CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Rafael Salatini
Laércio Fidelis Dias
(Org.)
VOL. II
paz e tolerância
Reflees
sobre a paz
C A P E S
A
N
I
C
I
F
O
Á
R
I
T
I
S
A
R
E
V
I
N
U
Reflexões
Sobre a Paz
Vol. II
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2018
R
S  P
V. II
  
R S
L F D
(O)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
Prof. Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Andrey Ivanov
Célia Maria Giacheti
Claudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
CAPES, Processo PAEP Nº 127042/2017-00
CNPq, Processo Nº 441407/2016-1
Copyright © 2018, Faculdade de Filosoa e Ciências
332 Reexões sobre a paz : volume 2 / Rafael Salatini, Laércio Fidélis Dias (org.). – Marília :
Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2018.
258 p. : il.
Inclui bibliograa
Financiamento CAPES, CNPq
ISBN 978-85-7983-986-3 (Impresso)
ISBN 978-85-7983-987-0 (Digital)
1. Paz. 2. Justiça. 3. Ética. 4. Guerra. 5. Ciencia política – Filosoa. 6. Relações
internacionais. I. Salatini, Rafael. II. Dias, Laércio Fidélis.
CDD 172.42
DOI:
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7983-987-0
S
Prefácio
Teólo Marcelo de Arêa Leão Júnior ----------------------------------------- 7
Apresentação
Rafael Salatini; Laércio Fidelis Dias ---------------------------------------- 11
PARTE 1
REflExõEs sobRE A PAz
O gozo etílico, sexual e gastronômico requer a paz na comédia
de Aristófanes
Cristina de Souza Agostini ---------------------------------------------------- 17
Pesquisas para a paz e o ativismo da cultura da paz
Vanessa Braga Matijascic ------------------------------------------------------ 37
Eurocentrismo, hierarquias e colonialidade nas Relações
Internacionais: “A paz que eu não quero conservar”
Karine de Souza Silva; Gustavo Henrique S. Bodenmüller ---------------- 55
Caminhos do humanismo e a necessária construção de um novo
paradigma de paz dentro do problema da paz anglofônica que está
entre a paz britânica e a paz americana
Ivanaldo Santos; Lafayette Pozzoli ------------------------------------------- 77
A promoção da paz através do bem-estar social e da fraternidade
Heloísa Helena Silva Pancotti; Fábio Luís Binati;
Larissa Fatima Russo Françozo ----------------------------------------------- 99
PARTE 2
REflExõEs sobRE A TolERânciA
Ramon Llull (1232–1316) foi o lósofo da tolerância na
Idade Média? O Livro do Tártaro e o Cristão (1288)
Ricardo da Costa --------------------------------------------------------------- 119
Conitos religiosos nas sociedades democráticas, direitos humanos
e a tolerância como condutora à paz social
Raphaella Cinquetti Vilarrubia; Roberto da Freiria Estevão -------------- 139
Antropologia e usos devidos e indevidos do relativismo cultural e
da tolerância
Laércio Fidelis Dias ------------------------------------------------------------ 163
A tolerância sob o viés da pessoa com deciência
Gislaene Martins de Menezes ------------------------------------------------- 175
Batalhas da guerra cultural
José Carlos Zamboni ----------------------------------------------------------- 191
Direitos culturais, universalismo e movimentos sociais: O futuro
dos direitos humanos
José Geraldo Alberto Bertoncini Poker ---------------------------------------- 217
Amparo jurídico e legislativo sobre a devastação da fauna e
impactos diretos e indiretos no meio ambiente e na qualidade de vida:
O caso da rinha
Flávia Carrijo Nunes ---------------------------------------------------------- 237
Sobre os Autores --------------------------------------------------------------- 253
7
P
Ao ser convidado para prefaciar o livro Reexões sobre a paz, vol.
II, além de sentir-me feliz por haver sido lembrado, pude aquiescer por
me anar com a temática e ser dotado de recursos para contribuir para
maior visibilidade ao texto, objeto de minhas pesquisas. O livro, coorde-
nado pelos ilustres colegas e doutores Rafael Salatini e Laércio Fidelis Dias,
apresenta qualidades que me é dado indicar.
Para mim, foi ao mesmo tempo desao e honra. Logo no início,
a indagação a que fui conduzido a formular chegou-me com muita perple-
xidade diante de se me agurar impossível aos autores dar cabo da missão
por serem prossionais de diferentes campos do conhecimento e também
em face do escopo de acicatar o leitor a reetir em redor da plataforma
básica para o giro dos pensamentos: a paz.
No entanto, chegaram ao resultado esperado, em obediência
àquilo que se propuseram, não só porque são experts em suas respectivas
áreas, mas principalmente pelo fato de as reexões deles contarem com
doutrinadores consagrados e muito bem escolhidos para aquilo que se pro-
puseram abordar, apontado rumos que entenderam adequados, os quais
trouxeram conhecimentos e, amiúde, sensibilizam com boas emoções e,
ainda – não deixo sem menção –, com visível altruísmo.
Bem por isso meus efusivos cumprimentos aos coordenadores e
aos diversos autores.
8
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Ao sobrevoar panoramicamente a obra, vejo que se defende, na
comédia de Aristófanes, ser a paz pressuposto necessário do gozo alcoólico,
gastronômico e da sexualidade humana. Já no subtítulo, convida-se à leitu-
ra, e por ser vedado ao prefaciador revelar tudo da cativante leitura que fez,
ao menos tem a dizer que é instigante a tentativa de desvendar se a autora
logrou êxito em resgatar o teatro ático em sua essência atual, e o quanto de
ilação se pode extrair de Aristófanes, que escreveu sua obra cômica durante
a guerra do Peloponeso, em se comparando hoje o que ele extraiu e deve
ter sentido naquela época com os fatos e emoções das guerras atuais, tais
como aquilo que se vericou nas duas últimas dadas como “grandes”, com
o to de se extrapolar na extensão e profundidade de perdas humanas,
patrimoniais e de saúde física, mental e espiritual, ante sua constatação,
não obstante óbvia, de evidente dramaticidade: “o contexto belicoso inter-
rompe a vida”.
Também será edicante ao leitor consciente e dotado de luz pró-
pria, comparar o embate de suas próprias representações, ideias e senti-
mentos sobre o que é, como é ou como deve ser a tolerância, em face das
reexões sobre a tolerância defendidas por Ramon Llull (1232-1316), tal-
vez o lósofo da tolerância na Idade Média – O Livro do Tártaro e O Cristão
– e as do próprio autor do artigo; bem assim quanto aos conitos religiosos
nas sociedades democráticas, direitos humanos e a tolerância como condu-
tora à paz social, tema bem cuidado pelo labor de dois autores. Também
sobre a antropologia e usos devidos e indevidos do relativismo cultural e da
tolerância; ainda no que diz respeito à tolerância sob o viés da pessoa com
deciência, e quanto às batalhas da guerra cultural.
Trata-se, caro leitor, de proposta sedutora em que poder-se-á
passear pelas impressões e observações de pessoas altamente qualicadas,
quanto as quais ainda certamente voltarei para novas e mais profundas
abluções e imersões, a m de desfrutar nos detalhes de tantas outras sensa-
ções emotivas e culturais.
Não para nisso meu deslumbre, já que pude contar, como o lei-
tor também contará, com pesquisas para a paz e o ativismo da cultura
da paz, cujo anseio por esse signicativo bem abstrato foi abordado na
história da humanidade por narrativas de cunho religioso, surgindo então
o termo “pacismo”, usado pela primeira vez como palavra para designar
9
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
aqueles que perseguiram um conjunto de ideias ao redor da busca pela paz
no Congresso Universal da Paz, em 1889, em Paris, com pontos de vista
apaixonantes e excelentemente defendidos pela autora, os quais ensejam
as condições ideais ao equilíbrio, à manutenção, ao aprimoramento e ao
progresso da coletividade. Tem-se em Galtung a possibilidade de duas con-
dições conjunturais de mundo: “guerra geral e completa”, que presume o
resgate do estado de natureza hobbesiano, e “paz geral e com pleta”, que
faz alusão a plena integração da sociedade. Mas a solução, para si e quiçá
utilização para aquilo que lhe agradar, há de ser encontrada pessoalmente
pelo leitor.
A leitura da obra provocou em mim algumas intuições para serem
utilizadas em debates com alunos, professores e pesquisadores interessa-
dos, no Grupo de Pesquisa de Direitos Fundamentais Sociais, cadastrado no
CNPq, no qual lidero no Univem, juntamente o Dr. Roberto da Freiria
Estevão, as quais passo a mencionar:
1. O que o Curso de Direito do Univem ou de outra IES pode
fazer para ajudar a Educação para a Paz da Organização
das Nações Unidas para a Ciência, Cultura e Educação
(UNESCO)?
2. Admitindo-se como verdadeira a hipótese de que pouco pode
ser alcançado a partir de uma perspectiva teórica, quais as
mudanças práticas profundas, sem o uso da violência, a m
de incrementar a proposta para consolidar um novo processo
em busca da paz?
3. Podem ser criadas ou incrementadas ferramentas com o esco-
po de diminuir a desigualdade e disparidades de oportunida-
des oferecidas para incentivar a busca da paz?
4. Quais as causas e possíveis soluções para a crise da paz na
sociedade contemporânea?
5. Será viável um projeto de paz para o século XXI que leve em
conta as aspirações das grandes nações ao redor do mundo?
6. O que se impõe para a democratização, e em que proporções,
para a construção da paz em face dos organismos multilaterais?
10
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
7. Diante da perspectiva de omas S. Kuhn, segundo a qual,
nas revoluções, despontam elementos de ruptura, de quebra
com a tradição, qual é a utilidade dos complementos de de-
sintegração diante do que até então aparecera como de tradi-
ção inabalável?
8. Quais as virtudes e defeitos do modelo de paradigma da paz
que tem em vista a integração espiritual-poético e política
presente nas obras de pensadores como Santo Agostinho e
Tomás de Aquino?
9. É viável e sem contradições internas o modelo de paradigma
da paz que mira para a paz perpétua, o qual foi desenvolvido
por Immanuel Kant no século XVIII?
10. Para discussões ou diálogos referentes a divergências e in-
congruências possíveis de pontos e contrapontos, questio-
nar-se-á aquilo que se possa agurar liberal ou despótico e
racionalmente aceitável, com opção de invocar-se ou não a
misericórdia, ou se, por ser dogma de fé estabelecido, deva
ser peremptoriamente vedada qualquer discussão do Credo
de Atanásio, na medida em que busca concitar o cristão à
crença e impõe-lhe deveres de obediência integral, com vene-
ração a um só Deus na Trindade e a Trindade na unidade, e
considera uma a Pessoa do Pai, outra a do Filho, e outra a do
Espírito Santo, sob pena de o desobediente perecer por toda
a Eternidade.
Enm, congratulo tanto com os coordenadores como com os au-
tores pelo desempenho e modo edicante em que todos se dedicaram ao
profícuo projeto cientíco, quanto ao qual enxergo a probabilidade devir a
ter boa aceitação dentro e fora do mundo acadêmico.
Prof. Teólo Marcelo de Arêa Leão Júnior
11
A
Na área de pesquisa cientíco-acadêmica em Relações
Internacionais, o tema da “paz” enquanto fenômeno cientíco tem recebi-
do pouca atenção por parte dos(as) pesquisadores(as) e estudiosos(as) bra-
sileiros(as), em comparação com o antitético tema da “guerra”. Em parte,
tal assimetria pode ser explicada pelo predomínio nessa área de estudos de
correntes teóricas – como o realismo, o neo-realismo, a interdependência
complexa, a teoria do imperialismo, etc. – que privilegiam o estudo deste
fenômeno em detrimento daquele.
Não obstante, o tema da “paz” pode ser igualmente descrito como
um dos temas mais importantes dos estudos internacionais, com uma tra-
dição bastante extensa de estudiosos, que vão desde os pensadores clássicos
como Saint-Pierre, Rousseau, Kant, etc. até pensadores contemporâneos como
Kelsen, Galtung, Bobbio, Bouthoul, Rawls, etc. O tema da “paz” está igual-
mente presente em importantíssimos documentos internacionais, como o
Tratado Briand-Kellog (1928), a Carta do Atlântico (1941), a Carta das Nações
Unidas (1945), o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947), a car-
ta encíclica católica Pacem in terris (1963), a Carta da Organização dos Estados
Americanos (1967), entre outros documentnos internacionais
O mesmo se pode armar sobre o tema da “tolerância”, pre-
sente substantivamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem
(1948), na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948),
12
na Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial (1963), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis
e Políticos (1966), na Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969),
entre outros documentos internacionais, em especial a Declaração de
Princípios sobre a Tolerância (1995), que arma o seguinte: “A tolerância é
o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas
de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de
exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conheci-
mento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento,
de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só
é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurí-
dica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para
substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz” (art. 1º, 1.1).
Dessa forma, mesmo sem entrar em discussões morais, pode-se
dizer que os temas da “paz” e da “tolerância”, enquanto fenômenos con-
temporâneos, são tão importantes e ancorados na tradição intelectual oci-
dental quanto outros fenômenos que recebem maior esforço de reexão
acadêmico-cientíca, em especial o fenômeno da “guerra”.
Em vista da pouca atenção que os temas da “paz” e da “tolerância
têm recebido na área de pesquisa cientíco-acadêmica no Brasil, a obra
organizada Reexões sobre a paz, vol. II – Paz e tolerância possui os seguintes
objetivos: (1) reunir pesquisadores(as) cientícos(as) que trabalham espe-
cialmente com os temas da “paz” e da “tolerância” em diversas disciplinas
acadêmicas diferentes, (2) promover o debate cientíco-acadêmico em tor-
no dos temas da “paz” e da “tolerância”, (3) fomentar o interesse e a pes-
quisa cientíco-acadêmicos em torno dos temas da “paz” e da “tolerância” e
(4) fomentar entre os(as) leitores(as) a sensibilidade para os temas da “paz
e da “tolerância”.
A presente obra foi organizada a partir do evento acadêmico-
-cientíco “III Encontro de Reexões sobre a Paz – Paz e Tolerância”, rea-
lizado entre 17 e 19 de abril de 2017, na Faculdade de Filosoa e Ciências
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (campus de
Marília), sob organização de Dr. Rafael Salatini (Unesp-Marília), com a
colaboração de Dr. Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília). O evento con-
sistiu na sequência do “I Encontro Reexões sobre a Paz”, ocorrido em
2012, e do “II Encontro Reexões sobre a Paz”, ocorrido em 2014, ambos
13
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
promovidos pelo grupo de estudos “PACTO – Paz, Cultura e Tolerância” e
ocorridos na mesma instituição de ensino superior, sob organização de Dr.
Rafael Salatini (Unesp-Marília).
O evento, em sua terceira edição, tradicionalmente, recebe pes-
quisadores(as) nacionais e internacionais de diversas áreas do conhecimen-
to acadêmico dedicados(as) ao tema da “paz” e da “cultura de paz” (que
inclui temas correlatos, como a tolerância, o cosmopolitismo, a cultura,
etc.). Em 2015, o evento deu origem ao livro Reexões sobre a paz (disponí-
vel em http://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/reexoes-sobre-a-
-paz.pdf), organizado igualmente por Dr. Rafael Salatini (Unesp-Marília),
o qual pode ser considerado um dos poucos livros nacionais dedicados
integralmente ao assunto em nível acadêmico. A presente obra possui o
interesse em dar sequência a esse trabalho, que possui grande importância
para a academia brasileira, para diversas áreas do conhecimento acadêmi-
co, com o objetivo de matizar a visão belicista e promover a visão pacista
tanto das relações internacionais quanto da sociedade como um todo, pre-
zando pela profundidade, pela seriedade, pela qualidade e pela especici-
dade concernentemente ao tema da “paz” e da “cultura de paz”.
A presente obra conta com contribuições dos(as) pesquisado-
res(as) de diversas instituições de ensino superior que participaram do “III
Encontro de Reexões sobre a Paz – Paz e Tolerância”, incluindo, na pri-
meira parte, Dra. Cristina de Souza Agostini (USJT), Dra. Vanessa Braga
Matijascic (UNIFESP / FAAP), Dra. Karine de Souza Silva (UFSC) – que
escreveu conjuntamente com Gustavo Henrique de Souza Bodenmüller –,
além de autores(as) convidados(as), incluindo Dr. Ivanaldo Santos (UERN)
e Dr. Lafayette Pozzoli (Univem, PUC/SP) e os(as) mestrandos(as) Heloísa
Helena Silva Pancotti (Univem), Fábio Luís Binati (Univem) e Larissa Fatima
Russo Françozo (Univem), que escreveram os textos sobre o tema da “paz”.
Na segunda parte, são incluindo, entre os participantes do even-
to, Dr. Ricardo da Costa (UFES), Dr. Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília)
e Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker (Unesp-Marília), além igual-
mente de autores(as) convidados(as), incluindo Dr. José Carlos Zamboni
(Unesp-Assis), a mestranda Gislaene Martins de Menezes (Univem),
Raphaella Cinquetti Vilarrubia (Univem) e Dr. Roberto da Freiria Estevão
(Univem) e a mestranda Flávia Carrijo Nunes (Univem), que escreveram
os textos sobre o tema da “tolerância”.
14
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Os(As) prossionais envolvidos(as) na obra são todos(as) pesqui-
sadores(as) acadêmico-cientícos(as) dos temas da “paz” e da “tolerância”,
distribuídos(as) em áreas distintas de formação e atuação acadêmica, como
a Ciência Política, a Antropologia, a Sociologia, a Filosoa, a História, o
Direito e as Relações Internacionais, conformando uma obra de reexão
verdadeiramente multidisciplinar sobre os temas em questão.
É preciso registrar ainda que o evento supracitado contou com a
participação, em sua Comissão Cientíca, de Dr. Rafael Salatini (Unesp-
Marília), Dr. Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília), Dra. Cristina de Souza
Agostini (USJT) e Dr. José Blanes Sala (UFABC), assim como, em sua
Comissão Organizadora, de Dr. Rafael Salatini (Unesp-Marília), Dr.
Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília) e Dra. Cristina de Souza Agostini
(USJT). Contou também com o apoio institucional do CCRI (Unesp-
Marília), do Escritório de Pesquisa (Unesp-Marília), do STAEPE (Unesp-
Marília), do PET-RI (Unesp-Marília) e do Laboratório Editorial (Unesp-
Marília) e igualmente com o apoio nanceiro da Fapesp, da CAPES e do
CNPq, que se estenderam ao livro, aos quais agradecemos grandemente
por todo empenho, dedicação e espírito público.
