar (CPPM) nem a decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral de 1978, que deniu o foro militar para julgar o policial. Em síntese,
quando um policial comete um crime, é aberto inquérito policial militar
(IPM), presidido por colega, e o julgamento se dá nos chamados conselhos
de sentença, compostos por quatro juízes militares e um juiz togado, sendo
que, para ser juiz militar basta ter patente ou posto superior ao do policial
que está sendo julgado. Para muitos analistas, esta sem dúvida é receita
para a impunidade decorrente de crimes cometidos por policiais militares.
Esta situação perpetua as práticas de violência, por um lado, e a falta de
conança da população nos agentes de segurança pública, por outro lado
(ZAVERUCHA, 2010; NÓBREGA JÚNIOR, 2010; LIMA, 2011).
deSmilitArizAção, um cAminho Sem SoluçõeS
A militarização da segurança, portanto, é problema fundamental
das sociedades latino-americanas. Sob o inuxo do narcotráco, do con-
trabando de armas e de bens, do tráco de pessoas e do terrorismo, a polí-
tica externa norte-americana tem insistido na intervenção direta nos países
produtores de drogas, por meio de uma forte militarização do combate,
com emprego de armas, helicópteros, técnicos especializados em guerri-
lhas, pessoal com formação militar etc. A integração latino-americana pa-
rece ser pautada pela desconança mútua e pelo reforço ao militarismo
como vetor de relações internacionais.
Nas nossas atuais sociedades complexas e dinâmicas, o problema
da militarização da segurança, portanto, dever ser colocado em perspecti-
va. Identicamos três aspectos correlacionados para que possamos compre-
ender o problema e colocá-lo em perspectiva analítica.
Em primeiro lugar, o Exército, e as FA de uma forma mais ampla,
penetram profundamente na organização das polícias militares, mantendo
as forças sob sua autoridade. Os estudos de Zaverucha (2010) exploram es-
tas permanências e apontam para suas consequências de democracia ainda
tutelada pelos militares.
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Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Em segundo lugar, a estrutura e organização das polícias mili-
tares continuam sendo feitas segundo o modelo e a disciplina militares;
a força militar continua sendo essencialmente aquartelada; há baixo grau
de accountability e controle social; nas academias há pouco treinamento
especíco de caráter essencialmente policial; a formação continua predo-
minantemente militar; linha hierárquica forte e pouco exível; sistema de
duplo ingresso na carreira policial; os praças têm baixíssima possibilidade
de vir a compor a elite da força policial (LIMA, 2011).
Em terceiro lugar, desde os anos 2000, o próprio Exército co-
meça cada vez mais acentuadamente a assumir papeis de policiamento,
com a regulamentação da atuação direta das Forças Armadas na segurança
pública, como atribuição subsidiária, em “Operações de Garantia da Lei e
da Ordem” (Op GLO), como polícia ostensiva, com aval do Presidente da
República (BRASIL, 1999, Lei Complementar 97; BRASIL, 2001, Decre-
to 3897; MINISTÉRIO DA DEFESA, 2014).
Tal fato foi possibilitado pela previsão legal do art. 142 da CF
de 1988 da permanência do papel de tutela das Forças Armadas na ma-
nutenção da ordem pública, ao denir sua missão de “defesa da Pátria,
dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem” (BRASIL, 1988), ou seja, abriu-se, em plena democracia, espaço
para o papel de polícia das FA.
Note-se que nos países desenvolvidos há clara divisão entre a fun-
ção das FA de proteção contra ameaças externas e da polícia na proteção
da ordem pública interna, mas na América Latina, em geral, há mescla
entre as áreas de defesa externa e de segurança interna, com exceção da Ar-
gentina, que após o regime militar, separou formalmente as atribuições de
defesa para as FA e de segurança interna para a polícia (SANTOS, 2004;
NÓBREGA JR, 2010).
A presença das Forças Armadas na manutenção da ordem pública
na CF de 1988 foi conseguida por lobby dos militares, mas sua efetiva-
ção deu-se, no plano interno, por interesse do governo federal em ter as
FA como papel complementar na segurança interna e, no plano externo
pela redenição da missão estratégica das FA da América Latina feita pela
Otan e pelos EUA, que, após a Guerra Fria, adotaram novos parâmetros
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
de defesa para o continente. Nova ordem mundial, novas ameaças. Assim,
as FA, antes utilizadas na luta anticomunista interna passaram a ter papel
de polícia e ter como principal foco o combate ao narcotráco, crime or-
ganizado e violência e distúrbios urbanos, de forma secundária, além de se
juntarem às forças de paz da ONU, o que ocorreu no Brasil com envio de
tropas do Exército em missão da ONU ao Haiti desde 2004 (SANTOS,
2004; NÓBREGA JR, 2010).
A partir do decreto 3.897 de 2001, foi permitido o emprego das
FA no âmbito interno não somente em caso de estado de defesa, estado
de sítio, mas também em caso de intervenção federal, solicitada pelo go-
vernador de estado ou do Distrito Federal (DF). Com a ressalva de que o
emprego das FA “deverá ser episódico, em área previamente denida e ter
a menor duração possível.” (BRASIL, 2001).
Em 25 de agosto de 2010, o governo do presidente Lula sancio-
nou a Lei Complementar nº. 136 que atribuiu poder de polícia para as
Forças Armadas (FA) nas regiões fronteiriças do Estado Brasileiro. Segun-
do o dispositivo legal, as FA passam a exercer certos atributos de “poder de
polícia”, como a possibilidade de realizar patrulhamento, revista de pesso-
as, de veículos terrestres, de embarcações, de aeronaves e, ainda, prisões em
agrante delito (BRASIL, 2010).
Como exemplo, o exército foi mobilizado para prestar segu-
rança na conferência da ONU para o meio-ambiente, a Eco 1992; em
várias oportunidades, o exército interveio em ações nas favelas do Rio de
Janeiro; o exército foi chamado para dar conta da segurança nas greves
da polícia dos anos 1997, 2014; o exército garantiu segurança durante
a realização dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro em 2007; teve e
continua tendo papel na viabilização dos projetos de construção e refor-
ma de moradias e de acessos às comunidades do Rio de Janeiro, dentro
do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Os militares destacados
para esta missão em particular eram treinados pela polícia para lidar com
contexto de guerrilha urbana e ameaças de gangues de jovens (BRITO;
BARP, 2005; MARIANO; FREITAS, 2002; FONTOURA, 2005).
Na Copa das Confederações de 2013, formou-se operação militar
de defesa com 23 mil militares a custo de 710 milhões de reais (GODOY,
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Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
2013). Durante a Jornada Mundial da Juventude, da Igreja Católica,
mais uma vez os militares foram chamados, para a segurança do Papa
(MILITARES..., 2013). Durante a onda protestos da população em junho
de 2013, os militares zeram a segurança dos principais prédios do governo
em Brasília (CORREIO BRAZILIENSE, 2013; MINISTÉRIOS... 2013;
GODOY, 2013).
Em 2014, os militares atuaram ostensivamente na segurança pú-
blica interna durante a realização da Copa do Mundo. A segurança da
Copa foi coordenada pelo Ministério da Justiça com apoio do Ministério
da Defesa e foi dividida em três eixos: o Eixo Segurança, coordenado Secre-
taria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos do Ministério da
Justiça (SESGE/MJ), criada em 2011, é responsável pela coordenação dos
órgãos envolvidos na segurança pública e na defesa civil da União, Estados
e Municípios; o Eixo Defesa, integrado pelo Exército, Marinha e Aeronáu-
tica, e o Eixo Inteligência, integrado pela Agência Brasileira de Inteligência
e pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O
governo federal investiu cerca de 1,17 bilhão de reais em equipamentos e
capacitação das forças de segurança, que reuniram aproximadamente 180
mil homens, dentre os quais, 100 mil policiais, 60 mil militares, 20 mil
prossionais da segurança privada.
Coube às Forças Armadas a atribuição de defesa do espaço aéreo
e marítimo, de fronteiras, guardas das infraestruturas críticas, defesa em
ataques com armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares (QBRN)
e ações de contraterrorismo. Em cada Estado com cidade-sede da Copa
havia uma força de contingência do Exército, em média com 3 mil ho-
mens, de prontidão para restabelecer a ordem sob comando de general,
que atuaria caso o governador do respectivo Estado solicitasse à Presidência
da República. Dessa forma, o tema da policialização das FA merecerá dos
pesquisadores mais atenção e pesquisa nos próximos anos (PORTAL DA
COPA, 2014a, 2014b; SESGE, 2014; CASTRO, 2014).
Outros indicadores podem ser somados melhor problematização
desta imbricação entre segurança nacional e segurança pública, como a
consolidação da Força Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2007, Lei
11.473), na forma de convênio cooperativo entre a União e os Estados e o
Distrito Federal (DF) para “executar atividades e serviços imprescindíveis
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patri-
mônio”, com policiais civis e militares dos Estados e do DF, com atuação
em conitos em áreas urbanas vulneráveis como favelas e até em grandes
eventos, além da implantação das Unidades de Polícia Pacicadora (UPP)
no Rio de Janeiro, com a participação de policiais civis, policiais militares
e das Forças Armadas. Em 2012, o Exército foi utilizado na ocupação dos
Morros do Alemão e da Penha.
No caso da ocupação do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro,
iniciada em abril de 2014, com a participação de policiais militares e civis
e militares do Exército e da Marinha, a participação das FA deverá se es-
tender até abril de 2015, totalizando um ano de duração, o que contraria o
decreto 3.897 de 2001 que previa ser o emprego das FA apenas episódico,
com a menor duração possível. Como forma de contornar a legislação, o
governo federal renovou por três vezes o instrumento de Garantia da Lei
e da Ordem (GLO). A ocupação se estendeu por 16 comunidades que
compõem o Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, de cerca de
130 mil habitantes, com mais de 2 mil homens apenas das FA. A GLO
assegura aos militares das FA o poder de efetuar prisões em agrante, pa-
trulhamentos e vistorias. Poder que teria sido extrapolado, pois morado-
res e representantes de associações de moradores denunciaram invasões de
domicílios sem mandato judicial, humilhações nas abordagens, agressões
feitas por militares e policiais militares (UPPRJ, 2014; PORTAL BRASIL,
2015; CAVALCANTI, 2014; VALDEVINO; ANTUNES, 2014).
A opção pela GLO deveria ocorrer, de forma excepcional e breve,
ao se esgotarem todas as outras formas possíveis de manutenção da ordem
pública, como o uso das forças policiais estaduais, a mobilização da Força
Nacional de Segurança Pública, e não ser a GLO o recurso preferencial e de
impacto midiático para os governadores, como ocorreu, em 2014, na Bahia,
em conitos de demarcação de terras indígenas, em 2014, em Pernambuco,
durante greve da PM, também em 2014, e no Rio de Janeiro, de 2012 a
2015 (G1, 2014; GOMIDE, 2012; MILANEZ, 2014, PORTAL BRASIL,
2015). Ou seja, as imbricações entre segurança nacional e segurança pública,
bem como o recrudescimento da militarização, indica claramente uma de-
manda por “militarização do campo social” (FLEURY, 2012).
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Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
conSiderAçõeS finAiS
Polícia e segurança pública são temas e conceitos muito vastos.
Temos a tendência a conceber estas questões de forma restritiva pela via do
combate ao crime e do direito penal-punição e não num senso mais am-
plo de gestão e governança públicas. Nos anos 1990, houve um renovado
ânimo para discutir polícia no Brasil a partir da proposta de unicação das
duas polícias estaduais (estranhamente estas discussões nunca colocam a
Polícia Federal na equação). Mas o debate chegou a um dead-end. Talvez
hoje seja o caso de retomá-lo a partir de uma análise mais ampla sobre
os benefícios da desmilitarização da segurança. As festejadas experiências
cariocas das Unidades de Polícia Pacicadora (UPP), por exemplo, são im-
portantes iniciativas de pacicação dos espaços sociais urbanos na medida
em que introduzem a chave do policiamento de proximidade e permanen-
te nas comunidades antes dominadas pelos tracantes e pelas milícias. Mas
elas ainda estão fortemente atreladas ao modelo militar da ocupação terri-
torial e os policiais estão sempre esperando o momento em que a ordem de
cima venha para a sua desmobilização.
Além de o militarismo considerar a segurança como um problema
de Estado e defesa da soberania, ele reforça a idéia equívoca de que a seguran-
ça deve ser dimensão meramente policial, unidimensional de combate aos
criminosos de rua, e não um problema que necessita de estratégias amplas e
versáteis de políticas públicas. O problema hoje no Brasil é que não há um
modelo de estrutura policial a ser seguido. A unicação e a desmilitarização
ainda não cativaram a opinião pública e não são consensuais entre os especia-
listas em relação aos seus efeitos imediatos. O limite ainda é que a estrutura
policial no país está constitucionalizada e qualquer mudança envolve movi-
mentações de grande porte e não garante o resultado nal. Por isto muitos
pesquisadores estão pensando mais em mudar sutilmente a instituição por
dentro e não sua doutrina de segurança nacional, incluindo direitos huma-
nos e disciplinas policiais e de ciências humanas na formação do policial
militar, aumentando a exigência de escolarização dos policiais e introduzir
novas ideias sobre segurança no debate nacional. Em síntese, o Brasil pode
escolher vários caminhos para mudar a segurança pública e a desmilitariza-
ção pode ser um passo na direção de sociedade mais justa e de justiça mais
adequada às demandas sociais por cidadania, inclusão e respeito.
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Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
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Qual África?
Diálogos entre africanos e
afro-brasileiros no Brasil
Egor Vasco Borges
[...] De qual áfrica falamos? De qual áfrica somos lhos? Qual áfrica
amamos? Qual áfrica conhecemos? [...] (FONSECA, 2007, p.05)
introdução
Tomando como ponto de partida as questões supracitadas pode-
-se, explicita e implicitamente, constatar que são varias as “Áfricas” vividas
e retratadas tanto em estudos, livros, revistas e na mídia no geral, são varias
as que se buscam cotidianamente tanto pelos africanos bem como pelos
afro-diasporicos e ainda aqueles que para alem de seus traços, fenotípicos
e/ou genotípicos, possuem algum vínculo afetivo, acadêmico ou praticam
religiosamente cultos associados aos povos do velho continente.
Para Mia Couto (2013), a África presente no imaginário e no
cotidiano dos brasileiros, seja qual for sua origem étnico-racial, é folclori-
zada - condenada por destino a pobreza, conitos permanentes, ignorada
pelos deuses do cristianismo e ao mesmo tempo repleta de outros deuses,
para alem daqueles que as religiões ociais implantaram. Ainda que esteja-
mos em pleno seculo XXI, as instituições de ensino brasileiro, incluindo as
universidades, continuam alheias a esse mundo tão ignorado e por isso des-
conhecido. O que faz com que prevaleçam ideias pré-concebidas que nos
48
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
remetem a uma África sofrida – retrato da mídia - objeto de invenções, de
construções estereotipadas, estigmatizantes e preconceituosas, sobretudo
na literatura colonizante e colonizadora cristalizando verdades e inuen-
ciando modos de pensar e agir em relação aos negros/as e/ou africanos/as.
Para preencher tamanha ausência ou negligencia no sistema edu-
cacional, o governo brasileiro aprovou a lei 10639 de 2003 na qual se
depositou a fé no resgate do passado histórico dos afro-brasileiros vislum-
brando-se uma possibilidade de reencontros ou restabelecimento de vín-
culos identitários entre africanos e afro-brasileiros ainda que se desconheça
qual das áfricas teria relevância pedagógica para dar amparo a esse vazio de
memória ou ajustes com o passado. Em nosso entendimento, a existência
ou vontade de se constituir um projeto educacional multicultural é de
extrema importância no respeito da diferença e da diversidade e principal-
mente no mundo em que vivemos. A aldeia global a qual vivemos exige
igualmente que o debate sobre a cultura dos povos tenha a verdadeira di-
mensão universal.
Nesse contexto, o exercício pedagógico de transmissão das histo-
rias ocultas de povos colonizados transcende a complexa expectativa de en-
contrar conexões com o passado, ou seja, o ensino da historia da África não
deve ter o fundamento no retorno às origens, mas sim numa possibilidade
de se dar a conhecer outras realidades e outros saberes outrora silenciados
pelas circunstancias históricas e geopolíticas (PELÚCIO, 2012)
1
por for-
ma a encontrarem-se zonas de contato para reexões em perspectivas con-
tra-hegemonicas que se distanciem das preestabelecidas pelas sociedades
ocidentais e que se revelem como contributo dos povos subalternos para
uma humanidade melhor.
Certamente, para a lei supracitada a áfrica continua sendo essen-
cializada - una e indivisível - e ignorada do ponto de vista da sua diversida-
de étnico-racial. Importa frisar que a diversidade cultural dos povos africa-
nos esta amplamente marcada por uma pluralidade étnica, racial, religiosa,
1
Importa realçar aqui a experiência da autora Larissa Pelúcio de nacionalidade brasileira que descreve o contexto
das ausências de determinados povos no cenário de ensino aprendizagem brasileiro: “Foi também nos bancos
escolares que aprendemos que as teorias produzidas em determinados lugares geo-históricos e escritas em línguas
como inglês, francês e alemão, são mais “avançadas” e possuem um valor universal incontestável, servindo
para descrever realidades diversas e falar de ciência com a mesma propriedade com que se faz poesia. [...] É
compreensível que nossas alunas e alunos, muitos deles vindos das classes média e média alta do Brasil, tenham
diculdade de se pensarem como “os outros.” (PELÚCIO, 2012, p. 397-398).
49
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
política mesmo no interior de cada país e tem sido considerado principal
obstáculo na construção da identidade nacional e dos Estados pós-colo-
niais majoritariamente considerados étnicos o que tem propiciado disputas
que, signicativamente, desembocam em conitos armados interétnicos
(KI-ZERBO, 2009).
A ideia de empreender este esforço de entender a África presente
nos diálogos entre africanos e seus interlocutores de raça negra – afro-brasi-
leiros - é resultante de interações que ocorreram no espaço acadêmico e em
circunstancias extracurriculares, especicamente, em algumas regiões do
interior do Estado de São Paulo por onde transitei na vigência do convenio
educacional PEC-PG (Programa Estudante Convênio de Pós Graduação).
O propósito é discutir alguns elementos da linguagem presentes nesses di-
álogos que reiteram o binarismo (bárbaro*civilizado versus atrasado*evolu-
ído), uma lógica da cultura colonial que se mantém presente na atualidade
e que expressa distanciamentos entre dois grupos, aparentemente, seme-
lhantes. Em momentos, contextualmente, justicáveis se aceitam como
iguais enquanto recurso político para legitimar suas praticas de militância,
religiosa e/ou beneciar-se de políticas publicas e noutros, como diferentes
destacando-se, hierarquicamente, e reivindicando para si uma negritude de
superioridade ou distinta.
Aqui encontramos um dos efeitos diretos da colonização, pois a
expressiva diáspora africana não guarda em si apenas similaridades como
também múltiplas divergências que se revelam revitalizadoras de um ato
em que a própria vitima é também autora e não se reconhece como tal
fato constatado há várias décadas: “O negro tem duas dimensões. Uma
com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se di-
ferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que
esta cissiparidade é uma consequência direta da aventura colonial [...].
(FANON, 2008, p.33).
Diante de experiências pessoais vividas, fora de meu país, à se-
gunda dimensão da qual o autor não desenvolve na sua obra Peles negras
mascaras brancas, é a que pretendo retratar no presente artigo, sobretudo
nos aspectos divergentes em que se busca estabelecer fronteiras e delimitar
os aspetos de ordem identitária. Ainda que o autor não tenha dado a de-
vida atenção ao assunto é possível reter no seu raciocínio a seguinte reco-
50
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
mendação: “Um estudo deveria ser dedicado à explicação das divergências
que existem entre antilhanos [diáspora negra] e africanos. Talvez o façamos
um dia.” (FANON, 2008, p.31).
Se retomarmos a historia da colonização européia veremos que
esta relação hierarquizada entre africanos e a diáspora negra tem lá o seu
respaldo. A administração colonial, em vários países do continente africa-
no, atribuía aos negros da diáspora funções de seu imediato colaborador
ou auxiliar. Um tratamento diferenciado que os colocava numa posição
de superioridade em relação aos negros africanos. A relação entre ambos,
desde essa época, passou a ser estruturada a partir dessas posições em que
os mais próximos do colonizador se viam superiores e os mais distantes
como inferiores de todos. Sentiam-se diferentes dos demais colonizados
desencadeando comportamentos diversos de negação de si como é possível
constatar neste relato:
Conhecemos no passado, e, infelizmente, conhecemos ainda hoje,
amigos originários do Daomé [Benin] ou do Congo que declaram ser
antilhanos. Conhecemos no passado e ainda hoje antilhanos que se
envergonham quando são confundidos com senegaleses. É que o an-
tilhano é mais “evoluído” do que o negro da África: entenda-se que
ele está mais próximo do branco; e esta diferença existe não apenas
nas ruas e nas avenidas, mas também na administração e no Exército.
Qualquer antilhano que tenha feito o serviço militar em um regimento
de infantaria colonial conhece essa atormentante situação: de um lado,
os europeus, os velhos colonos brancos e os nativos; do outro, os infan-
tes africanos. Lembro-me de certo dia, quando, em plena ação, o pro-
blema era destruir um ninho de metralhadoras inimigo. Por três vezes
os senegaleses foram enviados, e três vezes rechaçados. Então um deles
perguntou porque os toubabs [europeu ou branco] não iam. É nesses
momentos que o antilhano não sabe ao certo se é toubab ou indígena,
mas não considera a situação preocupante, pelo contrário, a considera
normal. Só faltava essa, sermos confundidos com os pretos! [...] eles são
mais selvagens do que nós (FANON, 2008, p.40-41).
A situação retratada aqui descreve o cenário de relações entre
africanos e afro-diasporicos na França na década de 1940-50 sendo de
destacar o contexto de combate militar em defesa do país colonizador
em que negros provindos das colônias representavam o exercito Fran-
cês, em plena segunda guerra mundial. Uns na infantaria, praticamen-
51
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
te, com menos possibilidade de sobrevivência mera carne de canhão e
os demais numa posição relativamente favorável sendo a linha interme-
diaria entre a base da pirâmide e o topo da hierarquia militar composto
pelos franceses brancos.
Contudo, o dialogo é travado num momento posterior em que
alguns como Frantz Fanon (antilhano) e Leopold Sédar Senghor (sene-
galês), participantes na guerra e após o m decidiram ingressar para a
o ensino superior francês. Embora fossem universitários, minimamen-
te informados, para eles ser negro-africano era estritamente desconfor-
tável, corpo em que ninguém queria estar, pois não havia positividade
nenhuma. Para os africanos, estar no meio dos afro-diasporicos para ser
confundido como tal tornava-se principal estratégia de enfrentamento
a discriminação. Para os antilhanos, distanciarem-se destes, para não se
inferiorizarem era também vista como a saída do problema. Ambos ne-
gros porem o estar próximo um do outro possuía efeitos diferentes. Para
uns a ascensão e para outros a depreciação diante dos olhares europeus.
Em suma, a autonegação se destaca entre as principais escolhas de supe-
ração a discriminação e, simultaneamente, desencadeia outros processos
discriminatórios inter-raciais entre os excluídos remetendo aos negros
africanos a um duplo racismo.
Estas manifestações de auto inferiorização através da condição
fenotípica não foram vericadas apenas na diáspora negra como também
eventos semelhantes são comuns na África de hoje. Parte signicativa dos
nativos desacredita a governação do negro que desde as independências,
em substituição ao branco-colonizador, não conseguiu transformar a li-
berdade em bem estar social e econômico assistindo-se, gradativamente,
um declínio das condições de vida e do funcionamento das instituições do
Estado. Esta forma de ver e interpretar o mundo faz com que os africanos,
ainda hoje, vejam nos brancos-estrangeiros como a salvação dos problemas
e o negro a decadência, a incompetência e a ignorância. Esta autoagela-
ção que parte de essencialismos mantendo a superioridade de uns como os
portadores da razão, salvação e desenvolvimento e os outros como eternos
serviçais. Esta forma de pensar se na linha de analise designada por afro-
52
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
-pessimismo
2
principal fator que condiciona o não retorno dos intelectuais
e acadêmicos africanos para o continente, o desenfreado movimento mi-
gratório de africanos para Europa em condições penosas, o retraimento
do investimento estrangeiro bem como do entendimento da áfrica como
o lugar das trevas. Esta descrença sobre o território africano e seus nativos
como “condenados da terra” vem sendo defendida desde a era colonial. O
que per si reiteram o entendimento de que a Europa é o terreno das pos-
sibilidades diferentemente da África ou outros espaços terceiro-mundistas
que se encontram num tempo primitivo.
Ainda no continente africano e do ponto de vista racial o arqui-
pélago de Cabo-Verde, é um exemplo emblemático da rejeição de ser ne-
gro. Um país resultado da exploração comercial colonial europeia onde o
tráco e trafego negreiro deixou marcas bem visíveis do ponto de vista po-
pulacional. Antes um conjunto de ilhas despovoado em que foi constituída
a base de apoio logístico ao processo de exportação de escravos através do
Atlântico. Nela permaneciam e transitavam escravos e escravas bem como
colonizadores europeus de diversas nacionalidades até que desse encontro
emergiu um povo negro e mestiço. As discussões sobre sua negritude ou
africanidade não cessam, resultando no movimento intelectual claridade
que por algum período lançou as bases teóricas justicando-se portadores
de traços e civilidade européia. A ideia de que as origens geológicas da
ilha eram distantes da África são reforçadas e defendidas como forma de
se distanciar ou ignorar sua maternidade africana, pois seus nacionais são
resultantes das relações forçadas entre as escravas africanas e os coloniza-
dores (PEREIRA, 2011). Ainda atualmente os cabo-verdianos retomaram
2
Há inúmeras divergências em torno da temporalidade a que o termo se refere. Inicialmente, o colonizador
colocou o cristianismo como fator de salvação dos nativos africanos, havia que batiza-los para retira-los das
trevas e dar-lhes a luz como se não cultuassem alguma religião fato que foi se arrastando ao ponto de indivíduos
renomados no campo da literatura, medicina, antropologia e losoa fundarem seus discursos nessa lógica
da inferiorização da áfrica e do negro. O exemplo emblemático do lósofo alemão Hegel ao considerar como
um lugar sem razão e logo sem historia e sem liberdade havia que levar a ciência ou a escrita para retira-los da
ignorância e, ainda no contexto das independências, os Estados se mergulham em varias crises algumas geradas
por esse processo todo que desestimulava tanto parcerias internacionais e investimento no sentido de que não
há o que obter da áfrica se não prejuízos. Uma época em que o continente era predominado por “ONG´s”
humanitárias internacionais. Nesse contexto, o termo transita entre o discurso religioso, político e cientico
e, cou amplamente difundido na área das relações internacionais desde a década de 90 e se refere “A ideia
[...] que todos os males de hoje adviriam, então, de um pecado original, […]. É esse o raciocínio que amarra a
reconstrução do passado a um presente infértil, […] que vigorou até pouco e que ainda persegue mentes cultas
e especializadas […] em vários centros de estudos estratégicos no mundo, mesmo no Brasil.” (SARAIVA, 2015
p.39). O termo signica basicamente a descrença sobre o desenvolvimento da áfrica;
53
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
o debate no contexto das relações internacionais solicitando sua inclusão
aos Estados membros da comunidade dos países da união europeia como
uma via para se esquivar das adversidades que assolam o continente e ga-
rantir novas e positivas parcerias rumo ao desenvolvimento. A sua bandeira
nacional espelha de forma clara essa intenção de querer ser de outro lugar.
Em ambos os continentes e ocasiões distintas continuam patentes
os resquícios da colonização mobilizando debates para legitimar a inca-
pacidade racional do negro, o estranhamento entre indivíduos da mes-
ma raça e igualmente com o lugar – áfrica – do qual todos pretendem
se distanciar ou aproximar quando assim convém. Embora racialmente
semelhantes não se pode falar de povo negro – proposta dos entusiastas do
movimento pan-africano e negritude - que antes tinha validade enquanto
unidade política e intelectual em oposição à colonização europeia e branca.
A categoria raça perde a sua ecácia enquanto elemento fundante de uma
concepção identitária ancorada em pressupostos biológicos, rígida e essen-
cialista do ser negro ou africano.
Conforme Stuart Hall: (2011, p.12-13).
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unicada e
estável, esta se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas
de varias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. [...]
o próprio processo de identicação, através do qual nos projetamos em
nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e proble-
mático. [...] a identidade torna-se uma celebração móvel; [...] é deni-
da historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unicadas
[...]. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em dife-
rentes direções.
Para Fanon (2008) a discriminação do negro contra o negro é
um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão
dos espelhos que oferecem uma reexão distorcida do seu ser e lhe dá certa
ideia de superioridade perante aos demais semelhantes. Estes elementos
são comuns aos africanos no Brasil que se vem quase que, cotidianamen-
te, imersos numa realidade discriminatória da qual parte signicativa das
vezes é vista como propiciada pelo olhar branco, mas a realidade é dema-
siadamente assustadora porque a mesma pratica é reforçada por algumas
54
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
pessoas de quem menos se espera constituindo-se assim numa realidade
complexa e ilustrando a permanência do racismo numa vertente que en-
volve subjetividades no qual indivíduos de mesma cor não se vêm como
iguais recorrendo a demarcadores de diferenças usados, há vários séculos,
pelo poder colonial.
AfricAnoS e A diáSporA negrA: diálogoS no eSpAço AcAdêmico
e oS rimórdioS do debAte póS-coloniAl
Com o nosso olhar atento nas Américas, continente que recebeu
parte signica da população negra, na vigência da colonização, procura-
remos localizar as discussões teóricas sobre o dialogo entre os africanos e
afro-diasporicos. A ênfase será dada aos afro-brasileiros e as discussões no
espaço acadêmico onde várias interações entre ambos os grupos acontece-
ram e que repercutiram no enfrentamento dos problemas resultantes da
inferiorização do negro imposto pela colonização a partir de produções
literárias, movimentos sociais, entre outros buscando caminhos para se
pensar a partir de corpos, lugares e saberes menos privilegiados.
Segundo Ralston e Mourão (2007) as relações históricas entre
os africanos e as suas diásporas se arrastam desde século XIX e tem o seu
epicentro nos EUA. A iniciativa partiu da juventude negra intelectualizada
que buscou construir um discurso que possibilitasse a união entre os de
raça negra bem como a tomada de autoconsciência dos negros para que se
assumissem como tal. Nesse contexto, vários debates foram travados em
torno da liberdade e igualdade dos negros perante os outros indivíduos.
Um tema que aglutinou interesses comuns entre os africanos e a sua diás-
pora. A raça constituía principal demarcador da diferença entre o coloniza-
do e o colonizador e por esse motivo as discussões ignoravam as fronteiras
geográcas e todos os outros elementos de distinção considerando o povo
negro todos aqueles que vivenciavam a experiência colonial conrmando-
-se a importância, durante este período e contexto, dos aspectos biológicos
na construção da identidade do negro, ou seja, a primeira etapa da luta
contra a colonização europeia foi a racialização dos movimentos emanci-
patorios. Segundo Avtar Brah ((2006, p. 336):
55
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
O conceito de negro foi mobilizado como parte de um conjunto de
princípios e ideias constitutivas para promover a ação coletiva. Como
movimento social, o ativismo negro tinha como alvo gerar solidariedade;
ele [...] supunha que todos os membros das diversas comunidades negras
inevitavelmente se [identicassem] com o conceito em seu uso [...].
A áfrica movia assim os sonhos da sua diáspora por diversas partes
do mundo um sentimento que enaltecia os vínculos com o continente,
através de um olhar preocupado de seus descendentes que desejavam poder
modicar o curso da historia e ser sujeito dela. Este intercambio se carac-
terizou de diversas formas e fases, designadamente:
De 1880 a 1935, os laços entre africanos e negros americanos foram
essencialmente de cinco tipos: a) movimentos de retorno dos negros a
África [...] da América do Norte, [...] das Antilhas e do Brasil – para di-
versas regiões da África [...] b) evangelismo americano, com a ida de mis-
sionários afro-americanos para a África a m de propagar o Evangelho;
c) [...] corrente de estudantes africanos que se matriculavam em escolas
e universidades americanas para negros; d) pan-africanismo, revestido
de diversas formas (conferencias, criação de organismos, atividades edu-
cativas, literárias e comerciais), que puseram africanos em contato com
o mundo negro das Américas e contribuíram para inuir na evolução
da África colonial: e) persistência e transformação dos valores culturais
africanos na América Latina e nas Antilhas. (RALSTON; MOURÃO,
2007, p.875-876).
Como se pode notar as relações entre estes recongurava o senti-
do das migrações. Por um lado, os afrodescendentes na diáspora iniciavam
um novo uxo tomando o caminho de volta para países como Libéria, Eti-
ópia, Benin, Nigéria, Togo e Gana para atuarem nos setores de comercio
e impulsionarem o desenvolvimento naqueles países. Por outro, assistiu-se
também a saída de africanos do continente por motivos diferentes da es-
cravidão, pois eram migrações voluntárias para estudarem nas universi-
dades americanas motivados pelas igrejas evangélicas que impulsionavam
os debates sobre a liberdade e o papel da educação na formação de uma
consciência emancipatória:
igrejas negras dos Estados Unidos incentivaram estudantes da Áfri-
ca central britânica e da África ocidental a frequentarem suas escolas,
concedendo-lhes muitas vezes ajuda nanceira. A permanência desses
56
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
estudantes no outro lado do Atlântico abriu caminho a uma nova e im-
portante fase da interação entre africanos e afro-americanos durante o
período colonial, que teve profundas consequências para os movimentos
nacionalistas negros de meados do século XX (RALSTON; MOURÃO,
2007, p.891).
É a partir do espaço acadêmico que as interações entre os afri-
canos e a sua diáspora se acentuam e se institucionalizam dois grandes
movimentos numa primeira fase, o pan-africanismo com origem nos EUA
cujos desdobramentos geram, posteriormente, a negritude (pan-africanis-
mo cultural) na França. Obviamente, os registros indicam o aparecimento
de diversas frentes e organizações engajadas com projetos emancipatorios
dos negros, porém a literatura enquadra-os como decorrentes destes dois
movimentos culturais, intelectuais e, sobretudo políticos constituídos pe-
los africanos e a sua diáspora. Ambos os movimentos impactaram signi-
cativamente na conquista das independências dos países africanos como se
pode constatar abaixo:
nos Estados Unidos durante o período colonial, os estudantes africanos
criaram condições para uma nova relação entre sua gente e afro-ame-
ricanos e entre eles próprios, que vinham de todas as partes do conti-
nente. [...], desde 1880 ate a segunda Guerra Mundial aumentou [...]
o numero de estudantes africanos nos Estados Unidos e prolongou-se o
tempo de contato entre grupos negros de um e de outro lado do mun-
do. Entre os [...] africanos que, [...] cursaram escolas norte-america-
nas, contam-se recentes chefes de Estado (tais como Nnamdi Azikiwe
[Quenia], Kwame Nkrumah [Gana] e Kamuzu Banda[Malawi]) [...].
