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Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
O argumento é circular e se baseia em uma conclusão lógica a
partir da premissa da existência das dignidades de Deus, tema comum às
três religiões monoteístas. O tártaro não entende muito bem e pensa que
Blaquerna, com suas “metáforas e exemplos”, está dizendo que existe maté-
ria em Deus. Blaquerna então oferece outra analogia: a da água e da terra,
e então o tártaro ca convencido de que existe Deus.
Para reforçar essa convicção, Blaquerna apresenta três argumen-
tos que considera denitivos para a existência de Deus: 1) se Deus não
existisse, o intelectivo e o inteligível seriam maiores na razão humana do que
na realidade; 2) se Deus não existisse, o intelectivo seria maior na realidade
que o inteligível, e 3) se Deus não existe, o inteligível é maior que o inte-
lectivo. Os argumentos têm uma clara liação ao pensamento anselmiano
(isto é, de que o fato de entender o que se pensa é uma realidade mental
que faz com que o pensado exista fora do pensamento
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).
A seguir, convencido da existência de Deus, o tártaro pede a
Blaquerna que demonstre que só existe um Deus, não vários. Novamente
o eremita apresenta três argumentos: 1) a existência de muitos deuses
impossibilita que em todos esses deuses haja a mesma innitude das dig-
nidades (innitude da Bondade, da Grandeza, etc.) – em outras palavras,
não é possível que vários deuses sejam iguais em essência; 2) se houvesse
muitos deuses, nenhum deles seria o sumo m; haveria muitos sumos
ns, todos necessariamente nitos, o que é impossível; 3) a pluralidade
de deuses não é apetecível para a razão humana, se acima dessa pluralida-
de há um m sumo.
O trecho do Proslógio é esse: “Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba, o
que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o que cremos. E certamente cremos que
Tu és algo maior do qual nada mais pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza, como quando diz o
insipiente em seu coração ‘não existe Deus’? No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer ‘algo
maior do qual nada pode ser cogitado’, entende o que ouve, e o que entende está em seu intelecto, embora
não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe.
Porque quando o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda
não entende que exista o que ainda não fez. Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o
que fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelecto, existe algo maior do qual nada
pode ser cogitado, porque, quando ouve isso, entende e, tudo o que se entende, está no intelecto. No entanto,
aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir somente no intelecto, pois se só existe no
intelecto, pode pensar-se algo que seja maior e que também exista na realidade. Assim, se aquilo maior do
qual nada pode ser cogitado só existe no intelecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-
se-ia o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo. Portanto, existe, sem dúvida, algo
maior do qual nada pode ser cogitado, tanto no intelecto quanto na realidade.” (II, grifos nossos).