Por m, gostaríamos de agradecer aos(às) técnicos(as) adminis-
trativos(as) da Unesp-Marília Tiago Silveira Motta (STAEPE), Adilson
Scorsafava Júnior (STAEPE), Gabriely Bernardes Cortesini (estagiária de
webdesign do STAEPE), Eder Ludovico de Matos (Escritório de Pesquisa),
Renato Geraldi (Laboratório Editorial) e Gláucio Rogério de Morais
(Laboratório Editorial), além da doutoranda Michelle Carlesso Mariano
(Unesp-Marília), por todo apoio dedicado ao evento e ao livro, sem os
quais nossos trabalhos não teriam rendido os devidos frutos que ora se
apresentam a um público maior que aquele inicialmente presente no even-
to supra citado.
Dr. Rafael Salatini
Dr. Laércio Fidelis Dias
(organizadores)
PARTE 
R   
17
O  ,   
      A
Cristina de Souza Agostini
Elaborar um artigo sobre a comédia de Aristófanes a partir de
uma conferência proferida em um evento para um curso de Relações
Internacionais signica recuperar o teatro Ático em sua essência atual. De
fato, a maior parte das peças aristofânicas foi escrita durante os desdobra-
mentos da longuíssima Guerra do Peloponeso e os acontecimentos que se
desenrolaram ao longo de 27 anos de investidas bélicas serviram de mote
para os enredos de Aristófanes.
Nesse sentido, estudar o teatro grego e, mais especicamente, o
gênero cômico, ao qual Aristófanes se lia, enfocando apenas os aspectos
formais do drama e os dados historiográcos da época da composição é
fundamental para uma boa compreensão das peças, para que uma tessitura
hermenêutica seja desenhada e possibilite ao intérprete erudito a concep-
ção de uma rede interpretativa genuína, capaz de disponibilizar aos não
eruditos bases importantes para a apreensão da performance teatral como
central na constituição do teatro e das artimanhas da política ocidental até
os dias de hoje. No entanto, compreender a comédia aristofânica somente
como produto de um determinado contexto belicoso, econômico, social e
político que se torna a referência primordial para o acesso à peça teatral,
18
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
é enclausurar a arte em um sótão nebuloso e empoeirado. Com efeito, as
comédias de Aristófanes se valem do cotidiano, bem como de cidadãos
amplamente conhecidos no século V.a.C que foram feitos personagens cô-
micos: daí, então, a relevância do conhecimento do contexto histórico da
composição das peças. Todavia, o teatro não para aí: ele não imita a vida,
nem é a representação de fatos reais. A comédia de Aristófanes transforma
e literalmente traveste determinados acontecimentos que realmente acon-
teceram não apenas com nova roupagem, mas com uma nova identidade
que comporá o surgimento de um novo caráter. Assim como a transexua-
lidade não deve ser vislumbrada como uma mudança de gênero repentina,
mas enquanto o resgate da efetiva identidade do transexual, a apropriação
aristofânica do cotidiano, nele inscreve a identidade da comédia: celebrar
a fertilidade e, portanto, o gozo sexual que só pode ser vivenciado em um
lugar coroado pela Paz.
Desse modo, apresentar uma conferência sobre Aristófanes em
um evento de Relações Internacionais cujo tema é a paz, signica recobrar
ao comediógrafo sua identidade de gênero teatral. A comédia enquanto
gênero, assim como a tragédia, tem suas especicidades que a identicam.
Dioniso, o patrono do teatro, divindade celebrada nos concursos cômi-
cos, tem seu nome atrelado ao vinho, ao travestimento e à sexualidade
adulta. Na medida em que os concursos trágicos e cômicos estão inseridos
em festivais que demarcam períodos de plantio e colheita de uvas, bem
como de sua pisa, maturação e prova de vinho, nos é possível dizer que o
culto ao deus é, ao mesmo tempo, a celebração da fertilidade do solo que
provê o alimento essencial para a manutenção da vida humana em terra.
Celebrar Dioniso é celebrar a possibilidade da vida que goza. A bebida,
a comida e o sexo são prazeres que quando se encontram disponíveis aos
humanos, tornam suas vidas mais queridas, providas de maior elã vital.
Os prazeres gastronômicos e etílicos são, por um lado, deleites, mas, por
outro lado, são condição de possibilidade para a existência dos mortais do
mesmo modo que o sexo: este é a única maneira de reproduzir a vida hu-
mana. Nesse sentido, comida, bebida e sexo como elementos constituintes
do gênero cômico sinalizam para a sua identidade essencial dionisíaca: a
celebração da vida.
19
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
O contexto belicoso interrompe a vida. Em tempos de guerra, há
escassez de comida e de bebida e a geração de novas proles é interrompida
pelo medo em relação ao futuro dessa infância já destinada a não ter futu-
ro. O cenário guerreiro é sangrento, famélico e estéril. Ele traz à tona a vul-
nerabilidade diária da vida frente à violência engendrada por homens tão
mortais quanto àqueles que são subjugados pela força armada respaldada
pelo desejo de poder que se concretiza na conquista de territórios e de seres
humanos aptos a responder às necessidades da manutenção da dominação.
Pensar a guerra, escrever sobre a guerra, elaborar teorias concer-
nentes ao belicismo vão signicar dois pontos de vista diferentes: o da-
queles que viveram a guerra e o daqueles que não a viveram. Aristófanes
partilha o primeiro ponto de vista. Ele viveu o auge e o m da Guerra
do Peloponeso e suas comédias trazem inúmeros referenciais dos anos
difíceis das hostilidades entre Atenas e a Lacedemônia. Os Acarnenses, a
peça sobre a qual aqui farei algumas considerações, é uma comédia que
tem como herói um velho camponês que foi obrigado a largar a simpli-
cidade e fartura da zona rural e sobreviver na cidade com o suciente
para não morrer de fome. Assim, conceber um artigo para um público de
Relações Internacionais cuja temática seja as agruras do velho Diceópolis
consiste, precisamente, em abordar a perspectiva daquele que sofre as
mazelas da guerra por meio da composição de um dramaturgo que dia-
riamente vivia as utuações das decisões democráticas sobre os rumos
belicosos da Atenas do século V. Discutir os Acarnenses em um evento de
R.I. signicou a possibilidade de atualizar a comédia Ática por meio da
identidade de seu gênero que não teoriza nem sobre a histórica Guerra
do Peloponeso, nem sobre a já passada política de então, mas celebra a
vida de homens e de mulheres. Desse modo, é que a comédia é sempre
atual, pois o que lhe confere ser é precisamente sua identidade genérica
não histórica, porque dionisíaca. Se nas procissões em honra a Dioniso,
grandes falos eram transportados, era porque a fertilidade – sinônimo de
vida – simbolizava o lho ctônico de Zeus.
O espírito belicoso ceifa todas as formas de vida. Ele esteriliza o
solo, extermina o cultivo dos animais, instaurando a miséria na condição
da vida humana. Para que Diceópolis goze a vida, é preciso que a guerra
chegue a término. Dioniso só pode ser metafórica e literalmente celebrado
20
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
quando a paz se instaura. Somente em tempos de paz a comunidade dos
homens e das mulheres pode plenamente viver, pois a paz é a condição
fundamental de possibilidade para que a fertilidade promova a continui-
dade da espécie humana. Sem a paz, Dioniso morre e sem Dioniso tudo o
que é vivo entra para o fosso estéril de uma existência sem festa, sem gozo,
sem vida. Com efeito, para demonstrar de que modo a paz está no cerne
do teatro aristofânico, abordarei como por meio da sátira a alguns aconte-
cimentos da Guerra do Peloponeso, Aristófanes nos legou a clareza que se
mostra a nós todos os dias nos noticiários sobre a Síria, sem nenhum tipo
de renamento intelectual necessário para se fazer compreensível: a paz
é fundamental para a rearmação e identicação da vida humana como
âmbito de gozo etílico, gastronômico e sexual. Sem essa tríade, a morte
assume o controle de uma vida desumana.
***
A comédia Acarnenses foi levada ao palco no festival das Leneias
de 425 a.C. com o enredo que trata diretamente da política bélica ate-
niense em curso durante a Guerra do Peloponeso. O enredo da peça con-
quistou o público daquele ano e conseguiu o primeiro lugar da disputa
cômica, com a história de um velho camponês, radicado na cidade que,
cansado das mazelas da guerra e do desinteresse da assembleia em discutir
meios de obtenção para a paz, decide comprar privadamente para si e
para sua família tréguas com Esparta. Nessa comédia, o coro é composto
por velhos acarnenses, carvoeiros da região de Acarnânia, homens que
lutaram em Maratona e que também sofrem com a devastação de suas
terras pelo inimigo.
No início de Acarnenses, entra em cena o herói cômico da peça,
sem que, a princípio, saibamos seu nome. No entanto, por meio do monó-
logo que ele profere, começam a se desenhar alguns aspectos de seu caráter,
como a tristeza em relação à conduta que seus concidadãos adotaram sobre
as discussões políticas e, mais à frente, o antibelicismo.
21
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Pela manhã, a Pnyx aqui está vazia,
Enquanto eles cam para cima e para baixo jogando conversa
Fiada na ágora,
Fugindo da corda vermelha. (ARISTOPHANES, 2007, v. 20–21).
Esse herói, cujo nome é Diceópolis é um velho agricultor que teve
de deixar o campo para morar na zona urbana da polis, na astus, em decor-
rência da estratégia adotada por Péricles durante a Guerra do Peloponeso.
Com a eclosão do conito que separou a Grécia em dois blocos de disputa,
comandados pelas duas maiores forças gregas da época, ou seja, Atenas e
Esparta, Péricles optou por uma estratégia defensiva que resultou na de-
vastação da zona rural ateniense e no deslocamento da população campo-
nesa para o centro da cidade. A ideia do estratego, a princípio, era evitar
que o confronto com o inimigo se desse em terra, uma vez que o preparo
do exército espartano para combates terrestres era superior ao ateniense,
bem como, numericamente, os soldados peloponésios levavam vantagem
1
.
Desse modo, os atenienses foram, por um lado, instruídos a abandonar o
campo, deixando as plantações para trás como reféns da destruição espar-
tana e, por outro lado, tiveram seu gado transportado para a Eubeia, uma
ilha aliada a Atenas. Sem suas terras e sem seus rebanhos, os camponeses
refugiavam-se aos montes atrás dos grandes muros, outrora construídos por
Péricles durante as obras de embelezamento da polis, vivendo de maneira
miserável a escassez de recursos de que antes dispunham. Assim, enquanto
os atenienses abandonavam seus territórios rurais, os peloponésios toma-
vam os arredores da Ática, primeiramente, arrasando Elêusis na época da
colheita de grãos e as regiões próximas em 431 a.C., contudo, sem investir
em uma invasão a astus, nem às planícies férteis Áticas, a m de pressionar
a rendição ateniense. No entanto, seguindo a estratégia pericleana, Atenas
evitou o confronto direto com o inimigo que batia à porta, preferindo
enviar soldados para sitiar territórios pertencentes à Liga Peloponésia, des-
dobrando-se, então, a situação descrita por Kagan:
1
Segundo o historiador Donald Kagan (2003, p. 90) a superioridade dos espartanos em relação aos atenienses
era algo de três ou dois soldados para um.
22
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Os produtos de exportação que garantiam o equilíbrio comercial de
Atenas – azeite de oliva e vinho – escassearam e a queda na importação
de gêneros alimentícios reduziu os recursos dos Estados integrantes da
aliança ateniense e sua capacidade de resistência. (2003, p. 106).
Por meio da estratégia de destruição das áreas que cercavam
Atenas, o rei espartano Arquidamo esperava que os atenienses se rendessem
mais facilmente às exigências peloponésias – entre elas, a famosa reivin-
dicação de Esparta ‘liberdade para os gregos’ que, na prática, signicaria
libertar as colônias atenienses da metrópole, dos tributos e da violenta im-
posição em constituírem governos democráticos. Todavia, para permane-
cerem cercando a Ática, os peloponésios também necessitavam de recursos
e, com a resistência ateniense à pressão espartana, de um lado e, por outro,
o cansaço e o m do estoque de comida dos lacedemônios, estes foram
obrigados a desocupar o terreno inimigo sem a vitória imediata, e ambas
as frentes rumarem em direção a inúmeras e sangrentas investidas, em uma
guerra que teve seu desfecho em 404 a.C. com o triunfo de Esparta e de
seus aliados.
A peça de Aristófanes, encenada em 425 a.C., vem ao palco no
ano posterior à primeira atuação de Demóstenes como estratego. Em seus
primeiros anos de mandato, ele comandou trinta naus enviadas para ron-
dar o Peloponeso e garantir apoio, caso necessário, à outra esquadra ate-
niense no mar jônico, liderada por Nícias que retornava para casa com
a bem sucedida devastação da Lócrida, mas ao mesmo tempo regressava
também com o fracasso do plano original de campanha que fora a investi-
da contra a ilha de Melos.
Nesse sentido, o cotidiano funde-se com a sátira e Diceópolis
representa um dos muitos agricultores atenienses que deixaram a con-
tragosto suas propriedades campestres, fonte da subsistência de suas fa-
mílias, para não padecerem nas mãos do inimigo peloponésio e que, no
entanto, são esmagados pela fome e pelo desconforto dentro de seu pró-
prio território, cuja ânsia belicista dos concidadãos que ocupam os altos
postos na política insiste em levar adiante a guerra. Por sua vez, o coro
composto de acarnenses remete aos espectadores a bravura e o auxílio
23
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
conferido a Demóstenes pelos carvoeiros de Acarnânia no ano anterior à
representação da peça.
Ora, com o intuito de, na assembleia, ajudar a polis a, democra-
ticamente, decidir pelo m dos males da guerra, para retornar à sua antiga
vida campônia de rústicos prazeres culinários, etílicos e sexuais, Diceópolis
chega cedo à Pnyx, antes até dos prítanes:
Agora, sem papas na língua, chego, já preparado para
Gritar, interromper, insultar os oradores,
Caso alguém fale qualquer outra coisa que não seja a paz.
(ARISTOPHANES, 2007, v. 37–39).
O cerco está armado: um velho agricultor cansado de sofrer na
cidade decide fazer o que for possível pelo retorno da antiga vida abundan-
te que seu trabalho rural lhe proporcionava. Para isso, se valerá da única
possibilidade que a cidade oferece para a resolução das questões públicas,
ou seja, participar das discussões democráticas da assembleia ateniense,
para que belos dias nasçam tanto para si quanto para todos os outros velhos
camponeses iguais a ele.
Contudo, a solução democrática para o apaziguamento do mal
que assola o velho e os outros agricultores deslocados de suas terras, desde
o início da peça, é desmerecida pelos próprios cidadãos. A Pnyx, isto é,
o local que abrigava as reuniões que colocavam em discussão os aconte-
cimentos da polis e as propostas apresentadas por cidadãos para o bom
funcionamento da cidade e que, para isso contava com a participação po-
pular, pouco antes do começo da sessão ainda está vazia, sem mesmo a
presença daqueles que presidem os trabalhos e, desse modo, deveriam ser
os primeiros a chegar, dando exemplo aos outros. Portanto, uma vez que
nem o pessoal responsável pela organização da assembleia, que são os prí-
tanes, chega com antecedência ao recinto do evento, o que esperar, então,
dos outros? O que Diceópolis presencia é a falta de seriedade e de com-
prometimento com a instituição da decisão democrática tanto de quem
comparece somente para falar e votar, quanto de quem tem a tarefa de co-
locar ordem às sessões. Com efeito, além de se alimentarem às expensas da
cidade no Pritaneu, lugar mais importante da polis, que hospedava ilustres
visitas como embaixadores estrangeiros, bem como aqueles cuja população
24
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
desejava homenagear, os prítanes ainda recebiam o misthos de uma dracma
por dia (MOSSÉ, 2004, p. 243) oriundo dos cofres públicos.
Ora, entre os versos 37 e 39, vemos o herói da peça, Diceópolis,
disposto a fazer qualquer coisa para que a assembleia coloque em discussão
a paz. O camponês tem em mira valer-se do dispositivo democrático que
a polis oferece para a discussão dos problemas com a intenção de colocar
em pauta a necessidade do m da guerra com os lacedemônios. Na reunião
popular, ele se depara com Anfíteo: o único ser capaz de realizar uma em-
baixada cujos resultados sejam, sem dúvida alguma, tréguas. A realização
do desejo de Diceópolis está mais do que nunca ao alcance de suas mãos.
Contudo, sua possibilidade salvadora é rejeitada pela assembleia: Anfíteo é
expulso do recinto da discussão.
Diceópolis é, efetivamente, o único cidadão que quer votar pelo
término da guerra. Após o evento com Anfíteo, presenciamos nas discus-
sões da assembleia muitas alusões à guerra, mas nenhuma diz respeito
ao delineamento de um acordo com Esparta. E por que isso acontece?
Por que, apesar das inúmeras baixas, da fome e da miséria que invadiram
Atenas desde o começo da guerra, ao que tudo indica, somente Diceópolis
deseja a paz? E os outros camponeses que também perderam suas planta-
ções e gados e foram obrigados a refugiarem-se atrás dos muros da polis?
De fato, Diceópolis deseja com o m da guerra, a paz para to-
dos os seus concidadãos. Ele não pretende violar nenhum tipo de nomos
estabelecido, não deseja viver na contracorrente dos costumes da polis:
Diceópolis percebe que apenas com a restauração da paz será possível aos
agricultores voltarem para seus campos, deixarem para trás a situação de
penúria na qual se encontram e desfrutarem de uma vida cujo próprio
trabalho ofereça as condições necessárias para a conquista da prosperidade,
do sexo e da boa vida. No entanto, embora todos sofram com os males bé-
licos, Diceópolis é o único cidadão que está disposto na assembleia a fazer
tréguas com o inimigo. Assim, apesar de seu desejo ser um desejo que, se
realizado, trará gozo para todos os outros cidadãos, sem colocar em xeque
nem contradizer nenhum nomos divino ou humano, a maioria continua a
apoiar o prosseguimento da guerra.
25
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Na assembleia da qual Diceópolis participa, vários embaixadores
apresentam-se para terem suas despesas aprovadas. Aqueles que estiveram
com os persas narram de que maneira a viagem diplomática foi desgastante
e penosa: para que conseguissem falar com o rei persa foi-lhes necessário
desfrutar de confortabilíssimos aposentos, deliciosos banquetes e uma re-
cepção na qual foram constrangidos com o uso da força (bian) a beber vi-
nho puro em taças de ouro (v. 72–74). No entanto, apesar das diculdades
que passaram, os homens mostraram-se fortes e suportaram tais ocasiões,
seguindo os costumes persas, já que
Os únicos homens que agradam aos bárbaros
São os que são bons de garfo e bons de copo. (ARISTOPHANES,
2007, v. 62–63).
Para conquistar os persas foi preciso comer e beber excessivamen-
te, algo que os embaixadores souberam fazer bem. Mas, e agora, o que de-
vem fazer para conseguir o apoio dos atenienses? O que é preciso para con-
quistar a simpatia da assembleia e terem suas despesas aprovadas? Quanto
a isso, Diceópolis lança a invectiva que é praxe na comédia aristofânica, a
saber, a de que para que os políticos agradem os atenienses é necessário que
sejam devassos e fodidos:
Nós gostamos dos boqueteiros e dos que dão o cu. (ARISTOPHANES,
2007, v. 79).