(RALSTON; MOURÃO, 2007, p.893).
Segundo Hans e Sokolsky (1968) o Kwame Nkrumah ao deixar os
Estados Unidos em 1945, enquanto o barco passava pela estatua da liberda-
de, acenou seu olhar cheio de lagrimas e prometeu que não descansaria sem
levar sua mensagem a África. Nkrumah inuenciou o movimento indepen-
dentista de seus pais – Gana - tendo sido a primeira colônia independente.
Mesmo assim, não cruzou os braços e assumiu sua vontade de levar a liber-
dade para outros povos do continente o que lhe tornava o principal expoente
do pan-africanismo em Africa. Embora se tenham conseguido alguns êxitos
visíveis é importante frisar que tais resultados só foram possíveis graças ao
57
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
envolvimento de africanos e sua diáspora. No meio acadêmico, uma pro-
dução cientíca ganhava notoriedade visando legitimar seus discursos sobre
si e desconstruir o caráter universal dos saberes etnocêntricos, hegemônicos
que colocavam o negro - simplesmente assujeitado, mero objeto de estudo,
dotado de todas potencialidades físicas e mais emotivo do que racional. A
incontornável obra de Frantz Fanon decorre desse contexto, sob o guarda-
-chuva da negritude (Pan-africanismo cultural) então proposto por Aime
Cesaire (Antilhano) e Leopold Sedar Senghor (Senegalês) desvenda que a
emancipação do negro não reside apenas na ruptura com a tutela político-
-administrativas dos países europeus, mas sim e, fundamentalmente, exige a
descolonização das mentes e dos saberes.
Decorre deste entendimento que a descolonização deveria produ-
zir homens novos com outra mentalidade. A elevação do capital cultural dos
colonizados através da sua inclusão ou participação no espaço acadêmico
é uma dessas possibilidades. O que permite armar que a liberdade ou
emancipação se alcançaria a partir de determinadas formas de colonização,
aculturação ou dominação dentro do espaço escola.
No meio acadêmico, africanos e afro-diasporicos, sobretudo os
provenientes de colônias anglofonas e francófonas confrontaram-se, nova-
mente, com o dilema da colonização dos saberes quando frequentavam o
ensino universitário Francês. Ainda que tenham sido provenientes de clas-
ses privilegiadas – assimilados – viram-se triplamente subalternizados. Pri-
meiro pela condição de colonizados, segundo pelo racismo e terceiro pela
ausência de suas sociedades nas discussões tratadas em sala de aula – eram
impelidos a se pensarem como franceses ou britânicos, etc. Conforme ilus-
tra a experiência relatada pelo historiador de Burkinabe:
Fiz todos os meus estudos no âmbito francês, com manuais franceses.
Não havia nada no programa que tratasse da África. [...] na universidade,
z todos os meus estudos sem uma referencia a historia da África, salvo
de modo supercial, em relação á historia europeia, para assinalar o papel
da África durante o traco dos negros, [...]. Pouco a pouco, essa exclusão
foi me parecendo uma monstruosidade. Ao estudar a idade media eu-
ropeia e o período contemporâneo, tive vontade de conhecer a historia
africana. [...] sua ausência nos doía e nos deixava sequiosos. O desejo de
exuma-la, de me envolver nela, nasceu dessa contradição. [...] despertou
meu interesse pela historia africana foi o fato de nossos colegas [...] como
os poetas Aime Cesaire, Leopold-Sedar Senghor [...] terem apresentado
58
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
um olhar alternativo [...] sem complexos que respondia o desprezo com
um desao. (HOLENSTEIN; KIZERBO, 2009, p.14-15).
Experiência semelhante foi vivida por Fanon que viu seu projeto
de pesquisa ser recusado sendo obrigado a dar outro enfoque na aborda-
gem do seu objeto de estudo enveredando por estudar questões que não
eram de seu interesse para cumprir com os pré-requisitos de conclusão do
seu curso de graduação.
Embora a presença de estudantes dos países africanos nas uni-
versidades brasileiras tenha se iniciado em 1974 com a xação das repre-
sentações diplomáticas de diversos países africanos que acabavam de se
constituir após as independências políticas (SARAIVA, 2007), os proble-
mas vivenciados em épocas anteriores continuam persistindo no espaço
acadêmico amplamente marcado por discussões centradas em contextos
distantes da realidade dos países africanos e por vezes do próprio Brasil.
Esta realidade faz com que os estudantes africanos se vejam várias
vezes desamparados na busca de referenciais teóricos para desenvolvimento
de suas pesquisas. Quase sempre se associam, afetivamente, aos NEAB´s
(Núcleos de Estudos Afro-brasileiros) e demais núcleos negros ou afro-bra-
sileiros de pesquisa com enfoque nas relações raciais e com presença des-
tacável de pesquisadores negros, para dar seguimento aos seus trabalhos.
Parece um recuo no tempo quando os movimentos negritude bem como
os africanos e afro-diasporicos dialogavam sobre e entre si como se a ques-
tão fosse de ordem exclusivamente racial. Nestas experiências o monologo
tem sido persistente e, em algumas ocasiões, dominado pela visão unica-
da, racializada e religiosa sobre o continente. Outras vezes polarizado pelos
africanos que os transformam em espaços acadêmicos-culturais que tem
conduzido a inúmeros eventos sobre o continente africano que culmina
com celebrações envolvendo gastronomia, festas, moda e danças típicas
que decorrem um pouco pelo Brasil inteiro, anualmente, no mês de maio.
O espaço acadêmico o qual deveria ser o universo de discussões
diversicadas e inclusivas dos diversos povos de forma desinteressada ou
apolítica se revela como sendo o lugar onde se cristalizam pensamentos e
práticas preconceituosas e estereotipadas sob a máscara de uma institui-
59
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
ção isenta de qualquer forma de discriminação e onde se cultivam saberes
humanos e humanizantes. Neste espaço a áfrica continua ausente e sendo
vista apenas de joelho, esmolando espaços de aculturação para seus nacio-
nais, na esperança de que tais experiências adquiridas possam gerar uma
mudança signicativa no seu desenvolvimento. É a possibilidade que seus
cidadãos tem de se colocar em pé de igualdade nas disputas pelas oportu-
nidades de emprego que tem vindo a ser geradas pelas transnacionais que
concorrem na extração de minérios e demais riquezas no solo africano.
Aos olhos de alguns afro-brasileiros estamos tomando um lugar
que por direito é deles e equivocadamente consideram a vinda de africanos
não como decorrentes de acordos de cooperação internacional, mas como
política de cotas para negros estrangeiros. O Brasil passa a ser visto com
um país que privilegia os negros estrangeiros e não os nacionais. Para os
demais brasileiros um pais que benecia bolsas aos outros em detrimento
dos nacionais um entendimento que jamais é colocado quando se trata de
Franceses, ingleses, Japoneses, Austríacos, Espanhóis, Argentinos beneci-
ários do mesmo acordo.
Obviamente, como africano me causa certa estranheza estar numa
sala de aulas onde os poucos negros presentes nesse processo sejam apenas
estrangeiros revelando-se explicitamente que uma política racial e de clas-
se orienta o acesso à educação no Brasil (PELÚCIO, 2012). Esse fator
pode ter propiciado a ausência de afro-brasileiros no cenário de discussões
travadas no meio acadêmico em prol da emancipação dos negros. Tanto
no pan-africanismo como no movimento negritude são raras as menções
a afro-brasileiros participantes do movimento. As poucas produções lite-
rárias que se encaixam na linha da negritude são tardias, datam de 1960
com autores como Solano Trindade e Oliveira Silveira vislumbrando-se de
certo modo uma inércia dos movimentos negros brasileiros em aderir às
propostas de internacionalização dos movimentos emancipatorios negros
na academia.
Parte signicativa dos africanos também esteve ausente desse
debate devido a sua condição de sociedades ágrafas, menos alfabetizada
fazendo com que as várias frentes de resistência em busca da autonomia
político administrativa na vigência do colonialismo fossem menospreza-
das enquanto portadoras de um sentido emancipatorio dando-se principal
60
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
relevo aos movimentos intelectuais na diáspora como principais protago-
nistas devido a capacidade de ordenamento de discursos para confrontar
os saberes canônicos e cartesianos europeus. A valorização da capacidade
de reetir e criticar a realidade social de seus países sob controle colonial
revitaliza a crença de que é na razão – no intelecto - que esta a liberdade
do indivíduo.
Certamente, a luta contra o colonialismo produziu certa
reviravolta nos saberes e conduziu-nos a independência política.
Contudo, o pós-colonial continua insuperável sendo necessário retirar
de dentro de nós o arcabouço de conceitos, metodologias e categorias
que sustentaram a critica ao colonialismo, mas que até hoje controlam
o nosso ser, mesmo se demonstrando desajustadas para a resolução dos
problemas concretos dos países do terceiro mundo, após a descolonização.
Continuamente, os Africanos e afro-diasporicos permanecem localizados
na base da pirâmide social como se não estivessem fazendo algum
esforço para dela se livrar. É necessário ter coragem de admitir que ainda
não conseguimos produzir uma nova gramática para a superação dos
problemas pós-coloniais nas ex-colônias.
AfricAnoS e Afro-brASileiroS: diálogoS em eventoS culturAiS
e AcAdêmicoS
Nesta parte, descrevo as minhas curtíssimas experiências em es-
paços de interação, extracurriculares, com afro-brasileiros no interior do
Estado de São Paulo. A primeira situação me ocorreu quando presenciava
a apresentação de uma palestra sobre o dia de África, numa cidade do
interior do Estado de São Paulo. Chegado ao local à sala estava repleta de
afro-brasileiros que acorreram ao local em número expressivo e, sem dúvi-
das, em busca de respostas em torno de suas inquietações sobre as origens.
No meio dessa multidão de espectadores uma senhora de idade
procurou saber sobre as religiões em Moçambique, país africano da nacio-
nalidade do palestrante que, seguidamente, a respondeu que existem várias
dentre elas o cristianismo e o islamismo e não enumera nenhuma das que
a interlocutora, ansiosamente, esperava ouvir – as nativas - que são religio-
samente preservadas no Brasil como herança das comunidades africanas
61
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
provenientes desse continente em tempos de escravidão. Esta duvida per-
passa a mente de muitos afro-brasileiros que muitas vezes por terem certeza
de sermos africanos já chegam convidando para participar de um culto de
Candomblé ou de Umbanda ou mesmo questionando sobre a nossa reli-
gião deixando implícita a ideia de que o fazem apenas para conrmar sua
dedução: O Candomblé vem de África logo, quem vem de lá é praticante.
Para alem dessa ideia previa sobre a religiosidade dos africanos,
a pergunta demonstra outra preocupação o querer entender como os afri-
canos valorizam as “suas” praticas religiosas nativas. De certo modo, se
relaciona com a questão do pós-colonial. Será que foi superado ou trata-se
da continuidade, em outras formas, do processo civilizatório europeu for-
temente alicerçado na evangelização que preconizava levar a religião cristã,
por meio dos missionários, para as comunidades africanas. Um mecanismo
de puricação que impunha que estes rejeitassem seus costumes e demais
práticas religiosas locais em favor do cristianismo. Segundo arma Arcenio
Cuco (2013, p. 32) “para os [colonizadores], o missionário era o único ca-
paz de inamar a imaginação do homem selvagem, de amolecer o coração
do bárbaro, e de obrigar um e outro a quebrar todos os vínculos dos seus
costumes, e preocupações para se lançar a vida civilizada”.
Deste entendimento pode-se armar que, implicitamente, a in-
terlocutora esta segura que o africano (moçambicano) diante de si é fruto
de uma política de branqueamento. O que faz com que ele não tenha cons-
ciência ou conhecimento de sua religiosidade originária remetendo-nos a
ideia de que a religiosidade, para os afro-brasileiros, é um campo de lutas
políticas sendo inconcebível, para alguns, que um africano possa ser evan-
gélico (ou católico). Este fato justica, até certo ponto, a impossibilidade
de interseção de religiões e expressões culturais africanas no Brasil. No caso
de Moçambique, país do qual partilho a nacionalidade com o interlocutor
desta acesa discussão, o que se assemelha a religiosidade afro-brasileira é
considerada como uma pratica costumeira que de forma alguma disputa
espaço com as demais. Parte signica das pessoas as exercitam, simultane-
amente, com as religiões formalmente estabelecidas sejam elas praticantes
do cristianismo ou islamismo entre outras impostas de fora. Importa reter
que o processo de evangelização imposto pelos governos coloniais no con-
tinente africano exigia dos missionários um envolvimento com a cultu-
62
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
ra local para ampliar as possibilidades de convencer os nativo-africanos a
pratica das religiões formais e obviamente assistiu-se uma transferência de
instrumentos e canções nativos para o culto. Algo inconcebível dentro do
contexto brasileiro.
Posteriormente, já indignada – a afro-brasileira - em ver suas ex-
pectativas descorarem-se, não se deixou convencer com a resposta e, persis-
tiu na sua questão procurando saber por que o palestrante (Moçambicano)
não enumerou as religiões africanas. Seguidamente, enfatizou ainda que
elas são muito importantes e que ele não as deve desvalorizar, mas sim as-
sumi-la com muito orgulho. Alguns dos estudantes africanos presentes no
evento e que participam do circuito de eventos e dos espaços afro-brasilei-
ros na cidade, comentaram no nal da palestra que questões desta natureza
têm sido comuns nesse tipo de eventos. Reiteraram que há certa insistência
em compreender não somente a religião como também questões ligadas à
música, à dança e ao desporto naquilo que tem de comum e que transcen-
dam a exclusão tecnológica, o analfabetismo e a pobreza.
Entre tantos eventos participados foi comum o auxo massivo
de mulheres negras com idade elevada que, posteriormente, reagem com
certo desagrado quando os palestrantes-africanos demonstram-se distantes
da realidade mítica mantida em espaços religiosamente preservados por
algumas comunidades afro-brasileiras. Num primeiro momento tal desa-
pontamento pode ser entendido como se de fato desprezássemos tais ritu-
ais. Num segundo momento pode ser compreendido que o lugar sobre o
qual a afro-brasileira ouvira histórias, com seus antepassados, não é mais o
mesmo e que nos 500 anos de colonização se destruíram parte signicativa
das referências culturais nativas permitindo que as identidades sejam pos-
tas em causa. O passado que se mantém nos seus imaginários e memória
se desfazem ou se desmancham como se tudo que praticasse não tivesse
suporte algum na sua fonte, ou seja, há certo esvaziamento em outras pala-
vras diria que escasseiam os lastros do passado que unem esses dois povos.
Um terceiro cenário remete a pensar que esse grupo de jovens
alfabetizados, majoritariamente de proveniência urbana é fruto de políticas
pós-coloniais dos Estados africanos. Com a descolonização exigiu-se desde
inicio a rompimento com o passado em prol de um projeto de desenvolvi-
mento ancorado no maior acesso à escolarização nos moldes europeus bem
63
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
como a extinção ou harmonização dos particularismos étnicos em prol da
construção de uma identidade nacional forjada pelos Estados-nação. Por
conta desse processo, liderado pelas elites africanas com formação cultural
europeia, e a inuencia externa protagonizada pelo acesso, cada vez maior
das tecnologias de informação, bens e serviços importados a desvaloriza-
ção pelo local, pela tribo, pelo não alfabetizado em suma pelo tradicional,
tornou-se uma realidade embora hajam focos dispersos de resistência. Pa-
rafraseando o historiador Burkinabe,
Somos forjados, moldados, formados e transformados através dos obje-
tos manufaturados que nos vem dos países industrializados [...] com o
que eles tem de carga cultural. [...] tudo o que é valor agregado é vetor da
cultura. Quando utilizamos esses bens entramos na cultura daquele que
o produziu. (HOLENSTEIN; KI-ZERBO, 2009, p.12).
Diante destes diálogos é notável que a colonização continua pre-
sente e a produzir efeitos nestes dois grupos. Por um lado, os africanos e
por outro, os afro-diasporicos que mesmo com a mesma origem e raça se
distanciam se auto rejeitam e se juntam enquanto Bantu´s
3
. É como se
ambos não tivessem história ou então por mais que tenham a consciência
de um denominador comum sobre seu passado ca difícil re-estabelecer
pontos de contato entre ambos.
Com base nesses fervorosos diálogos pode-se inferir que dos dois
lados há uma busca incessante pela áfrica e, igualmente, há uma áfrica
presente no imaginário dos afro-diasporicos que é movida de lembranças,
narrativas e, sobretudo de certezas congurando-se num choque as respos-
tas adversas de nossa parte enquanto africanos e como “portadores” desses
valores. Enquanto africano a dúvida também me ocorre em entender de
que áfrica faço parte e que áfrica é essa sobre a qual não nos sentimos con-
templados enquanto nativos mais que move os afro-brasileiros na justica-
tiva de que é a herança desse lugar que é desconhecido, desejado e amado
que preservam cotidianamente.
3
Se refere a um grupo etnolinguístico localizado atualmente abaixo do deserto do Sahara englobando cerca de
400 subgrupos étnicos diferentes situados em diversos países pode-se armar que a maioria das etnias dos países
africanos tem origem neste povo seguindo-se os Khoisan. A unidade desse grupo, pode ser notável através de
determinadas praticas bem como de forma mais clara no âmbito linguístico, pois é nas centenas de variantes
da língua materna que se identica a origem da família linguistica bantu por exemplo: mandje, mate, mace
(a primeira silaba e a ultima vogal permanece todas elas signicam agua em três etnias diferentes que vem da
mesma matriz bantu)
64
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
A palestra a qual me referi, anteriormente, ocorreu em meses de
maio de 2010. Meses depois fomos convidados a participar de outro even-
to chamado “Baile do Carmo” que é um evento cultural que reuni parte
signicativa de afrodescendentes do Brasil inteiro e, sobretudo da região
de São Paulo. Nela vivenciei a segunda situação. Novamente, a moldura
humana de raça negra despertou minha atenção e, obviamente, diálogos se
travam entre nós, afro-nativos e afro-diasporicos, os últimos quase sempre
em busca de respostas em torno dessa áfrica. Nessas conversas quase sem-
pre sob formato inquisitorial as certezas sobre algumas verdades se apagam
e isso desconcerta algumas pessoas pela contradição que a realidade con-
tada se lhes apresenta e em silêncio suas expressões faciais manifestam um
desalento. Contudo, esse desapontamento mexe com a nossa identidade. É
como se não fossemos africanos, ou como se estivéssemos a falar de outra
áfrica. Embora exista uma áfrica em cada um de nós elas parecem não mais
se cruzarem ou ao menos caminharem para um permanente desencontro.
Sem duvidas isso gera certa estranheza parece uma brincadeira gerada para
tirar do foco a centralidade do problema, para quando a áfrica? Com ou
sem consensos a áfrica continua tão real desamparada pelos seus lhos que
a disputam somente, ferozmente, para reclamar por políticas publicas ou
ainda para se beneciar de doações.
Ainda no decurso do evento, em jeito de suspeita um afro-brasi-
leiro nos aborda no momento de confraternização e suspeitosamente ar-
ma que os estudantes africanos que vêem ao Brasil, provavelmente, são
preparados ou moldados para que quando questionados sobre a religião
respondam que são cristãos ou então muçulmanos. Considera esse fato
como parte do processo civilizatório europeu e da demonização ou inferio-
rização das praticas religiosas “africanas” dentre as quais o candomblé, ou
seja, só fomos incluídos no processo de intercambio universitário por ter-
mos comprovado em alguma etapa do processo sermos assimilados ou cul-
turalmente alienados. E, em tom de cochicho insiste que poderíamos nos
organizar para estabelecer, secretamente, interações em outros espaços no
sentido de que longe dessa tal vigilância, institucional-formal das universi-
dades e das igrejas, pudéssemos mostrar o que eles anseiam ou tem certeza
de que somos portadores desse legado, em parte, supersticioso. Nesta con-
versa ca implícita a ideia de que, culturalmente, os estudantes africanos
não são autênticos apenas meros reprodutores miméticos da cultura dos
colonizadores e, portanto frutos da globalização e por isso distante de suas
65
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
tradições. Nesse sentido, só participa do cenário universitário um grupo de
africanos privilegiados e despidos do conteúdo cultural que anseiam ver.
Um terceiro reencontro, entre nós, ocorre no evento “CONCLA-
DIN
4
”. Novamente, encetamos novas e breves conversas sobre nossas origens
Bantu e durante as palestras a questão central recaia sobre os discursos em
torno das identidades e quase todos os palestrantes suas intervenções perpassa-
vam, persistentemente, pela raça enquanto fator ou elemento que os distingue
dos demais se confundindo muitas das vezes raça e etnia cuja indissociação pa-
rece nula nas abordagens dos pesquisadores brasileiros que adotam a categoria
analítica aglutinadora ou hifenizada etnia-raça ou étnico-racial como se de fato
se tratassem de conceitos com mesmo signicado. Pode até ser contextualmen-
te justicável, porém para os africanos a raça e a etnia são categorias diferentes e
muita das vezes prevalece à última, particularmente, em seus países de origem
consubstanciando-se num grande entrave na construção da identidade ou dos
Estados nacionais após as independências. A categoria etnia envolve diversos
segmentos raciais e rituais que distinguem uma das outras e simultaneamente
dentro deles podem coabitar diversas formas de religiosidade como também
predominar particularmente uma.
Igualmente, no interior do mesmo evento e em espaços infor-
mais outros diálogos se travavam entre os participantes. Constou-me que
para além de pesquisadores e estudantes um número signicativo de ne-
gros afro-brasileiros militantes que defendem a bandeira da igualdade
racial muitos dos quais não estudantes acorreram no evento. Uns provin-
dos de movimentos sociais e outros de instituições organizadas em busca
não somente da conquista de direitos como também de fortalecimento
e reconstrução de suas identidades. Na fala de alguns de meus interlocu-
tores provenientes de outros pontos das cidades do Estado de São Paulo
retive o seguinte:
Somos amigas, viemos de outras cidades, [...] eu sou de Limeira e ela é
de Prudente [...] não estamos a estudar quem sabe no futuro? [...] sempre
viemos para cá para ver o CONCLADIN e a festa do Carmo [...] viemos
em busca de conhecimento sobre a África [...] viemos saber pouco mais
das nossas origens [...] e infelizmente não conseguimos nos encontrar no
Brasil [...] a minha avó fala kimbundo e eu gostaria de aprender (A e B
em conversas no III CONCLADIN, 19.05.2011).
4
Congresso do Centro das Culturas e das Línguas Africanas e da Diáspora Negra – UNESP – Araraquara
(2011).
66
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Como se pode notar resulta destes argumentos que os eventos
quer sejam festivos ou acadêmicos que tenham como pano de fundo a
autoarmação dos povos negros envolvem uma massa enorme de afro-
descendentes que os consideram de espaços vitais de manutenção de suas
culturas, espaço onde poderão com liberdade expressar suas lutas e pre-
servar memórias de seus deuses e heróis. Porém, em nosso entendimento
esta ideia de se africanizar ou com ela se identicar pareceu-nos percorrer
apenas a um segmento de afro-brasileiros, aparentemente, de movimentos
políticos, pouco escolarizados e praticantes de religiões afro-brasileiras o
que se relaciona também com o que nos deparamos nas ruas quando tran-
sitamos por ela. A simpatia dos mendigos conosco não é fruto do acaso,
mas sim uma expressão resultante de um processo histórico colonial de
categorização ou catalogação das pessoas e que espelha a hierarquização
econômica, política, social, cultural baseado nas raças.
Enquanto, os mendigos nos cumprimentam de mano quando
transitamos em praças no trajeto para a universidade, estranhamente, nos
demais lugares como: campus universitário, avião, shopping mantém-se
um silêncio ensurdecedor entre os nossos olhares poucos são, os afro-bra-
sileiros, que acenam ou se aproximam, pois a maioria simplesmente, não
fala e procura evitar algum contato.
A experiência de se estar fora de seu lugar e a percepção de que
sua presença é incomoda nos coloca o desao e comprometimento com
outras causas para além das que nos motivou em estar no solo brasileiro. As
circunstâncias impelem-nos a despir a capa étnica e dos nacionalismos para
enveredar pela via de uma identidade militante marcada pela negritude e
pela africanidade ambas com pouco relevo em nossos contextos políticos
e sociais, mas que nos possibilita, na diáspora, tecer redes de unicidade e
fortalecimento entre os demais nacionais dos países africanos a residir no
Brasil para o enfrentamento do problema comum – o racismo.
conSiderAçõeS finAiS
É sempre muito complexo escrever sobre as realidades as quais
vivenciamos e buscamos extrair dela o melhor conteúdo para possibilitar
uma reexão séria e que, sobretudo permita a mudança do olhar sobre
67
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
determinadas questões como é o caso do racismo. Não existe racismo me-
nor ou racismo maior. Tudo cabe dentro de uma pratica discriminatória e
repudiável. Certamente, que existirão aqueles que se recusarão em aceitar
esta dura realidade – a presença do estigma racial no interior de um grupo
aparentemente homogêneo. Ela é revela que a dimensão psicológica é o seu
ponto mais alto e onde há convergência desta pratica tanto entre os bran-
cos e negros. Como remover essa forma de agir e pensar de nossos cérebros
é o que a humanidade ainda não conseguiu descobrir. Remédios faltam
para curar as patologias da colonização, como sair desse buraco negro que
o sistema colonial nos colocou? Como podemos enfrentá-lo? Que armas
devemos usar?
Parece mais fácil inventar uma doença, mas a cura é sempre uma
busca incessante. Mas do que procurar terapias é tempo para recupera-
mos os métodos da psicanálise. Uma introspecção pode ser a saída deste
mal, precisamos nos vigiar freqüentemente para que esses falsos reexos
dos nossos múltiplos espelhos não nos forneçam as imagens distorcidas
de quem nós somos. Os apartheids intra-racial, inter-racial e de qualquer
forma tendem a ser recorrente em nossas sociedades, e nos encontrar quase
sempre de surpresa quando com ele nos deparamos. Uma certa impotência
e paralesia nos dominam a indiferença tem sido o caminho mesmo tendo
certeza que, algum momento, ocorrerá novamente. Precisamos, urgente-
mente, abandonar esse mundo cindido que nos faz homens e sub-homens,
mulheres e sub-mulheres, etc.
Nessa trama toda de autoinferiorização ou da inferiorização do
outro a África continua ali no seu lugar vendo seus lhos partirem e nunca
voltarem há mais de cinco séculos. Culparíamos a colonização ou fracas-
so do processo de descolonização. Se a descolonização não ocorreu para
quando será o pós-colonial? Nossa experiência dá evidencias claras que
um pan-movimento negro ou de qualquer outro grupo subalterno estaria
longe de acontecer e, portanto, não vale nem tentar dar unidade aos cacos
e fragmentos dessa humanidade fragmentada em múltiplos interesses iden-
titarios em que impera o indivíduo e menos a coletividade.
Mesmo diante dessa adversidade caótica somos impelidos a não
negar a nossa historia. A busca pelo passado e a releitura das memórias
precisam ser trazidas para o espaço acadêmico e, publicadas e debatidas,
68
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
para que nos reconheçamos como semelhantes. Tanto africanos como bra-
sileiros – indígenas, negros, pardos, brancos - precisamos nos ver como
vitimas do processo de colonização. Reproduzir essa lógica não faz de nós
seres melhores ou superiores aos demais. Já dizia Fanon (1968) não adianta
copiar o sistema colonial, não percamos tempo em mimetismos, se é isso
que pretendemos com as nossas liberdades melhor deixá-los colonizar para
sempre. Se quisermos ser livres precisamos sair desse buraco escuro que
não permite ver os nossos reexos e muitos menos autoreconhecermo-nos.
Em qualquer localização as áfricas continuarão sendo varias em
nossas memórias, imaginações e sonhos e se tivermos que disputar por ela
não deve ser entre povos que tem lá seus ascendentes. Não é isso que ela
espera de nós. É com todos aqueles que não se saciam de extrair dela sua
máxima força, suas riquezas, empobrecendo milhares de pessoas que temos
que enfrentar. As disputas pelo (in) autenticidades são meras retóricas que
em nada alteram o curso da historia do continente.
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70
71
Da colonização à contemporaneidade:
discutindo a violência contra povos
indígenas no Brasil
Michele Carlesso Mariano
Franz Arnaldo Cezarinho
introdução
Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.
(Renato Russo, 1986).
Dois de novembro de 2015, feriado nacional. Eu, um dos auto-
res desse texto, estava com alguns membros da linhagem parental paterna
em São Paulo. Fomos curtir o feriado numa cidade do interior chamada
Paranapiacaba. Além de mim, havia mais cinco pessoas no carro, duas
primas, uma tia, um tio e sua genitora. Decidimos sair cedo, pois era a
primeira vez que estávamos indo para lá e não conhecíamos totalmente o
caminho. Dirigimo-nos para Paranapiacaba muito contentes, brincando
e dando boas risadas com os desencontros que o desconhecimento do
trajeto nos acometia.
Depois de uma hora de viagem avistamos uma placa de trânsito
sinalizando que faltava apenas quatorze quilômetros para o nosso destino.
Na rádio, tocava uma música muito bonita e interessante. Eu e a prima
mais velha cantávamos a letra inteira. Realmente é uma bela canção. De
72
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
repente, a tia pergunta o nome daquela música e eu, de imediato replico:
Índios! A genitora do meu tio cou nervosa e amedrontada, começou a
olhar para os lados, enquanto o carro estava em deslocamento. Por alguns
segundos todos/as camos calados/as Ela então me pergunta, onde estão?
Eu juro que não compreendi, mas em seguida o tio diz sorridentemente:
“Mãe pensou que tinha índio aqui, cou com medo de sermos atacados”.
Eles/as começam a rir do acontecido e eu, quei sem reação.
Nosso desiderato nesse artigo é o de analisar e discutir algumas
formas contemporâneas de violências física e simbólica contra povos indí-
genas no Brasil. Ademais, discutiremos o Projeto de Emenda Constitucio-
nal nº 215 que altera regras do processo de demarcação de terras indígenas
no país, deixando-a sob os auspícios do legislativo federal e tangenciaremos
o etnocídio/genocídio indígena que tem cada vez mais se multiplicado.
Para tal, faremos análise de conteúdo, entendendo-a como uma
técnica de investigação que possibilita inventariar frequências de práti-
cas e, com isso, determinar correspondências sobre o fenômeno (VALA,
1986). É dessa maneira que poderemos analisar o relatório da violência
contra povos indígenas no Brasil do ano de 2014 e a Emenda Constitu-
cional nº 215.
A violência contra povos indígenas nas Américas é um ato que
se constituiu no processo colonial quando os europeus começaram a in-
vadir territórios como forma de dominação. Propomos sugerir algumas
reexões que precisem o motivo da continuidade dessas violências contra
os indígenas.
O trabalho está subdividido em cinco partes. Após esta introdu-
ção traremos os referenciais teórico-conceituais que amparam nosso olhar
sobre a realidade investigada. Em seguida, será discutido historicamente
o processo constitutivo do índio substancializado e a PEC nº 215. No
quarto subtítulo serão analisados alguns pontos importantes do Relató-
rio – Violência contra povos indígenas com os dados referentes a 2014.
Fechando o trabalho faremos as considerações nais.
73
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
AlgumAS conSiderAçõeS teórico-conceituAiS pArA A
compreenSão do problemA
Antes de adentrarmos nos fatos empíricos que serão problema-
tizados precisamos delinear o paradigma no qual nos alocamos para que
que evidente por onde estamos falando. Utilizaremos dois conceitos cha-
ve para o entendimento da violência étnico-racial contra os indígenas no
Brasil. São eles: Colonialidade do Poder e Situações Coloniais. Coloniali-
dade do Poder é um conceito desenvolvido pelo sociólogo peruano Aníbal
Quijano (2000). Este conceito permite que percebamos as reminiscências
das formas de dominação e opressão colonial operado nos planos material
e subjetivo da existência social. Metodologicamente este conceito é difícil
de ser operacionalizado, no entanto, por meio dele podemos constatar re-
lações coloniais na contemporaneidade.
Quijano compõe o grupo Modernidade/Colonialidade (M/C)
formado na década de 1990 por intelectuais Latino-americanos. Esses/
as teóricos/as radicalizaram o argumento pós-colonial evidenciando que
a Colonialidade criou a modernidade. A Colonialidade sobrevive e se re-
produz nas sociedades democráticas pós-coloniais (BALLESTRIN, 2013).
O processo de colonização que se efetivou nas Américas no século
XVI trouxe consigo o homem/branco/heterossexual/patriarcal/capitalista/
cristão. Se esses elementos forem desconsiderados não se poderá entender
como as situações coloniais existem na contemporaneidade. “Por situa-
ções coloniais entendo a opressão/exploração cultural, política, sexual e
econômica dos grupos étnicos/racializados subordinados por parte de gru-
pos étnicos/raciais dominantes com ou sem a existência de administrações
coloniais (GROSFOGUEL, 2008, p. 126-127). Esses dois conceitos nos
levam a entender que a construção da ideia de raça foi fundamental para a
constituição do processo de colonização e, além disso, mesmo com o m
da colonização político-jurídico dos Estado-Nações a Colonialidade ainda
se impõe e a raça continua sendo um dos elementos mais importantes.
Esses conceitos ajudam a construir uma lente que possibilite en-
xergar as várias violências contra os povos indígenas, desde a invasão de
suas terras, patologização de suas práticas, expropriação da cultura e espi-
ritualidade, adequação ao trabalho capitalista e o etnocídio/genocídio que
vem ocorrendo sobre os mesmos.
74
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
do índio SubStAnciAlizAdo Ao Sujeito hiStórico portAdor
de direitoS
Qual era a realidade do território que hoje corresponde ao Brasil
há aproximadamente 500 anos atrás? Estudos antropológicos estimam que
a população indígena nesse período era de até 10 milhões
1
de indivíduos,
falando mais de 1.300 línguas. No entanto, ao imaginário popular, parece
que somente após o descobrimento – já que do ponto de vista indígena
está mais para invasão - começou a história do Brasil. Isso é um discurso
do dominador.
O acervo simbólico acerca dos povos indígenas é construído atra-
vés das informações que chegam até nós por meio de imagens e textos
e foi assim desde o momento em que o europeu chegou ao continente
americano. Ao se depararem com os nativos, surgiu nos colonizadores a
necessidade de compreendê-los enquadrando-os em seu modo de ver o
mundo, diga-se, o mundo ocidental. Daí apareceram relatos de explora-
dores com descrições dos povos e seus costumes das terras do Brasil, sendo
que o primeiro foi realizado pelo escrivão Pero Vaz de Caminha em 1500,
comparando os indígenas aos habitantes do Éden. Nota-se isso na carta
ao Rei D. Manuel, cujas impressões sobre os índios são descritas a seguir:
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pe-
los corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também
andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não
pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o
quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da
sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e
também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência
assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.
[...]
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós,
seriam logo cristãos [...] se os degredados, que aqui hão de car aprende-
rem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé,
à qual preza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e
de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho,
1
Estudos estimam que só na bacia amazônica havia em tordo de 5,6 milhões de indivíduos. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/. Acesso em: 02 set. 2015.
75
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e
bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi
sem causa (CAMINHA, 2003).
De maneira geral, os colonizadores europeus espantaram-se com
a selvageria dos homens das terras baixas da América, conforme analisa
Descola (1999, p. 107), onde os observadores penam para reconhecer nas
práticas indígenas dispositivos sociais sem equivalentes no Velho Mundo.
Para entender estes homens aparentemente sem instituições políticas, apa-
rece a concepção de que os indígenas são inteiramente submetidos aos de-
cretos da natureza. O navegador Américo Vespúcio (apud Ibidem, p. 108),
ao passar aproximadamente um mês com os indígenas da costa da Vene-
zuela, por exemplo, não percebe que a guerra intestina e seus corolários, o
canibalismo e a escravidão doméstica, são instituições sociais que constro-
em identidades. De maneira distinta, a interpreta como algo espontâneo
e natural, inaugurando um preconceito que dominou a reexão losóca
por muito tempo: os ameríndios possuem “sinais de humanidade”, mas as
guerras que não possuem por nalidade a conquista territorial ou hegemo-
nia política só podem ser encaradas como expressão de uma “bestialidade
natural”, uma a-socialidade absoluta que só caracterizariam um homem em
seu “estado de natureza”. É esse preconceito colonizador que acompanhará
toda a construção do imaginário acerca dos povos indígenas e que reetirá
nos dias atuais tanto nas tentativas de cercear os seus direitos como na vio-
lência latente e manifesta conforme será demonstrado neste texto.
Em relação aos textos que circulavam no primeiro século do
descobrimento e que vieram a fundamentar a imagem pejorativa e rei-
cada sobre os indígenas, destacamos Pedro de Magalhães Gandavo e
Hans Staden. Este último, navegador alemão, narra em prosa o tempo
em que permaneceu cativo dos Tupinambás descrevendo os seus hábitos e
práticas cotidianas. No entanto, o que chama a atenção em sua obra são as
xilogravuras que representam rituais de antropofagia
2
praticados por esse
povo, tidos como “prova” da ausência de Deus e de “alma” na concepção
2
O cientista social Florestan Fernandes, na obra A função social da guerra na sociedade tupinambá, explica a guerra
dessa etnia indígena, que aguçava a imaginação europeia por envolver vingança e canibalismo, como um fato social
total. A antropofagia fazia parte do sistema social Tupinambá, passível de ser compreendida e explicada.
76
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
cristã. Já Gandavo apresenta com muita naturalidade o extermínio de po-
vos hostis aos portugueses, chamados de “gentios”.
Havia muitos destes índios pelas costas junto das capitanias, tudo enm
estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra;
mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes
muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos
pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram para o sertão,
e assim cou a costa despovoada de gentios ao longo das capitanias.
(GANDAVO, 2008, p. 65).
Gandavo ainda interpreta o modo de vida indígena de uma for-
ma que se tornou recorrente entre os cronistas, a carência em seu vocabu-
lário das letras F, L, e R, “cousa digna de espanto, porque assim não têm
Fé, nem Lei, nem Rei” (Ibidem). Além disso, muitos deles foram levados
ao velho continente para saciar a curiosidade das cortes sobre o “exótico”.
Em contrapartida aos relatos depreciativos, o lósofo francês Montaigne
no ensaio “Dos canibais”, de 1580, analisa o encontro da cultura europeia
com a cultura nativa do Novo Mundo. O autor prefere o relato de pessoas
simples e grosseiras”, condições próprias para dar testemunho verdadeiro,
melhor que pessoas “nas”, pois essas, com a intenção de persuadir, aca-
bam alterando os fatos em seu favor. Recomenda aos seus despir-se de todo
preconceito ao lidar com os indígenas, utilizando da retórica para criticar
a civilização europeia que possuía o vício de chamar de “bárbaro” tudo o
que destoava de sua cultura. Antecipa Rousseau a considerar os indígenas
como seres criados por Deus em seu estado puro, inclusive, minimizando
os hábitos de canibalismo, pois considera que se portavam mais dignamen-
te na guerra do que aqueles das guerras religiosas.
Essas primeiras representações no período colonial criaram ima-
gens profundamente negativas dos povos indígenas derivadas do sentido
religioso do empreendimento colonial. A “superioridade moral” do euro-
peu diante do povo “degenerado” justicava a conquista, pois era necessá-
rio integrar os nativos ao trabalho e assim mudar seus costumes e valores,
salvando-os de seus pecados.
Já o século XVIII foi marcado por imagens difundidas tanto
pela empresa colonial como por pensadores que ainda viam os indígenas
como em um “estado de natureza” como Rousseau. Se, por um lado, os
77
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
colonizadores defendiam uma intervenção nos povos indígenas com a
nalidade desses “progredirem”, por outro, os iluministas viam o “bom
selvagem” como um estado natural que deveria ser respeitado. Tal ideia
foi apropriada pelo Romantismo no Brasil, século XIX, e encontrou em
José de Alencar e Gonçalves Magalhães grandes defensores. Suas obras
em prosa e verso enaltecem a natureza, o meio ambiente indígena e a sua
idealização física e moral. Entre as principais, em José de Alencar estão
O guarani (1857) e Iracema (1865). Gonçalves Dias publicou poemas
mostrando um índio mais real, menos idealizado, como o autor anterior.
Suas principais obras são O canto do índio (1946), Canção do tamoio
(1851) e Juca Pirama (1851).
Ainda no século XIX, desenhistas que integravam missões de his-
tória natural zeram circular pela Europa e na elite brasileira imagens de
indígenas baseadas em observações, fortalecendo o estereótipo romantiza-
do, naturalista e preconceituoso, que colocava como sujeitos a-sociais em
um paralelo com a natureza. Para Pacheco de Oliveira e Freire (2006), essas
expedições coletavam inúmeros artefatos e impressões sobre a diversida-
de de povos indígenas, um método cientíco baseado no “colecionismo”.
Por isso o interesse em pinturas naturalistas, sobretudo as que retratavam
aspectos morfológicos humanos. Os autores armam que, a partir dessas
coletas de informações, “os índios seriam posteriormente enquadrados em
estágios sociais’, correspondentes às noções oriundas das ideias evolucio-
nistas que começaram a impor-se na metade do século XIX” (Ibidem, p.
95). De acordo com os autores, o século XIX foi marcado por discussões
em termos “evolutivos”, baseados na noção de raça, sendo que os principais
representantes dessas discussões no Brasil foram von Martius e Varnhagen.
Nesse período, a imagem associada aos indígenas era de uma “sociedade
selvagem” que necessitava ser civilizada pela imposição.
No começo do século XX ainda perdurava uma ideia romanti-
zada do indígena, inuenciada pela literatura e pela imprensa, sobretudo
com as notícias e imagens advindas das expedições telegrácas no interior
do país. Cheadas pelo Marechal Rondon sob o ideal positivista “morrer se
preciso for, matar nunca”, as Comissões Telegrácas forneceram ao mundo
inúmeras fotograas e lmes sobre os “índios selvagens”, suas reações dian-
te do “homem civilizado”, sua passividade em “cobrirem suas vergonhas”,
78
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
a admiração diante de objetos brilhantes e quinquilharias mostrando o
quão dadivosos eram aqueles que mudariam suas vidas para sempre em
nome do progresso. Vale lembrar que, para os positivistas, os indígenas se
encontrariam na “fase fetichista”, o primeiro grau em uma escala evoluti-
va, mas com potencial para ascender. Foi somente a partir da Expedição
Roncador - Xingu, segundo Pacheco de Oliveira e Freire (Ibidem, p.158),
que imagens sobre o cotidiano indígena começaram a aparecer na mídia,
enfocando a vida em família, as práticas cotidianas, enm, a singularidade
dos grupos étnicos.
Do exposto, podemos resumir essas imagens representativas
do indígena na sociedade nacional em conformidade com o que relata
o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1972) em: a) “mentalidade
estatística”, para quem os índios são irrelevantes na sociedade nacional;
b) “mentalidade romântica”, cuja visão estereotipada considera-o como o
“bom selvagem” e que nesse estado deve permanecer; c) “mentalidade bu-
rocrática”, veem os índios como qualquer cidadão sem recursos; d) “men-
talidade empresarial”, para quem o índio é considerado mão de obra em
potencial e, por isso, defende sua incorporação à sociedade nacional e o
abandono de sua forma de vida tradicional.
Se durante séculos de colonização e resistência os indígenas tive-
ram sua imagem substancializada pelo dominador, que no dualismo su-
jeito/ objeto, sociedade/ natureza estava na segunda posição de ambos,
a partir dos anos 70, na onda dos novos movimentos sociais, começam a
ser vistos por outro olhar, discutindo e reivindicando seus direitos direta-
mente com as autoridades competentes, mostrando assim sua “agência”.
3
Passaram a mostrar ao mundo o que pensavam e pensam e o que exigem
como sendo seus direitos, construindo uma nova imagem de si, participan-
do de foros internacionais, movimentos indígenas, fazendo e publicando
os próprios vídeos numa reconversão e ressignicação de práticas alheias,
interferindo diretamente na maneira como querem ser reconhecidos. Os
povos indígenas passaram a pensar sua realidade, conforme analisa Sahlins,
resultando nas “vítimas do imperialismo” uma autoconsciência cultural.
3
Para Giddens (2003) a noção de “agência” atribui ao ator individual a capacidade de processar e delinear as
formas de enfrentar a vida, mesmo sob profunda coerção. A “agência” diz respeito à capacidade de fazer as coisas
e não às intenções humanas em fazer tais coisas. Os atores sociais são “detentores de conhecimento” e “capazes”,
sendo esses os principais elementos da “agência”.
79
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
“O que distingue o “culturalismo” atual (como se poderia chamá-lo) é a
armação do estilo de vida próprio do indivíduo como um valor superior e
um direito político, em oposição precisamente a uma presença estrangeira
imperial” (SAHLINS, 2007, p. 504). Essa autoconsciência cultural reete
diretamente nos instrumentos legais que tratam do tema, nacional e inter-
nacionalmente.
Neste cenário associado a questões legais, tornou-se necessário
denir quem eram os índios, agora sujeitos históricos que lutavam por
seus direitos. Darcy Ribeiro (1957) no texto Culturas e línguas indígenas do
Brasil, baseando-se numa denição elaborada em 1949, no II Congresso
Indigenista Interamericano realizado no Peru, chegou a seguinte denição:
aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de
inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de cos-
tumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-
-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo
reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que
se identica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena
pela população brasileira com quem está em contato (RIBEIRO, 1957).
Esse conceito é similar à denição adotada pela Lei 6.001/1973,
que dispõe sobre o Estatuto do Índio:
Art. 3º Para os efeitos dessa lei, cam estabelecidas as denições a seguir
discriminadas:
I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência pré-
-colombiana que se identica e é identicado como pertencente a um
grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional.
II – Comunidade Indígena ou Grupo Tribal – É um conjunto de fa-
mílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado completo de
isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer
em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem nele
integrados. (BRASIL, 1973).
Num âmbito internacional, a Convenção 169 da OIT (Organi-
zação Internacional do Trabalho)
4
, que trata dos direitos dos povos indíge-
4
A convenção 169 da OIT foi raticada pelo Brasil em 2002.
80
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
nas e tribais, arma que a “consciência de sua identidade indígena ou tribal
deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os gru-
pos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.” (ORGA-
NIZAÇÃO IINTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011, p. 15). Essa
autoconsciência cultural pelos povos indígenas reetiu nos instrumentos
legais, tanto internacionais como nacionais, operado a partir de uma mu-
dança dos critérios de denição dos “grupos étnicos
5
. O critério adotado
e aceito hoje dene grupos étnicos como “formas de organização social
em populações cujos membros se identicam e são identicados como
tais pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias
de mesma ordem.” (BARTH, 1969, p.11 apud CUNHA, 2009, p. 251).
Grupos étnicos só podem ser caracterizados como tal pela distinção que
eles percebem entre eles próprios e os outros com quem interagem. Assim,
dene-se etnia em termos de adscrição, autoatribuição e atribuição pelos
outros, ou seja, é índio quem se considera e é considerado pelos outros
como índio. Outra inovação da OIT 169 é a distinção adotada entre o
termo “populações”, que traz a denotação de transitoriedade e contingen-
cialidade, e o termo “povos”, que “caracteriza segmentos nacionais com
identidade e organização próprias, cosmovisão especíca e relação especial
com a terra que habitam.” (ORGANIZAÇÃO IINTERNACIONAL DO
TRABALHO, 2011, p. 8). Cabe a ressalva de que o emprego do termo
povos” limita-se ao âmbito das competências do referido texto, sem apli-
cação que contrarie outras acepções previstas no Direito Internacional.
No mesmo período em que se discutia internacionalmente o con-
teúdo do texto que resultou na OIT 169, no Brasil, antropólogos e juristas
apoiados pelo movimento indígena tratavam do tema que seria o artigo da
Constituição de 1988 sobre os povos indígenas. A questão legal dos índios
e suas terras baseia-se nos “direitos originários”, onde o indigenato é con-
siderado um título congênito de posse territorial, assim como na noção de
5
Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2009), o critério de denição de um grupo étnico esteve, por muito
tempo, ligado à biologia e a noção de “raça”. Um grupo indígena, nestes termos, seria aquele formado por
descendentes “puros” de uma população pré-colombiana, fato ainda recorrente no imaginário popular. Após a
Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas em nome da pureza racial, este critério foi substituído pelo
da cultura. “Grupo étnico seria, então, aquele que compartilhava valores, formas e expressões culturais. Espe-
cialmente signicativa seria a existência de uma língua ao mesmo tempo exclusiva e usada por todo o grupo.
(CUNHA, 2009, p. 250). Estes pressupostos são inadequados, pois os traços culturais divergem no tempo e
espaço. Além do mais, vários grupos deixam de falar a sua língua ou incorporam parcialmente outra sem, contu-
do, deixar de ser um grupo étnico coeso. O critério que dene um grupo étnico baseia-se hoje na autodenição.
81
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
dívida histórica” que o Brasil tem com esses povos. O texto constitucional
trata da questão indígena no tocante ao direito à terra que tradicionalmen-
te ocupam, sua autodeterminação cultural e direito de usufruto exclusivo
das riquezas contidas no território, conforme a Constituição Federal:
Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a
sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional,
ouvidas as comunidades afetadas, cando-lhes assegurada participação
nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e
os direitos sobre elas, imprescritíveis. (BRASIL, 1988).
Conforme explicitado, “terra tradicionalmente ocupada” é um
conceito jurídico e as terras indígenas são propriedades da União, de posse
coletiva e direito exclusivo de usufruto sobre os recursos naturais pelo povo
indígena que nela habita. As terras indígenas são também reservas de ri-
quezas biológicas e minerais e os habitantes responsáveis pelo seu patrimô-
nio. Segundo Pacheco de Oliveira (1998, p. 20), o acesso a terra favorece
o surgimento de um “campesinato indígena”, cuja peculiaridade está no
controle coletivo sobre os meios de produção e sua subordinação ao Estado
pelo órgão tutor.
Num panorama geral, o Brasil possui atualmente 694 terras indí-
genas, ocupando aproximadamente 13% do território nacional. Segundo
dados do Instituto Socioambiental (ISA), desse total, 120 estão em proces-
so de identicação e 421 estão homologadas e registradas. O problema é
82
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
que o reconhecimento legal não oferece empecilho para outras formas de
violência e pressão como desmatamentos, garimpos ilegais, invasões de não
índios, degradação do meio ambiente em geral pela expansão do agrone-
gócio, obras de infraestrutura etc. Há enorme interesse sobre a exploração
dos recursos minerais e hídricos, empresas que causam impactos sociais e
ambientais, diretos e indiretos sobre as comunidades locais. Além disso, há
inúmeros projetos de Lei tramitando para cercear direitos adquiridos pela
população indígena e facilitar o acesso às terras e suas riquezas.
As Terras Indígenas tornaram-se alvo de ambição frente à política
governamental de exportação de commodities
6
, o que elevou o preço destas
e das terras. Com isso, a bancada ruralista do Congresso brasileiro criou
um instrumento Legal para reduzir os direitos de posse e usufruto das
terras, que a própria Constituição arma serem “direitos imprescretíveis”.
Rero-me a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 215/2000.
A PEC foi apresentada no ano 2000 pelo deputado federal Almir
Moraes de Sá, do Partido da República (PR-PR), com texto que propõe
que as demarcações de terras indígenas, a titulação dos territórios quilom-
bolas e a criação de unidades de conservação ambiental passem a ser uma
responsabilidade do Legislativo e não mais do poder Executivo, através dos
órgãos técnicos FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e INCRA (Insti-
tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), como é hoje. No ano
de 2004, a PEC 215 foi arquivada, segundo o entendimento do deputado
Luiz Couto (PT-PE) escolhido para elaborar um parecer sobre esta propos-
ta, por ser inconstitucional.
Em novembro de 2014, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-
PR), relator da Comissão Especial da PEC 215, apresentou um texto
substitutivo à PEC 215/2000, com emendas que tornam explícito o m
das novas demarcações de terras indígenas e a possibilidade de reabrir
procedimentos administrativos já nalizados. Além disso, torna legal a
invasão, a posse e a exploração das terras indígenas já demarcadas. Para
6
Delgado (2012) arma que a própria conjuntura econômica atual do Brasil, dominada pela economia do
agronegócio como “pacto de poder” dando origem à acumulação e à especulação fundiária, explica a emergência
com que políticos atuam na tentativa de cercear direitos constitucionais de posse e usufruto de terras por parte
de indígenas e quilombolas. Entenda-se por commodities agropecuárias e minerais a soja, milho, carnes, açúcar-
-álcool, celulose de madeira, café, minério de ferro, bauxita-alumínio etc. Só para ter uma ideia do tamanho da
pressão em cima das Terras Indígenas, dados do ISA apontam que há 104 processos titulados e 4.116 interesses
minerários em T.Is. nas diversas fases em que eles se encontram.
83
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
piorar a situação, inclui a promulgação da Constituição (05/10/1988)
como marco temporal para a comprovação da posse indígena.
No nal do ano de 2014 houve uma intensa mobilização do mo-
vimento indígena e entidades indigenistas que resultou no arquivamento
da proposta. No entanto, no início de 2015, o presidente da Câmara Edu-
ardo Cunha (PMDB-RJ) reinstalou a Comissão Especial da PEC 215.
Na prática, a Emenda Constitucional representa o m de todos
os processos demarcatórios, justamente pelas disputas dentro do Legisla-
tivo que responde, na maioria das vezes, a interesses contrários aos dos
povos indígenas, quilombolas e preservação ambiental. Quanto a prática já
exercida de utilizar o marco temporal da promulgação da Constituição de
1988 para demarcações, é algo arbitrário, pois os indígenas estavam neste
território muito antes dele tornar-se o Estado Brasil. O fato é que muitos
povos foram expulsos de suas terras pelo não índio e, segundo este critério,
mesmo tendo vivido originalmente nela, não terão direito ao território.
Este critério de marco temporal já foi utilizado para anular a demarcação
de terras feita pela FUNAI nos casos da T.I. Limão Verde, no Mato Grosso
do Sul, do povo Terena, T.I. Guyraoka dos povos Guarani e Kaiowá tam-
bém no Mato Grosso do Sul e a TI Porquinhos, do povo Canela-Apãnjekra
(FONTOURA; VASSALLO, 2015). Por m, a PEC 215 é considerada
inconstitucional por retroceder em um direito fundamental a povos indí-
genas e quilombolas. Resta agora esperar que este atentado contra os povos
indígenas, quilombolas e ao próprio meio ambiente seja declarado incons-
titucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Sobre o relAtório de violênciA contrA oS povoS indígenAS
O relatório em questão referencia os dados do ano de 2014 nos
quais se mostram absolutamente preocupantes. Esse documento é compi-
lado por meio das denúncias que povos, organizações, lideranças indígenas
e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) fazem. No ano de 2014 fo-
ram registrados 138 assassinatos de indígenas por variados motivos, dentre
esses, destaca-se as disputas territoriais como as mais avassaladoras contra
esses povos tradicionais. Essas intensas batalhas giram em torno do agro-
84
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
negócio que vem sendo motivado do próprio governo que, por outro lado,
deveria assegurar a permanência desses grupos historicamente violentados.
Outra questão suscitada no documento é o descaso do Governo
Federal com as populações tradicionais. Nenhuma área foi homologada no
ano de 2014. São Seiscentas terras reivindicadas atualmente, no entanto,
apenas uma foi declarada, a de Paquiçamba, no Pará. Isso gera ainda mais
violência e disputas de terras entre os ruralistas e os/as indígenas. Nas áreas
onde a scalização não funciona ou não existe, a devastação está sendo o
principal fator de alerta que contribui enfaticamente para a eliminação dos
indígenas. Lúcia Rangel (2014) ressalta vigorosamente que as violações
individuais e coletivas contra esses povos fazem parte de um plano estraté-
gico do Governo Federal devido ao seu interesse pelo extrativismo a m de
contribuir para o desenvolvimento do país. Ou seja, são ações desenvolvi-
mentistas que estão em jogo aqui.
Todos/as os/as autores/as que escrevem no relatório deixam bem
nítido a relevância do desenvolvimentismo corroborando para o aumen-
to das violações de direitos dos/as indígenas. Dentre os empreendimentos
que, na concepção do governo, geram riqueza e desenvolve o país estão as
construções de hidrelétricas, a exploração da oresta amazônica em busca
de gás, extração de minérios e o agronegócio que nos últimos anos vem
crescendo vertiginosamente. Todas elas afetam mais de duzentos povos
atualmente. Esse modelo de progresso é reprodução da lógica colonial. O
desenvolvimento aqui se torna necessário para se equiparar aos países de
primeiro mundo.
O racismo é outro elemento constituinte da opressão dos/as
indígenas. De acordo com Iara Bonin (2014) o racismo se efetiva por
meio de pessoas, grupos e o Estado que se omite frente às violências
praticadas contra os povos tradicionais. É comum visualizar discursos
de ódio contra os/as indígenas nas mídias digitais como também se
tornaram motivo de piadas.
O judiciário, do mesmo modo é citado no relatório, pois con-
tribuíram decisivamente para aumentar as violações de direitos dos/as in-
dígenas em 2014. Ao reinterpretar o Art. 231 da Constituição Federal de
maneira restritiva, mudaram a noção de terra tradicionalmente ocupada
85
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
por povos indígenas. Dessa forma, foi estabelecido que os povos que esta-
vam em posse de terras no dia 5 de outubro de 1988 ou que estavam em
guerra até esta data podem ter o direito a terra. No entanto, os povos que
foram expulsos e que não estavam em suas terras de origem no período
da promulgação da Constituição de 1988 não terão direito a ocupar suas
terras. Cléber Buzzato (2014) arma que essa reinterpretação do Art. 231
da Constituição Federal feita pelo Supremo Tribunal Federal torna legal a
invasão de territórios indígenas como ao mesmo tempo sua expulsão.
No Brasil os crimes contra o patrimônio são os que mais encar-
ceram cidadãos e cidadãs, no entanto, a lógica não parece ser a mesma
quando esse tipo de crime é efetuado contra povos indígenas. Em 2014
foram calculados 221 casos de crimes contra o patrimônio. Quando se fala
em crime patrimonial consideram-se os conitos referentes às possessões
de terras, exploração ilegal dos recursos naturais e omissão e morosidade
na regulamentação das terras. O desdobramento disso é a continuidade de
conitos entre indígenas e não indígenas.
No que tange a violência contra a pessoa os dados sugerem 248
em 20 estados da federação
7
. Foram quanticados nove tipos de violências
que dentre eles estão o abuso de poder (16), assassinato (60), homicídio
culposo (20), lesões corporais dolosas (18), racismo e discriminação ét-
nico-culturais (19), violência sexual (18), etc. O Mato Grosso do Sul se
destacou como o Estado que mais cometeu violência contra a pessoa con-
tabilizando 67 casos. A Bahia é o segundo que mais violenta com 31 casos,
seguido pelo Pará com 25.
O relatório não nos deixa dúvidas, a violência contra os povos
indígenas tende a aumentar caso providências não sejam tomadas. Infeliz-
mente a perspectiva não é positiva tendo em vista que há um conluio entre
a iniciativa privada, o governo e a maioria da população brasileira que não
estão se importando muito com o extermínio desses povos e o pior, são
esses mesmos que fomentam tais violências transbordando ódio advindo
do racismo e a necessidade de explorar os povos tradicionais.
7
AC, AL, AM, BA, DF, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PB, PE, PR, RO, RR, RS, SC, SP e TO.
86
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
conSiderAçõeS finAiS
Demonstramos nesse trabalho várias formas de violências que os
povos indígenas têm sofrido na contemporaneidade. Infelizmente, a pro-
jeção para o futuro não é positiva tendo em vista que no âmbito político,
por exemplo, estamos presenciando o Congresso Nacional mais conserva-
dor desde o período de redemocratização do país. O legislativo brasileiro
tem sido um dos culpados pelas violações de direitos dos/as indígenas. As
bancadas ruralista, religiosa e militar, as mais conservadoras, têm crescido
vertiginosamente tornando-se um perigo para os povos tradicionais.
No âmbito do executivo, vimos que o Governo Dilma em 2014
não homologou sequer uma terra para os/as indígenas, demonstrando com
isso total descaso nessas questões.
O Judiciário também não cou para trás, pois reinterpretou o
Artigo nº231 que regulamenta a concessão de territórios tradicionais, di-
zendo que se os povos não estiveram em seus territórios na data da pro-
mulgação da Constituição de 1988 ou não estavam em guerra naquele
período, perderão o direito a posse de suas terras.
Dessa maneira pode-se constatar que os três poderes são cúmpli-
ces das violações dos direitos dos povos indígenas.
Além dessas instituições, há a população que simbolicamente
também degrada essas pessoas, pois continuam a reproduzir imaginários
sobre os/as indígenas que tendem a estigmatiza-los. Um exemplo pertinen-
te fora citado na introdução deste trabalho. A colonização acabou, mas os
indígenas vivem, com outra roupagem, os mesmo dilemas experienciados
há mais de 500 anos atrás.
Cremos que para mudar essa situação é necessária uma mudança
cultural na sociedade. Seja ela em relação às representações sobre os/as
indígenas como também o modelo desenvolvimentista do Brasil que não
deve se orientar por modelos imperialistas.
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89
Vidas no limite: experiências de
sobrevivência de mulheres em situação
de violência doméstica em Marília – SP
Camila Rodrigues da Silva
Zuleika de Andrade Câmara Pinheiro
introdução
Na subida do morro me contaram / Que você bateu na minha nêga
Isso não é direito / Bater numa mulher / Que não é sua
Deixou a nêga quase nua /No meio da rua
A nêga quase que virou presunto / Eu não gostei daquele assunto
Hoje venho resolvido / Vou lhe mandar para a cidade
De pé junto / Vou lhe tornar em um defunto.
(MOREIRA DA SILVA; RIBEIRO CUNHA, 1952).
O trecho do samba Na subida do morro gravado em 1952 com-
posto por Moreira da Silva e Ribeiro Cunha demonstra claramente como
foram introjetados ao longo dos anos no imaginário coletivo a cultura do
silêncio contra a violência, da subjugação e da dominação sobre as mulhe-
res bem como sobre os comportamentos sociais considerados intrínsecos a
elas. Dentro deste contexto as meninas vivem as experiências das relações
familiares que produzem juntamente com outras instituições (Igreja, Esco-
la, Estado, judiciário, etc.) modelos hegemônicos, dominadores e patriar-
90
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
cais que conformam suas dimensões sociais. Assim, as mulheres vão sendo
educadas para nunca discutirem com seus maridos e companheiros sendo
reservado a elas obedecerem sempre às ordens que lhes eram dadas. Para
Mill (2006, p.32) “as mulheres são criadas, desde muito cedo, na crença
de que seu caráter ideal é o oposto do caráter masculino: sem vontade
própria e governadas pelo autocontrole, com submissão e permitindo se-
rem controladas por outros”. Deste modo, seus cotidianos permeados por
coerções e imposições de valores traduzidos em formas de comportamen-
tos irão marcar suas vidas, desde a infância até a idade adulta. O gênero
irá distinguir e marcar seus corpos, que entendidos como “propriedades
masculina serão igualmente, submissos aos seus maridos e companheiros,
sendo permitido a estes que pratiquem contra elas os mais variados tipos
de violência sem consequências de punição e repreensão. Com efeito, era
um crime bater na mulher do outro. E na versão do samba o marido ao
subir o morro descobre que outro homem havia batido gravemente em
sua mulher. O marido demonstra seu desagrado e raiva com o ocorrido e
para lavar sua honra ameaça o homem de morte, pois, anal somente ele
poderia bater em sua mulher.
Construída historicamente essa concepção acerca de comporta-
mentos a serem desempenhados pelas mulheres cujo modelo ideal aponta
para a mulher dócil, submissa, mãe e esposa dedicada permanecem até os
dias de hoje. Indicadores de moralidade sua delidade, lealdade e dedica-
ção ao marido conduziam e ainda conduzem julgamentos morais de bons
costumes e dentre os desdobramentos mais cruéis destas moralidades e
ajuizamentos está a violência contra as mulheres. A violência se manifes-
ta sicamente, psicologicamente, verbalmente, moralmente, patrimonial-
mente e mais especicamente no âmbito do espaço doméstico. Ou seja,
violências físicas e simbólicas que ocorrem no anonimato do ambiente
doméstico das famílias causando dor, sofrimento, angústia e silêncio na-
quelas que experienciam maus tratos. A violência doméstica vivenciada co-
tidianamente por mulheres e seus relatos serão os motores geradores deste
artigo que segue dois eixos de análises: pensar as diculdades expostas pelas
mulheres ao narrarem suas histórias de maus tratos, à luz dos processos
traumáticos de abusos e violências as quais foram submetidas; pensar o
fenômeno-limite da violência contra a mulher cujo fenômeno apresenta-se
91
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
multifacetado e plural no sentido de romper com estereótipos evidencian-
do resistências e sobrevivências no sentido de superarem a dor e o silêncio.
Mulher e silêncio, maus tratos e sofrimento, narrativas e memó-
ria são elementos que compõem o caleidoscópio das vidas das mulheres in-
formantes deste estudo
1
. É a partir destes eixos reetores que analisaremos
à luz dos conceitos de sobrevivência, gênero e violência como as mulheres
que sofrem violência doméstica lidam com as diculdades em expressar
suas experiências traumáticas. Como contar sua sobrevivência após expo-
sições a longos períodos de uso da força física, abusos e brutalidade do
outro? Narrar experiências de crueldade seria falar da sua própria morte,
a exemplo de Primo Levi
2
? Como superar a barreira da vergonha de ter
enfrentado inúmeras humilhações? Como lidar com julgamentos e repro-
vações de algumas pessoas que sugeriram que cassem em silêncio? Como
lutar contra a incredulidade dos outros e a vontade de esquecer? Proble-
matizar sobre as experiências traumáticas da violência doméstica vividas
por mulheres evidencia que estas são sobreviventes da violência já que são
muitas vezes prisioneiras em seus ambientes domésticos. Com efeito, des-
construir o fenômeno-limite da violência contra a mulher é romper com
estereótipos que perpassam à passividade feminina e alcoolismo masculino
revelando assim suas resistências e lutas pela sobrevivência.
“Se o trabalho de campo se faz pelo diálogo vivido que, depois, é
revelado por meio da escrita” (PEIRANO, 2014, p.10), para tanto lança-
mos mão de “registro de memória” visto que “quando introduzimos subje-
tividades no conhecimento acionamos por sua vez as lembranças sensibi-
lidades, privacidade e cotidiano” (D’ALESSIO, 1998, p. 270), elementos
importantes para desvendar a vida das mulheres informantes. A memória
é o “pedaço” representativo da subjetividade e identidade dos sujeitos em
1
As análises propostas pelo texto fazem parte da pesquisa “A Construção da Memória e o Impacto da Lei Maria
da Penha/2006 no Cotidiano das Mulheres Vítimas de Violência”. A pesquisa que embasa este estudo ainda
em fase preliminar faz parte de um estudo mais amplo de mestrado do pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UNESP campus Marília. A pesquisa trata da memória das mulheres em situação de violência
na cidade de Marília – SP na qual busca analisar suas trajetórias de vida e experiências vivenciadas a partir da
aplicabilidade da Lei Maria da Penha (2006) no contexto das Políticas Públicas para as mulheres.
2
Primo Levi (1919-1987) foi um dos poucos sobreviventes de Auschwitz, campo de concentração onde milhões
de prisioneiros judeus, como ele, foram exterminados pelos nazistas. Sobreviveu a Auschwitz e ao regressar a
Turim, sua cidade-natal, escreveu um contundente testemunho dos campos de concentração nazista.Dentre
seus escritos destacamos seu primeiro livro Isto é um homem (1947) e seu livro mais lido Os afogados e os
sobreviventes (1986).
92
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
sua relação com o mundo e deste modo adotamos como pressuposto que a
memória se constitui na narrativa.
Assim, os relatos aqui expostos são de mulheres que sofreram vio-
lência doméstica na cidade de Marília/ SP e se disponibilizaram a narrar
suas experiências
3
. Utilizaremos ao longo do texto as narrativas das mu-
lheres informantes do estudo. Estas mulheres foram nomeadas por nós de
“Maria” (Maria 1, Maria 2 e Maria 3). Entretanto, cabe aqui um esclare-
cimento. A ideia em chamá-las de Maria não tem o intuito de homoge-
neizá-las, mas, remeter a tantas Marias que sofrem e sofreram violência
doméstica, a exemplo de Maria da Penha cuja lei foi em sua homenagem.