Assim, a comédia associa aos que brigam por cargos públicos duas
práticas perniciosas: a criação de políticas belicosas que tem em vista lesar
os cofres públicos, e a submissão anal, que reete a conduta mercenária
daqueles que se deixam penetrar. Em Acarnenses, a Guerra do Peloponeso
é tratada mais como uma nuvem que tem por nalidade encobrir a má
administração do dinheiro público do que um combate pela liberdade e
prosperidade atenienses. E, por toda a comédia aristofânica é recorrente
a ideia de que a conduta vil no cenário público indica o comportamento
prostituído da corrupção anal no âmbito privado. Logo, os inimigos não
estão em Esparta, mas são os próprios políticos atenienses que, prolon-
gando as ocasiões de combate, criam maneiras de usurparem o dinheiro
26
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
público sem serem notados, anal, a guerra é o pano de fundo maior que
justica os altos gastos.
Mas para serem mais convincentes, os embaixadores não se va-
leram apenas de palavras, trouxeram consigo Pseudartabas-Olho do Rei e
dois acompanhantes eunucos. Assim como em nossos dias alguns cargos
de conança são equiparados aos olhos ou aos braços do patrão, da corte
persa faziam parte inúmeros ociais que eram referidos como lhos, ir-
mãos, ouvidos ou olhos do rei (OLSON, 2007, p. 101), e Pseudartabas é,
justamente, um deles, um servidor do grande rei que, segundo os embai-
xadores, tem a missão de anunciar à assembleia que o rei irá enviar ouro
aos atenienses.
O nome Pseudartabas é construído com a junção de duas pala-
vras pseud- e artabas que, unidas, literalmente signicam falsa-medida
2
.
Mas Douglas Olson acredita que seja provável que, com essa designa-
ção, Aristófanes queira evocar reais nomes persas em que o primeiro ele-
mento é arta, como Artaxerxes e Artabazos (2007, p. 101). Desse modo,
Pseudartabas é o Verdade-falsicada ou Falsicador, já que o membro arta,
em persa, signica ‘verdade’, ‘ordem cósmica’ que unido ao prexo pseud-
resulta na ideia de que se trata de alguém que falsica o que é verdadeiro,
ou seja, trata-se de um estelionatário, trapaceiro. Além disso, cenicamente,
o personagem Olho do Rei aparece caracterizado como um imenso olho
no meio do rosto, trazendo ao palco o efeito bastante comum na comédia
que é a literalização da metáfora. Assim, o Olho do Rei é mais que um
homem de conança, ele é, literalmente, o próprio olho do rei: a personi-
cação da visão do persa-bárbaro sobre os atenienses. E o que esse olho vê?
Ele vê, precisamente, a justiça das palavras de Diceópolis que armaram
que para se conquistar a simpatia dos atenienses nada além da devassidão e
da sem-vergonhice são requeridos.
E, de fato, Pseudartabas diz algumas palavras completamente
incompreensíveis para o vocabulário grego que, traduzidas pelos embai-
xadores, signicam que os persas enviarão ouro a Atenas. Porém, o que é
bastante inteligível é a explicação carregada de sotaque do persa sobre o
outro, mas que só Diceópolis parece compreender:
Sobre esse ponto, Olson (2007, p. 101) salienta que de acordo com Heródoto I, 192, 3 “O artabe era uma
medida persa para sólidos.
27
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Você não receber oura, cu frouxo de Ione. (ARISTOPHANES,
2007, v. 103).
Está claro a Diceópolis e aos espectadores do teatro que os bár-
baros não são aliados de Atenas, mas, apesar da clara demonstração de
que os embaixadores estão enganando a assembleia com falsas promes-
sas, Pseudartabas é convidado pelo arauto a sentar-se no pritaneu. Aliás,
o camponês não só desmascara o Olho do Rei, mas os eunucos que lhe
acompanham: estes não são bárbaros, mas atenienses (v. 115). Contudo,
ainda assim, isso não basta para que a assembleia seja convencida acerca da
charlatanice de seus políticos.
Assim, o agricultor percebe que caso queira restabelecer a paz, esta
não será nem por meio da persuasão de suas palavras, nem com a demons-
tração de que os embaixadores se valem das expensas do povo para realizar
viagens com objetivos, exclusivamente, turístico e de entretenimento, cuja
discussão sobre a guerra serve de desculpa apenas para convencer a assem-
bleia a aprovar provisões para as embaixadas. A solução para Diceópolis e
para sua família, denitivamente, não está no ajuntamento democrático,
mas em uma atitude particular que trará benefícios também particulares.
Se os cidadãos de Atenas não decidem fazer tréguas com os espartanos, o
jeito é fazê-las sozinho.
Logo, nosso herói tem uma engenhosa, mas também, perigosa
ideia: incumbir Anfíteo de conseguir tréguas privadas com os lacedemônios.
D: Pegue essas oito dracmas e
Faça tréguas com os lacedemônios apenas
Para mim, meus lhos e minha mulher.
E vocês, continuem mandando embaixadas e esperem
sentados. (ARISTOPHANES, 2007, v. 130–133).
Anfíteo era o único dos presentes que estava disposto a negociar
as tréguas com os espartanos e, para isso, recorreu à assembleia a m de
conseguir as provisões necessárias para a viagem. De fato, sua atitude não
agradou ninguém a não ser Diceópolis que, realmente, está interessado na
paz. Assim, o velho percebe que a única maneira capaz de o livrar dos ma-
28
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
les da guerra e da cidade não está na discussão sobre a ajuda persa, mas em
Anfíteo e, portanto, o agricultor concede de seu próprio bolso o dinheiro
necessário para que o semideus faça um acordo de paz com os espartanos
que será de exclusividade do camponês e de sua família.
***
De volta da Lacedemônia, Anfíteo surge fugindo dos acarnenses
que estão em sua cola. Ele traz três tréguas para que Diceópolis escolha a
que mais lhe apetece. Dentre as alternativas de cinco, dez e trinta anos, a
que mais agrada ao paladar do velho é a terceira. Diceópolis pode degustar
literalmente as tréguas, uma vez que, em grego, existe um jogo semântico
entre o termo ‘trégua’ e o termo ‘libação’. O vocábulo spondē é utilizado
para signicar libação, ou seja, o ato de oferecer vinho puro ou outros líqui-
dos aos deuses, aspergindo-os sobre a terra ou sobre as oferendas (BAILLY,
2000). Com efeito, libações também acompanhavam a conclusão de acor-
dos e, daí vem o sentido de ‘tréguasspondai. Assim, utilizada no singular,
spondē signica ‘libação’ e, usada no plural, spondai denota ‘fazer tréguas,
realizar acordos’, estabelecer alianças’. Na peça, o duplo sentido da pala-
vra é literalizado pela maneira como a trégua se apresenta: ela possui odor
igual ao do vinho e somente com a de cheiro mais apetecível e, portanto,
de qualidade superior, é possível a Diceópolis fazer libações (spendomai).
Assim, o plano de Diceópolis está consumado: agora ele e sua fa-
mília estão em paz com os espartanos e podem celebrar as Dionísias rurais.
Após o párodo, vemos Diceópolis e sua família realizando um
sacrifício em homenagem a Dioniso, o que leva os acarnenses a identica-
rem-no a Anfíteo, pois é o único cidadão na polis que celebra as Dionísias
e, portanto, está em paz. O camponês festeja as Dionísias Rurais após seis
anos morando na cidade
3
. De volta ao campo, festeja ao deus a simplici-
dade da vida.
De acordo com Pickard-Cambridge (1968, p. 41) essa cena de celebração de Acarnenses é a “[...] única
informação precisa acerca da procissão da Dionísia rural.
29
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Com efeito, o enredo de Acarnenses vale-se do chavão democráti-
co da lisonja para mostrar de que maneira os embaixadores conseguiram a
aprovação de suas despesas a despeito de serem charlatões: basta mencionar
que os persas enviarão ouro aos atenienses e o apoio popular faz eco. E,
aliás, a lisonja do público não é um expediente absolutamente inventado
pelo dramaturgo, ela fazia parte do dia a dia da polis, nos discursos dos
líderes democráticos que se davam nas assembleias da Pnyx. O elogio era
(e talvez ainda seja) necessário no regime que necessita ganhar a aprovação
popular, cujas decisões políticas dizem respeito a todos os cidadãos e que,
portanto, precisam ser cativados. Logo, aqueles que, como Diceópolis se
dispõem a dizer algo que se oponha à fala bajuladora são vistos como ini-
migos do povo.
É, precisamente, na parábase, que Diceópolis se refere ao gosto
demasiado dos atenienses por elogios, que acabam tornando-lhes cegos
para outras vias de discurso:
Bem sei sobre
A maneira de ser dos nossos campônios, o prazer que sentem,
Quando um impostor qualquer os elogia a si próprios
E à cidade com justiça ou injustamente.
Essas bajulações impedem que vejam que são levados.
(ARISTOPHANES, 2007, v. 370–373).
Ora, Diceópolis mostrará que a responsabilidade pelos acon-
tecimentos bélicos que imprimem a fome e a miséria em Atenas é da
própria cidade e que hoje ela nada mais faz do que arcar com as conse-
quências de uma escolha infeliz. Logo, Esparta não é a culpada – como
os oradores têm o hábito de alardear nos ajuntamentos populares – pela
desgraça ateniense e, nesse sentido, entrevemos de que modo o agricultor
delimita a responsabilidade de seus concidadãos pelos males que agora
todos sofrem. A guerra não é de um único homem, mas de todos aqueles
que cooperando com os estrategos, apoiam em assembleia a continuida-
de de ação dos escudos.
30
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
***
A m de captar a benevolência auditiva de seu público e poder
continuar a celebrar a trégua com os espartanos sem ser molestado pelo
coro de acarnenses, o herói, travestido do mísio Télefo, se vale da rivalidade
já existente entre atenienses e lacônios, para assegurar que está ao lado de
Atenas e que detesta os lacedemônios.
Odeio os lacedemônios enormemente,
Que o deus do Ténaro, com um tremor de terra
Lhes derrubasse as casas, a todos eles. (ARISTOPHANES, 2007, v.
509–511).
Ora, não só bastasse nutrir imenso ódio pelos lacedemônios,
Télefo-Diceópolis fala entre amigos (philoi) e, portanto, entre iguais. Logo,
seu discurso é dotado da liberdade inerente à palavra expressa na atmosfera
cuja conança é o combustível da boa vivência. Assim, após preparar o
ânimo dos carvoeiros para que, sem suspeitas, recebam sua defesa, o herói
pode questionar os motivos que levaram à guerra.
“Por que dizemos que a causa de tudo isso são os lacônios?”
(ARISTOPHANES, 2007, v. 514). Ora, é preciso indagar quais são as
razões que levaram os atenienses a creditar a origem da guerra à Esparta,
a m de vericar se a ideia é ou não correta: é preciso investigar o ponto
inicial das hostilidades.
Com efeito, Diceópolis demonstra ao público que alguns dos ho-
mens de Atenas começaram a fazer denúncias sobre produtos que, segundo
eles, eram oriundos de Mégara e, portanto, violavam o embargo econômi-
co imposto por Péricles contra tal polis, em tempos de paz. De fato, por
volta de 433–432 a.C., os atenienses aprovaram um decreto que impe-
dia o acesso dos megáricos aos portos dos domínios de Atenas e à ágora.
Segundo o historiador Kagan, a partir do estudo de Tucídides,
A explicação ocial para o decreto é a de que ele foi imposto pelo fato
de os cidadãos de Mégara terem tornado sagrado um território reivin-
dicado por Atenas. Os megáricos também teriam avançado ilegalmente
sobre a linha da fronteira e dado abrigo a escravos fugitivos. (KAGAN,
2003, p. 68).
31
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Com efeito, antes de sofrer o embargo, Mégara, que na época
era uma cidade aliada a Atenas, enviou auxílio militar a Corinto durante a
batalha de Sibota. O problema é que os coríntios entraram em confronto
contra a Córcira, cidade que houvera conseguido o apoio dos atenienses
durante esse embate. Nesse sentido, o Decreto de Mégara pode ser visto
como uma punição de Atenas pelo mau comportamento dos megáricos,
bem como um aviso para os “[...] outros Estados comerciais de que eles
não estavam imunes a uma retaliação por parte de Atenas mesmo no perí-
odo formalmente de paz.” (KAGAN, 2003, p. 69).
Assim, tanto os megáricos quanto os coríntios recorreram à
Esparta para que uma atitude fosse tomada em relação a Atenas. Nas deli-
berações dos espartanos, acordou-se que os atenienses romperam o tratado
de paz e que, portanto, deveriam sofrer as consequências de suas ações, ou
seja, iriam ser convocados à guerra. Contudo, antes de colocarem os escu-
dos em ação, os lacedemônios
Pediram aos atenienses que se retirassem de Potideia, e dessem inde-
pendência à Egina, e, sobretudo, declararam em termos precisos que
somente poderiam evitar a guerra se revogassem o decreto referente aos
megáricos, pelo qual estes haviam sido proibidos de entrar em qual-
quer porto do império ateniense e até no mercado ático. Os atenienses,
todavia, não deram ouvidos às primeiras pretensões e se recusaram a
revogar o decreto. (KAGAN, 2003, p. 69).
E, assim, Atenas e Esparta iniciaram o mais longo confronto da
Antiguidade.
Na versão cômica, Diceópolis desmembra um paralelo entre a
guerra do Peloponeso e a guerra de Tróia. Segundo nosso herói, alguns ate-
nienses viajaram para Mégara e roubaram uma prostituta chamada Simeta
(v. 524). Em resposta, os megáricos roubaram duas prostitutas de Atenas,
Aspásia e sua serva.
Eis aí o princípio que fez romper a guerra
Em toda a Grécia: três boqueteiras. (ARISTOPHANES, 2007, v.
528–529).
32
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Em resposta ao rapto de Aspásia, Péricles estabeleceu o Decreto
de Mégara que lançava o embargo a essa polis. Os megáricos pediram auxí-
lio aos espartanos para que conseguissem a revogação do decreto que teve
como causa as boqueteiras. Contudo, Atenas negou rever seu posiciona-
mento e, assim, a guerra foi iniciada.
Ora, atrelar uma guerra ao rapto amoroso de uma prostituta não
é novidade para o imaginário grego e demonstra para os espectadores como
a origem, princípio e fundamento da guerra é algo absolutamente mes-
quinho. Na verdade, Diceópolis insiste em demonstrar que os atenienses
possuem um caráter belicoso: sempre dispostos a entrar em confronto por
pequenas coisas. E, se, por exemplo, os espartanos tentassem vender um
cachorrinho pertencente aos seríos, muito provavelmente, isso já seria
um bom motivo para os atenienses colocarem no mar trezentos navios (v.
539–543) e declararem guerra. Sérifos é uma pequenina ilha rochosa das
Cíclades, constantemente ameaçada e sem nenhuma importância militar
ou econômica. E mesmo sabendo da insignicância desse território, os
homens de Atenas sendo inclinados a verem pelo em ovo, confeririam de-
masiada gravidade a um fato absolutamente irrelevante.
Nesse sentido, Diceópolis conclui que, embora os lacedemônios
não sejam or que se cheire, eles não devem ser responsabilizados pela des-
graça bélica na qual Atenas foi submergida. De fato, tal como Tróia, eles
apenas responderam ao ataque vindo do exterior.
Tendo, portanto, comprado a paz privada, Diceópolis funda o
mercado no qual travará comércio com peloponésios, megáricos e beócios,
ou seja, com a Liga de Esparta (v. 719–728).
De fato, penso que a fundação do mercado por Diceópolis é o
momento no qual sua marginalidade torna-se completa. Além de ser o
único cidadão detentor da paz, ele volta a morar no campo e, portanto,
está espacialmente fora do centro de Atenas, ou seja, longe da astus, dei-
xando para trás a política estratégica de Péricles, durante a guerra, que
foi a de colocar para dentro dos muros da polis os camponeses atenienses.
Junte-se a isso o fato de também ser o único cidadão a estabelecer relações
comerciais com os inimigos de Atenas. Logo, Diceópolis pode ser caracte-
rizado como um personagem marginal em triplo sentido: habitando um
33
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
território espacialmente à margem, sendo o único que fez tréguas com os
lacedemônios e como o monos apto a fazer comércio com os integrantes da
Liga de Esparta.
Ora, com a instauração do mercado, surgem em cena um megá-
rico e, em seguida, um beócio para trocarem com Diceópolis os produtos
de que dispõem.
De um lado, o megárico disfarça as lhas em porquinhas para
trocá-las por alho e sal – paradoxalmente, nos tempos de paz, o sal era um
dos principais produtos de exportação de Mégara – enquanto, de outro
lado, o beócio apresenta ao agricultor uma enorme variedade de artigos,
entre os quais, patos, lebres, gansos e perdizes e, em troca, espera obter um
produto genuinamente ateniense, uma vez que as anchovas e a louça que
Diceópolis oferecera não estão em falta na Beócia (v. 898–900). Durante
as duas transações comerciais, entra em cena uma típica gura de Atenas:
o sicofanta, que ameaça delatar os dois estrangeiros.
Na primeira entrada do delator, este é expulso a chicotadas por
Diceópolis, mas no segundo caso, o herói embrulha o sicofanta Nicarco
que é, com efeito, a mercadoria buscada pelo beócio: um artigo que só
pode ser encontrado nas terras de Atenas (v. 903–904).
Na cena seguinte, de maneira simetricamente oposta, Diceópolis
é procurado por outros dois personagens: um servo do estratego Lâmaco e
Dercetes. Aqui irei me ater apenas ao segundo personagem.
Dercetes aparece em cena lamentando sua própria desgraça:
Dercetes:
Perdi os olhos de tanto chorar por meus bois.
Mas se tem peninha de Dercetes de File
Rápido, passe nos meus olhos um unguento de paz.
Diceópolis:
Ô coitado! Por acaso não dou assistência social. (ARISTOPHANES,
2007, v. 1028–1030).
Seguindo por essa trilha, podemos ver no personagem Dercetes
a literalização do ditado moderno “chorar pelo leite derramado” que, no
34
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
seu caso, originalmente seria “chorar pelos bois que foram apanhados”.
Segundo ele, os beócios passaram a mão em seu rebanho e, por conta disso
sem saber o que fazer, além de choramingar, vê se miseravelmente acome-
tido em uma profunda desgraça.
Portanto, em busca de um alento de felicidade, Dercetes insiste
para que Diceópolis lhe dê a paz suciente para passar nos olhos. Contudo,
o velho nega-se terminantemente a partilhar suas tréguas. Ora, Diceópolis
não atende ao pedido de Dercetes porque este é um dos atenienses que
continua a responsabilizar a Lacedemônia pelos males advindos da guerra
e, desse modo, é um daqueles atenienses que confere suporte às ações be-
licosas dos estrategos.