A composição dos temas violência doméstica, gênero e sobrevi-
vência forma a linha central deste texto que tem como ancoragem teórica
referências da História com interlocuções com Sociologia e Filosoa. Estas
ancoragens teóricas nos possibilitarão argumentos para desvendar, com-
preender e analisar a realidade observada.
gênero e hiStoriA orAl: umA queStão metodológicA
Importa para o escopo deste artigo situarmos o conceito de gêne-
ro posto que, foi a partir do movimento feminista que as discussões sobre a
mulher na política, no trabalho, na família, na sociedade e nos movimen-
tos sociais abriram novos caminhos para estudos e pesquisas, contemplan-
do uma nova categoria analítica: gênero. A teoria feminista se mostrar fértil
em questionamentos trazendo para o centro do debate contemporâneo
questões sobre a condição da mulher, do corpo, do sexo, da sexualidade
e de gênero. O que vamos constatar é que tais estudos e pesquisas abrem
caminhos para discussões que põem em xeque a “naturalização” do que é
ser homem” e “ser mulher” e a forma de constituição do masculino e do
feminino.
As categorias Gênero e Mulheres são constantemente inter-re-
lacionadas com outros marcadores sociais de diferenças (classe social, ge-
rações, etnia, etc) que assumem posições não estáticas e perpassam por
processos de (re) atualizações constantes. Tomamos como ponto de partida
3
As mulheres assinaram um termo de consentimento e permitiram que as entrevistas fossem gravadas e trans-
critas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética / CAAE:37782114.9.0000.5406.
93
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
as discussões apresentadas na Introdução do artigo Gênero: uma Catego-
ria Útil de Análise Histórica (1990) da historiadora feminista americana
Joan W. Scott. A autora vai dar dinamicidade aos padrões disciplinares
das Ciências Sociais propondo discussões e reexões quando argumenta
que gênero, além de ser uma categoria descritiva deve ser usado como ins-
trumento analítico. Ao esquadrinhar o conceito de gênero Scott faz uma
articulação entre concepções de gênero e a dinâmica histórica da socieda-
de tornando-se, assim, uma importante teórica sobre o assunto. Sua obra
introduz o uso da categoria gênero nas discussões feministas, alcançando
grande repercussão nos núcleos de estudos e pesquisas de todo Brasil. O
gênero traz, assim, uma vantagem às discussões das Ciências Sociais ao
propor uma mudança nos paradigmas epistemológicos tradicionais pro-
porcionando novas interpretações históricas.
Ressaltamos que gênero não se referencia apenas às mulheres, mas
também aos homens e as relações entre ambos. Para Scott (1990) além de
desencadear análises das desigualdades e hierarquias sociais gênero opõem-
se a um determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhe um
caráter sociocultural articulado com a noção de poder. Portanto gênero
cria, institui e expressa relações de poder, bem como indica e entalha em
nosso corpo diferenças de sexo, além de ser performático.
Os estudos de gênero surgem para contestar a partir de outros
olhares à produção dos saberes em relação a categoria sexo. Tal concepção
era percebida como uma categoria xa nos corpos e este determinismo
biológico abalizava mulheres e homens sicamente, assim, deliberava sua
identidade, seu papel social, sua função, status e relação social a partir de va-
lores e conteúdos desiguais e diferentes. Para compreender a complexidade
e contradições de análises sobre o conceito de gênero, diversas concepções
teóricas que apresentam alternâncias e desconstruções das abordagens. Tais
abordagens decorrem dos estudos feministas que deslocam seu objeto de
estudo empírico mulher” para o objeto de estudo teórico “gênero”.
A fertilidade dos estudos sobre gênero nos dias atuais contrasta
com a diculdade da trajetória do conceito no campo historiográco, pois,
nas ciências humanas foi a História é a que mais tardiamente apropriou-se
desse conceito, assim retardou a inclusão da categoria social ou mulheres
como objeto de análise na pesquisa histórica: “Grande parte desse retardo
94
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
se deveu ao caráter universal atribuído ao sujeito da história, representado
pela categoria homem. Acreditava-se que, ao falar dos homens, as mulhe-
res estariam sendo, igualmente, contempladas, o que não correspondia à
realidade.” (SOHIET; PEDRO, 2007, p. 284).
A partir desses debates teóricos instaurados na comunidade aca-
dêmica em geral, sobretudo, no campo da historiograa, as historiadoras
feministas foram incisivas pela revisão do debate teórico na História que
trouxesse à baila as questões sobre as mulheres.
Possivelmente por estarem atreladas ao espaço privado, as mu-
lheres estiveram ausentes das atividades que eram consideradas importan-
tes, dignas de registro e conhecimento de gerações futuras, fazendo com
que suas presenças e participações nos arquivos públicos mostrassem-se
extremamente reduzidas. Já nos arquivos privados, a presença de registros
femininos como anotações diárias da vida familiar, cartas e diários íntimos
é mais evidente. São registros que auxiliam na apreensão das subjetividades
por meio das oralidades da vida cotidiana das mulheres, registros estes que
demonstram riquezas de detalhes e expressões de suas vivências
A m de construirmos narrativas para compreender as questões
propostas neste estudo lançamos mão da História Oral como instrumen-
to analítico-metodológico para que pudéssemos apreender por meio das
oralidades das mulheres suas experiências vividas, trajetórias de vida e me-
mórias. Para Pollak (1989) a História Oral deve privilegiar a memória dos
grupos minoritários e dominados, a qual ele denomina de memórias sub-
terrâneas
4
que se opõem à memória ocialmente produzida visto que estas
passam despercebidas pela sociedade englobante. Com efeito, as memórias
subterrâneas das mulheres podem invadir o espaço público passando do
não dito à contestação e à reinvindicação evidenciando que são sujeitos da
história e portadoras de direitos. Ouvir o que elas têm a nos contar e perce-
ber a riqueza de detalhes em suas narrativas evidenciando suas subjetivida-
des e experiências particulares, expressões e conssões que não são encon-
trados nos documentos ociais, compõem a metodologia das oralidades.
4
Michael Pollak em seu artigo “Memória, Esquecimento e Silêncio” (1989) entende por memórias subterrâneas
aquelas que são dominadas por uma memória coletiva organizada na qual resume a imagem que uma socie-
dade majoritária ou Estado desejam passar e impor. Tais imagens são referenciadas pelo autor como “zonas de
sombras, silêncios e não-ditos” (POLLAK, 1989, p.08) que passam despercebidas pela sociedade englobante.
95
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
A problemática apresentada neste estudo é pensada a partir da
História do Tempo Presente entendida não somente como o estudo do
passado, mas também o estudo do presente que tem como pressuposto
o fazer história marcado pela subjetividade, por ser uma história de “nós
mesmos” e uma “história ainda por se fazer” (MARANHÃO FILHO,
2009) Tal fato representa um desao para o(a) pesquisador(a) a partir do
momento que nos identicamos com nosso objeto de pesquisa. Deste
modo, Maranhão Filho (2009) nos ajuda a pensar sobre as preocupações
teórico-metodológicas diante dos problemas colocados em pesquisas,
principalmente no que se refere as questões das subjetividades das mu-
lheres que sofreram violência doméstica e sobre a maneira com que elas
enfrentam a violência a partir do seu cotidiano, experiências, lembranças
e ressignicações de suas próprias vidas.
Outra questão importante que devemos considerar em nossas
análises-metodológicas são as nossas ações acerca da relação entre entrevis-
tadora e entrevistada. Portelli (1997), referência nos estudos de oralidades,
recomenda atenção especial no trato das memórias. Para ele devemos car
atentas às entrevistas, pois a relação dialógica é resultado da intersecção
entre duas subjetividades, duas visões culturais, duas percepções e condi-
ções sociais distintas. A arte da pesquisa oral é ouvir não só o que o que
nosso objeto de pesquisa propõe e sim o que a outra pessoa considera
importante ao narrar sua história. Portelli sugere-nos também que a única
técnica que devemos seguir é o agir com educação fugindo das técnicas
enquadradas dos manuais de História Oral. Como uma ciência e arte do
sujeito a História Oral leva-nos a tratar as entrevistadas não como “fontes
e sim como pessoas resguardando a importância de cada indivíduo que
possui subjetividades, vivências e experiências singulares. Foi através desse
olhar cuidadoso e apurado que obtemos das três Marias as narrativas que
subsidiaram as análises a seguir.
o fenômeno multifAcetAdo dA violênciA
Os estudos sobre gênero trazem ao centro do debate das ciências
humanas a questão da violência contra a mulher no Brasil e a partir de
alguns estudos pesquisadores (as) passam a usar a expressão violência de
96
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
gênero conceito cunhado por Heleieth Saoti (2004). Este conceito está
diretamente imbricado às ideias de patriarcado, poder, raça, etnia e relação
exploração-dominação. Para Saoti (Idem) violência de gênero é entendida
como uma categoria de violência mais geral que abrange a violência contra
a mulher e a violência familiar. Normalmente a violência de gênero incide
no sentido do homem contra a mulher, no entanto, pode ser praticada no
sentido homem contra homem e mulher contra mulher. Ao forjar o con-
ceito de violência de gênero Saoti distingue a violência familiar que envol-
ve membros de uma mesma família ligados por laços de consanguinidade
e anidade da violência doméstica. A autora alude que a violência de gênero
compreendida na base familiar pode ocorrer dentro ou fora do domicílio.
Já a violência doméstica apresenta pontos de sobreposição à violência fami-
liar que envolve pessoas que pertencem ou não a uma família que vivem
parcial ou integralmente no domicílio do agressor. Embora Saoti tenha
utilizado o conceito de gênero, além de desenvolver uma nova nomencla-
tura em suas análises sobre violência contra as mulheres, a autora não inclui
este conceito na sua explicação sobre violência de gênero. Isto porque Sao-
ti não recusa o paradigma do patriarcado e permanece denindo violência
como uma disposição da dominação masculina (SANTOS; IZUMINO,
2005). Assim alude: “paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de
agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos
homens, inscrito nas relações de gênero.” (SAFFIOTI, 2004, p.75).
Para Ramos e Machado (2009) a violência doméstica é
caracterizada por um tripé: agressões ocorridas numa relação familiar (afe-
tiva ou conjugal); a conguração de uma relação hierárquica entre gêneros;
uma forte tendência à habitualidade da agressão (quase sempre no sentido
homem contra a mulher). Para os autores a violência doméstica foi pensa-
da reexivamente como um fenômeno-limite multifacetado e plural, fenô-
meno este que envolto em discursos morais, culturais e religiosos recaem
em sua maioria sobre as mulheres violentadas. Certamente tais discursos
necessitam serem descontruídos e reetidos constantemente.
Frequentemente ouvimos expressões como “mulher gosta de
apanhar”, “algumas mulheres merecem ou pedem abuso”, “mulheres
gostam de ser agredidas”, “quando um não quer dois não brigam” tais
expressões são ditas e repetidas sem medições e avaliações. Estas repre-
97
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
sentações sociais, entendidas como “uma forma de conhecimento social-
mente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contri-
bui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”
(JODELET, 2001, p.22), são reforçadas cotidianamente produzindo
violência, dor, silêncio e inserem-se no imaginário social por meio de
preconceitos que estereotipam cada vez mais comportamentos femininos
restritos ao ambiente doméstico.
As representações sociais da violência doméstica são frequente-
mente associadas à patologização a partir do momento que, justicam-
-se atos violentos praticados por agressores. As agressões provenientes do
uso abusivo do álcool, de drogas, da depressão e de ciúmes, conferem aos
agressores o status de “loucos”, “maníacos”, “doidos”. Estas constatações
são evidenciadas no relato de Maria 2 quando do questionamento se mes-
mo quando seu marido não ingeria bebidas alcoólicas era agressivo, esta
responde: [...] eu acho que ele é meio louco (risos) é... ele é meio doido”.
Ficou demonstrado que Maria 2 não conseguia explicar ao certo sobre a
condição vivenciada de violência e atribuía a uma patologização as agres-
sões cometidas contra ela.
O problema de pensar o fenômeno da violência com o foco na
patologização é complicado visto que ela obscurece e encobre relações de
poder, além de ressaltar estereótipos, como: “homem não leva desaforos”,
macho não abaixe a cabeça”, “homem pode tudo”, dentre outros. A repre-
sentação de patologização do agressor e da violência ignora hierarquias e
relações de poder no qual o gênero feminino é visivelmente alocado como
subalterno e inferior no ambiente domiciliar. O que observamos em algu-
mas situações de violência são explicações às quais as próprias testemunhas
buscam justicar as agressões suportadas.
Alguns relatos revelam que as mulheres são como “propriedade”
dos homens donde estes mantem supremacia sobre elas. Sobre esta ques-
tão o relato de Maria 1 de 39 anos na qual sofreu violência durante 14
anos, ao ser questionada a respeito dos motivos que levaria as agressões
que sofria, expressão:
[...] Ele falava muito de ciúme, que ele tinha muito ciúme de mim, que
não sei o que... eu não podia conversar com ninguém, nem com as minhas
amigas, ele tinha raiva que eu conversava com minhas amigas, ele não
98
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
gostava quando que eu tava junto com minha família, todo tempo eu não
podia ter vizinho, eu sempre morei sem vizinho, sempre me levou pra lugares
assim, que a gente sempre trabalhava muito na roça e quando era pra pedir
a casa “tem casa separada? ” sempre foi sozinho, sempre foi muito sozinho.
Ele falava que era por causa das crianças, que tinha criança porque não
sei o que... que não era bom ter vizinho. (Maria 1, entrevista concedida 4
de novembro de 2014).
O que ca evidente na fala de Maria 1 é uma vigilância diu-
turnamente sobre ela por parte do marido. Pensar esta questão de que a
mulher é “domínio” do homem nos remete à ideia de que o espaço das
mulheres é restrito, vigiado e permeado de valores norteados por poder
patriarcal no qual a supremacia do homem ante a mulher se aloja na tan-
to na vida social quanto privada. Aqui a ideia de patriarcado se expressa
num contexto de dominação masculina na qual se apresenta de maneira
negativa tanto na vida dos homens como na das mulheres. O patriarcado
é, portanto como pontua Saoti uma máquina que tem por base o con-
trole e o medo, sendo um conjunto de procedimento social, congurado
em poderes criados nas relações entre as pessoas que acaba por subjugar
as mulheres (SAFFIOTI, 1979).
A partir dessa lógica podemos pensar como os homens são so-
cializados para serem dominadores, hegemônicos e patriarcais. O que se
constata são discursos médicos, jurídicos e religiosos que atribuíam um
modelo ideal de homem com exigências de padrões de virilidade, provedor
do lar e da casa e em hipótese alguma o homem poderia demonstrar seus
sentimentos, emoções e não podia chorar. Desde a tenra idade, os padrões
de comportamentos masculinos são construídos desde a maternidade até a
idade adulta ao criar um tipo ideal de masculino.
Mesmo antes de a criança nascer já existe uma preocupação dos
pais em saber o sexo do bebê para em seguida se preocuparem com à
saúde física e neurológica. A existência do cromossomo Y ou órgãos se-
xuais masculinos, porém, não é suciente para determinar se o homem
é “macho” ou não. Para ser do sexo masculino o menino vai passar por
todo um processo e sistema de códigos de comportamentos e condutas
que “não parece ser exigido das mulheres.” (BADINTER, 1993). Deste
modo, a diferença dos genitais será o ponto de partida para as expecta-
99
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
tivas de comportamento de homens e mulheres e para o delineamento
de suas subjetividades (NOLASCO, 1993). Assim, nosso linguajar co-
tidiano na socialização dos meninos nos deixa sempre preocupado em
referir-se à masculinidade dos meninos como uma nalidade e obriga-
ção. Assim, a “fabricação” dos homens, perpassa pelos discursos sociais e
mecanismos institucionais os quais os sujeitos são produzidos como bem
ressaltou Simone de Beauvoir (1947) “não se nasce mulher, torna-se”,
assim, como não se nasce homem, torna-se.
Na entrevista de Maria 1 cou evidente que o sentimento de
medo produz revolta e faz com que seus atos de rebeldia, de luta, de
agência e de participação
5
(GOHN, 2008) fossem aniquilados por mi-
cropoderes que a vigiava e a subjugava o tempo todo. Os mecanismos de
dominação vivenciados por Maria 1 e sutilmente disseminados formam
uma rede de minúsculos poderes. Para Foucault (2000) não se tem poder
se exerce e a origem deste poder está no Estado, escola, igreja, família, tra-
balho congurando micropoderes que exercem sobre os indivíduos poder
que interfere em sua autonomia tornando-os mansos e dóceis. Em outras
palavras, para Foucault os micropoderes são as implicações decorrentes dos
mecanismos de força que operam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de
Estado e das relações sociais.
Em sua genealogia do poder Foucault se interessa pelas múltiplas
e difusas formas pelas quais o poder é exercido sobre o corpo, os comporta-
mentos e sentimentos dos sujeitos tornando-os transmissores de poder. O
mandamento do disciplinamento era colocar cada indivíduo em seu lugar
e por sua vez em cada lugar colocar um indivíduo articulando os controles
locais e as redes ao ampliar os efeitos dos mecanismos disciplinares como
o castigo, a punição e o treinamento do corpo na dimensão tecnológica da
vigilância e na disseminação dos dispositivos de segurança da vida humana
(FOUCAULT, 2000).
Desta forma, esses micropoderes podem ser percebidos no modo
como os discursos normativos são moldados nos julgamentos de valores
morais que são assentados nas mulheres. Aquelas que resolvem deixar o
5
Maria da Glória Gohn (2008) entende por agência e participação processos de vivência que imprime sentido e
signicado a um grupo ou indivíduo tornando-os protagonistas de sua história, desenvolvendo uma consciência
crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a esse grupo ou ações individuais e coletivas gerando novos
valores e cultura política.
100
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
ambiente familiar não se enquadram no modelo ideal de mulher cujo prin-
cipal indicador de moralidade é sua delidade e dedicação ao marido e
lhos. O que observamos é que nos procedimentos judiciários há uma
estreita relação entre “virtude moral” ao comportamento das mulheres na
hora dos julgamentos e discursos legais. Portanto, algumas mulheres do
século XXI “provam” da força dos micropoderes, além de experenciarem
preconceitos e discriminações. Um exemplo sobre esta questão foi mani-
festado na fala de Maria 1 na qual foi forçada a optar pela humilhação e
sobrevivência diária:
Eu falaria o que o meu lho falou pra mim o que bateu lá no fun-
do: “toma vergonha na cara e sai dessa vida”, apesar que não é falta de
vergonha na cara é muito medo é medo, meu lho achava que era falta de
vergonha na cara mas não era, era medo do que ia acontecer depois, medo de
não ter o que dar pra comer pros meus lhos, porque com ele eu apanhava,
mas meus lhos tinham o que comer todos os dias é.... medo de você car
desempregada, medo do que vão falar, do que vão achar...
[...]
Pode dar a volta por cima, mesmo que sofrido não é fácil, não é fácil, não
é fácil você sair na rua e todo mundo te olha, não é fácil você procurar
um emprego e fecharem as portas, não é fácil dá vontade de voltar pra
trás assim pelo que eu tinha, mas nem isso eu sinto mais falta [...]. (Maria
1, entrevista concedida 4 de novembro de 2014).
Para seu lho um adolescente de 17 anos, Maria1 teria como sair
da situação de violência na qual ela não deveria aceitar. Ficou evidente que
sua sobrevivência era diária donde esta encontrava maneiras de viver um
dia de cada vez. Para o lho, o “toma vergonha na cara e sai dessa vida”,
sugere: por que viver nessa situação? Entretanto, ela justica sua perma-
nência insinuando que o sentimento de medo a faz se manter em casa
com o agressor. Por ter que viver uma situação na qual não sabe enfrentar,
além de aludir à sua obrigação de mãe que, por ora, se colocou mais forte
aproximando-a da imagem de “santa” e de “mártir” que deve sofrer pelos
seus lhos.
Estar imersa num ciclo de violência, cobranças e imobilização das
representações tradicionais de mãe, esposa, companheira parece inndável
torna-se cada vez mais insustentável para as Marias. Este encarceramento
101
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
diculta as tomadas de decisões que possam criar alternativas para driblar
as situações recorrentes de violência e assumir novamente o controle de
suas vidas. No relato de Maria 2 esta esclarece como foram suas preocu-
pações e diculdades em tomar a decisão de que “a partir de agora eu não
quero mais”:
mas era difícil, pois até hoje ele é muito dramático, ele faz muito drama,
ele se faz muito de vítima então no começo eu me sentia muito culpada,
porque minha mãe aguentou tudo até morrer, eu me sentia culpada,
casamento era pra sempre e eu sentia que eu precisava, demorou, até
que eu aguentei bastante 20 anos casada... (choro). (Maria 2, entrevista
concedida dia 24 de fevereiro de 2015).
Além do medo, anteriormente mencionado, o sentimento de cul-
pa torna-se recorrente nos discursos das Marias, pois, as mulheres foram
educadas e socializadas para “sustentar” e “suportar” o casamento anulan-
do-se diante da relação conjugal ao deixar em segundo ou terceiro plano as
suas decisões e escolhas pessoais tolerando traições, bebedeiras e agressões.
No marco da discussão acima importa situarmos a ideia de dis-
tinção entre violência e poder proposta por Hanna Arendt (1989). Para
Arendt o fenômeno da violência está associado às expressões de poder,
enquanto que o fenômeno do poder é melhor compreendido em termos
de obediência, submissão e dependência. A autora vai associar a violência
com a perda de poder visto que não sendo a violência a fonte do poder,
quanto mais poder menos violência. Entretanto, estes dois fenômenos es-
tão imbricados e articulam-se no jogo político e assim, constitutivo da vida
doméstica. A relação entre ambos (violência e poder), Arendt (1989) argu-
menta que o poder é fator primário predominante. Partindo desta lógica
a autora não recusa a violência, mas sim a acha justicável. Tanto nas rela-
ções internacionais, políticas e domésticas, a violência é o último recurso
para se manter a relação de poder intacta: “[...] porque aqueles que detêm
o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles os governantes, sejam
os governados, têm sempre achado difícil resistir à tentação de substituí-lo
pela violência.” (ARENDT, 1989, p. 108).
O conceito de violência de Arendt é indispensável para nossas
análises, pois no âmbito do doméstico, do privado o poder do homem tem
102
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
sido ameaçado. Tal ameaça deve-se ao fato de que o movimento feminista
fortaleceu as mulheres quanto as questões sobre seus direitos políticos e ci-
vis. As lutas por iguais condições de trabalho e de escolarização; a inserção
no mercado de trabalho; a conquista de leis e direitos; novas tecnologias
demonstrando cada vez mais a relação de troca entre “vítima e algoz” e de
empoderamento, foram algumas reivindicações alcançadas pelo movimen-
to feminista. O relato de Maria 1 ilustra bem esta questão.
Ano passado eu tinha me separado dele, antes de me separar, eu queria
voltar a estudar e terminar o meu ensino médio, porque na minha casa
todo mundo estuda, todo mundo estuda. Eu tenho 4 irmãs que as 4 são
pedagogas. Aí eu falei eu quero estudar, não que eu queira fazer peda-
gogia que não é pra mim, mas assim, eu quero voltar a estudar, só falta
um ano eu falei o que é que UM ANO? Aí ele começou a falar que...
estudar era pra biscate, que eu ia pra escola pra ir atrás de macho, que
não sei o que, que não sei o que... Aí eu um dia eu peguei recebi o meu
pagamento e fui pra São Paulo, porque quando eu estudei em São Paulo
eu deixei meus documentos lá na escola que eu estudei e eu não trouxe
histórico não trouxe nada e eu falei vou voltar lá na escola, pegar meus
documentos e vou voltar a estudar, eu falei: queira ou não queira eu vou
voltar a estudar, por bem ou por mal eu vou voltar a estudar.
[...]
Quando eu voltei de lá, nossa! Foi uma guerra na minha casa! Que eu
cheguei com os documentos e falei: voltei e vou estudar! Aí a gente dis-
cutiu e ele me agrediu, ele me pegou pelos cabelos e começou a dar tapa
na minha cara e meu lho, meu lho pegou, veio apartou a briga e falou
pra ele “se você relar a mão na minha mãe, eu te mato! E você toma ver-
gonha na sua cara e sai daqui, que eu to cansado de te ver apanhando” aí
eu peguei olhei pra cara do meu lho e disse: é verdade, tenho que tomar
vergonha na minha cara mesmo [...]. (Maria 1, entrevista concedida 4 de
novembro de 2014).
A violência se apresenta como um motor importante para a re-
lação de vítima e algoz como pontua Gregori (1993) em seu livro “Cenas
e queixas. Um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática fe-
minista” donde critica o estereótipo da “passividade feminina”. A autora
demonstra que as cenas e queixas que dão nome ao livro são na verdade
construídas numa relação de parceria entre homens e mulheres, que não
são mais vistos apenas como opressores e oprimidas. A autora considera o
lado mais perverso da violência, que é justamente aquele onde as mulheres
103
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
atuam para construir e manter seu lugar de vítima, posição que determina
que elas sofram no próprio corpo essa perversa construção. Essa parceria
entre vítimas e algozes retira das mulheres o estigma da passividade e as
inserem dentro de uma rede, garantindo-lhes a possibilidade de desloca-
mento nas relações de poder. Deste modo, o termo “vítima” muitas vezes se
coloca de maneira inadequada na construção das políticas públicas de en-
frentamento a violência, reetindo, assim, nos atendimentos, acolhimento
e efetivação das mesmas bem como na literatura acadêmica nacional sobre
esse tema que estigmatiza as mulheres em passivas, dóceis e frágeis, deixan-
do de evidenciar as inúmeras estratégias, mobilizações e agências que elas
fazem parte.
A violência e o poder estiveram quase sempre associados ao mas-
culino na qual utiliza como argumento que procedimentos violentos con-
tra o “inimigo” (namorada / esposa / companheira) são justicáveis. Assim,
as mulheres estão sujeitas ao poder daquele que seria o provedor e man-
tenedor da honra familiar podendo valer-se de sua autoridade para punir,
exigir e agredir os demais componentes da família. Para a mulher recai a
obrigação de cuidar dos lhos, lidar com as tarefas domésticas estando su-
bordinada aos desejos do homem. Tais relações atingem de maneira mais
cruel o âmbito social a partir do momento que expressões de gênero foram
incorporadas reproduzindo poderes diferenciados entre homens e mulhe-
res, nos quais os homens foram educados para controlar e dominar suas
mulheres e lhos/as, já as mulheres voltadas a criar e cuidar dos/as lhos/
as do espaço doméstico e do marido.
poderíAmoS dizer que AS mulhereS vítimAS de violênciA
doméSticA São SobreviventeS?
O conceito de sobrevivente forjado por autores a partir de Primo
Levi passou a fazer parte de nosso estudo com as devidas distinções de tempo
e espaço, na qual e foi desenvolvida e situada a partir da proximidade com as
Marias cujas experiências e relatos nos fez perceber que podemos considerar
sobreviventes da violência domestica estas mulheres. A cada ato violento e
agressões cometidas contra elas, zeram-nas prisioneiras dos seus próprios
ambientes domésticos. As Marias (Maria 1 – 15 anos, Maria 2 – 17 anos,
104
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Maria 3 – 7 anos) imersas nas “zonas de sombra e nos não ditos” (POLLAK,
1989, p. 9) passaram longos anos envolta em medos, silêncios, temores,
agressões e connamentos.
Os silêncios e não-ditos das Marias foram reforçados quando ao
procurarem atendimentos legais instaurados pela justiça, receberam jul-
gamentos morais, aconselhamentos ou foram (re) vitimizadas ao invés de
serem amparadas e terem o respaldo da Lei Maria da Penha. Tal fato acon-
teceu com Maria 1 que ao procurar atendimento especializado ouviu de
uma agente: “[...] olha você tem seus lhos pequenos vê o que você quer
[...] às vezes dá pra perdoar”. O silêncio de Maria 1 após ouvir a sugestão
da agente se assemelha a outros relatos e para não se exporem, muitas
mulheres acabaram recolhidas em suas vidas e não mais procuraram a jus-
tiça. Há descaso com depoimentos das mulheres nos espaços que seriam
de acolhimento indicado pela própria lei
6
e pela cartilha da Lei Maria da
Penha & Direitos da Mulher (2011)
7
visto que a própria lei pontua dentre
outros deveres dos agentes, não julgar as mulheres que permanecem em
uma relação violenta, mas sim, procurar entendê-las e ajudá-las a sair dessa
situação que sem segurança, apoio e amparo da lei é complicado e difícil.
Ricoeur (2000, p. 175) em sua sosticada análise sobre a situação
de testemunhar, nos oferece entendimento sobre essa realidade: “há tes-
temunhas que jamais encontram a audiência de escutá-las e entendê-las”.
Estas condições nos remetem as inúmeras mulheres que sofreram violência
e procuram atendimentos especializados, não obtendo a devida credibili-
dade ao narrar seu testemunho. A partir deste entendimento poderíamos
então sugerir que elas são sobreviventes?
Essas constatações colaboram para pensarmos as condições do
relato após uma situação traumática, oferecida por Ricoeur quando se
refere à crise do testemunho, como legitimidade; mais especicamente
dos testemunhos daqueles que se salvaram dos campos de concentração
nazista remetendo a Primo Levi e que viveram um evento e foram até o
6
No artigo 3º inciso 1º da Lei Maria da Penha (2006): O poder público desenvolverá políticas que visem garan-
tir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
7
A cartilha Lei Maria da Penha & Direitos da Mulher foi produzida em 2011 e organizada pelo Ministério Pú-
blico Federal juntamente com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC). Disponível em <http://
www.prrr.mpf.mp.br/arquivos/pgr_cartilha-maria-da-penha_miolo.pdf>. Acesso dia 25 de maio de 2015.
105
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
seu nal, não apenas como uma testemunha que o observou de fora, mas
sobretudo, como um ator/atriz/vítima que participou de todo o processo
de sobrevivência. Deste modo, questões são colocadas diante da dicul-
dade do sobrevivente justicar a sua própria sobrevivência aliadas aos
obstáculos da incredibilidade, dos julgamentos, das reprovações, da von-
tade de esquecer que acabam por silenciar as testemunhas (RICOEUR,
2000; AGAMBEN, 2008).
A categoria sobrevivente, apresentada por Agamben (2008), so-
breviventes de campos de concentração nazi fascistas, e Possas (2015)
8
so-
breviventes dos campos de concentração argentinos, pode ser relacionada
às experiências traumáticas das mulheres que experienciaram a vida no
limite (Primo Levi). Contar sua própria sobrevivência no ambiente do-
méstico não é tarefa das mais fáceis para algumas mulheres. Muitas delas
se calam diante da vergonha, dos julgamentos e reprovações permeados
pelas representações sociais que as desqualicam, principalmente quando
procuram atendimentos especializados no qual a justiça não lhe conam
credibilidade aos seus testemunhos.
Maria 1 viveu esse sentimento de ser julgada pela incredibilidade
do seu testemunho quando procurou a Delegacia da Mulher pela primeira
e única vez com o objetivo de resguardar a guarda de seus lhos:
Teve a audiência e o promotor mandou eu voltar embora e cuidar dos
meus lhos e eu falando pro promotor que eu tava sendo agredida
eu chorando dentro da sala de audiência e o promotor mandou eu
voltar embora e cuidar dos meus lhos, eu não tinha pra onde ir e
eu tive que voltar. Aí eu nem procurei mais, porque eu desanimei eu
falei não, porque que Lei é essa? Que a gente vai fala pro cara ô eu tô
sendo agredida! Eu tô levando nome eu tô apanhando na cara, levando
tapa na cara, levando um monte de nome, “volta e vai cuidar dos seus
lhos, ele é um cara trabalhador.” (Maria 1, entrevista concedida dia 4
de novembro de 2014).
8
No período entre 1976 e 1982 funcionaram na Argentina 340 campos de concentração/extermínio distribu-
ídos por todo o território nacional (CALVEIRO, 2013, p.41), sua complexidade está nas variações entre eles, e
pelo número de presos quanto pelo tamanho das instalações. A Província de Córdoba, território do III Corpo do
Exército, comandada pelo ocial por Luciano Benjamin Menéndez, “Cachorro” condenado em 2001, a prisão
perpétua, se encontravam quatro: La Perla (1976-1979); D2 Bomberos (1976-1978); La Ribera (1975-1979)
e D2 Cabildo (1977 a 1983). Megaucausa “La Perla”, 2012. Ver Testemunhos e Sobreviventes, a reinvenção de
identidades, viuvez, gênero e o estado de exceção na América Latina. Revista Gênero&Direito, 2015, no prelo.
106
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Mesmo diante dessas condições elas encontram brechas diárias de
sobrevivência e de resistência em seus dia-a-dia e são por meio desses for-
talecimentos diários que elas chegam a ser sobreviventes. Pelo depoimen-
to de Maria 1, as diculdades apresentadas as mulheres sobreviventes da
violência cometida geralmente por seus esposos ou companheiros em seus
lares, são visivelmente percebidas. O discurso jurídico baseado no patriar-
calismo e nas representações de gênero arraigadas na nossa sociedade fazem
por desqualicar os conitos de violência doméstica como policial fazendo
com que a mulher que procure atendimento com o objetivo de sair das
situações vivenciadas volte para sua casa sem solução para o problema e seja
constantemente (re) vitimizada (LIMA, 2009).
Diante das situações violentas enfrentadas cotidianamente por es-
sas mulheres sobreviventes, no que se refere às agressões ativamente come-
tidas por seus companheiros, mas também direcionada para aquele tipo de
violência social que acontece no espaço público, principalmente nos espaços
jurídicos, questionamentos são colocados e re-signicados a partir do mo-
mento que a testemunha resolve falar.
No entanto, há outras testemunhas que a “única razão de viver é não
permitir que a testemunha morra” (AGAMBEN, 2008, p. 26) e foi por meio
dessas brechas no testemunho que conseguimos ouvir dessas mulheres “que
lhes couberam viver” (Ibidem) a partir do momento que superam as barreiras
a elas impostas do preconceito, da vergonha dando-lhes credibilidade ao falar.
A categoria sobrevivente permeia também aspectos sociais que
se iniciam na infância como no relato de Maria 3 que teve uma infância
muito sofrida diante do descaso de sua mãe em relação aos seus cuidados
com a saúde. A sobrevivência de Maria 3 acontece no seu dia-a-dia desde
criança até os seus dias de adulta, que segundo ela, só após seus 18 anos é
que ela mesma começa a cuidar de sua saúde:
Eu fui criada com uma cabra no quintal, porque eu quei 4 meses na
UTI, aí quando eu saí de lá o compadre da minha mãe deu a cabra até
eu... aí com 2 anos... aí eu fui sobrevivendo né? Com 15 anos eu descobri
que a anemia estava muito forte mesmo a ponto de virar uma leucemia
[...] mas graças a Deus ela teve controle, porque quando eu quei grávida
da minha lha, minha mãe era semianalfabeta, quando eu era criança ela
cuidou e na adolescência ela não cuidou mais de mim. Eu fui cuidar de mim
a partir dos 18 anos quando eu fui mãe e comecei a cuidar [...]. (Maria 3,
entrevista concedida dia 7 de novembro de 2014. grifo nosso).
107
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Viver a vida no limite dentro do espaço intrafamiliar é estar sus-
cetível a todos os atos violentos, sendo estes, despercebidos pela justiça,
pois se restringem a punições e possibilidades dentro do privado. O líder,
remetendo a Arendt (1989), elimina totalmente a condição humana da
mulher por seus atos agressivos, simbólicos ou não, o que ocasiona uma
espécie de (des)personicação. Dito em outras palavras, as mulheres são
vistas como objetos ou “coisas” autorizando o macho alimentar seu senti-
mento de posse sobre ela.
Reetindo em seus sentimentos de anulação enquanto mulher
portadora de direitos e dona das suas próprias escolhas, além da perda da
autoestima e vaidades tão caras para a sociedade atual. Esse sentimento de
não existência, de não ser ninguém, está presente na experiência vivenciada
por Maria 1 chegando ao ponto dela se sentir um “lixo”:
Não tinha auto estima, não tinha auto estima, nada, nada, nada, nada,
nada... eu acho que to dando uma melhoradinha agora, mas não tinha,
me sentia lixo, sabe assim? Me sentia um lixo, me sentia ninguém [...]
Eu já nem tenho vaidades (risos) então, aí que piorou, nossa! Eu quei
muito acabada! Demais, demais! Eu não tinha vontade de me cuidar,
não tinha vontade de, tinha dia que não dava vontade de sair da cama,
escovar os dentes e levantar, eu não tinha vontade. Tanto é que durante
esse tempo que eu tomei calmante eu me acabava no calmante pra mim
car dormindo [...]. (Maria 1, entrevista concedida dia 4 de novembro
de 2014).
Agamben (2008) retoma sua discussão sobre o testemunho e
os sobreviventes a partir do jargão dos campos de concentração sobre o
Muçulmano, que segundo ele é: “[...] o prisioneiro que havia abandonado
qualquer esperança e que havia sido abandonado pelos companheiros
[...] era um cadáver ambulante, um feixe de funções físicas já em
agonia.” (AGAMBEM, 2008, p. 49). Deste modo, o muçulmano é o
intestemunhavél aquele que pela situação extrema que era submetido nos
campos de concentração passa a ser considerado um inumano, não está
tanto no limiar entre a vida e a morte e sim, está no limiar entre o homem
e o não-homem.
Para Agamben as testemunhas integrais são os muçulmanos, pois
já perderam a capacidade de observar, de recordar, de medir e de expressar
108
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
e chegaram ao nal do poço, ao contrário do sobrevivente, que são exce-
ções e preservam ainda traços humanos. O que está em jogo é continuar
sendo ou não um ser humano e conseguir conservar a dignidade e o respei-
to de si mesmos e a liberdade de escolha, no entanto em situações extremas
é praticamente impossível (AGAMBEM, 2008).
As Marias cujos relatos foram escutados e estão sendo aqui expla-
nados passaram por situações cambiantes ora vivem situações extrema de
todos os tipos violências, ora passam por condições de pensar o seu próprio
vivido tomando consciência do seu lugar enquanto mulher portadora de
direitos. Elas não chegaram à condição de muçulmano, ou seja, aquele que
não testemunha, aquele que perdeu seus direitos ao ponto de não serem
mais humanos, mas sim, são sobreviventes que enfrentaram as situações
limites e conseguiram agenciar suas próprias vidas.
Maria 2 permanece há 17 sofrendo violências psicológicas de seu
marido, mesmo ao desempenhar todos os comportamentos socialmente
esperados como, ser mãe, esposa, dona-de-casa e ainda trabalhadora na es-
fera pública, seu marido dizia que ela não valia nada e mesmo diante disso
ela demonstrou sua reação:
[...] aí que não tem que se sentir como eles dizem que a gente é, a gente
não é o que falam que a gente é, a gente não é, a gente não é aquilo, eles
falam pra manipular a gente, eu me sentia, por mais que eu trabalhasse,
que eu pagava as contas, que chegava em casa limpava a casa, cozinhava
ia dar atenção pras crianças, pagava a escolas deles, ia dormir 3 horas 4
horas por noite só, fazia muita hora extra ainda não valia nada, não fazia
mais que minha obrigação até o dia que eu falei, não, não é assim, não
sou assim, não precisa, é esse basta que elas tem que dar! (Maria 2, entre-
vista concedida dia 24 de fevereiro de 2014).
Além de elucidar os episódios traumáticos de violências que eram
recorrentes no vivido das Marias e os sentimentos de medo, angústia, so-
frimento, culpa, dor e dó como relata Maria 2:
[...] eu tinha muita dó, bom, a partir do momento que eu decidi que eu
não era aquilo tudo que ele falava eu comecei a ter dó. Dó... aí que eu co-
mecei a não querer sentir raiva e... ele tem problema, ele tem problema e
precisa de ajuda que ele cria uma fantasia na cabeça dele ao meu respeito,
que falava como se fosse real [...]. (Maria 2, entrevista concedida dia 24
de fevereiro de 2014).
109
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Pontuamos também, suas inúmeras mobilizações e estratégias de
sobrevivência - reações que buscavam a efetivação de seus direitos, por
meio do fortalecimento das relações de agência, do retorno aos estudos e
dos atos de revolta contra as instituições existentes.
Uma das mobilizações que ajudou Maria 1 a não retornar para a
situação de violência foi a sua inserção na Padaria Comunitária de um bair-
ro na zona Sul da cidade de Marília, onde ela prossionalizou-se no ofício
de panicação. O grupo é composto por mulheres da região com idades
diferentes, que vendem os produtos e dividem o lucro entre si, essa peque-
na renda além das conversas entre as “meninas” como ela mesma nomeia,
contribuiu para o processo de empoderamento de Maria:
[...] Ajudou bastante e as histórias das meninas também me ajudou
bastante, CONSELHOS das meninas me ajudaram bastante e não vou
voltar MESMO! Principalmente agora, não vou, não vou... A gente vai
conversando, se enturmando ali e uma conta os problemas pra outra,
nossa, faz um trabalho na cabeça da gente muito bom, muito bom. (Ma-
ria 1, entrevista concedida 4 de novembro de 2014).
Mesmo sem respaldos e acolhimentos necessários previsto na
Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), as Marias conseguiram encontrar
inúmeras maneiras de se agenciarem através de grupos de mobilizações
sociais e geração de renda ou de amigas divorciadas que deram subsídios
nanceiros e emocionais para que pudessem, enm saírem da situação de
violência.
conSiderAçõeS finAiS
Conceitualizar a violência se torna extremamente complexo, pois
o termo é multifacetado e enfrenta interpretações distintas principalmente
no tocante a violência entre homens e mulheres. Fica evidente a construção
de um imaginário coletivo que foi construído historicamente através de
discursos sociais (religiosos, jurídicos, médicos, estatal, etc) que subjuga-
vam as mulheres e não as consideravam cidadãs portadoras de direito e por
isso passível da violência.
110
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
A partir das narrativas das Marias podemos perceber como as
relações de poder estão intrínsecas na vida cotidiana dessas mulheres, que
assumem diferentes estratégias para “burlar” as amarras da sociedade pa-
triarcal lutando por uma vida mais digna e livre de violência, dor e sofri-
mento. A violência contra a mulher constitui-se na principal violação dos
direitos humanos das mulheres e é tolerada pela sociedade, ao manter-se a
impunidade acomodada na ideia de que esse fenômeno é próprio da natu-
reza humana (TELES, 2007).
Para a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) todos
os cidadãos são iguais perante a lei e possuem plenos direitos como à vida
e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho
e à educação, entre muitos outros. Contudo, sabemos que a existência de
leis não quer dizer que haja a presença dos direitos e suas efetivações dentro
das práticas democráticas.
Para Teles (2007) falar de direitos humanos para as mulheres ain-
da é um tema novo e por isso passível a diversas críticas, pois para alguns,
isso não passaria de privilégios para as mulheres. E por isso o tema dos
direitos humanos das mulheres deve ser tratado recuperando conceitos his-
tóricos e as lutas políticas que já foram travadas em torno deles. Sendo essa,
uma necessidade que se impõe para prosseguir na luta para a sua efetivação.
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113
mídiAS digitAiS, proceSSoS SociAiS e
SubjetividAdeS: notAS preliminAreS pArA
umA AbordAgem SociológicA
Felipe Padilha
Lara Facioli
creSce dependênciA por informAção no mundo
Uso de computadores torna-se obrigatório para usuários que pre-
cisam de atualização constante
O primeiro sinal é a mania de checar a chegada de e-mails a todo
instante. O segundo pode ser a angustia de correr os olhos por uma enxur-
rada de dados sem aprofundar-se em nada. O vício por informação - mais
um item na lista das compulsões modernas - cresce em todo o mundo, se-
gundo estudo encomendado pela agência internacional Reuters. O assunto
preocupa usuários de computador, empresas de comunicação e especialis-
tas em relações humanas.
As armas de sedução tornam-se cada dia mais sosticadas e im-
prescindíveis: serviços de transmissão de dados em tempo real, Internet,
1
As reexões desenvolvidas neste artigo foram apresentadas no minicurso intitulado “Mídias digitais e
subjetividades - considerações sobre a pesquisa na rede” ministrado no I Seminário Internacional de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e pelo Grupo
de Estudos Mundo Contemporâneo, da Faculdade de Filosoa e Ciências da UNESP, campus de Marília,
realizado entre os dias 22 e 24 de setembro de 2015.
114
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
redes de televisão, jornais e revistas. Os clientes vivem uma relação dúbia
com seus sedutores. Ao mesmo tempo em que se sentem vitimas da over-
dose de informação, exigem mais e mais notícias.
[…]
A preocupação dos pais em relação ao vício de informação também apa-
rece no relatório da Reuters. Quase metade dos entrevistados arma que
as crianças preferem computadores aos colegas e 36% dos adultos estão
preocupados com os efeitos dessa overdose sobre os lhos. O trabalho da
Reuters alerta as empresas e escolas para o vício. “Treinamentos ensinam
as pessoas a selecionar informações e evitar esses problemas”, diz o dire-
tor do Grupo de Informação de Negócios, Michel Foster”. […].
O Estado de São Paulo, 28 de fevereiro de 2015
introdução
Este artigo apresenta uma leitura sociológica sobre as mídias digi-
tais para problematizar as articulações entre o desenvolvimento das teorias
e dos conceitos mobilizados para pensá-las. Também nos interessa oferecer
às pessoas pouco familiarizadas com a temática uma trilha teórico-metodo-
lógica para uma inserção preliminar sobre o fenômeno contemporâneo das
relações digitalmente mediadas. Pretendemos também chamar a atenção
para a relação existente entre a história das mídias e da internet e os con-
ceitos produzidos para pensá-las, em especial aqueles forjados em diálogo
com as ciências sociais e as abordagens contemporâneas sobre a relação
entre mídia digitais, subjetividade, política e gênero.
Inicialmente discutiremos como as mídias digitais e os seus usos
tornaram-se fonte de ansiedade social no discurso dos jornais do nal da
década de 1990. A descontinuidade com a ordem precedente, a intensa
transformação social, somada ao deslocamento tecnológico, foram ingre-
dientes que guiaram as interpretações otimistas ou pessimistas desse perí-
odo. Partindo de uma interpretação histórica das tecnologias de comuni-
cação sugerimos que as dinâmicas que envolvem o uso das mídias digitais
são histórica e culturalmente situadas. Mais do que isso, pensando com a
sociologia processual de Norbert Elias, sugerimos que o processo de tec-
nização que culminou na ampla disseminação das mídias digitais é o re-
sultado histórico de um processo de longa duração, não-planejado e que
115
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
atravessou a produção das subjetividades contemporâneas, na medida em
que colocou em operação novos padrões de controle e auto-regulação.
Em seguida, apresentamos duas abordagens teórico-metodológi-
cas das mídias digitais que são fundamentadas em contextos tecnológicos,
teóricos, culturais e políticos bastante distintos. Em um primeiro momen-
to, discutiremos como o chamado paradigma midiológico tecnológico, re-
presentado por McLuhan e Pierre Levy, produziu e disseminou os concei-
tos de “ciberespaço” e “cibercultura”. Ainda que tenham ganhado bastante
popularidade nos anos 2000, nosso argumento é que o alcance explicativo
desses conceitos pode ser questionado frente ao desenvolvimento das tec-
nologias e dos seus usos, bem como da popularização das mídias. Em con-
traste, apresentaremos a apropriação crítica do sociólogo Scott McQuire
que tensiona o conceito de “ciberespaço” a partir do “espaço relacional”.
Por m, discutiremos algumas abordagens recentes que oferecem
aportes teóricos para uma reexão sobre as transformações subjetivas que
ganharam destaque com a popularização das mídias e dos seus usos e fare-
mos uma breve recuperação sobre o uso das mídias em território nacional,
que guram em nossas pesquisas e que apontam para as ressignicações das
relações mediadas.
De modo geral, buscamos reunir um conjunto de questões in-
trodutórias pensando em um público que deseja se aproximar do tema.
Nossa intenção não é oferecer respostas cabais sobre os usos dessas mídias,
mas apresentar um conjunto de questões com as quais nos deparamos em
nossos próprios percursos de pesquisa. O objetivo é colocar em circulação
elementos históricos, teóricos e conceituais que colaborem com outras re-
exões e apropriações sobre as relações digitalmente mediadas no contexto
brasileiro contemporâneo.
Desde sua origem latina até o seu emprego atual, o termo “mídia
conserva o sentido de “mediação”, algo por meio do qual informações são
passadas. Sobretudo depois da invenção e popularização de tecnologias
como a imprensa, o rádio, o cinema, a televisão e, mais tarde, a internet,
essa palavra, cada vez mais, passou a ser associada o conjunto dos chamados
meios de comunicação social”. Como mediação, a mídia não possui valor
em si. Ou melhor, ela não possui valor que possa ser separado das consi-
116
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
derações feitas por um olhar informado por outros valores. Desse modo,
uma compreensão sociológica das mídias deve considerar os espaços e os
contextos nos quais elas operam, assim como os usos que delas fazemos.
A notícia apresentada no início do texto expressa os temores sus-
citados pela chegada da internet comercial no país, na metade da década
de 1990, e pela intensicação da possibilidade de uso das mídias digitais
no Brasil. Trata-se de um documento histórico que comunica sobre a ex-
periência e as expectativas de uma época e que nos permite acessar sob
quais juízos e moralidades as relações sociais digitalmente mediadas foram
recepcionadas e compreendidas no Brasil.
Conectar-se por aqui foi um privilégio do qual apenas pequena
parcela da população, situada sobretudo nas capitais e regiões metropolita-
nas, pôde desfrutar no nal dos anos 1990. O computador, até então único
suporte para a rede, ainda não se congurava como um “utensílio domés-
tico”, tampouco como equipamento de uso pessoal. Até o barateamento
e popularização dos notebooks e, mais recentemente, dos smartphones, era
comum que as famílias compartilhassem em suas casas um único aparelho.
A recomendação era que o computador doméstico fosse estrategicamente
instalado na sala principal para viabilizar o controle do conteúdo acessado
pelas crianças e adolescentes.
Nesse período, os discursos veiculados por jornais e revistas, com
frequência, estampavam em suas manchetes apontamentos trazidos por
pesquisas cientícas recém engajadas na observação das dinâmicas online.
Essas pesquisas mantinham em comum uma percepção negativa e pessi-
mista a respeito do que seria a internet e sobre as possíveis consequências
decorrentes da exposição contínua das pessoas ao uso dos computadores.
Os argumentos quase sempre descreviam como os efeitos da tecnologia se
espraiavam pelas mais diferentes áreas da vida cotidiana, muito embora o
repertório variasse desde o potencial vício até os temores despertados pelas
possibilidades de ser enganado ou tornar-se alvo de golpes aplicados por
desconhecidos na internet.
O tom de pessimismo calcado no determinismo tecnológico con-
tido nas armações médicas atraía a argumentação para o regramento e,
consequentemente, fomentava práticas de controle ao acesso que, quando
117
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
não estabelecidas dentro dos devidos limites, seria potencialmente causa-
doras de solidão, de criação de realidades paralelas, de isolamento e indi-
vidualismo. Um consenso gurava de maneira central nesses discursos: a
internet e os computadores, desde muito cedo, foram entendidos como
ferramentas poderosas e capazes de desencadear transformações tanto nas
relações sociais, quanto na subjetividade.
Atualmente, passados vinte anos da chegada da internet comer-
cial, o acesso às mídias digitais se apresenta cada vez mais possível e incor-
porado na vida cotidiana do país
2
. Apesar da desigualdade digital presente
no nosso contexto, pesquisas recentes apontam que a população brasileira,
de modo geral, está cada vez mais conectada, principalmente via telefone
celular
3
. Nesse período de quase duas décadas, o perl de usuários também
mudou e a população de baixa renda que acessa a rede passou a enxergar
nela não apenas uma esfera de sociabilidade e de conexão com amigos e
parentes, mas possibilidade de desenvolvimento de empreendimentos pró-
prios e meio de ascensão social (FACIOLI, 2013).
Os usos das mídias e a expansão crescente de relações digitalmen-
te mediadas atualmente assumiram o lugar nas manchetes jornalísticas que
nos colocam como um dos países que mais dedica tempo às redes sociais
4
.
O tom das pesquisam se diversicou e, embora o viés pessimista permane-
ça em algumas manchetes, progressivamente tem aumentado o número de
trabalhos apontando para a multiplicidade de usos das redes. Além disso,
os estudos que ressaltam um suposto excesso de individualismo do sujeito
conectado, têm sido matizados com análises que pensam as mídias digi-
tais como agente de mudanças (McQUIRE, 2011), como mediadora de
relações sociais (TURKLE, 2011; BAYM, 2010), como possibilidade de
formação de identidades culturais (HARAWAY, 2000), como produtora
de redes sociais e espaço de tensão política, hegemonia e resistência (CAS-
2
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) relativas à Tecnologias da Informa-
ção e Computadores (TIC), feita pelo Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE) e apresentados em
2014, quase metade dos domicílios brasileiros tem computador em casa. Disponível em: http://biblioteca.ibge.
gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=266778. Acesso em: 10 de dezembro de 2015.
3
Segundo a mesma PNAD, o número de acesso a internet via celulares aumentou, o tirou o protagonismo do
computador da cena de acesso de cinco Estados Brasileiros: Sergipe, Pará, Roraima, Amazonas e Amapá.
4
Os dados apresentados pela pesquisa Digital Future Focus Brazil 2015 produzida pelo consultoria ComScore
arma que os brasileiros gastam em média 650 horas por mês em redes sociais. A média é 60% maior do que no
restante dos países analisados. Disponível em: https://www.comscore.com/por/Imprensa-e-eventos/Apresenta-
coes-e-documentos/2015/2015-Brazil-Digital-Future-in-Focus. Acesso em: 10 de dezembro de 2015.
118
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
TELLS, 1999; MISKOLCI, 2015; KURASHIGE, 2014; PADILHA,
2015) e também como lugar de criação de laços, de auxílio emocional, de
ajuda-mútua e de mobilização coletiva (ILLOUZ, 2011; FACIOLI, 2013;
DO PRADO, 2015; BELELI, 2015; PELÚCIO, 2015).
notAS Sobre deSenvolvimento dAS mídiAS digitAiS
Hoje em dia, se tivéssemos a possibilidade de caminhar pelas ruas
e aplicar um questionário sobre como o uso da energia elétrica afeta nosso
cotidiano, provavelmente notaríamos pessoas surpresas ao ter que reetir
sobre algo que está tão implícito às nossas atividades diárias. Poderíamos
também questionar sobre o quanto essas pessoas são “dependentes” da ele-
tricidade e o quanto uma queda no fornecimento de energia nos causaria
ansiedade. Colocando essa análise ctícia da eletricidade em analogia com
os argumentos lançados sobre as mídias, poderíamos indagar: somos vi-
ciados em eletricidade, já que praticamente tudo o que fazemos depende
dessa tecnologia?
Essas questões comprometidas com a desnaturalização nos mos-
tram como alguns processos tecnológicos foram historicamente foram
naturalizados ao ponto de parecer que sempre zeram parte da nossa pai-
sagem cotidiana. Uma recuperação capaz de situar o processo histórico,
político e cultural nos permite reetir sobre as mudanças sociais e sub-
jetivas pelas quais passamos e que nos conduziram ao que nos tornamos
hoje. Uma reexão genealógica desses processos abre a possibilidade de,
por exemplo, problematizar os discursos a respeito do impacto totalmente
negativo ou excessivamente positivo que as mídias teriam em nossas vidas.
Para além de pensar se estes avanços tecnológicos nos fazem bem ou mal,
desejamos compreender, quais deslocamentos eles nos suscitaram e como
em diferentes contextos ressignicamos os usos que fazemos das mídias.
Em termos de impacto na vida social, os efeitos da difusão das tec-
nologias da informação só tiveram precedentes na história da humanidade
no contexto da revolução industrial e dos processos de urbanização dos
séculos XVIII e XIX. Assim como ocorreu com estas últimas, o advento da
eletrônica e da digitalização introduziram um padrão de descontinuidade
nas bases materiais da economia, das relações sociais e da cultura. E, tal
119
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
como no contexto das revoluções industriais, as alterações nos padrões de
vida, nas relações sociais e nas subjetividades marcadas pelas tecnologias,
desaaram a criatividade de estudiosos dedicados a compreender aquele
momento de mudanças e, principalmente interpretar o mal-estar e as pro-
messas colocados em cena.
As alterações nas relações sociais evocadas pela revolução indus-
trial foram enfrentadas pela teoria social por um lado, com pessimismo
e, por outro, como fundamentais para a compreensão do que viria a ser
uma nova ordem social. Emile Durkheim, por exemplo, via na liberdade
individual, resultante dos processos de divisão do trabalho e da ocupação
dos centros urbanos, uma ameaça que colocava um alto risco à coesão so-
cial. Karl Marx, ao olhar a indústria alemã, não deixou de fora da proble-
mática o excessivo individualismo gestado naquele contexto. Do mesmo
modo, Georg Simmel se manteve atento aos novos estímulos causados nas
subjetividades, ou na vida mental, como consequência da intensicação
decorrente da vida na metrópole. A atitude blasé, nesse sentido, pode ser
entendida como uma espécie de estratégia subjetiva para lidar com a inten-
sidade desses estímulos.
Algo similar ao surgimento dos grandes espaços urbano-indus-
triais se passa no contexto atual de avanço das mídias-digitais e dos seus
acessos. É consenso que as tecnologias incidiram sobre as relações sociais
e impactaram as nossas subjetividades. A mesma curiosidade que pautou
os analistas das revoluções industriais ainda faz com que se multipliquem
as explicações teóricas que disputam o poder explicativo dessas mudan-
ças. Entretanto, antes de aprofundarmos a discussão sobre as formas de
interpretação dos efeitos da tecnologia em nossas vidas, faremos uma bre-
ve retomada dos processos sociais que resultaram no desenvolvimento das
mídias digitais. Nosso interesse com isso é situar alguns aspectos da his-
tória das mídias digitais apresentando parte das questões e interesses que
estavam em jogo.
As mídias digitais, ou seja, o conjunto de dispositivos que englo-
ba as redes e os seus suportes possuem uma história ampla, difusa e relati-
vamente pouco debatida no campo das ciências sociais. Quando falamos
em mídias digitais, de modo sintético, estamos nos referindo ao conjunto
de dados transformados em uma sequência de números que podem ser
120
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
interpretados por um computador. De modo simples, qualquer dado que
trafegue pelas mídias digitais, seja ele um som, uma imagem ou um con-
junto de letras é, antes, convertido em uma sequência de números ou dígi-
tos, daí o aspecto digital. Portanto, uma das diferenças mais notáveis entre
as mídias digitais e as suas predecessoras analógicas como, por exemplo, o
jornal, o rádio, o cinema e a televisão é o fato de que ao serem digitalizados
os suportes físicos de armazenamento desaparecem.
Uma abordagem informada pela sociologia-processual proposta
por Nobert Elias (2006) nos permite traçar alguns paralelos entre o que
se passou com o desenvolvimento dos transportes durante os séculos XIX
e XX e as inovações tecnológicas que permitiram o desenvolvimento dos
computadores. Dessa perspectiva, mais do que o acúmulo do resultado de
pequenas invenções particulares, cada uma das inovações que permitiram
o desenvolvimento dos computadores comporta, em si mesma, um proces-
so social que envolve experimentações, um período de não-saber, de riscos
e perigos e, inclusive, de maturação. Mais do que isso, comporta interesses
sociais de uma época, jogos de poder, ideais e fantasias sobre o possível e o
impensável. Portanto, a questão plausível de ser aqui colocada não é quem
inventou o computador ou a rede, mas quais foram os processos de experi-
mentação - inicialmente difusos e posteriormente concentrados - que per-
mitiram o desenvolvimento dessas máquinas? Onde eles se concentraram
e sob quais interesses?
Nesse sentido, aqui iremos compreender o processo histórico de
desenvolvimento dos computadores e da internet como processos de tec-
nização. Para Elias (2006, p.35):
tecnização é o processo que, à medida que avança, permite que se apren-
da a explorar objetos inanimados, cada vez mais extensamente, em favor
da humanidade, manejando-os e os processando, na guerra na paz, so-
bretudo na expectativa de uma vida melhor.
A tentativa de desenvolver máquinas capazes de executar coman-
dos programados prescindem das máquinas de calcular criadas no século
XIX. Charles Babbage (1792-1871), na década de 1830, projetaria o de-
senvolvimento de dois tipos de máquinas: a diferencial e a analítica. Ambas
foram fundamentais para o desenvolvimento dos computadores eletrôni-
121
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
cos no século XX, sobretudo quando foram articuladas às primeiras ideias
da eletromecânica. Retrospectivamente, os projetistas desses computadores
constatariam que em grande medida Babbage tinha antecipado boa parte
dos aspectos por eles desenvolvidos (BRETON, 1991).
A máquina analítica era programável a partir de cartões perfu-
rados, uma técnica criada por Joseph-Marie Jacquard, em 1804, com a
intenção produzir um tear automatizado. Com aproximadamente o tama-
nho de uma nota de um dólar, os cartões perfurados permitiam que dados
e comandos fossem inseridos e lidos pelas máquinas. A mecanograa, ou
o trabalho manual de perfuração dos cartões, era majoritariamente exe-
cutado por mulheres. Por assim dizer, a máquina separava a memória do
processador propriamente dito. Nesse caso, o cartão perfurado encarnava
os códigos da memória, enquanto à máquina cabia a função de operar
processando os dados (MAGALHÃES, 1997).
Magalhães (1997, p.23) aponta que a consolidação do comér-
cio nacional e internacional aquiesceram a disseminação concomitante das
máquinas de calcular e tabular, que passariam a ser cada vez mais usadas,
até serem consideradas indispensáveis, para a realização das tarefas dos es-
critórios. As máquinas de calcular mostraram sua utilidade em diversos
momentos, inclusive, ajudaram a tabular com mais velocidade os dados do
censo demográco de 1890, nos EUA. Anos mais tarde, o cartão perfurado
foi retomado novamente por Herman Hollerith, empresário e fundador de
uma empresa que desempenhou um papel relevante na história dos com-
putadores: a Industrial Business Machines (IBM).
A literatura também mostra que a produção de máquinas ta-
buladoras possui uma relação de interdependência com as máquinas de
escrever, em especial, com as primeiras máquinas elétricas lançadas pela
IBM em 1934. Aliás, a sigla IBM só surgiu em 1924, embora a empresa
tenha sido em 1911, com o nome CTR (Computing Tabulating Machine
Co.). A IBM é um exemplo do processo não-planejado característico da
tecnização: ela resultou da fusão de um fabricante de balanças e cortadores
de frios e moedores de café com outra empresa fabricante de relógios de
ponto. O contexto histórico de formação dos grandes trustes dos EUA
de ns do XIX, que se mantiveram até a Primeira Guerra, pode também
122
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
ser lido como o momento de expansão da infra-estrutura de comunicação
daquele país.
Em termos cronológicos, as técnicas das calculadoras se desenvol-
veram primeiramente pelas calculadoras mecânicas, passando pelas eletro-
-mecânicas chegando às eletrônicas capazes de processar sinais elétricos em
circuitos analógicos ou digitais. Entretanto, não se trata de uma sucessão
em escala linear, uma vez que elas coexistiram por muitas décadas de forma
simultânea.A supremacia da calculadora eletrônica digital se deu prepon-
derantemente por razões de ordem mercadológica, graças à popularização
do uso comercial do computador.” (MAGALHÃES, 1997, p. 25).
Em 1936, o matemático britânico Alan Turing desenvolveu a
máquina universal”, capaz de processar tarefas a partir de cálculos ma-
temáticos e algoritmos. Os cartões perfurados foram fundamentais para
que Alan Turing, atuando junto ao exército Britânico durante a Segunda
Guerra Mundial, alcançasse êxito na decifração de códigos secretos alemães
(FONSECA FILHO, 2007). Desse modo, o pano de fundo histórico so-
bre o qual se desenvolvem ambos, os computadores e a internet, remontam
aos contextos bélicos/militares e às disputas entre interesses nacionais que
marcaram o século XX.
Entre as décadas de 1950 e 1960 o aperfeiçoamento da técnica
resultou nos primeiros mainframes. Estes computadores de grande porte
que ocupavam salas quase inteiras foram os primeiros capazes de processar
grande volume de dados, demonstrando como a computação poderia re-
solver o problema de simultaneamente memorizar e gerir informações. O
foco nesse momento era melhorar a eciência da produção industrial. Nas
décadas seguintes, cada vez mais, o computador deixou de ser visto apenas
máquina de armazenar informações transformando-se num equipamento
capaz de desempenhar funções programadas com precisão.
O período da Guerra Fria, marcado pelo desejo de demonstrar
supremacia tecnológica e econômica, bem como pela necessidade de do-
mínio da informação, estimulou o aperfeiçoamento das tecnologias da co-
municação. Os interesses que visavam transformar o processo produtivo
industrial por meio do aumento da capacidade de programação e do pro-
cessamento acelerado de dados foi articulado também à história da pro-
123
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
dução das armas nucleares e à corrida espacial. Esse conjunto de forças em
disputa tomou o desenvolvimento da computação como uma tecnologia
poderosa capaz de potencialmente reduzir ao mínimo o risco de erro hu-
mano durante o processo maximizando os resultando (ATIQUE, 2013).
Além disso, como mostra Adrian Atique (Idem), o processo de
miniaturização dos computadores foi aquiescido nesse período como uma
demanda decorrente da corrida espacial e da exigência de reduzir o tama-
nho dos mainframes. O tamanho reduzido tornaria viável que os compu-
tadores fossem acoplados aos foguetes sem que isso prejudicasse a potência
e/ou capacidade. Os avanços em torno da tecnologia da informação se ze-
ram em cenários políticos de Guerra e pós-Guerra que são indissociáveis de
interesses e de ambições tanto militares, quanto comerciais de nações como
os EUA e a extinta União Soviética, vistas como as duas grandes potências
econômicas e políticas daquele momento. A expressão mais bem acabada
dessa corrida pela miniaturização dos computadores pode ser encontrada
na tecnologia dos atuais smartphones, ou telefones celulares inteligentes.
O aperfeiçoamento dos computadores pessoais garantiu que, ain-
da na década de 1980, o seu uso fosse difundido para aplicações no traba-
lho, tais como programas de planilhas, processamento de banco de dados,
entre outros. Foi nesse período que a posse de computadores se tornou
comum entre as classes médias estadunidenses (Ibidem). Já na década de
1990 os computadores pessoais tornaram-se peças comuns no cotidiano
das classes médias das potências econômicas com economias de mercado
altamente desenvolvidas. O barateamento de produções e padronização
de softwares aliada a uma explosão sem precedentes nas telecomunicações
provocados pelo advento da bra óptica de alta velocidade e pelo processo
de privatização das telecomunicações foram gurações que prescindiram à
chegada da internet com os seus contornos comerciais. Aliás, como é sabi-
do, foi com as privatizações das telecomunicações que se deu a introdução
da internet comercial no Brasil.
A sosticação da linguagem computacional e a intensicação
da produção de programas (softwares) garantiram, dentre outras coisas,
a possibilidade de conectar essas máquinas em rede. Embora a noção de
rede social” tenha ganhado popularidade após o advento da internet, esse
vocabulário não é exclusivo e tampouco gerado pelos usos da tecnologia
124
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
da comunicação. Ao que tudo indica, o pesquisador britânico A. J. Barnes
foi quem primeiro empregou o conceito, em 1954, em um estudo feito
em Bremes, uma pequena comunidade agrícola localizada na Noruega.
Barnes estava interessado em compreender o uxo das relações sociais e as
características do contato entre as pessoas na vida cotidiana. Reconstruídas
a partir da observação de quem estabelecia contato com quem e por quais
razões, a rede social permitiria ao pesquisador identicar quais são os vín-
culos estabelecidos entre as pessoas e como essas relações atravessam a vida
cotidiana (BARNES, 1954).
A internet ganhou seus primeiros contornos em 1969 quando
o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América colocou em
funcionamento a primeira rede operacional de computadores à base de
comutação de pacotes. Gestada no Pentágono, a rede inicialmente teve
seu uso apenas direcionado aos interesses dos órgãos militares. Chamada
de ARPANet, acrônimo em inglês para Advanced Research Projects Agency
Network, a rede teve como objetivo principal interligar as bases militares e
os departamentos de pesquisa do governo.
No contexto da Guerra Fria, contando com altíssimos investi-
mentos nanceiros, a tecnologia da rede foi aperfeiçoada pelas defesa es-
tadunidense que temendo a possibilidade de que possíveis ataques destru-
íssem o centro de armazenamento de dados dos meios convencionais de
telecomunicações. Distribuir a informação em uma rede interligada foi
uma estratégia que remodelou a noção de segurança, pois permitiu a dis-
tribuição e o armazenamento sem um centro especíco ou uma rota única
para o tráfego de informações. A circulação simultânea da informação em
uxos diversos e em direções distintas tornava quase impossível a sua loca-
lização por completo e, consequentemente, a sua destruição.
Na década de 1970, as universidades e outras instituições que
atuavam junto a defesa foram autorizados a se conectar à rede. Nesse perí-
odo existiam aproximadamente uma centena de sites. A expansão da rede
alterou seu uso e, no começo da década de 1980, a ARPANet se dividiu
dando origem a MILNET, voltada exclusivamente aos assuntos militares,
enquanto a outra parte da rede, a Internet, foi tornada pública. A criação
do World Wide Web (WWW) padronizou a navegação que, por meio de
um software, “permitia os usuários visitar facilmente documentos em qual-
125
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
quer número de redes diferentes e navegar através de informações em todo
o sistema de redes de computadores interligados (a Internet)” (ATIQUE,
2013, p. 13).