Após a expulsão de Dercetes, o servo de um casal de noivos surge
à porta de Diceópolis, oferecendo-lhe carnes da cerimônia de casamento
em troca de uma taça de paz para o noivo, a m de que este não vá para
a guerra, mas possa permanecer fodendo (v. 1051–1053). De fato, a esse
pedido, o herói recusa-se terminantemente a atender, mandando que se
leve de volta o suculento agrado. Segundo Henderson (1991, p. 152), “[...]
na voz ativa, sem objeto direto, binein, como dormir, se revirar e peidar,
muitas vezes representa o hedonismo fácil e livre de responsabilidade, que é
a meta de muitos heróis aristofânicos.” Desse modo, penso que a interpre-
tação de Henderson possa se estender aqui para o caso do noivo, ou seja,
este espera poder saciar apenas seus desejos sexuais, desconsiderando, por
exemplo, o prazer de sua noiva, e apresenta, portanto, motivo absoluta-
mente insuciente para conseguir a paz junto a Diceópolis. Com efeito, se
o noivo quisesse realmente foder, deveria ter pensado nisso antes e apoiar
as hostilidades contra Esparta. Agora, deve arcar com as consequências da
abstinência sexual belicosa.
Contudo, logo em seguida, em busca do herói surge uma num-
pheutria (v. 1056), ou seja, a mulher que acompanhava a noiva até a casa
do noivo e estava encarregada da preparação da moça para a noite de núp-
cias. Não é possível saber exatamente quais são as palavras dessa persona-
gem, pois ela fala em particular com Diceópolis, mas descobrimos, por
meio do camponês, que ela o procura em nome da noiva que lhe pede que
Conserve em casa a rola do noivo. (ARISTOPHANES, 2007, v. 1060).
35
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Pedido este ao qual Diceópolis atende:
Traga aqui as tréguas, darei unicamente a ela,
Pois é mulher e não é responsável pela guerra. (ARISTOPHANES,
2007, v. 1061–1062).
Logo, Diceópolis compartilha a paz com uma mulher que, efeti-
vamente, não pode participar das decisões tomadas em assembleia e, por-
tanto, a ela está totalmente excluída sequer a possibilidade de argumentar
tanto em favor da paz, quanto da guerra. Com efeito, creio que tal atitude
do herói confere um importante motivo para sustentar que sua condu-
ta é justa, uma vez que ele partilha as tréguas com alguém que, estando
inserido nos quadros sociais e rituais da polis, sendo indispensável para a
reprodução dos cidadãos atenienses, não pode exprimir suas opiniões sobre
nenhum assunto político e, assim, verdadeiramente, a mulher ateniense
está isenta de qualquer sombra de responsabilidade em relação à escolha
pela continuidade da guerra que zeram os cidadãos.
Com efeito, embora, de um lado, se possa armar que Diceópolis
tenha obtido a aprovação do coro para sua empreitada e tenha feito com
que seus concidadãos mudassem de ideia sobre as tréguas – uma vez que
estes o procuram a m de conseguir migalhas de paz – de outro lado, a per-
suasão acerca da paz não implica que para ser justo é preciso também com-
partilhá-la. Diceópolis é justo porque desmascara a mentira dos atenienses
que incentivam o belicismo. Ele conquista seu nome após a compra de
tréguas particulares, uma vez que sua tentativa de paz pública fora colocada
por água abaixo. Ele rma-se como um personagem justo não porque cede
à choradeira alheia, mas porque exemplica que é preciso agir, é preciso
que os atenienses chamem para si a responsabilidade da manutenção da
paz, ao invés de se fazerem de coitados e esperarem sentados que a paz caia
do céu como gotas de chuva.
REfERênciAs
ARISTÓFANES. Os Acarnenses. Introdução, versão do grego e notas de Maria de
Fátima Sousa e Silva. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Cientíca, 1988.
ARISTOPHANES. Acharnians. Edited with Introduction and Commentary by S.
Douglas Olson. Oxford: Oxford University Press, 2007.
36
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
BAILLY, A. Le grand Bailly: dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 2000.
HENDERSON, J. e maculate muse: obscene language in attic comedy. Oxford:
Oxford University Press, 1991.
KAGAN, D. A guerra do Peloponeso: novas perspectivas sobre o mais trágico confronto
da Grécia Antiga. Tradução Gabriela Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2003.
MOSSÉ, C. Dicionário da civilização grega. Tradução Carlos Ramalhete. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
OLSON, D. Introduction and commentary – Acharnians. Oxford: Oxford University
Press, 2007.
PICKARD-CAMBRIDGE, A. W. e dramatic Festivals of Athens. Oxford: Clarendon
Press, 1968.
37
P      
   
Vanessa Braga Matijascic
Tantas vezes reconhecido pelo nobre objetivo, e em outras opor-
tunidades visto como ingênuo, o anseio pela paz assumiu na história da
humanidade narrativas de cunho religioso presente nas três tradições mo-
noteístas e alcançou movimentos da sociedade civil, especialmente, ao lon-
go do século XX. Entre esses, destaca-se a Liga Internacional de Mulheres
pela Paz e Liberdade (Womens International League for Peace and Freedom),
organização não governamental fundada em 1915 quando o Congresso
Internacional de Mulheres ocorreu em Haia, Países Baixos (BLACKWELL,
2004). Mesmo tomando como marco esse congresso, pode-se dizer que o
termo “pacismo” foi usado pela primeira vez como palavra para designar
aqueles que perseguiram um conjunto de ideias entorno da busca pela
paz no Congresso Universal da Paz
1
em Glasgow em 1901. Muito antes
desse encontro, diversas organizações já eram comumente conhecidas por
esse objetivo, sobretudo, na Europa antes da Primeira Guerra Mundial
(CORTRIGHT, 2008, p. 8 et seq.).
UNIVERSAL PEACE CONGRESS, 10-13 Sep. 1901, St. Andrews Hall, Glasgow, Scotland. Proceedings of
the Tenth Universal Peace Congress. London: Pub. Oce of the Congress, 1902. Disponível em: <https://babel.
hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.32044103259156;view=1up;seq=1>. Acesso em: 10 jul. 2017.
38
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
O rumo mais consistente dado a paz como campo de investiga-
ção cientíca ocorreu nos anos 1950 e 1960 quando uma universidade
nos Estados Unidos e um instituto de pesquisa na Noruega iniciaram tais
esforços, resultando em dois periódicos: Journal of Conict Resolution e
Journal of Peace Research. O primeiro foi gestado no Center for Research
on Conict Resolution na Universidade de Michigan, criado por Kenneth
e Elise Boulding. Esse centro cou reconhecido pelos estudos em reso-
lução de conitos. O segundo manifestou a vontade de Johan Galtung,
após criar o Instituto de Pesquisas para a Paz de Oslo (International Peace
Research Institute of Oslo – PRIO), em obter rigor teórico em pesquisas nes-
sa área. Para tanto, Galtung redimensionou o entendimento de determina-
dos conceitos, tais como paz e violência. Anos mais tarde, outra iniciativa
de acadêmico, Adam Curle, consolidou uma cátedra e um programa de
estudos da paz na Universidade de Bradford em 1973. Os professores e
pesquisadores para a paz formados nesse ambiente universitário são co-
nhecidos pela perspectiva bastante crítica das atuais estruturas de poder, a
dinâmica da política internacional e da conjuntura de segurança interna-
cional na contemporaneidade.
Dessa maneira, aproveitando a consolidação desses institutos,
centros, programas e cátedras, e também certamente como reexo do con-
texto de contenção da corrida armamentista nos anos 1960 e 1970 que
impulsou a busca por novos horizontes cientícos, diversas outras iniciati-
vas acadêmicas surgiram em diferentes partes do globo. Assim, as pesquisas
para a paz (ou os estudos da/para a paz) surgiram como nova abordagem
cientíca nos anos 1960 e com o protagonismo doPRIO. O objetivo era
consolidar uma nova premissa cientíca que não partisse da naturalidade
do fenômeno da guerra, redimensionando publicações de natureza inter-
disciplinar que pudessem perseguir alternativas para eliminar as diferentes
formas de violência e alcançar a paz positiva.
O objetivo desse capítulo é apresentar os diferentes institutos de
pesquisa vinculados a universidades que disseminaram essa vertente aca-
dêmica, explicando os principais conceitos que guiaram a área (tais como
a tipologia de paz e tipicações de violência). A partir desse mapeamen-
to, que inclui centros de pesquisa em diversos continentes, pretende-se
sinalizar como as pesquisas para a paz inuenciaram em projetos práticos
39
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
de sustentação da cultura da paz por meio da atuação das organizações
internacionais no Sistema das Nações Unidas. Entre esses exemplos, desta-
ca-se o trabalho desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a
Ciência, Cultura e Educação (UNESCO).
Para atender aos objetivos mencionados, dividiu-se esse texto
em três seções: a primeira apresenta os conceitos inaugurados pela nova
percepção de Galtung sobre paz e violência. Nessa mesma seção, fala-se
sobre a concepção de conito. Uma vez consolidada essa etapa, é possível
entender as premissas que norteiam a produção cientíca que vale da
pesquisa para alcançar soluções em médio e longo prazo em prol da paz.
Assim, a segunda seção enaltece os projetos acadêmicos precursores e as
especicidades de tais centros de excelência. Por m, pretende-se abordar
na terceira seção, como as pesquisas para a paz impulsionaram o ativis-
mo pela cultura da paz, alcançando importantes projetos, tais como o
Educação para a Paz da Organização das Nações Unidas para a Ciência,
Cultura e Educação (UNESCO).
concEiTos dE PAz E violênciA
No editorial do primeiro número do Journal of Peace Research
(JPR) cou estabelecida a vertente que deniria paz em contraposição a
tradicional equivalência de paz como ausência de guerra e conito, tão co-
mum em ser dessa forma aprendido e ensinado em Relações Internacionais.
Remetendo-se a uma abstração, Galtung (1964) identica a possibilidade
de duas condições conjunturais de mundo: “guerra geral e completa”, que
presume o resgate do estado de natureza hobbesiano; e “paz geral e com-
pleta” que faz alusão a plena integração da sociedade. Para o fundador das
pesquisas para a paz, os indivíduos sozinhos são capazes de empatia e so-
lidariedade; no coletivo, são capazes de reciprocidade e cooperação. Logo,
para ele a interação entre os homens é a natural realidade, enquanto que
as diferenças existentes exprimem as incongruências de uma estrutura que
promove inequidade, conito de interesses e violência.
Dada a naturalidade que se entendia paz como ausência de guerra
e do conito, Galtung atribuiu a essa compreensão o termo paz negativa.
Isso porque muitas vezes a ausência da beligerância não signica necessa-
40
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
riamente um entorno pacíco e com ausência de violência
2
. Enquanto que
a proposta que ele faz é a da paz positiva, presumindo-a como integração
da sociedade humana. Tomando as duas referências de leitura de mundo
como abstratas, os esforços que resultam no processo que levou a fundação
das pesquisas para a paz é a busca por soluções que promovam a redução
das desigualdades, da proliferação de armas, da violência inerente as es-
truturas em níveis: local, regional e internacional que vociferam contra a
promoção da justiça social. Para essa mudança, Galtung preconiza que a
antiga fórmula “se quer paz prepare-se para a guerra” não produziu efeitos
que tivessem mudado a estrutura e as relações sociais. Assim, esse acadêmi-
co reivindica a mudança “nas mentes” dos homens que começa por políti-
cas para a paz em nível micro até alcançar o macro. Logo, uma das etapas
possíveis de ascender a isso é pela educação que promove a mudança de
mentalidades. Entre as diversas alternativas, Galtung faz o convite a toda a
comunidade cientíca no editorial para buscarem soluções que reduzam a
violência e promovam a paz.
Dado que alcançar a “paz geral e completa” é uma abstração, não
se pode entender que a proposta dele é utópica posto que foi feito o convi-
te para o processo longo e com nalidade que já se desenhou como abstra-
ta, bem como sua contraposição (“guerra geral e completa”). Certamente,
é também no editorial que cou explícito o caráter multidisciplinar dessa
área de pesquisa. Assim, há inicial impressão que, por ser muito abrangen-
te, pouco pode ser alcançado a partir dessa perspectiva teórica. Mas, ao vi-
sualizar que há a proposta para consolidar um novo processo, as pesquisas
para paz passam a não ter apenas uma natureza crítica da realidade, mas,
pode-se dizer que vai além, pois sugere mudanças profundas sem o uso da
violência como seria a clássica proposta marxista de revolução.
Poucos anos depois da publicação do editorial, Galtung (1969)
delimitou o que ele denominou como violência. Nessa publicação ele fez
Uma forma mais imediata de entender esse argumento é pensar no Brasil que é um país sem guerras há
muitos anos. Todavia, quando comparado a países em guerra, não somente o Brasil, como também outros
países da América Latina têm índices alarmantes de fatalidades e que superam países em beligerância. Nesse
caso, a conjuntura transparece problemas de segurança pública (Cf. Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Em
2016, o jornal britânico Independent divulgou que somente no ano de 2015 o número de fatalidades no Brasil
foi superior ao da guerra civil na Síria. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/americas/
brazil-deaths-violent-crime-syria-police-brutality-report-brazilian-forum-for-public-security-a7386296.html>.
Acesso em: 12 jul. 2017.
41
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
extensa análise sobre os conceitos de paz, de violência e todas as suas impli-
cações: como os fundamentos das pesquisas para a paz, o campo cientíco
e as propostas que deveriam surgir a partir dessa perspectiva. De forma
inovadora, a denição que ele exprimiu para violência como conceito es-
tabelece-se quando as realizações dos seres humanos estão aquém do seu
potencial, logo, a violência está presente quando existe uma inibição na
capacidade de ação dos seres humanos. Nesses termos, admite-se que para
existir violência são necessários um sujeito, um objeto e uma ação. Além
disso, a violência é composta por algumas dimensões, tais como física e
psicológica, visível e não visível (GALTUNG, 1969, p. 168–169).
A violência física é mais fácil de ser notada, pois é perceptível e
material, afeta o corpo (objeto da ação). Já a psicológica, afeta o emocio-
nal do indivíduo e pode caracterizar-se por mentiras, ameaças e diversas
estratégias de dominação. Assim, essa tipologia compreende as violências
que colaboram para limitar a capacidade de sentir e pensar do ser humano.
Na mesma publicação de Galtung (1969), a “violência visível” é
a “violência direta”, “violência manifesta” já que é observada por alguém,
logo, o exemplo notório está contido na “violência física” e na “violência
psicológica”, porque os agentes usam da ação violenta com o propósito de
agredir, ofender ou eliminar os destinatários da ação. Já na violência não
visível, ou “violência indireta”, estão contidos outros dois tipos de violên-
cias: a “violência cultural” e a “violência estrutural”.
Inicialmente é importante uma série de distinções entre os tipos
de violência. O primeiro deles refere-se à diferença entre violência física
e psicológica: o ponto de divergência está no fato de que a primeira atua
no corpo, enquanto a segunda, no que não é tangível, mas faz parte do
indivíduo, como o seu psicológico. Outro ponto importante para Galtung
(1969) é a distinção entre violência pessoal e violência estrutural. Na pri-
meira, há um sujeito, um ator, cometendo a violência, então ela é pessoal
ou direta. Quando não há, ela é chamada de estrutural. Em ambos os
casos, pode haver indivíduos mortos e/ou feridos. Porém, no tipo estrutu-
ral, trata-se de uma violência constituída dentro de uma estrutura (social,
econômica), que se mostra evidente por meio da desigualdade e das dispa-
ridades de oportunidades oferecidas. Assim, mesmo que a elite promotora
42
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
das desigualdades seja removida da estrutura, qualquer outra que faça parte
e não reformule a estrutura, irá reproduzir esse tipo de violência.
Um pouco depois da tipologia de violência que ele formulou nos
anos 1960, Galtung escreveu sobre a violência cultural nos anos 1990.
Podemos considerar a violência cultural, a partir da publicação do norue-
guês (1990), como sendo a base para a violência indireta, uma vez que ela
pode ser qualquer aspecto cultural que enseja a intolerância por razões de
religião, ideologia, linguagem, raça, etnia, etc. A violência estrutural, por
sua vez, está inserida nas estruturas sociais e está relacionada diretamente
a injustiças sociais. Exemplos podem ser situações de exploração, discrimi-
nação ou de marginalização de indivíduos na estrutura social.
Tratada dessa maneira, visualiza-se o “triângulo da violência
de Galtung” onde no ápice está a violência visível (violência direta) e na
base, compondo cada vértice, estão as manifestações invisíveis e indiretas
de violência que são a violência cultural e violência estrutural. Posto que
há interface entre elas, para Galtung (1990), a violência pode começar
em qualquer vértice do triângulo e ser transmitida para os outros. Desse
modo, a violência pode ser iniciada originalmente na base: como violên-
cia cultural, migrando para violência estrutural, até ser manifestada como
violência direta.
Por m, trabalhada a ideia de violência de acordo com Galtung,
pode-se chegar ao conceito de paz positiva, uma vez que esse entendi-
mento de paz é a ausência de qualquer forma de violência (GALTUNG,
1969). Para melhor compreender, o autor separa a redução da violência
direta alicerçada na realização da paz negativa e a redução e eliminação das
violências indiretas (cultural e estrutural) como fecundas para alcançar a
paz positiva. Na primeira vertente, instituições internacionais, tais como a
Organização das Nações Unidas (ONU) promovem ações para lidar com o
estancamento de conitos internacionais. Todavia, essa ação é insuciente
já que não elimina estruturas desiguais.
Pensando apenas na violência estrutural, Galtung (1969) arma
que sua principal causa é, como dito anteriormente, a desigualdade, es-
pecicamente aquela ligada à distribuição de poder político e econômi-
co. Neste caminho, o autor elabora a seguinte questão: quais fatores são
43
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
propensos a assegurar a desigualdade? O autor também faz alguns ques-
tionamentos sobre a relação da violência estrutural com a violência pes-
soal. Apesar de considerar os dois tipos de violência como empiricamente
independentes, Galtung questionou-se se a presença de um tipo indica a
ausência de outro ou ainda se um tipo de violência não supõe a latência
da outra. Num campo mais imediato, ele pergunta: “seria um tipo de vio-
lência necessário ou suciente para abolir o outro?” Por certo, é necessário
fazer mais algumas considerações.
A primeira diz respeito a remota suciência da violência estrutu-
ral acabar com a pessoal. Para Galtung, a hipótese é de difícil realização,
pois o conito entre os grupos segregados pelas estruturas não cessa tão
facilmente; pode-se dizer, outrossim, que a estrutura serve para comparti-
mentar a violência pessoal, causando períodos de ausência ou presença dela
na sociedade. A segunda consideração é sobre a necessidade da violência es-
trutural para abolir a pessoal, ao que o autor responde negativamente, pois
a abolição da violência pessoal, segundo ele, depende de ações individuais
e de relações de outros âmbitos que não condizem com a estrutura social.
Num próximo momento, Galtung questiona se a violência pes-
soal é suciente para abolir a estrutural, o que ele prontamente conside-
ra improvável, já que a violência pessoal contra os grupos privilegiados
pode ser eciente para acabar com essa elite pontualmente (sendo um
ato naturalmente violento); porém, acabar com uma estrutura violenta
refere-se a outro processo, mais complexo e longo do que o presente: não
se elimina essa estrutura aniquilando um grupo privilegiado que geren-
cia a violência. Galtung arma que acabar com os grupos privilegiados
é plausível e palpável em curto prazo; acabar com a estrutura violenta é
algo longínquo, que deve ser planejado e praticado por anos. Logo, esse
é o desao imposto pela perseguição da paz positiva nas pesquisas para a
paz: produzir conhecimento que vislumbre a reformas das estruturas ou
a construção de novas estruturas.
Nessa proposição normativa de ciência, não há estímulo a rup-
tura das estruturas pela violência e muitas vezes pode-se indagar a real
viabilidade desse campo do conhecimento. Rebatendo as críticas, ele de-
fendeu que “[...] os Estudos para a Paz, eticamente orientados para a
paz (por oposição à violência e à guerra), não serão menos rigorosos do
44
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
que a investigação médica, eticamente orientada para a cura (por oposi-
ção à doença).” (GALTUNG, 1996, p. 1). Por tratar-se do precursor da
corrente, esse acadêmico é por diversas vezes citados. Mas, a perspectiva
apresentada não é unidirecional e há uma série de outros acadêmicos e
perspectivas plurais dessa área. Para dar conta desse vasto campo é que se
dedica a próxima seção.
A Evolução dAs PEsquisAs PARA A PAz
Especicamente, os fenômenos da paz e da guerra foram recor-
rentemente analisados a partir do interesse do Estado por comandantes
militares, estadistas e acadêmicos de diversas áreas do conhecimento.
Dessa maneira, a paz considerada pela vertente tradicional da teoria
das relações internacionais, o realismo (e o que dele deriva), é a paz
negativa equivalendo a ausência de guerra e conito dentro do Estado
e/ou no sistema internacional. Logo, os marcos históricos, tais como
o Tratado de Versalhes (1919), simboliza paz como o m da Primeira
Guerra Mundial (1914–1918).
Não somente em Relações Internacionais, como também noutras
áreas das humanidades, a compreensão de paz sempre esteve alicerçada
na ocasião em que não há beligerância. Logo, por mais que o centro de
conitos da Universidade de Michigan tenha inaugurado nos anos 1950 a
análise e estudos de conitos, quando geralmente guerra era o fenômeno
social estudado, o enfoque estava na redução da incidência e da exten-
são dos confrontos armados. Dessa maneira, a nalidade era cumprir com
estudos cientícos que equacionassem a melhor forma para agilizar esse
processo, mais uma vez obtendo o m das hostilidades que é a realização
da paz negativa. Nesses termos, ao sintetizar as principais vertentes das
pesquisas para a paz, Celestino Arenal (1987, p. 553–554) classicou a
primeira, paz como ausência de guerra, como corrente minimalista; o en-
foque de redução de conitos armados, entre os seguidores do centro cria-
do na Universidade de Michigan, como corrente intermediária; e aquele
inaugurado por Galtung como a corrente maximalista. Com isso, há uma
vasta área de pesquisas para a paz cujo enfoque desdobra-se nas inovações
propostas por aqueles centros fundadores e os novos centros emergentes.
45
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Destaca-se que há majoritariamente produção cientíca em países desen-
volvidos e poucos centros e programas de pós-graduação/graduação com
esse enfoque nos países em desenvolvimento.
Na concepção maximalista, as pesquisas para a paz propuseram
o rompimento com a distinção positivista entre teoria e prática para as-
sumir uma posição valorativa quanto a paz positiva como objetivo a ser
perseguido. Logo, a vertente tem por nalidade propor modelos analíticos
e políticas (internacionais ou públicas) que auxiliem nesse processo, sendo
necessariamente a natureza da produção teórica “prospectiva e prescriti-
va” (PUREZA, 2001, p. 14). Outros classicaram as pesquisas para a paz
como “teoria normativa” (PUREZA; CRAVO, 2005, p. 4). De qualquer
modo, a ambição dessa perspectiva é a da transformação profunda das
estruturas de poder vigentes, logo, não se trata de negar a realidade. De
fato, a concepção maximalista conhece profundamente as imbricações das
estruturas que promovem a violência nas relações sociais, por meio de es-
tudos empíricos que denunciam as desigualdades.
Pensando dessa maneira, qual é a novidade trazida pela vertente
maximalista já que as outras correntes acadêmicas também zeram isso?
A inovação está em propor o novo rumo ao processo gradual que desarti-
cula a vigência das atuais estruturas de poder político e econômico. Para
isso, o nível de análise vai além da centralidade dos Estados e alcança di-
nâmicas intra-estatais e transnacionais. Posto que a solução não está no
imperativo marxista da revolução, nem na promoção da paz pela ausência
de guerra e tão pouco no fortalecimento das instituições internacionais,
Galtung (1971) discutiu que há “imperialismo” no coletivo das estruturas,
congurando relações sociais de dominação onde há um lado central e
outro periférico. Todavia, ele considerou reducionista a vertente marxis-
ta ao debater sobre as relações de dominação circunscritas a primazia da
exploração econômica. Logo, Johan Galtung argumentou que há relações
de dominação para além do Estado e da esfera econômica, naturalmente
sendo manifestada por diversos conitos de interesses entre grupos sociais
cujas origens podem ser políticas, culturais, étnicas, religiosas, entre outras.
No mesmo artigo, ele também ponderou o problema frequente-
mente existente nas mediações internacionais de conitos ou mediações
de terceiras partes que assumem uma postura altiva, de saber mais sobre
46
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
o conito deagrado do que as próprias partes envolvidas. Assim, essa
fórmula verticalizada de mediar as negociações não poderia levar a mu-
dança da estrutura. Posteriormente, essas premissas que ele levantou no
artigo favoreceram o desenvolvimento da linha acadêmica de resolução de
conitos. Essa vertente, com aplicação prática, resultou no que a ONU
desenvolveu nos anos 1990 e também em práticas mais horizontais de in-
teração com as partes em contenda (RAMSBOTHAM; WOODHOUSE;
MIALL, 2011). Nessa linha, Lederach (2011) inovou com a proposta da
transformação do conito” que pode ser entendida como a interação da
terceira parte que tem a responsabilidade de conduzir os diálogos entre os
diversos grupos em contenda para outro patamar, mas não impondo uma
direção. Logo, são as partes em litígio que denem quais serão os acor-
dos estabelecidos num processo longo e gradual. E isso difere bastante da
prática da ONU, posto que há orçamento de Estados envolvido e tempo
pré-estabelecido para a execução.
Outra ideia a ser destacada de Galtung sobre o imperialismo
denido no artigo, é recordar que essa produção analítica foi contem-
porânea ao período da détente (SARAIVA, 2008) quando muitos mo-
vimentos sociais, grupos de pesquisa e tomadores de decisão estavam
trabalhando em temas tais como: o desarmamento, a transformação do
sistema global desigual, as questões ambientais e a análise dos processos
de negociação e mediação.
Com notório desenvolvimento na Europa Ocidental, as pes-
quisas para a paz alcançaram outros países e de outros continentes, tais
como: Canadá e Estados Unidos ainda nos anos 1970 (LOPEZ, 1985,
p. 117). Toma-se como exemplo algumas das reconhecidas universidades
da Europa Ocidental, além daquelas já mencionadas no início do capí-
tulo: Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), Suécia;
Tampere Peace Research Institute, Finlândia; Copenhagen Peace Research
Institute, Dinamarca; City University, Reino Unido; Free University,
Alemanha; Uppsala University, Suécia. Em 1971, a UNESCO identicou
mais de 140 institutos e programas de pesquisas para a paz ao redor do
globo (LOPEZ, 1985, p. 120). No levantamento, pode-se perceber que
existiam centros voltados para a educação para a paz e pesquisa. Logo,
os centros de pesquisa concentravam-se em teoria, história, investigações
47
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
empíricas num nicho; perspectivas valorativas noutro; e havia menor con-
centração em desenvolvimento de métodos especícos de pesquisa para a
área (EVERTS, 1972). Até mesmo uma associação cientíca de pesquisas
para a paz foi formada em 1964, a International Peace Research Association.
Quanto aos institutos de pesquisa para a paz em países em de-
senvolvimento, destacam-se alguns, tais como: Institute of Peace and
Conict Studies, Nova Deli, Índia; Universidade das Nações Unidas (uma
na Costa Rica e outra em Tóquio); Malaviya Centre for Peace Research,
Varanasi, Índia; African Centre for Peace Research, Ilorin, Nigéria; Peace
and Conict Studies, International Islamic University, Malásia.
Pode-se dizer, portanto, que tamanha variedade de produção de-
senvolvida oscila entre os centros que produzem pesquisas em torno do
que se deniu como paz negativa e paz positiva. Assim, Oliveira (2017, p.
155) deniu no primeiro recorte os temas que convergem com a violência
explícita: razões, causas e dinâmicas das guerras e conitos. Os pesquisa-
dores que se inclinam nesse eixo atuam na compreensão dos processos de
negociação, na atuação das Organizações Internacionais, no desarmamen-
to e controle de armas (nucleares, químicas e biológicas) e qualquer forma
de supressão da violência física e direta. A perspectiva da paz positiva reúne
temáticas, tais como: mudança de mentalidades, relações sociais, educação,
cooperação entre países e outras propostas que deem amplitude a referida
“integração humana” de Galtung.
Uma vez cumprida essa etapa, o m da Guerra Fria gerou opor-
tunidades para a ONU. A euforia com o m do socialismo e a profusão
de novos conitos em países em desenvolvimento fez com que o secre-
tário-geral da época, Boutros Boutros-Ghali (1992–1997), adotasse uma
agenda internacional conhecida como “Uma Agenda para a Paz” em 1992.
Durante os anos 1990, a contribuição das pesquisas para a paz foi dividida
em vertentes: uma contribuindo com ferramentas de resolução de coni-
tos, outra criticando a atuação da ONU nas operações de paz por não cor-
responder a materialização dos valores descritos na Carta de São Francisco.
Tal década também convergiu com a profusão de teorias pós-positivistas
das relações internacionais. Nesse rico cenário, uma das vertentes das pes-
quisas para a paz inclinou-se em oferecer apoio ao que a ONU realizava
em campo. Nesse aspecto, descaracterizou a fundação crítica da corrente.
48
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Pureza e Cravo (2005, p. 6) anunciaram que houve cooptação das pes-
quisas para a paz pelas estruturas internacionais de poder. Assim, as crí-
ticas a essa corrente, bem como a frequente acusação de que a paz liberal
promovida pela ONU era insuciente para proteger os indivíduos, cul-
minou com a chamada “virada local” a partir dos anos 2000 (BORGES;
MASCHIETTO, 2014), na qual a nova produção cientíca das pesquisas
para a paz migraria de abordagens verticalizadas de promoção da paz para
a busca do saber dos atores locais sobre as respostas para o próprio proces-
so de condução a paz. Nesse resgate, ferramentas bem práticas, tais como
aquelas utilizadas por Lederach (2011) reorientam e inspiram o foco de
acadêmicos “praticantes” de suas fórmulas/modelos/políticas, com analis-
tas que buscaram consolidar conhecimento sobre atores locais em proces-
sos de recuperação de países que passaram por conitos ou guerras civis
(CHANDLER, 2013; RICHMOND, 2015).
No balanço mais recente, Diehl (2016, p. 2–3) critica que o
avanço das pesquisas para a paz problematizou muito mais estudos com
o resgate da paz negativa do que da paz positiva. Ele mencionou uma
série de categorias de paz e denominações que foram desenvolvidas desde
a fundação da corrente maximalista, sendo que grande parte desse desen-
volvimento está em categorias associadas a paz negativa. Por outro lado,
no levantamento que esse acadêmico fez sobre as simbólicas entregas do
Prêmio Nobel da Paz entre os anos 1901 e 2015 (DIEHL, 2016, p. 3), per-
cebe-se que, a partir da Guerra Fria, muitas lideranças foram reconhecidas
pela promoção de paz positiva e com ações atinentes ao desenvolvimento,
defesa de direitos humanos e promoção da igualdade de gênero.
Posto que é pertinente a crítica que Diehl levanta sobre a parca
produção cientíca que envolva a paz positiva, percebe-se que o avanço se
deu em ações de pessoas que sequer estiveram envolvidas com a corrente
maximalista enquanto acadêmicas. Há algumas iniciativas que remontam
a vertente crítica das pesquisas para a paz. Sobretudo, defende-se que aca-
dêmicos de países em desenvolvimento devem alargar o próprio arcabouço
teórico sobre violência e buscar alternativas que estejam amparadas nas re-
alidades observadas. Dessa maneira, evita-se apenas a assimilação do que é
produzido nos centros de pesquisas para a paz de países desenvolvidos que
têm um quadro conjuntural de violência bastante distante dos países em
49
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
desenvolvimento (MATIJASCIC; BUENO, 2017). Nesse aspecto, a Rede
de Pesquisa em Paz, Conitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS)
vem sendo uma alternativa, com alguns resultados imediatos como: as pu-
blicações no endereço eletrônico do PCECS e com os encontros anuais, I
e II Encontro Brasileiro de Estudos para a Paz.
Resgatando o estudo mencionado pela UNESCO, essa agência
especializada da ONU foi aquela que mais se interessou pela emergên-
cia da corrente maximalista. Destaca-se na próxima seção a importância
dos projetos desenvolvidos, como a promoção da Cultura para a Paz e o
Educação para Todos.
o ATivismo dA culTuRA dA PAz E A unEsco
A UNESCO é uma das agências especializadas criada no pós-
-guerra. Em novembro de 1945, vinte países
3
assinaram a Constituição
que assumiu o compromisso de contribuir para a difusão e desenvolvimen-
to da ciência, cultura e educação pelo mundo. Em novembro de 1946, a
UNESCO, com sede em Paris, passou a trabalhar em prol da paz e segu-
rança, da promoção da cooperação entre as nações, do respeito univer-
sal à justiça, direitos humanos, educação e liberdades fundamentais. Nos
termos da Constituição da UNESCO também consta uma premissa que
a aproximou das pesquisas para a paz “Como as guerras se iniciam nas
mentes dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem
ser construídas”.
A UNESCO acompanhou o surgimento dos programas de estu-
do para a paz nos anos 1970 (LOPEZ, 1985, p. 120) com o objetivo de
vericar quais metodologias foram desenvolvidas. Grande parte desse inte-
resse surgiu para perceber o que poderia ser aproveitado pela agência. Em
20 de novembro de 1997, a ONU proclamou que o ano 2000 seria o Ano
Internacional da Cultura da Paz e marcou o início da mobilização mundial
para realizar ações concretas em torno dessa temática. Um ano depois, a
ONU instituiu que a década entre os anos de 2001 e 2010 seria a Década
África do Sul, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, China, Checoeslováquia, Dinamarca, Egito,
Estados Unidos, França, Grécia, Índia, Líbano, México, Nova Zelândia, Noruega, República Dominicana,
Reino Unido e Turquia.
50
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Internacional da Promoção da Cultura da Paz e Não Violência. Acima de
tudo, a UNESCO programou um Plano de Ação contemplando: educa-
ção para a paz, a promoção da economia e desenvolvimento sustentável,
respeito aos direitos humanos, igualdade entre homens e mulheres, demo-
cracia participativa, tolerância, uxo livre de informações e incentivo ao
desarmamento (A/RES/53/243).
Na mesma resolução, a cultura da paz foi denida como um
conjunto de valores, atitudes e comportamentos que rejeitam a violência,
previnam a deagração de conitos a partir da detecção das raízes do con-
fronto armado e tenham como objetivo resolver problemas com diálogo
e negociação. De forma inclusiva, a Declaração Mundial sobre Educação
para Todos (1990) foi o resultado da Conferência Mundial de Educação
para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia. Essa reunião preparou mi-
nistros de diversos países para estarem atentos quanto a inclusão de dife-
rentes pessoas no sistema educacional, além de incentivar o acesso a edu-
cação para todos os cidadãos. A Conferência ocorreu a partir do incentivo
político do Banco Mundial em parceria com o Fundo das Nações Unidas
para Crianças (UNICEF) e UNESCO (JONES; COLEMAN, 2005).
A inclusão do primeiro ponto, inserir diferentes pessoas no sis-
tema educacional, foi importante para o pleno exercício da tolerância
e compreensão sobre a diversidade em sala de aula, posto que o desao
era integrar crianças e adolescentes com alguma mobilidade reduzida e/
ou deciência intelectual. O outro desao era fazer com que a educação
chegasse ao patamar universal, sabendo que esse não era um direito de
todos em muitos países. Assim, como parte vinculante de todos esses obje-
tivos, o programa Educação para Todos, norteado pela educação para a paz
(UNESCO), integrou os debates da Assembleia Geral a partir da Cúpula
Mundial em 2000. Neste encontro, os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio tornaram-se um conjunto de metas que incluíram educação como
prioridade e o recorte temporal estabelecido para o balanço nal foi o ano
de 2015. Alcançada essa data, e certicada a necessidade de renovação da
expansão do ensino primário e secundário em escala universal
4
, os compro-
O ensino primário sistematiza todo o conhecimento a ser depreendido pelo estudante durante a infância,
sendo que a transição para o ensino secundário acontece quando o estudante alcança a adolescência. No sistema
educacional brasileiro, o primeiro exemplo consiste no ensino fundamental enquanto que o segundo consiste
no ensino médio.
51
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
missos renovados estão na atual agenda dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável para novo balanço nal previsto para o ano de 2030.
Qualquer processo que ambicione redução e eliminação da vio-
lência contempla o acesso e a melhoria da educação nos países. Segundo
a UNESCO (2013), ainda há quatro anos existem mais de cinquenta por
cento das crianças fora da escola. Reverter esse quadro é um grande desa-
o que norteia e norteou a condução das metas, de 2015 e de 2030, com
algumas conquistas e em processo longo e gradual. Dado que a mudança
de mentalidades passa pela educação, quando a UNESCO coloca como
um dos objetivos assegurar sociedades pacícas como missão da agência, a
primeira deve ser estimular o acesso universal a educação. Para tanto, uma
série de parcerias é necessária. Nesse aspecto, a UNESCO também ingressa
como estimuladora do processo.
considERAçõEs finAis
Pode-se entender que não há necessariamente uma cisão entre
conhecimento cientíco e prático nas pesquisas para a paz e muitas re-
des, instituições e atores estão envolvidos na busca por alternativas que
proponham soluções. Não se pretendeu demonstrar que o surgimento da
UNESCO, ou até mesmo do programa Educação para Todos, está ali-
cerçado no que preconizou essa linha de pesquisa, até mesmo porque é
anacronismo armar isso. A agência está solidamente amparada na Carta
de São Francisco e nos compromissos nela registrados.