Uma das características mais marcantes dessa primeira fase da
Web, chamada também de Web 1.0, era a sua lógica quase estática. Isso
quer dizer que os usuários não interagiam com o conteúdo que consumiam.
Essa fase foi marcada, sobretudo, pelo predomínio dos grandes portais de
internet como, por exemplo, a America OnLine. Nesse cenário cabia aos
portais e às equipes de produção, geralmente formadas por prossionais de
diferentes áreas, os gerar o conteúdo tornando-o capaz de atrair o usuário
para acessar as informações disponibilizadas.
A expansão das novas mídias ocorreu no que Atique denomina de
período de globalização”, entre 1991 e 2007, correspondente exatamente
ao nal da Guerra Fria e ao colapso da União Soviética até o início da
crise das hipotecas nos Estados Unidos que se espalhou pelo mundo. Esse
processo já avançado, em meados dos anos 2000, corresponde também ao
que Manuell Castells (1999) chamou de sociedade de rede, marcada pelo
uxo de informações, mercados e pessoas. Em convergência, esses autores
apontam como esse processo não se deu de modo igualitário para todos
os países e foi atravessado também pelo remanejamento das relações e da
reterritorialização das desigualdades mediante o descentramento da ordem
social anterior.
O processo de tecnização das mídias mostra que as transforma-
ções na dinâmica da comunicação podem ser melhor compreendidas se
historicamente situadas. Em termos didáticos, até o século XIX houve um
predomínio exclusivo da comunicação entre um emissor e um receptor.
Empiricamente esse modelo comunicacional corresponde às cartas, ao te-
legrama e ao telefone. Embora tenha sido iniciada com o livro e a mídia
impressa, a transição desse modelo de comunicação se deu no século XX
com a emergência das mídias de broadcasting, tais como o cinema e, anos
mais tarde, a televisão. A partir desse momento, o modelo de comunica-
ção é deslocado para um emissor com muitos receptores/espectadores. Na
passagem do século XX para o XXI, marcada pela a entrada da internet, o
diagrama da comunicação foi mais uma vez deslocado para uma dinâmica
126
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
em que muitos emissores propagam mensagens para muitos receptores.
Esse é a dinâmica característica das redes.
As passagens entre esses diagramas não se deu de maneira estan-
que eliminando o meio anterior. De outro modo, elas se zeram de manei-
ra interdependente e sobreposta. Assim, podemos dizer que a web 1.0 ain-
da conservava muito da dinâmica e da experiência imaginada pelas mídias
de broadcasting e os livros preconizam elementos que estarão presentes nas
dinâmicas seguintes, permanecendo ativo até os dias atuais. Atualmente,
nos estudos sobre mídias digitais, é bastante comum a aceitação da ideia de
que vivemos no contexto da web 2.0. A principal característica dessa nova
internet é o fato de ser gerada pelo usuário, mas gerida por prossionais
para gerar lucros (BAYM, 2013). Essa mudança está diretamente ligada ao
barateamento e proliferação dos equipamentos de audio e video, sobretudo
após a chegada dos smartphones ao mercado. As câmeras e as funcionalida-
des de audio e video acoplados aos equipamentos viabilizaram a passagem
para um tipo de comunicação produzida e disponibilizada pelos usuários,
mas que é gerida pelos sites para gerar lucros como acontece, por exemplo,
o YouTube.
Com essa breve recuperação histórica do processo de tecnização
das mídias digitais apresentamos algumas peças de um processo não-planeja-
do, interdependente e inacabado. Mais do que isso, nosso argumento é que
esse processo se deu colocando em curso um novo padrão de civilização que
implicou em novas formas de regulação e controle. Ao falar em processo,
pretendemos remeter, mais uma vez, aos conceitos de Elias (2006, p.27),
para quem “o processo social refere-se às transformações amplas, contínuas,
de longa duração de gurações formadas por seres humanos, ou de seus as-
pectos”. Tomar as mídias a partir de uma sociologia processual nos permite
compreender como a tecnologias da comunicação colocaram em outros ter-
mos os padrões de auto-regulação impactando nas subjetividades.
pArA umA compreenSão do eSpo relAcionAl
O ciberespaço é, sem dúvidas, um dos conceitos mais populares
nas pesquisas sobre/com mídias digitais. De modo simples, o ciberespaço
seria aquele existente entre os computadores conectados. Atualmente, ain-
127
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
da é bastante comum o emprego do prexo “ciber” para qualicar o conta-
to por uma rede digital. O prexo, nesse caso, deriva da elaboração teórica
sobre a cibernética como uma relação entre informação, comunicação e
controle de um determinado sistema. O termo, empregado inicialmente
por Norbert Wiener (1975), remonta ao vocábulo grego kibernos, que sig-
nica “controle” ou “governo”, em sua acepção latina. O que está por trás
da ideia de cibernética, portanto, é uma noção instrumental da informação
como sendo a chave para entender e prever ações dentro de um sistema.
Assim, ao falar em cibernética estamos apontando para um sistema e para
o seu aspecto de retroalimentação, ou feedback (MARTINO, 2015, p. 21).
O lósofo francês Pierre Lévy (1999) pode ser apresentado como
um dos responsáveis pela popularização do ciberespaço, em especial no
contexto brasileiro. Tal como empregado por ele, o conceito guarda cone-
xões com a cibernética. Na década de 1990, quando produz seus escritos
mais conhecidos, Lévy assiste a chegada e a expansão da internet comercial
no mercado francês. Em parte, isso permite compreender o seu interesse
no crescimento do que ele denomina de “cibercultura”. Ou seja, o circuito
de ideias, práticas, representações, textos, imagens e ações que estão mar-
cados pela interação digitalmente mediada. A cultura é aqui entendida em
um sentido amplo, sempre organizada a partir de um conjunto de práticas,
o que nos permite dizer que a cibercultura é a cultura - ou as práticas - que
ganham contornos no ciberespaço.
O conceito de ciberespaço é o resultado de uma compreensão
inicial sobre um conjunto de transformações sociotécnicas em curso e que
marcaram a passagem do século XX para o XXI. Um dos seus ganhos foi
viabilizar uma compreensão do espaço como um campo aberto e indeter-
minado - uma vez que as mídias tendem à convergência - interconectado e
combinado com outros dispositivos de gravação, comunicação e simulação
(LEVY, 2015, p.102).
Para Lévy (2003) são quatro os componentes estruturais do cibe-
respaço: a) o compartilhamento de memórias e informações pelas pessoas
conectadas; b) as ações que devem ser desempenhadas pelo computador
são organizadas por programas; c) as interações e o acesso aos dados são
mediados por uma interface; d) todos os elementos anteriores são digital-
mente codicados, ou seja, são traduzidos em fórmulas matemáticas que
128
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
manipuláveis por computadores e armazenáveis em memórias. Ao serem
transformados em dígitos (digitalizados), os dados tornam-se “virtuais”.
O termo virtual não deve ser entendido em oposição ao real, no li-
mite, ele poderia ser oposto ao físico, já que tratamos de algo que existe em po-
tência. Uma vez digitalizado e armazenado em uma memória um dado virtual/
potencialmente pode ser acessado por qualquer pessoa, desde que possua uma
conexão. Um planetário de críticas poderia ser apresentado em contraposição
às formulações de Lévy. Em geral, os argumentos contrários marcam a perspec-
tiva excessivamente otimista que desconsidera os aspectos políticos e econômi-
cos que orbitam as suas discussões. Mas consideramos que o ponto importante
de ser retido aqui é o fato de que a expressão “ciberespaço” leva a metáfora
geográca longe demais. Quando falamos que alguém está no ciberespaço, por
contraste, é possível supor que alguém não está e, portanto, induzimos a ideia
de que todas as pessoas conectadas estão em um mesmo lugar, numa espécie
de computador único (MARTINO, 2015, p.30).
É tensionando este aspecto da elaboração de Lévy que o pesqui-
sador australiano Scott McQuire (2011) propõe uma compreensão das
mídias digitais como “espaço relacional”. De modo geral, suas pesquisas
exploram os impactos sociais das tecnologias midiáticas, em especial, sobre
as relações sociais no espaço e no tempo relacionada às problemáticas das
identidades contemporânea, às dinâmicas das cidades e a interação entre
tecnologia, política, cultura e inovação no espaço público em rede.
Discordando da noção que informa a maior parte das modernas
análises sobre as mídias, McQuire critica e se afasta do entendimento de
que a mídia está, em última instância, separada do “mundo real”. Isso não
quer dizer que a questão sobre como o mundo é construído na e através da
mídia não se mantenha importante, mas que é imprescindível considerar
que a mídia e o social, o político, econômico e o cultural não são separáveis.
Ao aceitar o amplo papel da mídia na produção da experiência contem-
porânea, este autor faz adoção crítica do insight de McLuhan (1977) para
quem a mídia constitui um ambiente. Atualmente as tecnologias de mídia
têm se estendido a tal ponto que estar no mundo, para parte signicativa
das pessoas, envolve uma contínua negociação de (e participação em) dife-
rentes uxos midiáticos. Em síntese, as relações sociais sob domínio desse
129
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
arranjo sociotécnico são afetadas em termos de escala e de velocidade das
interações sociais
O espaçamento – a separação das coisas – sempre implica uma relação.
De qualquer modo, por espaço relacional, estou me referindo à condi-
ção contemporânea na qual o horizonte das relações sociais tornaram-se
radicalmente abertos. O espaço relacional caracteriza a experiência espa-
cial da “modernidade reexiva”, na medida em que a natureza predeter-
minada do espaço social e os contornos das subjetividades tidos como
garantidos são, cada vez mais, deixados de lado em prol da ambivalência
das congurações espaciais móveis e escolhas individuais efêmeras. [...]
O espaço relacional é o espaço social criado pelo imperativo contempo-
râneo de estabelecer ‘ativamente’ relações sociais de acordo com a sua
demanda, através de dimensões heterogêneas, nas quais o global é inex-
tricavelmente imbricado com o estar face-a-face. [...] O espaço relacional
é caracterizado pela frustração ou complicação de todas as relações sim-
ples ou diretas entre ‘dentro’ e ‘fora’. [...] Na abertura radical do espaço
relacional podemos sentir os direcionamentos ambíguos que hoje afetam
a falta de atratividade dos nossos lares, a urbanidade das nossas cidades e
as nossas próprias identidades. (McQUIRE, 2011, p. 205)
O “espaço relacional” é a representação da emergência de um
novo conjunto espacial chamado de relacional, pois leva em conta o local
de acesso e a constante relação com outros espaços. Nesse sentido, uma
análise nos termos desta compreensão no contexto brasileiro implica em
pensar sobre como são constituídas as fronteiras entre espaços de classe
social, gênero, local de acesso, questões raciais, nível de instrução, local de
moradia, entre outras diferenças. É nesse sentido que podemos dizer que
essas tecnologias não são somente como promotoras de transformações co-
tidianas, mas são geradoras de mudanças internas radicais e que atravessam
o modo como pensamos, como sentimos, como nos relacionamos, como
percebemos e organizamos o mundo e o nosso modo de ser.
SubjetividAdeS e mídiAS digitAiS
Em que medida as subjetividades são impactadas pelos usos des-
sas tecnologias? As mídias são capazes de moldar sentimentos e afetos, res-
signicar nossos desejos ao ponto de alterarem a forma como pensamos,
sentimos e como organizamos o mundo ao nosso redor? Existe uma nova
130
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
subjetividade conectada? É possível uma análise sociológica das relações
estabelecidas entre/pelas pessoas a partir das mídias sem considerar a di-
mensão oine e suas possibilidades de conexão?
Mais do que elaborar uma analítica das subjetividades no uso das
mídias digitais, pretendemos aqui apresentar um conjunto de reexões que
compõe um debate contemporâneo sobre as elas. Nossa perspectiva con-
sidera a mídia não como ambiente online desarticulado da realidade face
a face dos sujeitos, onde é possível manipular subjetividades e identidades
de forma a nos constituirmos enquanto sujeitos ora conectados ora desco-
nectados. O espaço relacional da mídia pode ser delimitado exatamente
pelo rompimento da fronteira entre dentro e fora, entre espaço público e
privado, entre lá e aqui e, nesse sentido, está atravessado por características
que compõem a rede em termos de gênero, renda, origem étnico-racial,
religião, dentre outros aspectos que precisam ser pensados no sentido de
compreendermos as formas de uso da tecnologia.
Dentre os autores que dão suporte a esta forma de pensar a rela-
ção entre sujeito e mídia digital optamos por trazer ao debate as reexões
de Eva Illouz e Shery Turkle, pois essas autoras, além de serem referências
incontornáveis, pautam seus argumentos em pesquisas empíricas sobre o
uso das mídias tendo como foco de análise as transformações subjetivas
suscitadas pelas relações digitalmente mediadas. Também apresentaremos
algumas reexões sobre possibilidade de pensar o uso das mídias e das redes
sociais no contexto brasileiro a partir de análises comprometidas com o
nosso contexto de acesso e as diferenças e desigualdades de classe, gênero,
sexualidade, identidade.
As análises de Illouz e Turkle mantém em comum o interesse
pelos impactos que as transformações subjetivas motivadas pelos acessos à
tecnologia têm sobre as coletividades. Ambas possuem inuências tanto da
teoria social, quanto da psicanálise, e nas últimas décadas tem se dedicado
também a compreender os avanços da psicanálise em solo americano e
o seu espraiamento pela vida cotidiana do ocidente. No entanto, Turkle,
professora do Massachussetts Institute of Technology (MIT), via psicaná-
lise é mais afeita aos debates sobre as transformações subjetivas com foco
nas mudanças do eu a partir do contato com a tecnologia. Illouz, de outro
modo, se dedicada às observações a respeito dos discursos públicos, proces-
131
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
sos socais e transformações históricas na esfera emocional e subjetiva que
fazem funcionar o capitalismo. Por isso o seu interesse pelas articulações
dos discursos da psicologia e da auto-ajuda nos espaços empresariais, na
esfera da intimidade, nas relações afetivas e que invadem o mercado na
contemporaneidade.
A obra de Turkle nos apresenta uma trajetória que acompanha o
desenvolvimento das mídias. e second self - Computers and the Human
Spirit (1984) foi o seu primeiro livro discutindo o tema percebido como
uma suspensão da realidade. Já na obra mais atual, Alone Together: Why We
Expect More From Technology and Less From Each Other (2011), o caminhar
da análise das transformações da subjetividade nas reexões da autora tran-
sitam entre a crença nas possibilidades subjetivas trazidas com as mídias
e o pessimismo acerca da solidão e incapacidade de lidarmos com nossas
fraquezas, processos forjados pela conexão em rede.
Sua primeira obra via na tecnologia a possibilidade de uma am-
pliação em torno das atuações, encenações, apresentações e representa-
ções de si, o que permitiria que fantasias e desejos fossem acessados e
vividos em um ambiente online. A autora se mostra impactada pelo efeito
da tecnologia na produção de uma subjetividade cada vez mais inap-
ta a estabelecer processos de empatia, cuidado e laços afetivos. Diz ela:
nossa população está envelhecendo, haverá robôs para cuidar de nós.
Nossos lhos são negligenciados; robôs cuidarão deles. Estamos exaustos
demais para lidar uns com os outros na adversidade; robôs terão energia.
(TURKLE, 2011, p. 10).
Mas, apesar de juntos e conectados, estamos sozinhos, e esse é
o alerta da teórica. Turkle (Idem) considera a tecnologia sedutora porque
esperamos, cada vez mais, que ela seja a arquiteta da nossa intimidade.
Esperamos que ela seja capaz e ecaz em atender os nossos desejos e vul-
nerabilidades, nos oferecendo a ilusão de companhia e intimidade sem as
demandas exigidas pela amizade, pelo relacionamento afetivo e pelo vín-
culo emocional profundo. Na rede, temos uma capacidade de selecionar
contatos pessoais na medida em que “deletamos” ou “bloqueamos” pessoas
com as quais não queremos relação e, da mesma forma, a intensa sensação
de pertença e presença garantidas por comentários e curtidas nas redes, se
132
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
desfaz no cotidiano das ausências, das necessidades não correspondidas de
cuidado e afetos.
Quando abordamos a maneira como nossa subjetividade é trans-
formada por meio do advento das tecnologias, não podemos deixar de
pensar em nossos relacionamentos afetivos e amorosos, bem como em nos-
sas relações de amizade, esferas diretamente afetadas pela mediação digital,
na medida em que as mídias se transformaram em espaços privilegiados
de busca de parceiros, de contato constante com familiares distantes, de
compartilhamento de questões emocionais. Se as mídias digitais e o acesso
à internet são o desdobramento mais recente do processo de transformação
da esfera pública numa arena para a exposição da vida privada, trata-se de
observá-la enquanto um representante signicativo daquilo que os sujeitos
têm vivenciado em sua intimidade.
Nesses termos, Eva Illouz (2011) nos traz uma importante re-
exão sobre como a internet exige de nós uma série de habilidade inédi-
tas transformadoras da forma como elaboramos nossos relatos sobre nós
mesmos e, no limite, nossas formas de subjetivação. Em sua análise sobre
os sites de busca por parceiros, a autora aponta para a necessidade de tex-
tualização da subjetividade cobrada pela rede. Nesses sites a capacidade
do sujeito de elaborar um relato sobre si que aponte para uma suposta
singularidade do eu e que o diferencie do conjunto de sujeitos que ali estão
é testada até o limite. Além disso, a economia de abundância de parceiros a
qual acessamos na rede, demanda um sujeito selecionador em detrimento
das possibilidades de estreitamento de laços afetivos, mais característico do
amor romântico:
O encontro virtual é literalmente organizado dentro da estrutura do
mercado [...] a internet coloca toda pessoa que está à procura de outra
no mercado, em franca competição com outras. Ao se inscrever num site
você se coloca imediatamente numa situação em que compete com ou-
tros que lhes são visíveis. Portanto, a tecnologia posiciona o eu de manei-
ra contraditória: faz o sujeito dar uma virada profunda pra dentro , isto
é, exige que ele se concentre em seu próprio eu para captar e comunicar
a essência única que há nele, sob a forma de gostos, opiniões, fantasias e
compatibilidade afetiva; por outro lado a internet também faz do eu uma
mercadoria em exibição pública. (ILLOUZ, 2011, p. 114).
133
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Esta modesta exposição sobre parte dos argumentos trazidos por
essas duas autoras nos permitem reetir sobre as transformações subjetivas
alcançadas com o advento das mídias digitais. Mais do que isso, nos auxi-
liam compreender outros aspectos que atravessam o uso de computadores,
celulares, tablets e como, nessa dinâmica de mediação, nos transformamos.
Pensamos em nossas vidas cotidianas com celulares, redes sociais, grupos em
aplicativos, e no conjunto de informações que acessamos diariamente como
se ele sempre estivesse ali. Ficamos ansiosos quando a internet não funciona
ou quando o celular vibra no bolso, nos deparamos pensando sobre como
e quando postar informações sobre nossa vida na rede social, acessamos a
vida afetiva de nossos amigos que acabaram de assumir uma relação séria no
Facebook, sabemos quem acabou de regressar da sua viagem ao litoral ou para
fora do país, dentre outras pequenas atividades que, como diria Paula Sibília
(2010), fazem da mídia o show do eu. No entanto, tem algo que essas teo-
rias não podem fazer por nós, ou seja, pensar sobre nossa realidade especíca
o sobre a forma como se usa as mídias aqui, sobre se e como ressignicamos
um uso muito distinto dos contextos de guerra no qual foram criadas as tec-
nologias e nos contextos universitários norte-americanos e de classe média
alta, onde surgiu a mais popular das redes sociais.
Argumentamos ao longo deste texto que as relações mediadas só
podem ser pensadas contextualmente e encaminharemos nossas conclusões
não no sentido de dar respostas cabais e universalizantes sobre aspectos que
envolvem o uso das mídias, mas, sim, apontando como temos pensado
o uso das tecnologias em seus contextos
5
. São razões históricas e lógicas
culturais diversas as que motivam as mulheres das classes populares que
acessam a rede em busca de auxílio para questões afetivas; aos homens gays
utilizam aplicativos e plataformas da internet para viverem relações afetivas
e sexuais em segredo; das que animam jovens homens da classe média a se
unirem, conectados em rede, para compartilhar ideias de masculinidades.
No caso das mulheres das classes populares, as relações mediadas
provêm à elas a segurança de discutir sua intimidade, o que lhes auxilia a
pensar sobre seus relacionamentos e adquirir um relativo sentimento de
agência em esferas historicamente controlada para estes sujeitos: a da pa-
5
Falamos aqui das pesquisas com mídias digitais desenvolvidas pelos integrantes do Quereres - Núcleo de Pes-
quisas em Diferenças, Gênero e Sexualidade. Ver: www.ufscar.br/quereres.
134
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
quera, da busca ativa por parceiros amorosos, do planejamento sobre o
futuro e sobre a vida a dois. As redes formadas por estas mulheres das ca-
madas populares têm criado processos de ajuda-mútua garantidores de su-
porte em tempos de inseguranças e incertezas, mas também apontam para
algo mais: elas têm sua sociabilidade ampliada, modicada e intensicada
(FACIOLI; MISKOLCI, 2015).
Outra forma distinta de uso da rede é feito por jovens homens
de classe média que habitam a cidade de São Paulo (DO PRADO, 2015)
e que tiveram acesso à rede desde o nal da década de 1990. Com obje-
tivo de trocarem experiência sobre relações afetivas, visualizam seus “ho-
rizontes” se abrirem e ampliam suas visões para além da necessidade de
aprenderem a pegar mulheres, no sentido de obterem desenvolvimento e
transformação pessoal que, sobretudo, lhes desvinculem de referenciais de
masculinidades estigmatizados (DO PRADO, 2015, p. 258). As mídias e
as redes sociais que delas fazem parte se mostraram, nesse sentido, aspectos
de reforço das masculinidades.
Observando o que se passa no interior de São Paulo a busca por
parceiros digitalmente mediada nos ajuda a compreender as lógicas locais
que sustentam o segredo como um elemento central na busca. Os privilé-
gios publicamente concedidos à heterossexualidade e às pessoas que con-
seguem sustentar uma heterossexualidade presumida garantem condições
mínimas de reconhecimento, sobretudo, nos contextos do trabalho e da
família. O segredo torna-se a alma do negócio em um contexto em que a
homossexualidade tende a ser desacreditada podendo resultar em represá-
lias e punições de diversas ordens. Por outro lado, as mídias colocam em
circulação um vocabulário para qualicar o desejo que não é mais tão mar-
cado pelos tropos da vergonha e da patologia (PADILHA, 2015).
O Brasil gura como um dos países que mais tem acessado as re-
des sociais como Facebook, nos últimos anos e, apesar de sua desigualdade
digital, as mídias tem chegado, recentemente, a estratos da população de
baixa renda devido, principalmente, a melhoria das condições de vida des-
se grupo social, bem como ao barateamento da tecnologia
6
. Dessa forma,
6
A Presidenta Dilma Roussef assinou, no ano de 2013, decreto que zera as alíquotas da contribuição para o
Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS)
incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda de smartphones; tal redução baixou o preço desses equipa-
mentos em 30%, no caso dos importados, fazendo girar o mercado interno deste produto. Isso torna estes apa-
135
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
uma das perguntas que temos feito nos anos de pesquisa sobre o uso da
internet e das redes sociais no país está colocada em torno de pensar como
são ressignicadas tais formas de relação mediada, ou seja, quais são as
diferenças entre os contextos de produção e de recepção dessas tecnologias
para entender como elas atuam, em contextos situados, como tecnologias
de produção de sujeitos.
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dos preços, somados a facilidade no momento da compra, seja por meio do cartão de crédito ou do crediário,
faz com que os mais pobres consigam, cada vez mais, acessar essas tecnologias.
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137
A internet como espaço público de ação
e prodão de visibilidades
Juliana Laet
Késia Maximiano
introdução
Para se fortalecer e permanecer em luta, membros de movimen-
tos sociais e ações coletivas procuram visibilidade para suas causas. Dentro
do próprio nicho ao qual pertencem, por exemplo, um grupo de pessoas
dentro de uma escola que quer resistir contra uma medida decretada pelo
governo procura, entre os colegas, apoiadores para sua causa. Ou externa-
mente a m de adquirir legitimidade perante a sociedade e por meio de
demandas direcionadas ao Estado, garantir seus interesses.
No Brasil, a partir da década de 1990, o diálogo do Estado com
os movimentos sociais organizados foi ampliado. Buscou-se atrair estes
movimentos para a esfera estatal a m de que suas demandas fossem tra-
duzidas em proposições de políticas públicas a serem analisadas e votadas
nas instâncias governamentais. Assim, no Brasil, muitos movimentos so-
ciais organizados se constituíram como instituições que representariam os
públicos a quem procuram representar. Associações de bairros, associações
ligadas aos direitos das mulheres, negros e a população LGBTs se torna-
ram, para o governo, porta-vozes das necessidades destas populações. No
entanto, a pluralidade de sujeitos dentro dos movimentos deixa evidente
138
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
que certas pessoas continuam sem acesso a direitos ou que os direitos por
elas conquistados não se expressam numa transformação social que lhes
permita existir como são. A esfera pública que, de fato, consegue produzir
uma voz a ser ouvida quando propõe demandas políticas a serem transfor-
madas em políticas públicas é restrita a públicos especícos.
Porém, o que os movimentos sociais e ações coletivas nos mos-
tram é que não basta estar na arena pública, que as políticas públicas, por
seu aspecto homogeneizante e categorizante, tendem a não dar conta da
pluralidade dos sujeitos e que as disputas por espaços de fala não se dão
apenas nas arenas institucionais, mas ocorrem nos mais diversos espaços,
na escola, no café, no supermercado, nas fábricas, nas empresas, na inter-
net. Assim, a arena pública, aquela em que as demandas de grupos entram
em conito para a produção de políticas públicas, é somente um dos palcos
em que esses grupos e indivíduos buscam se colocar e conquistar visibili-
dade. Diante disso, neste texto, procuramos analisar como outros possíveis
espaços públicos podem ser constituídos na internet onde grupos e indiví-
duos constroem sua visibilidade a partir da produção autônoma de conte-
údo acerca de si mesmos, da replicação de conteúdo produzido por sites e
de debates a partir de disparadores diversos, criando enunciados políticos
a partir de narrativas cotidianas.
A internet, no Brasil, começou a se expandir para o uso residen-
cial a partir de políticas governamentais durante o primeiro mandato de
Fernando Henrique Cardoso. Em 2005, dez anos depois que a internet se
tornou de acesso público no país, ela era acessada por apenas 21% da po-
pulação, mas 50% dos acessos à internet já era feito nas residências (INS-
TITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA, 2005).
Em dados de 2013, o número de domicílios com computadores com aces-
so à internet chega a 28 milhões, representando 43,1% do total de domi-
cílios do país. Mas o que fez com que essa rede se expandisse de fato foi a
ampliação do acesso à internet por meio dos dispositivos móveis, a partir
de seu barateamento. Este acesso, hoje, ultrapassa em muito àquele nos
domicílios, e o número de telefones móveis com acesso à internet soma
mais de 105 milhões de unidades em todo o Brasil (PORTAL BRASIL,
2013). A mobilidade da conexão é uma realidade para muitos/as brasilei-
139
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
ros/as. Diante disso, a quantidade de pessoas presente nessa rede em tempo
sincrônico com as demais atividades do cotidiano é enorme.
Assim como a internet se tornou parte da vida de muitas pessoas,
os inúmeros conitos advindos das interações cotidianas se acham também
nas relações que se expandiram para dentro desse espaço. A internet, na
experiência de muitas pessoas, não é mero instrumento de comunicação
entre diversos usuários, mas pode ser pensada como um espaço que atra-
vessa outros diversos espaços de interação. E como qualquer espaço em
que pessoas entram em contato e interagem, esse, igualmente, tem regras e
códigos que culminam em disputas.
As disputas ocorridas dentro da internet envolvem alguns aspec-
tos distintos daquelas que ocorrem nas arenas públicas, dentro dos mo-
vimentos sociais ou mesmo nas ruas. A internet é um local imaterial no
sentido de que ele não é delimitado por paredes de concreto, apesar da
conexão depender de determinados materiais, mas as conexões e redes
formadas dentro deste local pouco se diferenciam da materialidade das
estruturas arquitetônicas de uma cidade, por exemplo. E, assim como essa
materialidade oferece certas limitações a quem procura transitar nos espa-
ços da cidade, na internet as disputas e limitações são ligadas à conquista
de espaço de visibilidade no meio de comunicação.
Assim, para compreendermos como se dá a disputa por visibilida-
de na internet e de que maneira ela pode ser constituída com um espaço de
ação em que os sujeitos atuam e discursam produzindo enunciados políti-
cos a partir das suas narrativas cotidianas, precisamos explorar um pouco
em que linguagem isto ocorre.
Neste artigo, após esta introdução, iremos trazer uma discussão
sobre como mudanças nos meios de comunicação, mais especicamente a
passagem da televisão para a internet, resultou em algumas transformações
em relação a formas de atuação e constituição de espaços públicos de ação
aqui no Brasil. Não queremos com isso dizer que a televisão foi suplantada
pela internet e perdeu sua importância. Neste primeiro momento, iremos
explorar de que maneira o uso da internet expressa o aprendizado acerca
da televisão e de que maneiras ambos se distinguem e que mudanças esta
distinção traz para a atuação dos agentes.
140
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Após esta discussão, voltamo-nos para alguns episódios na experi-
ência brasileira em que observamos que a internet se estabeleceu como espa-
ço público de ação onde a visibilidade adquirida por certas pessoas e grupos
resultou na produção de enunciados políticos e ações dos governos. Apon-
tamos que os protestos de junho de 2013 foram um ponto de inexão na
experiência dos usos dos novos meios para os movimentos sociais no Brasil
deixando evidente que a esfera pública foi ampliada. Não é que não houvesse
a produção de enunciados políticos na internet antes de junho de 2013, mas
este evento escancarou o fato de que na internet já se estava fazendo política
há muito tempo. Porque o pessoal é político, porque a política se faz a partir
das narrativas cotidianas expressas num espaço público. E essas narrativas
zeram com que a internet se tornasse esse espaço público.
Por m, discutimos como o caso de Verônica Bolina, travesti
agredida por policiais ao ser encarcerada, ganhou visibilidade nas redes e
resultou no encaminhamento de políticas públicas nas arenas institucio-
nais. A partir destes eventos, procuramos demonstrar o que são essas novas
formas de ativismo baseadas na produção autônoma de conteúdo nas no-
vas mídias e na produção de imagens.
A internet e A produção AutônomA do eu
Na introdução deste artigo escrevemos que a internet pode ser
constituída enquanto espaço público de ação no qual os indivíduos atuam
e discursam produzindo enunciados políticos através de narrativas cotidia-
nas que eles registram no meio de comunicação. A internet, portanto, tem
um duplo aspecto: o primeiro, ela é um espaço público de ação; o segundo,
ela é um meio de comunicação que permite a produção autônoma de con-
teúdos por parte de quem está nela inserido.
Quando falamos que a internet pode ser constituída enquanto
espaço público de ação, queremos dizer que nela as pessoas podem se reu-
nir e ao estarem juntas criarem um espaço em que compartilham suas
narrativas de vida, contam suas histórias, isto é, agem. A ação é a atividade
política por excelência, escreveu Arendt (2011), e para que ela ocorra, bas-
ta que as pessoas estejam juntas e atuem. Ao fazerem isso, está formado o
espaço público onde a ação é potencialmente transformadora. Qualquer
espaço pode se tornar um espaço público, basta que as pessoas estejam nele
141
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
e falem, contem suas histórias, apareçam e se revelem. Com os meios de
comunicação a possibilidade do estar junto se expande para locais imate-
riais em que a proximidade espacial das/os agentes é dispensável.
Ao nos inserirmos e construirmos um espaço público fazemos
com que a vida neles aconteça. Isso signica que a constituição do espaço
público acontece em meio a diversas disputas. Se os meios de comunica-
ção, por um lado, expandem as possibilidades de criarmos esferas públicas
em certos locais imateriais, por outro, fazem com que seja possível contro-
lá-los e selecioná-los.
Cada meio de comunicação possui uma cultura comunicativa
própria. Esta cultura comunicativa é construída a partir do uso do meio e
a partir da apropriação deste meio pelos usuários. A forma como se apre-
ende os usos possíveis da internet hoje muito se baseiam no aprendizado de
outras tecnologias como o livro, o rádio e, principalmente, na experiência
brasileira, a televisão.
Como menciona Bucci (1997) em sua análise sobre a esfera pú-
blica no Brasil, esta começa e termina nos limites das objetivas das redes
de televisão. Isto é, aqueles locais para onde apontam seus holofotes serão
importantes e serão o Brasil, os locais e as pessoas que os holofotes não
iluminam, portanto, cam fora dessa esfera pública.
Se, por um lado, a Rede Globo foi capaz, através de uma pro-
gramação unicada em todo território nacional, dar um sentido de nação
ao Brasil (KEHL, 1986), esta nação dizia respeito a um público bastan-
te especíco, a classe média emergente. O lançamento do “Ipanema way
of life
1
produzido pela Rede Globo se baseia num trabalho de imagem
delicadamente construído. Importante salientar que este trabalho sempre
encontrou respaldo entre a população. Não é que a TV simplesmente ma-
nipulava e decidia pelo público o que deveria agradá-lo. A televisão sempre
foi construída tanto pelo seu público quanto pelas emissoras. E o que foi
iluminado pelos holofotes televisivos agradou ao público de maneira bas-
tante signicativa. Mais que isso, ela o ensinou acerca da importância da
imagem para a prática política e para a publicidade de certas pessoas. Isto
é, para existir como gura pública, era preciso aparecer na TV.
1
Modo de vida de Ipanema.
142
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Como escreve Kehl (1986, p. 170):
Essas imagens únicas que percorrem simultaneamente um país tão divi-
dido com o Brasil contribuem para transformá-lo em um arremedo de
nação, cuja população, unicada não enquanto “povo” mas enquanto
público, articula, uma mesma linguagem segundo uma mesma sintaxe.
O conteúdo dessa linguagem importa menos do que seu papel unica-
dor, uniformizador: a integração se dá ao nível do imaginário.
Um imaginário compartilhado de maneira ampla a partir de um
assistir coletivo, mas privado. Coletivo enquanto conteúdo compartilhado.
Privado e individual pois ocorre no espaço da casa. A televisão, portanto,
provoca uma privatização da vida social que transforma a casa em “um nó
dentro da rede televisiva e radiofônica” e o efeito dessa transformação é a
emergência de uma política plenamente baseada na imagem “sendo que a
televisão se torna o meio politicamente dominante
2
(MCQUIRE, 2008,
p. 140, tradução nossa). Torna-se público, no sentido de ser reconheci-
do publicamente, quem está na mídia, quem é visto nela. Assim, a TV
tem a importante função de manter o público reunido no sentido de estar
compartilhando os mesmos conteúdos, mas é ela também que consagra as
guras do nosso mundo público.