Tendo em vista os compromissos da Carta e a missão da
UNESCO, existiu o notório aproveitamento dessa nova corrente de pes-
quisa quanto nova fonte de alternativas para buscar ideias que pudessem
promover sociedades pacícas. Contudo, o desao é impulsionar o acesso
a educação para todos em países em desenvolvimento enquanto as estra-
tégias de qualidade do sistema de ensino são implantadas em províncias e
regiões nas quais esse direito já é assegurado.
Quanto ao desenvolvimento e a evolução das pesquisas para a
paz, é muito importante notar que embora a mesma tenha tido ensejo
no período da détente não está apenas circunscrito a ela. Isso quando se
52
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
estende o olhar para os movimentos pacistas do século XIX e início do sé-
culo XX como parâmetros de primórdios de indivíduos preocupados com
soluções práticas voltadas para a paz. Com esse histórico, enxergando a
universidade como catalisadora das demandas da sociedade, exatamente
essas universidades e institutos de pesquisa que propuseram a reexão que
assumiu o contorno de um campo de pesquisa que rompeu com a neutra-
lidade em busca de utilizar a ciência como meio para alcançar melhoria
da realidade que presume violências direta, estrutural e cultural. Nesses
termos, Galtung foi um marco que se desdobrou na evolução de diferentes
respostas para a busca da paz positiva.
Uma vez que a atual evolução dessa literatura foi reorientada para
a análise das respostas locais quanto ao problema da paz, resta a dúvida a
ser respondida no futuro que é: se, em detrimento de um motor propulsor
do desenvolvimento da área em notórios centros de excelência, haverá a
plena fragmentação em busca de respostas locais que se percam no proces-
so. Não se adota uma posição pessimista porque muitas propostas univer-
salizantes experimentadas durante o século XX fraquejaram em proporcio-
nar uma sociedade mundial mais justa e pacíca. Mesmo o liberalismo que
se desenvolveu de forma notória nos segmentos econômicos e políticos,
não promoveu menos guerras e conitos naquele século e no corrente XXI.
Logo, o que se pode esperar das respostas locais aos processos de busca pela
paz positiva é muito possível de funcionar em determinadas realidades e
regiões geográcas. Todavia, seria um equívoco notório repetir fórmulas
universalizantes de aplicação de processos bem-sucedidos em determina-
dos países, alimentando a expectativa de que o resultado seja o mesmo. As
sociedades são bastante plurais e cada processo histórico é singular.
REfERênciAs
ARENAL, C. La investigación sobre la paz: pasado, presente y futuro. In: CONGRESO
INTERNACIONAL SOBRE LA PAZ, 1987, México. Anales... México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 1987. t. II, p. 549–586.
BLACKWELL, J. No peace without freedom: Race and the Womens International
League for Peace and Freedom, 1915–1975. Carbondale: Southern Illinois University
Press, 2004.
53
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
BORGES, M.; MASCHIETTO, R. H. Cidadania e empoderamento local em
contextos de construção da paz. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 105, p.
65–84, 2014.
CHANDLER, D. Peacebuilding and the politics of non-linearity: rethinking ‘hidden
agency and ‘resistance’. Peacebuilding, v. 1, n. 1, p. 17–32, 2013.
CORTRIGHT, D. Peace: a history of movements and ideas. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008.
DIEHL, P. Exploring peace: looking beyond war and negative peace. International
Studies Quarterly, Beverly Hills, v. 60, p. 1–10, 2016.
EVERTS, P. P. Developments and trends in peace and conict research, 1965–1971: a
survey of institutions. Journal of Conict Research, v. 16, n. 4, p. 477–510, 1972.
GALTUNG, J. An editorial. Journal of Peace Research, London, v. 1, n. 1, p. 1–4, 1964.
______. Violence, peace and peace research. Journal of Peace Research, London, v. 6, n.
3, p. 167–191, 1969.
______. A structural theory of imperialism. Journal of Peace Research, London, v. 8, n.
2, p. 81–117, 1971.
______. Cultural violence. Journal of Peace Research, London, v. 27, n. 3, p. 291–
305, 1990.
______. Peace by peaceful means: peace and conict, development and civilization.
London: Sage, 1996.
JONES, P.; COLEMAN, D. e United Nations and education: multilateralism,
development and globalization. New York: Routledge Falmer, 2005.
LEDERACH, J. P. Transformação de conitos. São Paulo: Palas Athenas, 2011.
LOPEZ, G. A. A University Peace studies curriculum for the 1990s. Journal of Peace
Research, London, v. 22, n. 2, p. 117–128, 1985.
MATIJASCIC, V.; BUENO, N. Exploring peace in the global south: partnerships and
challenges. Mundorama: Revista de Divulgação Cientíca em Relações Internacionais,
Brasília, DF, v. 11, n. 114, fev. 2017. Disponível em: <https://www.mundorama.
net/?p=21799>. Acesso em: 10 jul. 2017.
OLIVEIRA, G. C. Estudos da paz: origens, desenvolvimentos e desaos críticos atuais.
Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p. 148–172, 2017.
PUREZA, J. M. Estudos sobre a paz e cultura da paz. In: ______. (Org.). Para uma
cultura da paz. Coimbra: Quarteto Editora, 2001. p. 33–42.
PUREZA, J. M.; CRAVO, T. Margem crítica e legitimação nos estudos para a paz.
Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 71, p. 5–19, jun. 2005.
RAMSBOTHAM, O.; WOODHOUSE, T.; MIALL, H. Contemporary conict
resolution: concepts and denitions, and conict. Cambridge: Polity Press, 2011.
54
Sueli Guadelupe de Lima Mendonça; Maria José da Silva Fernandes
Julio Cesar Torres; Maria Raquel Miotto Morelatti
(Oraganizadores)
RICHMOND, O. P. e dilemmas of a hybrid peace: negative or positive? Cooperation
and Conict, London, v. 50, n. 1, p. 50–68, 2015.
SARAIVA, J. F. S. (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da
sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008.
UNESCO. EFA Global Monitoring Report. Children still battling to go to school.
Policy Paper, n. 10, jul. 2013.
documEnTos dA onu
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral das Nações
Unidas. A/RES/53/243. Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.
asp?symbol=A/RES/53/243>. Acesso em: 8 jun. 2018.
55
E,  
  R I:
A      
Karine de Souza Silva
Gustavo Henrique S. Bodenmüller
As matrizes de análise do mundo que predominam desde o sur-
gimento das relações internacionais são derivadas de um projeto eurocên-
trico de poder. Assim, a concepção e a reprodução de conceitos que têm
pautado a agenda internacional, tais quais paz, democracia, desenvolvi-
mento e progresso, fazem parte deste arcabouço hegemônico. A Europa,
ao forjar o caráter pretensamente universal e de construção coletiva destes
conceitos, age de modo a negar e subjugar os saberes e as historicidades de
povos não-europeus e não-ocidentais. A subsequente imposição de valores
pautados numa perspectiva particular (eurocentrada) de mundo a outros
povos, triunfa pari passu ao cerceamento de possibilidades de pluralidade e
de representatividade para outras culturas.
Nesta esteira, o conceito de paz oriundo do pensamento ociden-
tal vigente está igualmente enraizado nesta arquitetura que subestima e
silencia as alteridades. Destarte, é fundamental problematizar a subjetivi-
dade da Europa como lugar central para a produção de saber e exercício
56
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
de poder, do mesmo modo que é fundamental problematizar a concepção
de paz originária de uma matriz ocidental colonial, racial, hétero-patriar-
cal que durante os últimos cinco séculos tem se utilizado das mais cruéis
barbáries para se expandir e para impor o seu projeto civilizacional ao re-
dor do mundo (MORIN, 2009). Por isso, convém examinar a validade
deste projeto de paz para as relações internacionais e reetir sobre o uso de
conceitos como o de paz, igualdade e desenvolvimento que perpetuam a
colonialidade e a hegemonia Ocidental, por meio da manutenção do pro-
jeto civilizacional europeu que é baseado na hierarquização e na conquista.
Neste sentido, o presente texto debaterá alguns dos aspectos da origem e
conservação de lógicas de dominação nas relações internacionais. O propó-
sito subjacente é o de defender a construção de relações heterárquicas, isto
é, de estruturas que não contam com um plano sob o outro, mas sim com
diversas esferas que se relacionam em igualdade, como elemento funda-
mental para alcançar a paz pluriversal e não apenas universal. Igualmente,
entende-se que paz racial, heteropatriarcal e hierarquizada fundada na do-
minação e na conquista, é a paz que não se quer conservar.
O primeiro tópico do texto apresenta os elementos fundantes
das Relações Internacionais (RI), enquanto Disciplina, e das relações in-
ternacionais, como jogo político, investigando a herança e a reprodução
de elementos eurocêntricos/ocidentalcêntricos neste campo de disputas.
Em seguida, são apresentadas contribuições das abordagens epistêmicas
pós-coloniais e decoloniais sobre esferas não-materiais de dominação, es-
tendendo-se para conceitos interconectados ao papel Estado que refor-
çam a subjugação de vozes e visões de mundo não-ocidentais. Por m,
algumas considerações são traçadas, ressaltando os ganhos de relacionar
paz às noções de heterarquia para a promoção de um mundo que não
considere um determinado conjunto de valores superior aos demais, isto
é, um mundo pluriversal.
o disfARcE dos vAloREs EuRoPEus nAs (R)RElAçõEs (i)
inTERnAcionAis
O binômio “guerra-paz” ocupa uma posição central na Disciplina
das Relações Internacionais desde a sua origem formal, no pós-Primeira
57
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Guerra Mundial. Tanto os conceitos de guerra e paz como os ideais euro-
centrados de igualdade, democracia, desenvolvimento e progresso cimen-
taram a base da Disciplina. Assim, desde o seu surgimento, a promoção de
valores europeus perpassou a edicação e consolidação das RI de maneira
hegemônica, do mesmo modo que provocou a subalternização de outras
ideias e visões.
Branwen Gruydd Jones (2006) observa que tanto a herança his-
tórica intelectual das RI (Tucídides, Hobbes, Locke…), quanto o poderio
decorrente da colonização no século XVI, rmaram as origens e a constru-
ção da Disciplina a partir da supremacia europeia nas relações de poder,
e da subjugação de outros povos. O Eurocentrismo compôs o campo de
estudos, justamente porque antes dele já subjazia as relações sociais. E esse
domínio intelectual não apenas modelou a academia, mas também deniu
a estrutura das interações entre atores, a arquitetura do sistema multilateral
e a própria formatação do Direito Internacional Público, cujas regras sem-
pre estiveram a serviço das hegemonias.
Neste sentido, é fundamental reconhecer a herança colonial das
relações internacionais, o caráter imperial e desigual do sistema-mun-
do e, sobretudo, admitir que o “[...] legado europeu para a maior parte
do mundo tem sido o de autoritarismo, pilhagem, racismo e, em signi-
cantes casos, massacre e genocídio.” (JONES, 2006, p. 4). Segundo
argumenta Morin, “[...] observam-se cinco séculos de furos de barbá-
rie europeia, cinco séculos de conquistas, de opressão, de colonização.
(MORIN, 2009, p. 37).
As teorias do mainstream fantasiaram uma origem mitológica das
RI que “[...] envolve a dupla manobra de silenciar ou negar a historicida-
de de povos não-ocidentais e idealizar a distorcida história do Ocidente
– mais especicamente, da Europa.” (JONES, 2006). Tal artifício deli-
beradamente propiciou a formação de um melhor ambiente possível para
a predominância das potências europeias na disciplina e no sistema. Os
discursos que apontam a Europa como o centro da Modernidade transfor-
maram a expansão colonial brutal como parte de um projeto civilizatório
e iluminista Ocidental. Segundo Sandra Halperin, “[...] a noção de mo-
dernidade europeia foi produzida como parte de um projeto hegemônico.
(HALPERIN, 2006, p. 58).
58
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Por m, o Eurocentrismo impôs diversas limitações de entendi-
mento às RI já que empobrece, nega, objetica e homogeniza o ‘Outro’.
Neste sentido, Quijano (2005) observa que o Eurocentrismo caminha
passo a passo com a colonialidade em suas três facetas: do ser, do saber
e do poder. A colonialidade é derivada da invenção das raças e da hierar-
quização, fazendo que determinados seres humanos sejam considerados
superiores a outros.
Aníbal Quijano argumenta que a estrutura do sistema-mundo
eurocêntrico e capitalista só foi factível graças a criação da ideia de raças,
que foi inaugurada com a subjugação dos ameríndios e se espalhou para
outros territórios nomeadamente, Ásia, Oceania e, em certa medida, até
para o Leste e Sul da Europa. Segundo Quijano:
Na América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimi-
dade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior
constituição da Europa como nova identidade depois da América e a
expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à
elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à
elaboração teórica da idéia de raça como naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamen-
te, isso signicou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e
práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e
dominados. (QUIJANO, 2005, p. 118).
Quijano também argumenta que como todas as estruturas eco-
nômicas e sociais padronizaram-se baseadas no modelo europeu, a sub-
jetividade, a cultura e a produção de conhecimento caram, do mesmo
modo, sob a égide da Europa. O “Descobrimento” signicou, desta forma,
um “Encobrimento” (DUSSEL, 1992). Daí advém, a cisão discriminatória
entre corpo e alma, razão e emoção, que conferiram às ex-colônias o status
permanente de redutos do trabalho corporal, do não-pensar. O campo das
RI, por seu lado, já nasceu capturado por essa percepção.
A titularidade da construção do saber, que foi determinada à
Europa, gerou a formulação de conceitos e teorias que privilegiam o locus
do sujeito de fala.
Assim, os princípios e normas do sistema internacional foram
moldados para garantir a manutenção de poder do Ocidente.
59
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Após os horrores da 2
a
Guerra, em 1945, cinquenta Estados
1
subscreveram a Carta de São Francisco, em um mundo formado à época
por cerca de 75 nações, na maior parte europeias e americanas. Naquele
período, um terço da população mundial vivia sob o jugo do colonia-
lismo europeu e habitava em um território considerado não-autônomo
ou administrado pelas potências coloniais (BOURDON, 2005, p. 197).
Paradoxalmente a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) con-
sagrou, em seu artigo 2
o
, o princípio da igualdade entre os Estados como
regra fundante da Organização e como elemento crucial para a edicação
da nova ordem mundial pós-Guerra.
Entre 1945 até a queda do Muro de Berlim, oitenta e nove das
antigas colônias alcançaram a independência (onze na década de 1950,
oito nos anos 1950, quarenta e quatro no decorrer da década de 1960,
vinte e quatro nos anos 1970 e dois nos idos de 1980) (RASILLA DEL
MORAL, 2011, p. 39).
Entretanto, a expansão das Nações Unidas, a universalização do
Direito Internacional e a multiplicação de atores no palco do sistema in-
ternacional não implicaram necessariamente no surgimento de uma ordem
mais justa e igualitária.
É certo que o novo sistema multilateral viabilizou a formação
de um renovado campo de disputas, onde os sujeitos passaram a ocupar
espaços e promover foros de concertação destinados à defesa dos princí-
pios da igualdade e da paz e, sobretudo, do combate ao colonialismo e à
discriminação.
Estes empenhos resultaram em importantes alterações no siste-
ma, nomeadamente, em reformas institucionais na própria ONU (como
a ampliação do número de membros eletivos do Conselho de Segurança
e do Conselho Econômico e Social, o alargamento da Assembleia Geral
(AGNU)); na aprovação de diversas normativas no âmbito da AGNU,
entre as quais se destacam: a Resolução 1514 de 14 de Dezembro de 1960
que continha a ‘Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países
e Povos Coloniais’; a 1541 e a 1542 datadas de 15 de Dezembro do mes-
“No dia 26 de junho, último dia da Conferência, foi assinada pelos 50 países a Carta, com a Polônia – também
um membro original da ONU – assinando-a dois meses depois.” (ONU).
60
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
mo ano; a Resolução 2625 de 24 de Outubro de 1970 que engloba a
Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional concernente às
relações de amizade e à cooperação entre os Estados em conformidade com
a Carta das Nações Unidas; as Resoluções 68/237 e 69/16 que proclamam
a Década Internacional de Afrodescendentes, etc..
Entretanto, apesar de todos os logros, a capacidade de agência
desses novos entes ainda é fragilizada e a concepção de igualdade sobera-
na entre os Estados permanece no terreno formal, já que o grau de hierar-
quização segue praticamente inabalado e a velha Europa ainda segue se
utilizando das mesmas lógicas imperiais para justicar a superioridade e a
ingerência nos assuntos internos dos Estados do Sul Global. O expansio-
nismo europeu ganha novos contornos na contemporaneidade. Segundo
Wallerstein, a Europa historicamente tomou para si a missão civilizadora
do mundo e, consequentemente, se apoderou do direito à ingerência.
Para o autor, a intervenção “[...] é um direito apropriado pelos fortes
[...]” e para justicá-la recorrem a argumentos morais: “[...] a lei natural
e o cristianismo no século XVI, a missão civilizadora no século XIX e os
direitos humanos e a democracia no nal do século XX e início do sé-
culo XXI.” (WALLERSTEIN, 2007, p. 59). Quando os povos africanos
conseguiram satisfazer os seus pleitos de não-ingerência junto à ONU, os
países europeus passaram a suscitar o direito de ingerência baseando-se
em outro argumento: a democracia e os direitos humanos. Assim, resta
demonstrada a continuidade entre as doutrinas utilizadas para legitimar
o colonialismo e as concepções neo-coloniais atuais. A continuidade des-
ta lógica hierarquizante demonstra que a sociedade atual ainda não é
exatamente pós-colonial.
Nesta linha, é necessário problematizar alguns conceitos ociden-
tais como os de igualdade, de paz e de democracia. Como partir de uma
matriz de paz herdada de uma Europa imperial, racialista e que tomou para
si a missão civilizadora do mundo? Como pensar a construção epistemo-
lógica da paz a partir de uma visão colonial sobre o Sul global, desenvolvi-
mento, direitos humanos e, nalmente, sobre paz?
O signicado de paz empregado nas relações internacionais foi
arquitetado dentro de um quadro epistemológico colonial. Desde as ori-
gens, no marco do pensamento ocidental, o conceito de paz adquiriu di-
61
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
ferentes roupagens e utilidades. Em contrapartida, a sua relação com o
estado de guerra e de violência ocupou um papel constante na construção
e no debate do conceito. Aliás, a incidência de guerras sempre foi uma
constante no desenvolvimento das relações internacionais no Ocidente.
Segundo Douglas Fry a guerra é uma parte signicativa da cultura
Ocidental (FRY, 2007). Neste mesmo sentido, Edgar Morin pontua que a
civilização na Europa é fruto da violência e de barbáries impostas a outros
povos (MORIN, 2009). Assim, é possível iniciar o questionamento de que
o conceito de paz é igualmente uma construção com fundamentos na cul-
tura Ocidental e que não alcança a visão ampla de mundo que tipicamente
subentende-se abarcar.