E, quando temos nas mãos a possibilidade de nos tornarmos uma
gura pública e, mais que isso, de expormos nossos próprios conteúdos,
mesmo que haja limitações importantes, como lidamos com isso? Esta pos-
sibilidade, desaadora para a televisão, chegou a nós com a web 2.0. Se, a
partir dos anos 70, a televisão forneceu ao brasileiro a sua auto-imagem,
as contestações a esta imagem, que sempre existiram, chegam ao seu ápice
com a ampliação do uso da internet no Brasil. Aquela mídia com cara de
classe média branca, heterossexual, cristã vai dividindo o espaço com uma
outra mídia em que as outras esferas públicas começam a aparecer.
A internet há algum tempo foi invadida pela sele
3
da travesti, da
sapatão, do viado, da negra, do negro feita no banheiro de casa, no protes-
to político. O vídeo produzido no baile funk, na manifestação política em
2
a node within radio and television networks […], on television becoming the dominant political medium”.
3
Autoretrato produzido com a câmera dos smartphones que se tornou muito popular na internet nos últimos
dois ou três anos. A/o usuária/o registra a foto e o publica nas redes sociais para mostrar a si mesmo simplesmente
ou a si mesmo em determinados locais em que está.
143
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
que a polícia espanca desenfreadamente as/os manifestantes, no rolezinho
no shopping
4
. Resultado: o choque! Quem são estas pessoas, que lugares são
estes? A imagem na mídia foi denitivamente manchada com as cores do
arco-íris. E agora?
micropoliticA, reSiStênciA e trAnSformAção SociAl
A internet, não apenas se tornou um instrumento tecnológico
de grande importância para a composição, articulações e dinamização de
coletivos sociais, como, na mesma direção, viabilizou a formação de mo-
bilização política e, consequentemente, de novas formas de ativismo. De
acordo com o sociólogo Jorge Alberto Machado (2007, p. 250), a atua-
ção em rede torna-se, portanto, a principal característica destes “novos
movimentos sociais, pela formação de tensões e colisões frequentes e pelo
enlaçamento ou agregação de grupos identitários, como é o caso das redes
que se formam para discutir feminismo e organizar atividades, manifesta-
ções. O autor retrata o impacto dessa nova forma de articulação nos novos
arranjos de movimentos sociais:
[...] A matéria-prima básica dessa nova forma de organização é a infor-
mação gerada e ecazmente distribuída. Este poder resulta da ampliação
da capacidade de produzir, reproduzir, compartilhar, expressar e difundir
fatos, ideias, valores, visões de mundo e experiências individuais e co-
letivas em torno de interesses, identidades e crenças – e em um espaço
muito curto de tempo. A possibilidade de comunicação rápida, barata
e de grande alcance faz atualmente da Internet o principal instrumento
de articulação e comunicação das organizações da sociedade civil, movi-
mentos sociais e grupos de cidadãos. A rede se converteu em um espaço
público fundamental para o fortalecimento das demandas dos atores so-
ciais para ampliar o alcance de suas ações e desenvolver estratégias de luta
mais ecazes (MACHADO, 2007, p.268).
A produção de conteúdo se congura como eixo central nas in-
terações online e carrega consigo, intrinsecamente, a produção de diversos
novos elementos que permeiam a relação entre o sujeito e o mundo, num
processo mediado. Para a constituição de um campo de mobilização polí-
4
Os rolezinhos também se tornaram um fenômeno em 2013. Eram reuniões recreativas organizadas pela
internet, mais especicamente através do Facebook e do Whatsapp, por jovens de classe baixa que iam até os
shoppings para se encontrar, passear, visitar as lojas, paquerar. Ver mais em Cava (2013).
144
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
tica, os enunciados políticos são construídos a partir de elementos da vida
cotidiana, tais como as vivências e trânsitos nos diversos espaços sociais, o
que justica as inquietações de quem os constrói.
A ideia de que a internet também se caracteriza como uma forma
de ser e estar no mundo marca, a partir de seus usos cada vez mais cotidia-
nos, uma constante transformação não somente na maneira como estamos
nela inseridos/as, mas também pela forma como produzimos e somos pro-
duzidos/as a partir desses usos. Tais usos passam por uma articulação que
envolve a transformação do pessoal em político.
Paula Sibilia (2008), em um amplo debate conceitual, arma
que, de um modo geral, por meio dos usos das redes sociais os indivíduos
se mostram mais preocupados com a espetacularização da vida íntima e,
por consequência, com o “show do eu
5
. No entanto, para além disso, essa
espetacularização, no âmbito da militância e da construção de visibilida-
des, também é uma forma de fazer política de existência, estando longe
de compor lutas a partir de personas descorporicadas. Nesse contexto, a
criação de grupos de discussão, páginas e pers, em redes sociais fazem da
exposição da vida íntima um ato político. Ademais, não há como mensurar
ou controlar o alcance ou a forma de circulação que algumas postagens
têm. À medida que uma postagem entra na página de atualizações das pes-
soas que estão conectadas com o espaço em que foi publicada, no entanto,
as ferramentas de compartilhamento, enquanto uma das principais carac-
terísticas das interações online, assumem um papel de megafone e criam
ecos em torno dos discursos.
Nessa direção, o fazer político que algumas/uns ativistas assumem
a partir dos usos de plataformas online é regido por seu principio básico
de funcionamento: a propagação de idéias. A forma com que essa propa-
gação de idéias marca a conexão entre as esferas on e oine demonstra seu
verdadeiro potencial político na medida em que essas duas dimensões se
retroalimentam.
Essa lógica de interação exige uma relação direta entre o usuário
das plataformas e o computador, tablet ou smartphone, e é por meio dessa
5
O termo foi cunhado pela autora em sua tese de doutorado, para discutir sobre as diferentes dimensões do
eu” na internet, a partir das experiências de subjetividade nas quais as dimensões “íntimas” e “confessionais” são
pensadas como “alterdirigidas” - construções de si orientadas para uma exposição que objetiva legitimar formas
de ser e estar no mundo.
145
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
interação primária que interações secundárias são criadas. A partir delas é
possível levantar discussões em nível nacional e internacional a partir de
elementos como a empatia (SIBILIA, 2008) e a sensibilização a partir dessa
empatia, seja ela individual ou coletiva.
Permeadas por contextos on e oine, essas interações mediadas
que resultam em debates e articulações políticas não encontram uma linha
seccional que os distingue. De acordo com Iara Beleli (2012), esses espaços
formam um continuum dimensional que repercutem um no outro tanto na
dimensão das práticas quanto na dimensão subjetiva de uma construção
pessoal, mas também coletiva à medida que toma grupos como ponto de
partida em discursos reivindicatório, a exemplo de falas como “Eu, mulher
trans negra da periferia da cidade de São Paulo [...]” utilizadas como ponto
de partida para marcar um lugar de fala política. Há, portanto, um borra-
mento entre as fronteiras do publico e do privado, do pessoal e do político.
Assim, o individuo que propõe um debate despretensioso em seu perl
pessoal numa dada plataforma de interações online, certamente o faz mo-
tivado por algum aspecto de suas práticas cotidianas, e nem sempre com
a intenção de provocar uma mobilização no âmbito dos debates políticos.
No entanto, esses debates são uma forma de fazer política já que as relações
e a vida social é política.
As narrativas em torno das práticas cotidianas tornam-se um ato
político ao criarem enunciados de resistência chamando para a cena o de-
bate em torno das demandas que são coletivas, mas que partem da vivência
individual. Nesse sentido, a relação indivíduo-coletivo é tensionada, espe-
cialmente a partir da marca de um tipo de mobilização que não toma o
diálogo com o Estado como central nas suas formas de fazer política.
Nesse sentido, as discussões políticas não somente dizem respeito
a temáticas relacionadas ao movimento social institucionalizado ou parti-
dário, mas, sobretudo, a questões referentes a (re)elaborações de estratégias
de enfrentamentos que atravessam o campo da privação de direitos ou a
busca pelo rompimento de estigmas sociais.
De acordo com Miskolci e Beleli (2015), entre alguns grupos so-
ciais socialmente subalternizados por seu gênero, sexualidade, origem étni-
co-racial ou idade a conexão em rede tem facilitado as discussões políticas.
À medida que a propagação de ideias circula a partir de uma estrutura em
146
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
rede, a multiplicação da informação produz uma visibilidade em torno dos
debates. No entanto, há um largo hiato entre pensar que existe um aspecto
positivo na criação de novas visibilidades em torno de demandas políticas,
nas representações sociais e a luta por reconhecimento.
As novas formas de ativismo gestadas a partir dos grupos de deba-
te na internet ganham uma nova gramática de pertencimento ao trazerem
para a cena novos elementos que compõe as resistências políticas. O acesso
a determinados debates desmaterializa a dimensão corporal da presença
em um espaço legítimo de discussões políticas, e torna a política um fator
que atravessa as diversas práticas cotidianas, pois está incorporada no fa-
zer, na publicização desse fazer, e especialmente na conversão desse fazer
em bandeira de luta. Esse entrecruzamento entre público e privado marca
exponencialmente essas novas formas de mobilização.
Assim, o agir em conjunto que se dá a partir do uso dos novos
meios de comunicação espetaculariza o privado e o torna público. Não é
somente o privado enquanto espaço privado, mas a vivência particular.
Na verdade, como colocado anteriormente, a espetacularização do eu
provoca um borramento dessas fronteiras. Mas, de que maneira se dá
esse espetáculo?
oS proteStoS de junho de 2013 e AS novAS eSferAS públicAS
O espetáculo que ocorre nas esferas públicas formadas a partir
da internet tem um sentido midiático e performativo semelhante àque-
le da produção e execução dos programas de TV. Anal, foi a partir de
uma forte inuência deste meio que aprendemos a usar os novos meios
de comunicação e informação. No espetáculo da internet, ressaltamos, a
produção do eu, porém, é autônoma e individual. Cada nó na rede produz
sua própria imagem. Obviamente que os nós, na verdade, são eles mesmos
redes complexas que reúnem várias relações materiais ou não para sua pró-
pria formação. É possível vermos de que maneira esses nós se constroem
individual e coletivamente ao observarmos, por exemplo, os protestos de
junho de 2013.
147
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Esse evento marcou a era da atuação nos espaços públicos cons-
truídos na internet. Junho de 2013 legitimou, no país, a atuação e arti-
culação política na internet. Organizadas inicialmente pelo Movimento
Passe Livre (MPL), as chamadas para as manifestações contra o aumento
da passagem do transporte coletivo eram feitas no Facebook através da
ferramenta “eventos” dessa rede social. Durante as manifestações, as pá-
ginas dos eventos, as publicações de vídeos, relatos, fotos viralizaram nas
redes e atraíram a atenção para os protestos que ocorriam na cidade de
São Paulo. Isso fez com que o movimento em apoio às manifestações
paulistanas se expandisse para todas as regiões do país ocorrendo ao mes-
mo tempo em centenas de cidades. A participação no protesto extrapola-
va a presença nas ruas e se expandia para as redes que foram constituídas
enquanto espaços públicos (LAET, 2015). A sele na rua se tornou a
prova incontestável da participação no protesto e demonstração de apoio
aos manifestantes. O compartilhamento de conteúdo na rede também
era demonstração de apoio, mas não só isso, era também uma forma de
participação (LAET, 2015).
As manifestações de junho de 2013 em São Paulo mostraram
que a experiência política nas cidades não está limitada à ação no espaço
urbano físico, mas ela também acontece quando as pessoas transformam os
espaços midiáticos constituindo-os em ambientes de ação. Isto se tornou
possível por causa da ubiqüidade da tecnologia nos espaços urbanos e pelo
intenso uso que as pessoas fazem dela. Neste sentido, as casas, os compu-
tadores e os celulares se tornaram nós conectados com outros múltiplos
nós na construção da ação política em espaços públicos midiáticos que se
imbricavam com o espaço da cidade.
Acreditamos que essa mobilização intensa nas redes em junho de
2013 gerou modicações políticas importantes para além dos “20 centa-
vos”. Foi a partir da experiência de junho de 2013 que cou evidente para
os participantes que a vivenciaram o poder aglutinador dessa mídia. Mais
do que isso, foi a partir da propagação de ideias próprias publicadas no
Facebook e Twitter ou a replicação de ideias alheias que as/os participantes
experienciaram a internet como esse megafone. Foi também com base nes-
sa experiência que a esfera pública brasileira se expandiu para além da TV,
mostrando outros espaços e dando destaques a situações que as câmeras
148
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
televisivas tantas vezes evitaram focalizar. Obviamente que já existiam pú-
blicos distintos na internet, mas junho de 2013 foi esse ponto de inexão
que alavancou o espaço da internet como espaço público e atraiu para tal
espaço os olhares e a atuação de uma grande parte das/os brasileiras/os.
Daí para a espetacularização da vida íntima foi apenas um curto
passo. A construção do individuo na esfera das interações online a partir da
introdução de elementos que envolvem uma corporalidade imagética e ele-
mentos textuais se traduz na composição de um corpo tanto para quem in-
terage quanto para o conteúdo em circulação, o que repercute diretamente
na produção de visibilidades. Um caso de grande repercussão a partir do
uso das redes sociais foi o de protesto em torno da prisão e de episódios de
violência em relação à Verônica Bolina.
Se a militância que se utiliza de um campo de mediação online é
atravessada especialmente pela estratégia da produção de visibilidades, acio-
nando diversos elementos, tais como a experiência do outro, casos como esse
podem ser observados a partir da proporção tomada no que diz respeito às
noticias sobre a violência que Verônica Bolina sofreu ao ser presa
6
, mobili-
zando uma série de debates em torno dos direitos das pessoas trans.
Num grupo especíco do Facebook, o debate foi bem acentuado.
Comentários frequentes foram notados, como: “se fosse um lho de político
isso não acontecia, so pq eh trans”, “a gente sofre violência o tempo todo, e o
estado não nos ampara legalmente e quando somos culpadas aí q tudo piora,
não sei se acho bem feito ou me revolto” ou ainda “se fazem com o meu ca-
belo o que zeram com o dela, eu mato todo mundo mesmo”.
Se a violência é a condição básica de quem ultrapassa os limites
no que diz respeito às vivencias dos binarismos de gênero, de que modo é
possível desmontá-la? As expectativas encontram-se no âmbito da cultu-
ra, ainda que sejam reconhecidas as necessidades de avanço no campo do
jurídico, especialmente no que tange à produção, formulação e reformu-
lação de políticas publicas. No entanto, as reivindicações se encontram no
âmbito da criação de novas visibilidades ou de visibilidades positivas sobre
6
O caso Verônica Bolina, ocorrido no mês de abril do corrente ano, teve repercussão internacional em decorrência
dos debates lançados a partir do compartilhamento de noticias na plataforma. Na ocasião, Verônica agrediu uma
idosa e foi presa em agrante, no entanto, foi levada para uma prisão masculina, tratada no masculino, humilhada
e violentada pelos policiais. A publicização das imagens do rosto de Verônica desgurado e de suas roupas rasgadas
foram o ponto de partida para os debates em torno dos direitos das pessoas trans, na plataforma.
149
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
as demandas, vivências e necessidades de pessoas trans no campo da vida
prática e no campo dos direitos. Os impasses sobre esses posicionamentos e
lutas vêm respingando na forma com que elas se articulam e é nessa direção
que as interlocuções nas redes sociais têm ganhado ressonância.
Se na década de 80, as primeiras mobilizações em torno da ques-
tão dos gêneros e das sexualidades se davam especialmente em decorrência
da epidemia de AIDS essa não mais é a questão central nos pontos de
mobilização política.
A institucionalização do movimento trans brasileiro se deu a
partir dos diálogos do movimento com o Estado, mas acabam por tirar
o caráter dialógico da luta, o que respinga na falta de acesso não somen-
te por ausências de projetos e programas por parte do Estado, porém
mais do que isso, pela não aceitação por parte das dinâmicas sociais
excludentes que armam que, embora pessoas trans tenham direito a
processos de modicação corporal, por exemplo, elas ainda assim não
têm o direito de serem consideradas sujeitos, reforçando cada vez mais
seu lugar às margens.
São inúmeros os relatos de pessoas trans que sofreram violência,
desde aquela que é perpetrada no ambiente doméstico, até a truculência
policial nos espaços de prostituição. Além disso, a violência simbólica é
uma marca presente em diversas etapas da vida das pessoas trans, expressas
na desvalorização de suas vivências de gênero. No caso de Verônica, ao ser
encaminhada para uma cadeia masculina, onde foi obrigada a cortar os
cabelos e usar roupas que a partir de pressupostos hegemônicos são tidas
como masculinas, foi alvo de constrangimento a partir do total desrespeito
com sua identidade de gênero.
A estratégia de visibilizar o caso repercutiu num posicionamento
por parte da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
e do Conselho Municipal de Políticas LGBT da cidade de São Paulo, de
modo que, ao estabelecer um diálogo com o poder público, o caso pôde ser
acompanhado e as devidas leis foram acionadas.
O caso Verônica Bolina trouxe à cena diversos debates em torno
dos direitos humanos, mas uma discussão que foi acentuada girou em
150
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
torno da necessidade de aprovação do projeto de lei João Nery
7
, ou Lei
da identidade de gênero, de autoria do Deputado Federal Jean Willys
e da Deputada Federal Erika Kokay. Os discursos perpassavam a luta
pelo reconhecimento da identidade de gênero, especialmente mediante
vivências de violência simbólica em redor do uso do nome de registro em
instituições e serviços.
O ponto central desse caso é que em menos de dois dias havia
uma mobilização intensa que envolveu diversas instituições políticas o-
ciais de pessoas trans, órgãos públicos, tais como defensoria e conselho de
pessoas LGBT, a partir de uma mobilização e da proliferação do debate
acerca do caso, por meio das redes sociais. Isso evidenciou não somente o
alcance do debate em um curto espaço de tempo, mas o entrecruzamento
entre as esferas on e oine no fazer político. Ademais, destacou também
sua forma de utilização, que tem a ver com uma ferramenta extensiva de
movimentos alternativos em torno da minimização da violência no que diz
respeito às vivências de pessoas trans.
conSiderAçõeS finAiS
Os pontos de reexão levantados nesse artigo não têm a mínima
pretensão de serem conclusivos. Especialmente porque a multiplicidade de
possibilidades de ativismo a partir uxos da informação e das interações
nos mostram que as relações entre o local e o global são permeadas por
elementos conectados numa rede que se entrecruzam em diversos pontos.
Se as relações em rede são marcadas pelos pontos de intersecção
entre uma plataforma e outra a partir de um ponto em comum na propaga-
ção de ideias, podemos considerar que esse ponto que conecta duas ou mais
plataformas é uma notícia vinculada pela mídia de massas, que desencadeia
um debate em tom reivindicatório. Esse fato causa uma falsa ideia de que há
uma perda de controle sobre o alcance da informação/debate, o que se pro-
põe como verdade, mas somente até certo ponto. Ao ter acesso a um dado
debate via plataforma de rede social, é comum percebermos que várias pes-
7
De acordo com Bento (2014), essa é a primeira na história que se estrutura pelo princípio do reconhecimento pleno
da identidade de gênero de todas as pessoas trans no Brasil, sem necessidade de autorização judicial, laudos médicos
nem psicológicos, cirurgias nem hormonioterapias, assegura o acesso à saúde no processo de transexualização e
despatologiza as identidades trans. O projeto inspira-se na Lei de Identidade de Gênero argentina.
151
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
soas com as quais nos relacionamos estão debatendo ou comentando aquele
assunto. No entanto, essas pessoas com as quais mantemos interações numa
dada plataforma tendem a pertencer a um circuito comum, o que causa a
falsa sensação de que todos estão comentando sobre o mesmo assunto. Cer-
tamente, outras pessoas que também podem estar relacionadas em alguma
medida com o circuito do qual fazemos parte, mas que reproduzem outros
tipos de debates (ou não o reproduzem), podem estar falando sobre outra
coisa, ou sequer podem estar sabendo sobre aquele assunto que não saiu
um único minuto das suas atualizações nas redes sociais. A esse fenômeno,
é dado popularmente o nome de “bolha midiática”, e produz a sensação de
que dada pauta/discussão está sendo mobilizada por todos. Essa falsa univer-
salidade cria a impressão de que o debate está dado, altamente circulante, e
portanto, acessado e apropriado por todos.
Quando pensamos acerca do que é essa bolha midiática que nos
salta aos olhos, percebemos que os espaços públicos construídos na inter-
net são múltiplos e têm recortes importantes. Se os protestos de junho de
2013 revelaram na rua a multiplicidade dos sujeitos presentes nessa enor-
me rede, ela também fez com que, através da imagem e dos discursos ba-
seados na imagem, pessoas identicassem em outras os discursos que elas
julgavam mais pertinentes. No dia 17 de junho de 2013, quando as ruas de
mais de 300 cidades foram ocupadas no Brasil, a multiplicidade de pautas
que levou tantas pessoas às ruas cou evidente e resultou em polarizações
importantes dentro da rede.
Essa polarização tem uma forte marca geracional. Os espaços pú-
blicos dentro da internet são espaços jovens. As linguagens políticas dos/as
ativistas de que falamos aqui são bastante especícas dessa juventude que
ressignica o espaço da internet e da cidade e expande a esfera pública. Na
verdade, essa expansão se traduz na emergência de diversas outras esferas
públicas baseadas em recortes de classe, gênero, raça e geração. Assim, sem
a intenção de valorar os discursos e as lutas presentes na internet ou jul-
gar a efetividade de tais discursos, é interessante pensarmos a respeito do
alcance real desse fazer político e dessa luta por transformação social. Ao
pensar nessa questão não queremos diminuir a importância de tal ativismo
ou dizer que ele não produz resultados. A ação, como diz Hannah Arendt
(2011), é fazer, é iniciar e, por si só, tem forte potencial transformador.
152
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
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153
Entre o passado e o presente:
música popular e cinema no
Centro-Oeste Paulista
Lays Matias Mazoti Corrêa
iago Henrique de Almeida Bispo
Minhas asas estão prontas para o voo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo.
(GERHARD SCHOLEM apud BENJAMIN, 994)
conSiderAçõeS iniciAiS
O trabalho com a memória abre uma série de possibilidades para
as Ciências Sociais se pensado a partir das relações com outras áreas das
Ciências Humanas e das aproximações com categorias fundamentais na
reexão das interações sociais. Nos quadros sociais da memória, a histó-
ria viva desaa o aglomerado de fatos, nomes e datas que a História
1
nos
oferece, conferindo vitalidade e funcionalidade a personagens e elementos
históricos considerados superados pela modernidade.
1
Referimo-nos ao seu sentido universal de história apreendida e escrita a partir de uma imparcialidade cientíca
suspeita, elegendo-se como ocial.
154
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Pensando nesses aspectos, o presente texto busca apresentar as
relações possíveis entre memória, identidade, história e esquecimento a
partir de objetos culturais como a música popular e o cinema. Através da
memória, pretendemos romper com a lógica das rupturas da modernidade
representada entre o novo e o velho, cujo tempo histórico é apresentado
como linear, homogêneo e evolucionista, trazendo para o debate outras
narrativas que marcam continuidades e descontinuidades de histórias vivas
numa interação incessante entre o passado e o presente.
A estética pós-caipira da banda Mercado de Peixe de Bauru-SP
inova na releitura estabelecida sobre a gura do caipira e sua cultura, in-
terligando-se a temáticas e sonoridades contemporâneas através de uma
proposta híbrida, numa tentativa de reparar as arestas deixadas pelas ruínas
da modernidade. Por outro lado, ainda que a história do cinema constru-
ída no desenvolvimento da cidade de Marília-SP não lhe conra o devido
prestígio e importância dos tempos de outrora na atualidade, a memória
atua como mecanismo de resistência frente ao esquecimento social que os
tempos modernos dos shoppings centers lhe conferiu.
hiStóriA, memóriA e identidAde: o movimento póS-cAipirA
em bAuru-Sp
No início da década de 1990, surgiu na cena cultural do interior
paulista o movimento pós-caipira. Organizadas através de duas edições do
Festival Caipira Groove em Campinas-SP, diversas bandas apresentaram
propostas musicais sincréticas que, conforme José Roberto Zan (2008, p.
05), congregavam “a sonoridade de instrumentos eletrônicos (guitarra e
contra-baixo) [...] do rock, o rap, o funk, o reggae, estilos ‘pós-punk’ como o
grunge e o hard rock; e matrizes musicais da cultura caipira, especialmente
moda-de-viola, catira, samba rural paulista e jongo”. Ao lado das bandas
como Matuto Moderno (São Paulo), Trem da Viração (Vale do Paraíba),
Vô Varvito (Campinas), Sacricrioulo (Campinas), Dotô Jeka (Vale do Pa-
raíba), Fulanos de Tal (Rio Claro), o grupo musical Mercado de Peixe, de
Bauru-SP, participou ativamente desse processo, gurando como um dos
principais representantes da cena pós-caipira.
155
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
Sob a inspiração musical e ideológica do movimento Mangue
Beat
2
, a banda Mercado de Peixe utilizou-se da palestra proferida por
Hermano Viana em um dos festivais e lançou o Manifesto Pós-Caipira em
2003. Em seu conteúdo, surgia uma identidade caipira radicalizada, muito
diversa daquela solidicada pelo imaginário popular através da gura de
Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. O pós-caipira apresentou-se como uma
gura periférica, errádica e nômade, tendo o eixo de sua brava resistência
centrada, justamente, em sua inadaptabilidade e subalternidade, “enxer-
gando qualidades naquilo que [...] só podia ser defeito.” (VIANA, 2003).
Um verdadeiro pós-caipira (anti o caipira-estilizado-de-festa-junina, fes-
ta sempre nostálgica do antigo, do que já passou - mas isso não quer
dizer que o estilo junino não seja útil... ou mesmo o sertanejo-hiperpop
de Sandy & Junior... tudo é radicalmente reciclável...) aproveita radical-
mente o presente, sem se preocupar com o registro do que está vivendo.
[...] Esse presente, assim pensado e vivido, não é certamente o m da
história, mas a história vivida sem a ilusão da evolução totalitária. Cada
pós-caipira tem seu próprio tempo, e sua maneira – acocoradamente
correta - de estar no tempo. Lição: o tempo do mangue-beat: nada nos-
tálgico da pureza perdida do maracatu; e por isso o maracatu está mais
vivo do que nunca. Hoje. O mangue-beat nos ensinou a botar fogo na
cultura local, afrociberdelicando-a. É preciso agora jeco-centricar o
afrociberdelicado. Para fazer coro com o Jeca Tatu de Monteiro Lobato:
‘Eta fogo bonito!’ (VIANA, 2003, grifo nosso).
O trecho destacado no discurso de Viana nos permite compre-
ender a forma como que as categorias história e memória são apreendidas
pela proposta pós-caipira, questão essa que também aparece no projeto es-
tético da banda Mercado de Peixe. O documento expressa a necessidade de
rompimento com a perspectiva evolucionista da história, marcada por um
tempo histórico linear e homogêneo cujo destaque é dado pelas rupturas.
Essa concepção aproxima-se da noção de história de Maurice Halbwachs,
já que para o sociólogo
A história divide a sequência dos séculos em períodos, como se distribui
o conteúdo de uma tragédia em vários atos [...] na história se tem a im-
2
O movimento Mangue Beat foi articulado em ns da década de 1980 por Chico Science, do Nação Zumbi,
Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A e Renato Lins. O protagonismo híbrido da periferia de Recife
foi referenciado no Manifesto Mangue Beat através da metáfora do lamaçal do mangue - ecossistema rico em
matérias orgânicas que possibilita a troca das mesmas entre as águas doces e salgadas – que buscou simbolizar a
diversidade do movimento.
156
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
pressão de que, de um período a outro, tudo é renovado, interesses em
jogo, orientação dos espíritos, maneiras de ver os homens e os aconteci-
mentos, tradições também e perspectivas para o futuro [...]. (HALBWA-
CHS, 1990, p. 81).
Ao contrário da história, a memória não estabelece nenhum
corte, expressando-se a partir do sentimento de continuidade cultivado
por determinado grupo social. A memória, para Halbwachs, é a história
viva e vivida física e/ou afetivamente, na qual passado e presente se inter-
penetram, renovando-a constantemente e pluralizando as possibilidades
de lembranças.
Assim, no documento, a história viva – a memória - é tomada
como parte de um processo interativo entre o passado e o presente, na qual
a perspectiva evolucionista é abolida justamente por trazer consigo os bi-
narismos que esboçam rupturas, tais como tradicional/ moderno e velho/
novo. A defesa da radicalidade entoa a necessidade da desconstrução de
um passado cuja história confere passividade e subserviência às periferias
rurais e urbanas.
Nesse sentido, “jeco-centricar o afrociberdelicado” busca ex-
pressar a necessidade de continuidade do processo iniciado pelo Mangue
Beat na tarefa de romper com a lógica do pensamento evolucionista e
trazer as periferias para o centro do debate: “devemos celebrar o homem
inadaptado, que recua e não abraça sorridente o ‘progresso’, que descona
do ‘civilizado’ e por isso prefere viver ‘na penumbra das zonas fronteiri-
ças.’” (VIANA, 2003).
Apesar da visibilidade midiática e a divulgação obtida com os fes-
tivais, a cena pós-caipira não emplacou na indústria cultural e se arrefeceu.
Um dos motivos que inuenciou nesse processo centrou-se na discordân-
cia entre as bandas daquilo que deveria ser tomado como “essência” pós-
-caipira, já que alguns tendiam para uma maior preservação das tradições
enquanto outras, como a Mercado de Peixe, defendiam a necessidade de
trabalhá-las, porém desconstruindo-as a partir das novas paisagens sonoras
e temáticas do presente:
Cada um tinha sua própria abordagem de como dialogar com a cultura
caipira, nós éramos mal vistos nos meio mais tradicionais, como da Ine-
157
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
zita Barroso, que nos recusou por eletricar a viola. Nós não apenas ze-
mos isso, como botamos distorção nela e a usamos para tocar rock, pes-
quisar sons que pareciam com a cítara indiana. (ALCÂNTARA, 2015).
[...]
O Mercado de Peixe sempre teve uma atitude de contestação, rebeldia,
liberdade e humor – muitas vezes até punk. Muitas vezes essas atitudes
foram mal interpretadas e causaram certo distanciamento entre outros
grupos que tinham uma leitura ‘contemplativa’ da cultura popular. A-
nal, foi o que diferenciou o MDP, pegar o ‘caipira’ mastigar, engolir e
transformar em outra coisa... Assim como no modernismo [...]. (GO-
MES, 2015).
Apesar disso, Mercado de Peixe é uma das poucas bandas que
conseguiram “sobreviver” no mercado musical alternativo, angariando
quase 20 anos de carreira e três discos produzidos: Roça Elétrica (2003),
Territórios interioranos (2008) e Água da faca (2015)
3
. Além da sonoridade
sincrética expressa por remixes e samplers
4
de músicas consagradas no
cancioneiro caipira - como Assim é que é o sertão, de Tonico e Tinoco,
Fogo no Canavial, de Alvarenga e Ranchinho e Moda do Peão, de Cornélio
Pires - a banda possui diversas canções autorais que auxiliam na produção
da síntese dessa identidade pós-caipira, utilizando-se recorrentemente da
memória e da própria história da cidade de Bauru como partes de seu
projeto estético musical.
3
Além desses, a banda produziu diversos EPs (Extended play é a produção de um disco cuja soma do tempo das
canções apresentam-se extensas demais para a classicação de um compacto, também conhecido como single, e
pequena demais na caracterização de um álbum musical): EP Aparições (1999), A saga low tech do caipira paulista
I (2001), A saga low-tech do caipira paulista II (2002), Beats e Batuques (2002) e O Caminho do Peabiru (2014).
Em 2013, realizaram uma turnê comemorativa dos 15 anos de carreira, passado por 10 unidades do SESC. Para
esse trabalho, realizamos análises do álbum Roça Elétrica (2003) e Água da faca (2015).
4
Remix é uma música modicada eletronicamente a partir de acréscimos de batidas rítmicas e/ou efeitos
adicionais produzindo uma versão dançante. Já o sampler é a montagem de uma nova composição a partir
de registros sonoros originais através de um aparelho, o sampleador, sendo esse geralmente acoplado a outros
instrumentos (como o teclado) ou realizado externamente através da captação de som feita por computadores.
Canções remixadas e sampleadas geralmente compõe o universo da música eletrônica. Na balada pós-caipira
proposta pela banda Mercado de Peixe esses recursos são utilizados como símbolo da nova estética proposta,
na qual eletricar a viola e remixar e samplear canções de outrora conguram a defesa da necessidade do
rompimento com os círculos mais tradicionais de música caipira.
158
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Figura1. Divulgação do disco Água da faca (2015) com composição atual da banda: Polettini,
Pires, Alcântara, TRZ, Madureira e Gomes (Foto: Cosmo Roncon Jr. publicado no site do jornal
A cidade, de Ribeirão Preto em 12/09/2015)
A foto acima revela um desses aspectos que se apresenta como
eixo estético da proposta pós-caipira da banda. O trem de passageiros da
antiga Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA) é rememorado com des-
taque e vitalidade. A fundação da cidade de Bauru-SP data de 1896 e
sua constituição inseriu-se dentro da “Marcha para o Oeste”, política de
Getúlio Vargas que buscava o incentivo à ocupação da região central do
Brasil. Com o início da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
(NOB)
5
em 1906, a cidade passou a representar um ponto estratégico de
escoamento da produção cafeeira do centro-oeste paulista, fazendo com
que, mais tarde, fosse elevada como polo econômico da região.
Se o trem era tomado como símbolo do progresso no início do
século XX e elemento central da própria história da cidade, na contempo-
raneidade sua imagem associa-se comumente à ideia de tecnologia ultra-
passada, sobretudo se pensarmos em outros meios de transporte como o
avião. O processo de privatização das estradas de ferro brasileiras na década
de 1990 contribuiu para essa questão, uma vez que os trens de passagei-
ros foram extintos, muitas estações foram abandonadas e as linhas férreas
que ainda se encontram em funcionamento destinam-se exclusivamente ao
transporte de cargas, como é o caso da América Latina Logística, proprie-
tária atual da NOB.
5
A referência geográca noroeste no nome da estrada de ferro faz menção à localização da região de Bauru em
relação à capital do estado, São Paulo.