Oliver Richmond ao investigar o tema dentre as correntes das
RI, indica que a própria reivindicação da paz como elemento central da
disciplina simboliza uma aproximação ao quadro normativo do Ocidente,
uma vez que os aspectos predominantes do mainstream das RI não incluem
a negociação de formas de paz que reitam diferentes ontologias locais e
que promovam a emancipação num contexto global, limitando-se a per-
petuação de um projeto iluminista e liberal de interesses estratégicos do
Ocidente. Assim, as correntes dominantes das RI também colaboraram
para a marginalização de vozes e visões sobre a paz. A centralidade do
Estado e a vinculação da paz a instituições e normas, por exemplo, contri-
buem para que liberdades individuais e entendimentos sobre fatores coti-
dianos e originários a nível local sejam menos relevantes que a dita ordem
internacional. Richmond observa que a promoção de relações pacícas
entre os Estados é prioridade para as teorias de paz ortodoxas e sugere que
metodologias alternativas derivadas de uma abordagem multidisciplinar,
para além das RI, sejam combinadas ao desenvolvimento de uma via media
entre conhecimento local e a ortodoxia das recomendações e das premissas
internacionais sobre paz (RICHMOND, 2008).
A noção de que a paz também pode servir ao interesse de grupos
especícos, a exemplo da paz liberal para democracias liberais desenvolvi-
das, fortalece a concepção de paz política. Também retratando a consecu-
ção de interesses especícos, Richmond demonstra que o conceito de paz
pode estar baseado num conjunto de normas culturais, sociais e políticas
que comumente procura transmitir o senso de secularismo, ainda que na
62
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
realidade reita intimamente inuências não-seculares. A percepção cristã
das cruzadas para a paz nos séculos XI–XIII ou o uso da força para constru-
ção da paz em operações internacionais podem ser exemplos deste aspec-
to. A legítima autodefesa e a ideia de guerra justa são posicionadas como
instrumentos para a preservação, ou o estabelecimento, da ordem após a
tentativa falha de seguir com esforços de paz. Estes entendimentos foram
germinadores das conferências de paz realizadas nos séculos XIX e XX, que
contribuíram para o surgimento de diversos mecanismos internacionais,
tais quais as Nações Unidas (RICHMOND, 2008).
Igualmente integrado à agenda de instituições internacionais, o
conceito de democracia tem acompanhado o conceito de paz, e por ve-
zes ambos são entendidos como pré-requisitos mútuos ao estabelecimento
duradouro do que representam. Boaventura de Sousa Santos atesta que as
teorias da democracia até os anos 1980 consideravam que não era possível
o alcance da democracia sem determinadas condições sociais, econômicas
e institucionais, incluindo sistemas de alfabetização e de reforma agrária.
Contudo, em torno deste período, houve uma transformação na teoria
democrática que deixou de posicionar a democracia como dependente das
condições socioeconômicas e passou a determinar que aquela seria a con-
dição primordial para todos os demais aspectos – conforme cristalizado
na exigência por regimes democráticos demandada pelo Banco Mundial e
o Fundo Monetário Internacional (FMI) para o acesso a instrumentos de
ajuda para o desenvolvimento. É possível questionar que a democracia foi
promovida como a forma mais legítima de governos a serviço da globaliza-
ção liberal (SANTOS, 2017).
No que se refere ao papel de instituições internacionais, espe-
cialmente Organizações Internacionais (OIs) de vocação universal, e seus
trabalhos relacionados à paz e à governança, são traçadas duas breves
considerações sobre a instrumentalização destas estruturas em prol de
grupos especícos.
A primeira é que a capacidade das OIs de serem agentes de suas
próprias agendas em relação aos Estados que as compõem é constante-
mente posta em xeque. Dentre o próprio mainstream das RI há indicativos
deste aspecto: os realistas presumem que devido ao controle das grandes
potências, qualquer mudança na Organização será igualmente advinda das
63
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
demandas dos Estados, e os neoliberais-institucionalistas também sugerem
que transformações nas OIs vão ser reexos das mudanças nas preferências
estatais e de uma necessidade de tornar o funcionamento organizacional
mais eciente e efetivo (BARNETT; FINNEMORE, 2004).
A segunda observação está vinculada a uma contradição primor-
dial: a ação externa é usada para promover a autogovernação de países, isto
é, o esforço de solidicar a autonomia nacional se dá por via da intervenção
internacional. Mesmo que as ações sejam destinadas a auxiliar autoridades
nacionais, a força que elas exercem é inevitavelmente intrusiva, não impor-
tando o quão bem-vindas possam ser (PARIS; SISK, 2007).
Quando associados na agenda internacional, paz, democracia e
OIs, são um conjunto que pode indicar marcas de arquiteturas de domina-
ção nas relações internacionais. Um exemplo desta conguração é o siste-
ma de missões internacionais para construção da paz, que é acentuado por
Paris (2002) como uma versão atualizada da missão civilizatória/mission
civilisatrice com o objetivo de ocidentalizar povos não-europeus. A compa-
ração é advinda do imaginário da era colonial em que os Estados europeus
ditos “avançados” detinham uma responsabilidade moral de “civilizar” so-
ciedades que foram colonizadas, conforme marcado pela Conferência de
Berlim em 1885. Além do senso de supremacia cultural, a noção da missão
civilizatória também se baseou em teorias de superioridade racial, uma vez
que segundo a perspectiva imperialista, as pessoas não-brancas oriundas
dos territórios dominados não eram “membros da mesma ordem moral”
que os brancos e deviam ser tratadas com inferioridade. Segundo Paris, a
atualização contemporânea da missão civilizatória levada por missões de
construção de paz é equivalente à universalização de um modelo particular
de governança doméstica, a democracia de mercado liberal – transmitindo
uma série de normas de comportamento dos Estados desenvolvidos, que
são tidas como aceitáveis ou civilizadas, para os assuntos domésticos de
Estados menos desenvolvidos (PARIS, 2002).
Portanto, o processo de ascensão da Europa não se manteve ape-
nas com base na dominação de colônias, mas sim sustentado numa ar-
quitetura complexa e ramicada que abrange múltiplas esferas. Analisar
e entender a origem e as relações de poder desta natureza são formas de
viabilizar mudanças na manutenção de diversos meios vigentes de domina-
64
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
ção. A próxima seção segue tal argumento e apresenta instrumentos analí-
ticos para a superação de estruturas de poder eurocentradas.
suPERAção dE EsTRuTuRAs hiERARquizAdAs dE PodER: A AlTERnATivA
dEcoloniAl
Os estudos decoloniais buscam transcender o discurso acadêmico
e político de que com término das administrações coloniais e a formação
de Estados na periferia global, a humanidade passou a viver num espaço
descolonizado e pós-colonial. Ramón Grosfoguel (2007) defende que o
mundo não foi completamente descolonizado, pois a primeira onda de
descolonização, sucedida no século XIX pelas colônias espanholas e no XX
pelas britânicas e francesas, foi inconclusa, logo que se limitou à indepen-
dência política e jurídica das periferias. Assim, é necessário um segundo
momento de descolonização, que se aproxime à decolonialidade: com uma
abordagem heterárquica das multiplicidades raciais, étnicas, sexuais, epis-
têmicas, econômicas e de gênero, que foram intocadas pela primeira onda.
O autor manifesta que o mundo no século XXI necessita de um movi-
mento decolonial que complemente a descolonização dos séculos passados,
posto que a decolonialidade é “[...] um processo de ressignicação a lon-
go prazo e não pode ser reduzido a um acontecimento jurídico-político.
(GROSFOGUEL, 2007, p. 17).
Boaventura de Sousa Santos (2010) corrobora tal noção e eviden-
cia que o próprio pressuposto do processo histórico que levou à indepen-
dência é a prova de que o colonialismo interno não só permaneceu após a
independência, mas também foi intensicado em muitos casos (SANTOS,
2010). Isto é, a decolonialidade vai além da descolonização e signica a
emancipação também nos campos não materiais, que são igualmente ca-
pazes de produzir e manter relações de dominação. Aníbal Quijano (2007)
elucida a distinção entre os dois processos:
A colonialidade é um conceito diferente, ainda que vinculado ao con-
ceito de colonialismo. Este último se refere estritamente a uma estrutu-
ra de dominação e exploração, onde o controle da autoridade política,
dos recursos de produção e trabalho de uma determinada população
é realizado por sujeitos com identidade diferente, e cuja sede também
está em outra jurisdição territorial. Mas, nem sempre, nem necessaria-
65
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
mente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamen-
te, mais antigo, embora nos últimos 500 anos a colonialidade provou
ser mais profunda e duradoura. Todavia, a colonialidade foi certamente
engendrada dentro do colonialismo, e, além disso, sem ele não teria
sido imposta na intersubjetividade do mundo de modo tão enraizado e
prolongado. (QUIJANO, 2007, p. 93, n. r. 1, grifos do autor).
Destarte, Walter Mignolo (2007) enfatiza que caso não aconteça
esta descolonização adicional a nível imaterial, as relações internacionais
continuarão regidas pelo cenário congurado como colonialidade do po-
der. É preciso uma descolonização epistemológica que possibilite o esta-
belecimento de uma nova comunicação intercultural, baseando-se numa
racionalidade que possa legitimamente posicionar-se como pluriversal.
Logo, não há “nada menos racional” do que imputar uma visão especíca
de mundo de um determinado grupo étnico como a racionalidade univer-
sal, tal qual feito pela Europa ocidental. O autor retrata este cenário como
o disfarce de universalismo para o que é, na verdade, um provincianismo
2
(MIGNOLO, 2007).
Neste ponto, a decolonialidade vem a reforçar e se entrelaçar com
os estudos pós-coloniais. Por caminhos e roupagens diferentes, ambas as
correntes buscam endereçar a universalização de um conjunto especíco de
saberes. O pós-colonialismo, ao analisar as descolonizações do século XX,
sustenta que os europeus são postos como atores principais no processo de
formação dos Estados ex-colônias, sobretudo em África, enquanto os po-
vos colonizados são periferizados na história de seus próprios países. Este
posicionamento foi realizado de maneira tão extrema que se vislumbra
um historicídio dos povos africanos. Ou seja, a História virou sinônimo da
“história dos vencedores”. E é este fenômeno que os esforços pós-coloniais
buscam dissipar, pois entendem que há uma ilusão acerca do processo ati-
vo de construção da História, no qual atores imperialistas e colonizadores
conseguiram impor sua supremacia, não só a nível material de organização
O autor entende a universalidade impressa na losoa ocidental a partir de Descartes com “[...] o universalismo
abstrato. Resumido de duas maneiras: primeiro, no sentido do enunciado de conhecimento que se abstrai de
qualquer determinação de espaço temporário e nge ser eterno; e segundo, no sentido epistêmico em um
sujeito da enunciação que é captado, esvaziado de corpo e conteúdo, e de sua localização na cartograa do poder
mundial, a partir da qual produz conhecimento, a m de propor um tema que produz conhecimento com
pretensões de verdade como um projeto global, universal para todos no mundo.” (MIGNOLO, 2007, p. 65).
66
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
social, mas também no plano intelectual, ao esvaziarem o poder de repre-
sentação dos povos colonizados e dominados.
Reforçando a perspectiva não-hegemônica e não-ocidental de
povos dominados e de culturas excluídas pelas principais potências,
ales Castro (2012) ressalta que a escola pós-colonial trata criticamente
de partes não abarcadas pelos holofotes acadêmicos do eixo americano-
europeu das RI.
A história como é escrita e difundida é produto direto das macro e das
micronarrativas dos vitoriosos. Assim, são os vitoriosos que exprimem
suas vozes autoimputadas de correção e justeza; são os vitoriosos que
estipulam suas lógicas de conquista e de gloricação de seus legados.
São os vitoriosos que exprimem juízos de valor e lógicas normativas
concernentes aos seus eventos pontuais. Ou seja, há brados legítimos
dos povos, das culturas, dos dialetos e das línguas “não universais” que
precisam ser escutados até mesmo como forma de consolidar o contra-
ditório, ampliando o conceito de democratização analítica das Rela-
ções Internacionais. (CASTRO, 2012, p. 390).
A construção de campos e mecanismos acadêmicos merece re-
ceber atenção, pois, conforme Assis da Costa Oliveira (2013) defende, o
modo em que espaços de interação internacionais são construídos e ope-
racionalizados é tão ou mais importante que o próprio conteúdo advindo
da interação, uma vez que funciona com um forte elemento predetermi-
nante das potencialidades de reestruturação das relações de saber-poder
(OLIVEIRA, 2013). Fortalecendo esta armação, Siba Grovogui (1998)
explica que o eixo Europa – Estados Unidos formulou instrumentos teó-
ricos que restringem o pensar das dinâmicas internacionais a seus moldes,
de maneira que fornecem suportes analíticos a todos os discursos ditos
válidos nas relações internacionais. Para o autor, o imaginário político
adota a teoria internacional ocidental como o paradigma epistemológico
legítimo de conhecimento social, sendo ela o idioma da política moderna
3
(GROVOGUI, 1998).
O autor utiliza o termo idioma para ilustrar os mecanismos de exclusão, pensando-se a teoria como uma
língua. Pois, para ele, a maioria dos teóricos sociais, tendeu a ver “Teoria” como a única forma apropriada de
conhecimento social, como também consideraram sua própria forma como um modo válido de signicação
exclusiva. Assim, teóricos modernos excluíram inúmeras formas de conhecimento de análise, selecionando
apenas a teoria como única linguagem de trabalho (GROVOGUI, 1998, p. 500).
67
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Houve, então, um processo – ainda em curso – de universaliza-
ção de formulações pautadas no humanismo ocidental, uma vez que estas
foram construídas com base no “dever ser humano” a partir dos valores
europeus. Costa Oliveira (2013) articula que esta é a principal crítica ao
mainstream das RI e explica que o universalismo de valores é compreendi-
do pelo olhar pós-colonial no contexto da historicidade dos jogos de po-
der que instituíram a naturalização de determinados valores com status de
dogmas universais inquestionáveis – legitimadores de desconhecimentos e/
ou atrocidades. Assim, o autor defende o reposicionamento discursivo da
universalidade sob a égide pós-colonial, que se daria como decorrência de
um verdadeiro consenso, “[...] da negociação e da participação democráti-
ca da diversidade de povos, sobretudo dos historicamente excluídos, para
a correção do eurocentrismo do humanismo.” (OLIVEIRA, 2013, p. 45).
As reformas propostas vão ao encontro da supracitada abordagem
heterárquica da decolonialidade. Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) de-
fendem que é necessário viabilizar diálogos com moldes não ocidentais de
conhecimento, conceituando as estruturas sociais com um novo linguajar
que vão além do paradigma das ciências sociais eurocêntricas, praticado
desde o século XIX. As heterarquias são estruturas em que não existe um
nível determinado que governa os demais, pois todas as esferas exercem
algum grau de inuência mútua em diferentes aspectos. Tal concepção se
choca com o eurocentrismo, visto pelos autores como uma atitude colonial
frente ao conhecimento, formando-se, simultaneamente, as relações centro
x periferia e as hierarquias étnicas. A dita superioridade do conhecimento
europeu foi um fator importante para o estabelecimento da colonialidade
de poder no sistema-mundo, silenciando e excluindo diversas formas de
manifestar o saber (CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Conhecimentos utilizados pela humanidade durante milênios
passaram a ser vistos como superciais, folclóricos e mitológicos, se torna-
ram sinônimo de “pré-cientícos” e derivados unicamente de um passado
ocidental. Isto porque apenas os conhecimentos que cumprem as caracte-
rísticas metodológicas e epistêmicas, denidas a partir do ponto zero, são
tomados como legítimos. Castro-Gómez (2007) caracteriza o ponto zero
como “[...] o modelo em que o observador do mundo tem que se desligar
sistematicamente dos diferentes lugares empíricos de observação [...] para
68
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
se situar numa plataforma inobservada que lhe permite obter certeza do
conhecimento.” (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 88). Assim, qualquer tipo
de tradição cultural que liga o observador a determinado espaço é visto
como um obstáculo epistemológico que deve ser superado, aniquilando a
utilização de conhecimentos advindos de práticas ancestrais, ou de tradi-
ções culturais distantes e “exóticas” (CASTRO-GÓMEZ, 2007).
A marginalização de diferentes conformações cognitivas e de cos-
movisões também se manifesta na negação da natureza de democracias
indígenas, islâmicas ou africanas. Para Grosfoguel, as formas de alteridade
democráticas são rechaçadas a priori, sendo a democracia ocidental a única
legítima e aceita sempre que os interesses do Ocidente possam ser feridos.
Se os povos não-europeus recusam a conguração democrática liberal, ela
lhes é imposta. Por tal motivo, o autor advoga por uma reconceituação
da democracia, para que possa ser descolonizada de sua forma capitalista
liberal ocidental. Durante o último meio milênio, a imposição de valores
pode até mesmo ser agrupada: no século XVI com o “cristianiza-te ou te
mato”, o “civiliza-te ou te mato” dos séculos XVIII e XIX, “desenvolve-te
ou te mato” do século XX, e no nascer do século XXI “democratiza-te ou
te mato” advindos do sistema-mundo “europeu/euro-americano moderno/
colonial capitalista/patriarcal” (GROSFOGUEL, 2007, p. 73).
Grosfoguel utiliza a caracterização do sistema-mundo“europeu/
euro-americano moderno/colonial capitalista/patriarcal” com o propósito
de evitar usar apenas o termo “sistema-mundo capitalista”, pois assim o
mito de que a pós-modernidade conduz a humanidade para um mun-
do desvinculado da colonialidade seria reproduzido. Boaventura Santos
(2010) detalha esta perspectiva mítica, deslindando que ela adota a inde-
pendência como m do colonialismo, por isso o anticapitalismo se torna o
único objetivo legítimo de políticas progressistas, centrando-se na luta de
classes, sem reconhecer a validade da luta étnica. O que acaba por posicio-
nar a democracia étnica como uma realidade – que não é verdadeiramente
real – ao invés de tê-la como um ideal a ser alcançado (SANTOS, 2010).
Entender o sistema internacional unicamente sob a característi-
ca capitalista induz ao pensamento de que as estruturas de domínio são
de caráter exclusivamente econômico. Castro-Gómez e Grosfoguel com-
preendem o capitalismo não só como um sistema econômico e cultural,
69
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
mas sim como uma rede global de poder, formada por ordens políticas,
econômicas e culturais que se manifestam em todo o sistema. A divisão
internacional do trabalho entre centro e periferias, bem como a hierar-
quização étnica, são cristalizações da transformação do colonialismo para
a colonialidade global. Segundo os autores, as instituições nanceiras in-
ternacionais tais quais o FMI e o Banco Mundial, organizações militares
como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), todas estas
nascidas pós-Segunda Guerra Mundial, e supostamente pós m do co-
lonialismo, mantém a periferia em sua posição subordinada (CASTRO-
GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Subordinação que é exacerbada com
a nordomania das elites governantes periféricas que internalizam o caráter
de subdesenvolvidas como via justicatória da auto-interessada sujeição ao
capital internacional.