159
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
No entanto, história e memória justamente por não ser sinônimos
podem, muitas vezes, se contradizer. A importância do trem perpetuada no
passado histórico da cidade de Bauru-SP contribuiu para a consolidação de
uma memória coletiva que se faz presente em sua “interpenetração” (HAL-
BWACHS, 1990) às memórias individuais. Conforme Michael Pollak
(1992, p. 201), esse processo fundamenta as construções identitárias a par-
tir dos “acontecimentos vividos pessoalmente” e dos “‘vividos por tabela’,
ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a
pessoa se sente pertencer” Nesse sentido, a memória apresenta-se como fa-
tor constituinte das identidades “na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência
de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.” (POLLAK,
1992 p. 204).
Na discograa da banda Mercado de Peixe podemos perceber
melhor como funcionam esses elementos constitutivos da memória indi-
vidual e coletiva, bem como sua relação com os processos identitários. Ao
utilizar-se de aspectos da história da cidade – o trem, as canções tornam
viva a memória desse passado atualmente considerado inerte: “Eu sentei
na linha do trem, pra ver a fumaça dançar e pensei: Ai que saudades do
trem!” (MERCADO DE PEIXE, 2003). Na canção Brasil Novo, passado e
presente entrelaçam-se conferindo vitalidade à memória de uma infância e
adolescência cuja gura do trem possui máxima importância, representan-
do espaço de brincadeiras, aventuras e/ou reexões.
A saudade remete-se a vivacidade desse elemento nessa memória
individual que é, ao mesmo tempo, coletiva, expressando-se como “uma
corrente de pensamento contínuo [...] que nada tem de articial, pois não
retém do passado senão o que está vivo ou é capaz de viver na consciência
do grupo que a mantém.” (HALBWACHS, 1990, p. 82). Em outras pala-
vras, o que se pretende é atribuir uma valoração diferente daquela concebi-
da na atualidade, isto é, se o trem é visto sob o signo negativo do passado
histórico superado, o recurso da memória lhe atribui um valor positivo ao
evidenciar sua importância e vitalidade.
Na canção Juan Caballero, ao lado do trem, outra gura popular
de Bauru ganha destaque: trata-se da cafetina Eny Cezarino, proprietária
de um dos maiores e mais famosos prostíbulos da história - a Casa de Eny,
160
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
(mais tarde Eny´s Bar), entre as décadas de 1960 e 1980
6
: “Ô Eny, ô Eny,
o trem já vai partir de Bauru a Corumbá, Puerto Quijarro, Arroyo, Santa
Cruz” (Água da Faca, 2015). Os versos trazem o trajeto da antiga NOB
que ligava Bauru-SP a Corumbá-MS, apontando a cidade fronteiriça de
Puerto Quijarro, na Bolívia, como ponto de integração com a rede fer-
roviária boliviana que prosseguia até Santa Cruz de la Sierra através do
chamado Trem da Morte
7
.
Ao contrário do Brasil, mesmo com a privatização das linhas fér-
reas, a Bolívia manteve o transporte de passageiros por trens e o trecho
citado ainda é muito utilizado na atualidade. Nesse sentido, a canção des-
constrói parte do presente ao conferir funcionalidade ao trajeto brasileiro,
evidenciando as possibilidades de viagens que a estrada de ferro NOB po-
deria conferir a seus passageiros, ao mesmo tempo em que denota a impor-
tância da interligação com outros países da América Latina.
Para além dessa canção, a gura de Eny emerge como de musa
estética da banda. Em Brasil Novo, os versos Ai, que saudade do trem/ Ai,
que saudade da Eny/ Eny que era mulher de verdade/ O trem que trazia
a novidade” (MERCADO DE PEIXE, 2003), expressa muito bem esse
aspecto, denotando valor à cultura popular. Nesse caso, não só a gura de
Eny é reconstruída, mas também a própria composição do famoso samba
Ai que saudades da Amélia (1942), de Ataulfo Alves e Mário Lago, confe-
rindo respeito e prestígio à Eny ao enunciá-la como “mulher de verdade”.
Sobre a representação de Eny, mais uma vez a memória exerce
um papel mais ativo do que a história ocial, já que essa última a negligen-
ciou, caracterizando-a a partir de estereótipos e preconceitos, seja por ser
mulher, prostituta e/ou cafetina. É provável que os membros da banda não
conheceram Eny no auge de sua carreira, mas certamente tomaram conhe-
cimento de sua inuência a partir da memória coletiva. Na história, seu
prostíbulo se tornou notório pelos clientes que recebia, compreendendo
desde o poeta Vinícius de Moraes até o presidente João Goulart. Porém, na
memória, o que permanece vivo é a contribuição pública de Eny à cidade
6
O prostíbulo se situava no trevo de Bauru, às margens da Rodovia Marechal Rondon.
7
Em seu último álbum, Água da faca (2015), a banda Mercado de Peixe gravou uma faixa sonora com o título
Trem da Morte. A composição sonora da música apresenta imbricados sons de locomotivas de trem ao lado de
melodias bolivianas.
161
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
através das novidades que trazia, isto é, do auxílio prestado nas construções
de creches, escolas e outras obras sociais que realizou.
Mais do que a história, a memória fundamenta-se como aspecto
articulador da estética pós-caipira, conferindo vitalidade a personagens e
funcionalidade a elementos históricos considerados inertes e/ou superados
pela modernidade, ao mesmo tempo em que esboça nova(s) identidade(s).
A ideia do “novo” e “novidade” associam-se a interposição entre a perma-
nência de elementos do passado e a emergência de outros que passaram a
contracenar a partir de um processo de (re)signicação mútua, cujo resul-
tado é expresso pelo hibridismo cultural: “Moro na entrada do Brasil novo:
onde vivem neo-hippies, manos, nômades e caboclos.” (MERCADO DE
PEIXE, 2003).
A radicalidade pós-caipira também aparece na arte do álbum
Água da Faca, lançado em 2015. Na imagem a seguir, percebemos um
aglomerado de referências que visam aproximar a cultura caipira com ou-
tras periferias e centros do mundo: na parte superior, o bondinho e o Cor-
covado carioca desembocam nas ruínas incas de Machu Pichu, no Peru e
no Lago Titicaca; “O caipira picando fumo” (1893) e “O violeiro” (1899)
de Almeida Júnior, contracenam com “As banhistas” (1887) de Renoir;
indígenas do quadro “Primeira missa do Brasil” (1861), de Victor Meirel-
les observam curiosamente a apresentação do novo álbum da banda cuja
celebração é expressa pelo ritual antropofágico de “Cena de canibalismo
(1592), de eodore de Bry.
162
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
Figura 2: Capa do álbum Água da faca, Mercado de Peixe, 2015.
A estética pós-caipira da banda Mercado de Peixe nos permite
retomar os dizeres de Walter Benjamin (1994) sobre a gura metafórica
do Anjo da História
8
, o qual, a partir da mistura dos tempos, enxerga o
passado histórico através das ruínas deixadas ao longo do tempo pela
civilização ocidental. A tempestade representada pelo progresso o arrasta
fortemente em direção ao futuro, impedindo-o de restaurar o que restou.
A radicalidade pós-caipira busca romper com essa tempestade e, ainda que
não possa voltar para o passado, utiliza-se da memória para reconstruir
narrativas que versam sobre os tempos de outrora e os de agora, celebrando
as permanências e amenizando, por m, o amontoado de ruínas.
8
Sua inspiração se deu a partir do quadro “Angelus Novus”, de Paul Klee (1920).
163
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
entre A memóriA e o eSquecimento: o cinemA pioneiro de
mAríliA-Sp
A cidade de Marília surge com o avanço da cultura do café no
centro-oeste paulista, a partir de 1915, quando as primeiras plantações fo-
ram feitas na “Fazenda Cincinatina”, em uma área que atualmente corres-
ponde a uma parte central da cidade. A “Companhia Paulista de Estradas
de Ferro” nca, em 1916, o marco no futuro local da estação ferroviária
do município. Pouco depois, em 1922, é formado o “Patrimônio do Alto
Cafezal”. Em 1926, forma-se o “Patrimônio da Vila Barbosa” e em 1927 o
“Patrimônio Marília”. Em 1929, o município de Marília é ocializado ten-
do como data de aniversário 4 de Abril. Em 1933, Marília é designada uma
“Comarca”, sede do judiciário regional, com aproximadamente 13 mil ha-
bitantes (GUIDUGLI, 1980). Através desses dados, podemos pensar o
surgimento da cidade de Marília - imersa no cenário de expansão para o
Oeste - como um município ponta-de-trilho
9
demonstrando seu potencial
de crescimento econômico e social dentre as cidades vizinhas.
Porém, cabe salientar que o processo de municipalização não foi
tão simples como parece. Anal, o que ocorreu na prática foi a junção das
propriedades próximas, cando claro, até nos dias de hoje, que não foi
plenamente planejada. Esse aspecto ca claro se pensarmos a respeito das
vias públicas de acesso entre a parte de “cima” e a de “baixo” da cidade,
divididas aparentemente pela avenida principal Sampaio Vidal.
[...] Tem-se a impressão de que essas aglomerações são constituídas de
diversas células. Não derivam tais células de uma compartimentação do
relevo: a origem delas resultou da rivalidade, às vezes áspera, de vários
patrimônios. [...]... acabaram essas diferentes células por constituir um
conjunto urbano, mas no qual ainda se percebem traços da heteroge-
neidade original: uma rua mais larga serve de fronteira; mais ou menos
adiantada está a urbanização; e, sobretudo, os bairros operários proce-
dem das fundações mais recentes e distantes do centro comercial, el ao
primeiro patrimônio. Nada disso se afasta do contorno muito simples da
planta em forma de tabuleiro de xadrez. Nem são jamais muito aventu-
rosas as tentativas de quebrar a monotonia das ruas, que se cortam em
ângulos retos e não passam de variações sobre um tema, que por toda a
parte permanece extremamente perceptível. [...] As condições geográ-
9
Expressão que denominava as cidades que abrigavam a última (ou a primeira) estação de trem até onde os
caminhos da estrada de ferro se estendiam (MONBEIG, 1984).
164
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
cas não geram paisagens urbanas diferentes, nem são, na sua perfeita
igualdade, a fonte dos diferentes êxitos dos patrimônios. São os homens,
os únicos responsáveis pelos destinos desiguais de suas obras urbanas.
(MONBEIG, 1998, p. 344 - 346).
A fragilidade do planejamento da cidade também pode ser apon-
tada através do próprio surgimento do cinema em Marília em 1927
10
,
antecedendo sua própria fundação. O cinema foi trazido por Francisco
Rodrigues Souto e instalado originalmente na Rua Tamandaré que, mais
tarde, passou a chamar Rua Ceará, sendo conhecida atualmente como Ave-
nida 9 de Julho, local esse que deu início a esse novo espaço cultural.
Assim, o cinema esteve presente dentro do cotidiano das pessoas
que circulavam pela cidade, essa que estava a formar suas primeiras habi-
tações entre inúmeros estabelecimentos comerciais criados para fornecer
base para os viajantes que passavam por ela. Entre os anos de 1924 a 1928,
durante a formação dos patrimônios iniciais de Marília, dos “653 edifícios,
somente três eram casas exclusivamente de moradia; 650, locais de comér-
cio, dos quais 87 casas de tolerância.” (MONBEIG, 1998 p. 359).
Ao analisar Marília em sua conjuntura regional, podemos obser-
var um ponto em particular que indicaria o futuro próspero que estaria
reservado para a cidade: o aumento populacional, incentivado pela imigra-
ção de diversas nacionalidades, sobretudo a japonesa. Tais grupos vieram
atraídos pelo trabalho nas plantações de café e algodão da região, e também
daqueles ofertados pelos pontos de urbanização, como abastecimento de
água e pavimentação.
No nal da década de 1930, Marília já assumia ares de “capital
regional”, cujo processo de urbanização se mostrava bastante desenvol-
vido em relação à infraestrutura mínima, representada pela pavimenta-
ção de ruas centrais, abastecimento público de água e coleta de esgoto,
por exemplo. Já em 1934, passou a ser a “18ª cidade mais populosa do
Estado, e em 1939 a população total do município atingia ‘71.464’ ha-
bitantes sendo ‘18.098’ na parte urbana”. Em contrapartida, “Bauru ti-
nha população total de ‘45.852’ habitantes”, número inferior ao regis-
trado em Marília, “mas com mais moradores na parte urbana, ‘23.616’,
10
Dado coletado a partir de pesquisa nos registros históricos da cidade, localizado na sede da prefeitura.
165
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
sendo o município com o maior “índice de urbanização” da região.
(PEREIRA, 2005, p. 70 - 71).
Cabe aqui ressaltar que a cidade de Bauru foi fundada em agosto
de 1896 enquanto Marília somente em 1929, 33 anos mais tarde, e mes-
mo com esse diferencial, em pouco tempo consegue elevar seu número de
habitantes acima do índice de Bauru, cidade essa que, mais tarde, recebeu
a malha ferroviária tornando-se um ponto estratégico para o escoamento
da produção cafeeira do centro-oeste do Estado de São Paulo.
Durante a consolidação do município de Marília, pode-se ob-
servar um grande aumento na quantidade de salas de projeções, como o
Cine Municipal (1927), Cine popular (1929) fundado por Said Nunes
e Arquimedes Manhães, Teatro São Bento (1929), Cine Teatro São Luiz
(1930) fundado por Frediano Giometti. Em outras palavras, esses indícios
históricos demonstram o potencial de crescimento urbano e populacional
que havia em Marília, reetindo também em seus aspectos culturais, no
caso, o cinema e seus derivados, como estabelecimentos comerciais volta-
dos para a oferta de produtos cinematográcos que podiam ser encontra-
dos na Avenida São Luís.
O desenvolvimento cultural alavancado pelo cinema faz com que
em 12 de Outubro de 1952, seja fundado na cidade o primeiro e único Ci-
neclube (CCM) por um grupo de oito jovens - Roberto Caetano Cimino,
Alfeu Afonso, Sebastião Vieira Alves, Fausto Augusto Battistetti, Sérgio
Albeiro, Wilson Pinto, Miguel Marilio Saad e Luiz Felipe M. Filho - inte-
ressados no desenvolvimento cultural de Marília, cuja primeira exibição foi
o lme A dama de Shangai (1947).
O crescimento na quantidade de cinemas continuou em alta.
Entre as décadas de 1940 e 1960 é possível observar a existência do
Cine Marília (1941) fundado por Emílio Peduti, Cine Lácio que se
manteve funcionando até (1957) fundado por Guido Modelli, Cine
Juventude Católica fundado por Luiz Bicudo de Almeida, Cine Teatral
Peduti (1966) por Emílio Peduti (um dos últimos cinemas restantes até
os anos 2000) e, por m, o Cine Santo Antônio (1967) fundado pela
empresa Cerávolo.
166
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
A história do cinema mundial reserva um capítulo à parte ao cineclu-
bismo, prática social que surge poucos anos após o aparecimento do ci-
nematógrafo dos Lumière, em 1885. Os esforços para datar seu começo
apontam, como início ocial, o cineclube fundado pelo francês Louis
Delluc. (SILVA, 2008, p. 141).
Essa prática social está diretamente relacionada com um conheci-
mento mais profundo sobre o cinema e também sob um olhar diferenciado
em relação ao que está sendo visto. Dessa forma, o cinema expressa-se não
somente como um espaço de sociabilidade, entretenimento e mercado,
mas principalmente como uma linguagem artística de um propósito cul-
tural especíco. Em outras palavras, um lme pode ser visto e produzido
de maneira diferenciada, ao mesmo tempo em que cria uma comunicação
audiovisual com seu espectador, tornando possível um debate sobre técni-
cas de lmagem, temáticas diversicadas abordadas pelos longas e também
um modo de acesso cultural, isto é, a possibilidade de conhecer algo novo
e “de fora” através das narrativas de lmes e documentários.
No contexto urbano, o cinema oferece um espaço de maior socia-
bilidade entre seus frequentadores, seja como organizador ou participante
do evento. Durante toda sua trajetória, o cinema em Marília apresentou-se
como um dos pontos de encontro da cidade, ilustrando não só um espaço
de estudo, entretenimento e consumo, mas também um espaço de intera-
ção social. No caso dos cineclubes, esses passaram a realizar um papel de
sistema” de análise, debate e críticas às produções diferentemente de uma
leitura observada por espectadores menos atentos, criando assim certa tra-
dição dentro desses espaços.
Devemos salientar a importância do movimento que ocorria no
Brasil em relação ao cinema, a época denominada “Cinema Novo”. “Entre
os vários cinemas novos que se desenvolveram pelos anos 60, o brasileiro
foi um dos mais destacados, não só pela importância que teve internamente
como também pela repercussão internacional” (BERNARDET, 2006, p.
100). Nesse período, o cinema nacional passa a ter mais relevância, proje-
tando nomes como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos para além
do país, atraindo, por sua vez, olhares diversos para o cinema nacional que
passa a viver uma de suas fases mais renomadas.
Esse processo pode ser percebido pela mudança no público que
passou a frequentar os cinemas e a acompanhar lançamentos nacionais: se
167
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
antes as produções focavam-se na demanda popular pelas “chanchadas”,
esse movimento passou a atrair as classes mais elitizadas na sociedade.
Com o Cinema Novo, as elites – ou parte delas – passam a encontrar no
cinema uma força cultural que exprime suas inquietações políticas, es-
téticas, antropológicas. Externamente, o Cinema Novo permitiu que se
estabelecesse com outros países um diálogo cultural; é raro que isto ocor-
ra por parte de um país subdesenvolvido. Esse trabalho internacional do
Cinema Novo foi importante para sua receptividade interna. A elite, por
ser dependente dos centros culturais dos países industrializados, hesitava
em aceitar o Cinema Novo. A repercussão internacional dos lmes deu-
-lhe certa segurança. Se a Europa elogiava, é que algo de elogiável devia
haver. (BERNARDET, 2006, p. 101).
Esse contexto se mostrou propício para o lançamento de festivais
que marcaram não somente a história do cinema brasileiro, mas a sua pro-
jeção e reconhecimento estrangeiro: em decorrência da forte presença do
cinema, foram organizados, por parte do Cineclube, três grandes festivais
em Marília nos anos de 1960, 1967 e 1969 que contaram com a exibição
de lmes nacionais e a presença de grandes nomes desse meio artístico,
como diretores e atores.
Figura 3: Festival de Cinema 1966
O Festival de 1960 foi o Primeiro Festival de Cinema no Brasil
e sua repercussão atingiu a mídia internacional, acolheu grandes celebri-
dades do cinema nacional da época e antecedeu o Festival de Gramado
168
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
que teve início em 1973. Por esse motivo, foi criado o Prêmio Curumim,
primeiro prêmio nacional de cinema, realizado até 1985.
Tal evento tornou a cidade de Marília foco dos principais artistas
e diretores de lmes, um evento consagrado e de repercussão para o cinema
nacional, se vinculando também ao Jornal Curumim criado em meados de
1960, um pequeno informativo disponibilizado para toda a região sobre
os lmes que seriam exibidos e até mesmo os festivais que viriam a ocorrer.
O Prêmio Curumim concedia uma estatueta ao melhor diretor
avaliado entre os meses de julho a junho do ano anterior e a seleção era jul-
gada pelos membros do colegiado de diretores, associados e outras pessoas
da cidade de Marília. Sua criação teve forte repercussão mundial atraindo
o olhar da mídia internacional que se dirigiam a cidade para cobrir esse
evento. Foram premiados, por exemplo, os diretores dos lmes como A
hora e a vez de Augusto Matraga (1965) de Roberto Santos e O rei da noite
(1975) de Hector Babenco.
Apesar disso, com o desenvolvimento econômico e urbano che-
gando ao centro da cidade e a invenção da televisão, gradativamente o pú-
blico passa a se afastar dos cinemas, já que, muitas vezes, um dos motivos
de ida às salas de projeções se justicava pelo interesse em assistir notícias,
desenhos e lmes. Sem o seu público, gradativamente os cinemas de rua
começam a morrer: com o passar dos tempos, os cinemas que uma vez -
zeram parte das avenidas movimentadas e do cotidiano de vida das pessoas
mudam-se para dentro dos grandes centros comerciais, os shoppings ou
então fornecem espaço a áreas “melhor ocupadas”.
Os problemas enfrentados - como a marginalização do espaço
e sua deterioração - pelo cinema em Marília não se apresenta como um
caso isolado, já que esse movimento pode ser observado em outras cidades
brasileiras e também estrangeiras. Tal fato pode ser ilustrado pela cena do
lme Cinema Paradiso (1988) de Giuseppe Tornatore. O cinema que se
apresentava como ponto de referência da cidade, com sua marginalização
social, passou a exibir apenas lmes pornográcos e, posteriormente, veio
a fechar. Sua morte é consolidada pela demolição, cujo objetivo é fornecer
espaço para um estacionamento. A partir do diálogo entre Totó e o antigo
proprietário, podemos observar estes motivos que desencadearam o m
169
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
do Paradiso: “Quando o fechou?” pergunta Totó; em resposta, o proprie-
tário diz: “Em maio faz 6 anos. Ninguém mais vinha. Você sabe, a crise,
a televisão, o videocassete... Hoje o cinema é apenas um sonho. A cidade
o comprou, eles vão construir um estacionamento. No sábado eles vão
demoli-lo.
Estabelecendo uma análise comparativa entre esse trecho do l-
me e o cinema na cidade de Marília, podemos perceber a semelhança do
processo, pois sem os investimentos na manutenção necessária, suas salas
de projeções passaram a ser sucateadas, fechadas e/ou rebaixadas a pontos
urbanos marginalizados para reproduções pornográcas. Toda uma cons-
trução cultural elaborada em torno do cinema é substituída por memórias
e leves ruídos frente a uma modernização avassaladora que resignicou os
centros urbanos.
As ricas lembranças daqueles que viveram essa época se tornam
fragmentos escondidos de forma silenciosa nas antigas construções dos ci-
nemas que ainda estão pela cidade, ainda que modicadas e incorporadas
por outras empresas. Com o passar dos anos, essas novas construções con-
tribuem para que os antigos cinemas caem no esquecimento social, dando
espaço outras formas de sociabilidades representadas por estabelecimentos
bancários, religiosos e comerciais.
Apesar disso, na memória daqueles que tiveram seu cotidiano
inundado pelas inovações das salas de projeção, pelos festivais que promo-
veram a cidade e pelo espaço de sociabilidade hoje modicado, o cinema
ainda resiste. A busca das oralidades dos que zeram parte dessa história
é crucial para compreendermos o seu real signicado. Nesse sentido, Paul
Ricoeur em sua obra A memória, a história, o esquecimento elucida o papel
do testemunho dentro do tempo histórico.
O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo
das “coisas do passado” (praeterita), das condições de possibilidade ao
processo efetivo da operação historiográca. Com o testemunho inau-
gura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada,
passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental.
(RICOEUR, 2010, p. 170).
170
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
O salto que se dá das condições formais ao conteúdo das coisas
do passado como é colocado por Ricoeur se dá justamente por conta dessa
memória do vivido, a lembrança de quem esteve presente durante todo um
processo e é capaz de testemunhar e manter a versão independente do tem-
po, pois esse testemunho faz parte do vivido permeado pela subjetividade
do sujeito que possui tal memória.
Nos registros históricos da cidade, um espaço dentro da prefeitu-
ra onde documentos “ociais” da história da cidade são guardados é pos-
sível encontrar dois livros escritos por um morador que conta, através de
suas memórias, os acontecimentos da cidade a partir do desenvolvimento
do cinema. Nos registros, essas obras são indicadas como textos autorais
de quem vivenciou esse processo histórico na cidade de Marília através da
transformação de um testemunho em documento, para que a memória
impeça aquilo que a história quer esquecer.
conSiderAçõeS finAiS
A partir da importância conferida pelos sujeitos a personagens
e elementos históricos negligenciados na contemporaneidade, buscamos
apresentar outra(s) história(s). Sabemos que, assim como a história, a me-
mória é seletiva e guarda somente àquilo que lhe confere sentido e signi-
cado, possuindo, assim, seus próprios limites na abordagem histórica e
sociológica. No entanto, ainda que a representação do passado seja uma
tarefa difícil, realizá-la sem a leitura e escuta atenta de outros discursos é
negligenciar o próprio presente que se manifesta a partir das continuidades
e descontinuidades do passado. De forma breve, buscamos denotar a im-
portância do trabalho com a memória, assim como evidenciar suas relações
com outras categorias, como história, identidade e esquecimento.
Assim, por relacionar-se com grupos sociais especícos, a memó-
ria – coletiva e individual – fornece mobilidade e uidez entre o passado e
o presente, possibilitando o desnudamento de situações conitivas a partir
da análise dos discursos daqueles que são negligenciados intencionalmente
pelos jogos de poder entre os grupos. Reetir sobre a memória torna pos-
sível descortinar as relações sociais, estabelecendo uma releitura da própria
história a partir de diferentes sujeitos e, principalmente, outras lembranças.
171
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
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173
Sobre os Autores
prof. dr. luíS Antônio frAnciSco de SouzA (org.)
Cursou Graduação (1987) e Licenciatura (1994) em Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo. Cursou mestrado (1992) e Doutorado (1998)
em Sociologia na Universidade de São Paulo, com Estágio Sanduíche na
Universidade de Toronto, Canadá (1995-1996), sob supervisão de Robert
W. Shirley. Pesquisador na área de História da Polícia Civil, Processo Cri-
minal, Violência Policial, Controle Externo sobre a Polícia, Políticas de
Segurança Pública, Políticas Locais de Segurança, Violência e Direitos Hu-
manos. É Livre-Docente na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mes-
quita Filho”, Unesp, campus de Marília, atuando nos cursos de Graduação
em Ciências Sociais e no curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, no
nível de mestrado e de doutorado, tendo orientado várias dissertações de
mestrado, teses de doutorado e supervisões de pós-doutorado.
profA. drA. lAyS mAtiAS mAzoti corrêA (org.)
Docente assistente da Universidade Federal de Viçosa, campus de Rio Pa-
ranaíba-MG. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadu-
al Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Marília-SP. Mestre em
História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE,
campus de Marechal Cândido Rondon-PR. Possui graduação em Histó-
ria-Licenciatura na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus
de Três Lagoas-MS, UFMS/ CPTL. Na área de pesquisa tem atuado na
reexão sobre o rural brasileiro a partir das articulações entre História,
Sociologia e Antropologia no estudo das culturas populares e expressões
artísticas, como literatura, música e cinema.
174
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
prof. dr. frAnciSco luiz corSi
Possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo (1984),
graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1984),
mestrado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campi-
nas (1991), doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (1997) e pós-doutorado pelo Instituto de Economia da Univer-
sidade Estadual de Campinas (2011). Atualmente é Professor Assistente
Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem
experiência na área de Economia, com ênfase em História Econômica.
Atua principalmente nos seguintes temas: Estado Novo, Política Externa,
Nacionalismo, Projeto Nacional, Economia Brasileira.
profA. drA. thAíS bAttibugli
Possui Graduação em História - Unicamp (1996); Graduação Tecnológica
em Gestão Pública - FGV (2016), Mestrado em História Social - USP
(2000); Doutorado em Ciência Política - USP (2007). É Coordenadora do
curso de pós-graduação em Gestão Pública Municipal do Centro Univer-
sitário Campo Limpo Paulista (UniFaccamp). Atualmente é pesquisadora
do Observatório de Segurança Pública (OSP) da UNESP/Marília (2014),
na área de políticas públicas de segurança. Fez curso de extensão em Gestão
e Avaliação de Políticas Públicas - FGV (2012); é professora do curso de
Direito do Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta), da Uni-
Faccamp; da Faculdade de Paulínia (FACP); e do curso de História da Fac-
camp. Foi pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP
– 2001-2007). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase
em Gestão Pública, Segurança Pública. Atua principalmente nos seguintes
temas: democracia, segurança pública, políticas públicas e políticas sociais.
profA. drA. luAnA de cArvAlho SilvA guSSo
Professora do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito e do Mes-
trado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille. É Pós-Doutora em
Direito pela Universidade de Coimbra na área de Democracia e Direitos
Humanos (2013), com Mestrado (2008) e Doutorado em Direito do Es-
175
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
tado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Fede-
ral do Paraná (2012). Pesquisadora com experiência nas áreas de Direitos
Culturais, Direito Penal, Criminologia, História do Direito, Patrimônio
Cultural e Direitos Humanos, com foco no estudo do Controle Social e
Violência, da Cultura e da Memória . É graduada em Direito pela Ponti-
fícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) (2005) e em Psicologia
pela Universidade Federal do Paraná (2005). Especialista em Direito Penal
e em Criminologia pelo ICPC - UFPR (2006). Advogada.
prof. dr. egor vASco borgeS
Possui graduação em Ciências Criminais pela Academia de Ciencias Poli-
ciais (2007), mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulis-
ta Júlio de Mesquita Filho (2012) e doutorado em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2017). Tem expe-
riência na área de Direito, Sociologia com ênfase para pesquisas interdis-
ciplinares entre direito e sociologia atuando principalmente nos seguintes
temas: Instituições, pensamento social, politicas publicas, Africa, racismo
e xenofobia.
profA. meStrA michelle mAriAno cArleSSo
Possui graduação em Letras pela Universidade Paulista (2013), graduação
em Filosoa pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2011) e mestra-
do em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de
Mato Grosso (2014). Atualmente, cursa doutorado em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
campus de Marília-SP.
prof. meStre frAnz ArnAldo cezArinho
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista(UNESP).
Graduação em Ciências Sociais (bacharelado) pela Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB).
176
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
profA. drA. zuleikA de AndrAde câmArA pinheiro
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista UNESP/
Marília, mestre em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Vi-
çosa - UFV (2009), Graduada em Economia Doméstica pela Universidade
Federal do Ceará - UFC (2003). Atualmente é pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Cultura & Gênero / Laboratório Interdisciplinar de Estudos de
Gênero - LIEG / UNESP / Marília. Temas de pesquisas e estudos: Gênero,
Masculinidades, Sexualidade, Feminismos, Mulheres, Pessoas em situação
de rua, Saúde Pública, Políticas Públicas.
profA. meStrA cAmilA rodrigueS dA SilvA
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista,
Campus de Marília. Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Esta-
dual Paulista, Campus de Marília (2016). É pesquisadora do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG/UNESP), membro do Gru-
po de Pesquisa Cultura e Gênero e membro do Grupo de Estudos Mun-
do Contemporâneo (GEMUC/UNESP). Graduada em Ciências Sociais
– Bacharel pela Universidade Estadual Paulista campus de Marília (2013)
e Licenciada em Ciências Sociais pela mesma instituição (2012). Tem ex-
periência na área de Sociologia e Antropologia com ênfase em Relações de
Gênero, Feminismos, Violência contra a mulher.
prof. meStre felipe André pAdilhA
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universi-
dade Federal de São Carlos (PPGS-UFSCar), na linha de pesquisa Cultura,
Diferenças e Desigualdades. Mestre em Sociologia (PPGS-UFSCar/2015)
e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina
(2011). Tem experiência nas áreas de Sociologia e Antropologia e pesquisa
os seguintes temas: sociologia digital, tecnologias da informação e da co-
municação (TICs), mídias digitais, internet, serviços comerciais de busca
de parceiros, gênero e sexualidade, cultura e diferenças, estudos queer, es-
tudos culturais, etnograa e etnograa digital. É membro da Association of
Internet Researchers (AoIR), pesquisador associado ao Núcleo de Estudos
em Ambiente, Cultura e Tecnologia (NAMCULT).
177
Dilemas da sociedade brasileira contemporânea
profA. drA. lArA robertA rodrigueS fAcioli
Graduada e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho. Concluiu o mestrado na Universidade
Federal de São Carlos na linha de pesquisa Cultura, Diferenças e Desi-
gualdades sob orientação do professor Richard Miskolci. O título da dis-
sertação, nanciada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) é: Conectadas: uma análise de práticas de ajuda mú-
tua feminina na era das Mídias Digitais. É doutora também pela UFSCar
onde estudou o uso das mídias digitais pelas mulheres das classes popu-
lares brasileiras. Seus temas de pesquisa, atuação e interesse são: gênero,
sexualidade, subjetividades, diferenças, mídias digitais, educação, educa-
ção e diferenças. Atualmente realiza Estágio Pós-doutoral no Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina
(UEL) e é integrante do Grupo de Pesquisa Gênero, Direitos Humanos e
Políticas Públicas (CNPq). Também coordena, em parceria, o SPG Mídias
digitais, subjetividades e diferenças no evento anual da Associação Nacio-
nal de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).
profA. meStrA juliAnA lAriSSA de lAet gomeS
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Univer-
sidade Estadual Paulista - Campus de Marília. Bacharel em Relações In-
ternacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2010). Pesquisa as mídias digitais e os meios de comunicação no espaço
urbano.
profA. meStrA kéSiA mAriA mAximiAno de melo
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional
da Universidade Federal de São Carlos. Mestre pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”; - Campus Marília (2016). Possui graduação em Terapia
Ocupacional pela Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas
- UNCISAL (2011). Faz parte do Grupo de Pesquisa: Transgressões - Gê-
nero, Sexualidades, Corpos e Mídias contemporâneas, da UNESP - Bau-
ru; e do Grupo METUIA. Atualmente, desenvolve pesquisa acerca dos
seguintes temas: Gênero, Sexualidade, Travestilidades, Mídias Digitais,
Teoria Queer.
178
Luís Antônio Francisco de Souza e Lays Matias Mazoti Corrêa | Org.
prof. meStre thiAgo henrique de AlmeidA biSpo
Mestre em Ciências Sociais pela UNESP - Universidade Estadual Paulista
“Julio de Mesquita Filho”, Licenciado em Sociologia pela UNESP - Uni-
versidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, possui pesquisas na
área de Memória, Religião e Atualidades. Bolsista PROEX (Pró-Reitoria
de Extensão Universitária) no período de 2009/2011, desenvolvendo o-
cinas de percepções musicais, cinema e trilha sonora com os/as alunos/as
matriculada na Universidade Aberta a Terceira Idade (UNATI) Melhor
projeto de Iniciação Cientíca da área de humanidades no XXIV Congres-
so de Iniciação Cientíca da Unesp Fase I Marília ano de 2012 9º melhor
trabalho na área de Humanidades no XXV Congresso de Iniciação Cien-
tíca da Unesp ano de 2013. Atual estudante do curso de pós-graduação,
mestrado, pela UNESP - campus Marília.
Catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
Normalização
Sonia Faustino do Nascimento
Revisão
Lays Matias Mazoti Corrêa
Egor Vasco Borges
Franz Arnaldo Cezarinho
Capa e Diagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção Gráca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
Assessoria Técnica
Maria Rosangela de Oliveira
CRB - 8/4073
Renato Geraldi
Ocina Universitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
2018
Impressão e acabamento
Gráca e Editora Shinohara
Marília - SP
Formato
16X23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento
Grampeado e colado
Tiragem
300
Sobre o livro