É necessário ndar que o propósito das correntes decoloniais e
pós-coloniais não é o de armar uma cruzada anti-ocidental, elegendo cul-
turalismos e nacionalismos etnocêntricos como bandeira, sequer é o de
ir contra a ciência moderna. É, todavia, o de ir além das categorias de
análise e disciplinas modernas, não porque estas tenham que ser negadas
ou rebaixadas, mas sim para encetar a ampliação do campo de visibilidade
estabelecido pela ciência ocidental, que universalizou olhares especícos
ao passo que nulicou os não-ocidentais e difundiu o falso discurso de um
mundo descolonizado.
Trazer os holofotes das RI para a existência e manutenção da co-
lonialidade nas dinâmicas globais é uma ação essencial para se pensar o
funcionamento do sistema internacional. É preciso, também, evidenciar
tal cenário ao se tratar do papel e das funções esperados que um Estado
desenvolva, uma vez que as dinâmicas de construção estatal são determi-
nantes de como as relações internacionais irão se reproduzir.
Em 1992, Gerald Helman e Steven Ratner publicaram na Foreign
Policy, o controverso artigo que inaugurou a maior aderência da academia
aos estudos sobre a força do ente Estado. Ao tratarem dos processos de
independência de ex-colônias, os autores sugerem que houve uma superva-
lorização do princípio da autodeterminação em detrimento da capacidade
de sobrevivência autônoma em longo prazo dos novos Estados. A noção
fundamental da descolonização era equivalente à ideia de que os povos
70
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
poderiam melhor governar a si mesmos quando livres das amarras e inu-
ências de estrangeiros. Os autores expressavam que a percepção de que os
Estados poderiam falhar – que poderiam ser incapazes de funcionar como
entidades independentes – era um anátema para a raison d’être da descolo-
nização e ofensivo ao próprio conceito de autodeterminação (HELMAN;
RATNER, 1992).
Esta visão aguçou-se apenas durante a década de 1990, pois,
no imediato período pós-independências de 1960 e 1970, a Guerra Fria
funcionou como um mecanismo retardador da deagração de tensões e
conitos derivados da autogovernação dos novos Estados. A dinâmica da
bipolaridade mundial reetiu em repasse de recursos aos países recém-in-
dependentes, que, por vezes, tinham economias subdesenvolvidas, mas re-
cebiam auxílio constante de seus antigos colonizadores, além dos Estados
Unidos e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Todavia, com o
abrandamento das tensões Leste x Oeste, a necessidade das duas super-
potências em garantir suas fronteiras ideológicas também foi amenizada,
secando, assim, a remessa de recursos à periferia global. Tal conjunção de
fatores desenhou o palco da eclosão de conitos internos na periferia mun-
dial a partir da década de 1980, como na Somália e na Bósnia
4
. Este con-
texto propulsionou o questionamento da relação entre a instabilidade e a
ausência de uma autoridade estatal efetiva.
O padrão de dominação ocidental se manifesta nas respostas da
academia a estes acontecimentos. A sugestão dada por Helman e Ratner é
que os Estados recém-formados precisariam de uma ‘tutela’ do Ocidente,
elencando a ONU como o “guardião representante”. Uma corrente mais
extremista, simbolizada por Paul Johnson (1993), chegou a propor que a
solução para os Estados denominados fracos seria a volta do próprio co-
lonialismo (JOHNSON, 1993). Contudo, os conitos e vicissitudes dos
novos países guravam como empecilhos no funcionamento da gestão es-
tatal que carregavam chagas coloniais. Logo, a proposição de um retorno
de ações escoradas em preceitos colonialistas é improcedente e alógica.
Por vezes, a ‘ajuda’ não era direcionada a práticas de construção do Estado, mas sim a consecução de outros
interesses, como armar alguma facção interna contrária ao bloco rival, por exemplo. Os casos do Irã e do
Afeganistão podem servir como reexão de que a ajuda municiou um conito que só iria estourar quando as
potências parassem de ‘ajudar’.
71
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Outros conceitos das RI também contribuíram para o distancia-
mento de estruturas baseadas em conceitos pluriversais e espaços heterár-
quicos. A noção de que um Estado só é completamente forte se estiver
acompanhado de uma única nação, conforme a ideia do Estado-Nação,
faz parte deste conjunto. Alguns autores (LEMAY-HÉBERT, 2009;
ROTENBERG, 2003) sugerem que para um Estado funcionar plenamen-
te é necessária a construção de uma nação que preencha todo o território
estatal. Esta ideia possui dois principais problemas: o primeiro, relativo ao
próprio projeto de construção da nação; e o segundo, que equivale ao fato
de ela se basear em experiências europeias de formação estatal na tentativa
reproduzi-la em todo o globo.
A construção da nação, conforme a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), se refere às “[...] es-
tratégias deliberadas, geralmente por elites internas, para forjar uma iden-
tidade nacional comum, contra identidades plurais, em torno da ideia de
nação, seja denida em um sentido étnico, cultural, histórico ou político.
(OCDE, 2008, p. 13, grifo nosso). O que leva a questionamentos sobre
a verdadeira existência do Estado-Nação, uma vez que Estados do Norte
global, como Canadá, Bélgica, Suíça e Nova Zelândia, por exemplo, são
países que possuem históricas diversidades étnicas e não são considerados
Estados fracos. Um contraexemplo é o caso da Somália, que poderia ser
entendida com um Estado forte, visto que “cumpre” os requisitos língua,
religião e ascendência comum, mas ainda assim enfrenta questões que vão
muito além da identidade da população.
A segunda adversidade, relativa ao universalismo, se cristaliza no
exemplo oferecido por Lemay-Hébert de um modelo exitoso de constru-
ção da nação aliada à construção do Estado que remete a conjuntura da
Europa do século XIX: “Na Itália, quando unicada, apenas cerca de 3%
da população falava italiano, tanto que, em 1861, Massimo d’Azeglio, pio-
neiro da unicação, declarou ‘nós zemos Itália, agora precisamos fazer os
italianos’.” (LEMAY-HÉBERT, 2009, p. 21).
Contudo, os italianos – a nação italiana – nasceram num contex-
to particular, não encontrado universalmente, logo a formação induzida
de uma identidade nacional à la italiana não pode se aplicar globalmente
de maneira genérica. A história da humanidade mostra que a simples ten-
72
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
tativa de reproduzir padrões europeus não vem obtendo resultados positi-
vos. Justamente neste sentido, a autora moçambicana Iraê Baptista Lundin
(2013) elucida que o modelo estatal europeu não se demonstra como um
espelho propício para demais lugares no espaço e tempo, uma vez que foi
construído durante séculos de forma extremamente sangrenta, intoleran-
te e excludente, além de ter dominado territórios e povos não europeus
(LUNDIN, 2013). O que é condizente com a observação de como o mo-
delo clássico de Charles Tilly (1975) sobre a formação do Estado europeu
– baseado na guerra
5
– não se reproduziu em outros espaços que também
enfrentaram guerras durante os conitos, a exemplo do continente africa-
no nos anos 1980.
Assim, os processos históricos da organização política e socioes-
pacial do mundo guram-se vitrines propícias para identicar e evidenciar
que interações colonizadas estruturais e estruturantes permanecem, não
só em termos de poder, de meios físicos e econômicos, mas também de
formas epistemológicas.
considERAçõEs finAis
A imputação generalizada de noções, narrativas e valores euro-
centrados pode ser entendida como um projeto de reprodução de padrões
de dominação e exclusão que protege o Ocidente. Esta arquitetura he-
gemônica perpassou meios físicos de controle colonial e atingiu as esfe-
ras da produção do conhecimento, da organização de relações sociais, dos
processos de formação dos Estados e do arcabouço jurídico-institucional
internacional.
A história tem constantemente provado que a presença de siste-
mas de dominação aniquila a construção de uma paz orgânica que não seja
pautada no medo. Portanto, para se avançar na constituição de um ideal de
paz que não simbolize a mera reprodução de características de um grupo
Tilly argumenta que no contexto europeu, as guerras zeram os Estados, no sentido de que as exigências bélicas
foram essenciais para dotar o Estado com a legitimidade para agir. De acordo com o autor a lógica era a de
que: i) as guerras desencadearam uma competição para centralizar o controle, levando à construção de estruturas
administrativas centralizadas - um Estado - para ser capaz de travar a guerra com sucesso e de forma organizada
ii) Essas estruturas estatais foram sustentadas através de barganha com as populações: o Estado poderia cobrar
impostos e requerer contingente e em troca forneceria segurança à população das agressões externas (TILLY, 1975).
73
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
especíco, é preciso a abertura às diversas vozes e visões que foram silen-
ciadas ao longo do desenrolar das relações internacionais e da interação
entre os povos. A decolonialidade se posiciona como um caminho central
neste sentido, ao oferecer uma matriz analítica que possibilita o emergir de
movimentos contra hegemônicos que superem estruturas de poder hierar-
quizadas. Este espaço epistemológico signica o estabelecimento de funda-
mentos para o acréscimo de civilizações não-ocidentais a estruturas plurais
das relações internacionais.
Tal processo gura como uma via de mão dupla. Ao passo que
os formuladores de normas e políticas precisam reconhecer a herança co-
lonial que mantém estruturas de poder e nega historicidades, os agentes
que foram subjugados ao longo da história necessitam encontrar espaço
nos arranjos institucionais nos quais possam, efetivamente, desenvolver
práticas e experiências e, enm, participar da construção de conceitos ver-
dadeiramente úteis a todo o pluriverso. É primordial que esses possam se
posicionar, como agentes ativos, pois só assim um patamar pluriversal e
heterárquico, que seja repositório de diversas singularidades e diferentes
cosmovisões, tem chances de ser alcançado. O resultado pode ser um con-
junto mais adaptável, plural e exível, que funcione com patamares nega-
tivos e não imperativos positivos, muito mais propícios para a formação de
uma paz que seja construída por todos e todas e demarque uma congu-
ração heterárquica. A “paz sem voz”, sem agência, baseada na dominação,
seja material ou cognitiva, e na conquista, é paz que não se quer conservar.
REfERênciAs
BARNETT, M.; FINNEMORE, M. Rules for the world: international organizations in
global politics. Ithaca: Cornell University Press, 2004.
BOURDON, W. L’ONU, la décolonisation et le développement. In: DUCHATEL, J.;
ROCHAT, F. (Org.). ONU: droits pour tous ou loi du plus fort? Regards militants sur
les Nations Unies. Genève: CETIM, 2005. p. 197–206.
CASTRO, T. Teoria das relações internacionais. Brasília, DF: FUNAG, 2012.
CASTRO-GÓMEZ, S. Decolonizar la universidad: la hybris del punto cero y el diálogo
de saberes. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Ed.). El giro decolonial:
reexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. 21. ed.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 79–91.
74
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSGOUEL, R. Giro decolonial, teoría crítica y
pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Ed.).
El giro decolonial: reexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. 21. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 9–23.
DIAS, E. C. Do estado colonial ao pós-colonial. Janus: Anuário de Relações Exteriores,
Lisboa, 2010.
DUSSEL, E. 1492: el encubrimiento del outro: hacia el origen del “mito de la
modernidad”. Bogotá: Antropos, 1992.
FRY, D. Beyond war. Oxford: Oxford University Press, 2007.
GROSFOGUEL, R. Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo
transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. In: CASTRO-
GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Ed.). El giro decolonial: reexiones para una
diversidad epistémica más allá del capitalismo global. 21. ed. Bogotá: Siglo del Hombre
Editores, 2007. p. 63–77.
GROVOGUI, S. Rituals of power: theory, languages and vernaculars of international
relations. Alternatives: Global, Local, Political, v. 23, n. 4, p. 499–529, 1998.
HALPERIN, S. International relations theory and the hegemony of western
conceptions of modernity. In: JONES, B. G. (Ed.). Decolinizing international relations.
Plymouth: Rowman and Littleeld Publishers 2006. p. 43–64.
HELMAN, G. B.; RATNER, S. R. Saving failed states. Foreign Policy, n. 89, p. 3–20,
1992.
JOHNSON, P. Colonialisms back – and not a moment too soon. e New York Times,
New York, ed. 22, 1993.
JONES, B. G. (Ed.). Decolinizing international relations. Plymouth: Rowman and
Littleeld Publishers, 2006.
LEMAY-HÉBERT, N. Statebuilding without nation-building? Legitimacy, state failure
and the limits of the institutionalist approach. Journal of Intervention and Statebuilding,
n. 3, v. 1, p. 21–45, 2009.
LUNDIN, I. B. Reexões sobre o processo da construção do estado moderno: uma
análise comparativa entre o Mundo Ocidental e África. Mensal (CEEI-ISRI), Maputo,
ano 1, n. 1, 2013.
MIGNOLO, W. D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura: un
maniesto In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Ed.). El giro decolonial:
reexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. 21. ed.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25–46.
MORIN, E. Cultura e barbárie européias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
75
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
OLIVEIRA, A. C. Pós-Colonialismo, relações internacionais e direitos humanos: análise
do caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Estado da Nicarágua. O Direito Alternativo,
Franca, v. 2, n. 1, p. 39–63, jun. 2013.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). A Carta das Nações Unidas.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso em: 13 jun. 2017.
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO (OCDE). Principles for good international engagement in fragile states &
situations. Paris, 2007.
PARIS, R. International peacebuildig and the ‘mission civilisatrice’. Review of
International Studies, Cambridge, v. 28, n. 4, p. 637–656, Oct. 2002.
PARIS, R.; SISK, T. D. Managing contradictions: the inherent dilemmas of postwar
statebuilding. New York: International Peace Academy Publications, 2007.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,
E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 107–130. (Colección Sur Sur).
______. Colonialidad del poder e clasicación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.;
GROSFOGUEL, R. (Ed.). El giro decolonial: reexiones para una diversidad epistémica
más allá del capitalismo global. 21. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p.
93–126.
RASILLA DEL MORAL,I. de la. La alianza entre la civilización y el derecho
internacional entre Escila y Caribdis (o de la brevísima historia de un anacronismo
jurídico). In: GAMARRA CHOPO, Y.El discurso civilizador en derecho internacional:
cinco estudios y tres comentarios.Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2011. p.
41–60.
RICHMOND, O. P. Peace in international relations. London: Routledge, 2008.
(Routledge Studies in Peace and Conict Resolution).
ROTBERG, R. e failure and collapse of nation-states: breakdown, prevention, and
repair, in when states fail: causes and consequences. Princeton: Princeton University
Press, 2003.
SANTOS, B. S. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una
epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010.
______. Democracia y transformación social. Bogotá: Siglo del Hombre, 2017.
TILLY, C. e formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton
University Press, 1975.
WALLERSTEIN, I. O universalismo europeu: a retórica do poder. Tradução Beatriz
Medina. Apresentação Luiz Alberto Moniz Bandeira. São Paulo: Boitempo, 2007.
77
C     
      
     
        

Ivanaldo Santos
Lafayette Pozzoli
inTRodução
O presente estudo não deseja realizar uma exaustiva análise das
causas e possíveis soluções para a crise da paz na sociedade contemporânea.
A intensão é bem mais modesta. Entretanto, num processo de reexaminar
a problemática da paz, o objetivo do presente estudo é analisar o problema
da paz anglofônica ou paz de língua inglesa. A análise terá por base os dois
países que mais incentivaram e patrocinaram esta experiência de paz, ou
seja, a Inglaterra e os EUA. Para alcançar o objetivo o estudo foi dividido
em cinco partes, sendo elas: o conceito de paradigma; o paradigma moder-
no da paz; a pax romana; a paz anglofônica: entre a paz britânica e a paz
americana; limites e problemas da paz anglofônica.
78
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Vale ressaltar que a sociedade contemporânea experimenta um
mal-estar social, histórico e civilizacional
1
. Um mal-estar que se apresenta
de diversas formas como, por exemplo, as crises políticas e econômicas,
a grande crise da identidade europeia e ocidental, o terrorismo, as novas
ondas de imigração causadas por guerras e por problemas sociais.
Dentro do contexto de uma ascensão do mal-estar civilizacional,
o Ocidente vive uma crescente experiência do aumento das formas de ma-
nifestação da violência e de uma gradual, porém constante, perca da noção
de paz, que proporciona às ciências humanas a repensarem o conceito de
paz e, por conseguinte, perceberem a paz como um problema que necessita,
com urgência, ser esclarecido. Um problema que afeta, ao redor do mundo,
tanto governos e Estados como também a vida dos cidadãos, das comuni-
dades e cidades.
O artigo apresenta caminhos para se trabalhar um modelo de
paz para a atualidade, sem desconsiderar a paz anglofônica, muito em-
bora, como a pax romana, trouxe para a sociedade moderna uma onda
de violência e de níveis diferentes de opressão. Um projeto de paz para o
século XXI que leva em conta as aspirações das grandes nações ao redor do
mundo, mas principalmente as pretensões das demais nações de partici-
parem no poder global e de democratização dos espaços de construção da
paz oriundos dos organismos multilaterais, mas também a construção de
caminhos e meios diplomáticos, políticos e econômicos para a efetivação
da municipalidade na construção de um projeto mais ecaz para a paz na
sociedade mundial.
Enm, com a leitura do artigo o leitor depreenderá que o desao
que se apresenta no momento, em se tratando de paz, é conseguir unir o
desenvolvimento técnico-material com as reivindicações de participação,
de integração, de liberdade e de convivência mais amistosa que apontem
para uma sociedade justa e fraterna.
O presente estudo não proporciona um debate sobre o conceito e a existência do pós-moderno ou da pós-
modernidade. Para um debate aprofundado do tema, recomenda-se consultar: Lyon (1998), Dip (2002),
Jameson (2002), Oliveira (2002), Vattimo (2002), Harvey (2004) e Lyotard (2004). No tocante ao tema do
mal-estar na sociedade contemporânea, recomenda-se consultar: Kaplan (1993) e Bauman (1999).
79
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
o concEiTo dE PARAdigmA
Inicialmente, arma-se que o conceito de ciência normal é desen-
volvido pelo lósofo da ciência omas S. Kuhn no livro A estrutura das
revoluções cientícas (KUHN, 2002), publicado originalmente em 1962. É
preciso esclarecer que omas S. Kuhn arrazoa certas categorias de pensa-
mento, como, por exemplo, paradigma e ciência normal, a partir da dinâ-
mica interna das ciências exatas, notadamente a física e a matemática.
Por causa disso, o presente estudo não é uma apresentação, em si,
das ideias de omas S. Kuhn. Pelo contrário, parte-se dessas ideias e, logo
em seguida, se faz uma aplicação do seu conteúdo à problemática da paz.
Feito essa importante observação inicial, arma-se que para
omas S. Kuhn é preciso ver a ciência num plano mais amplo, ou seja,
no plano de rupturas e de revoluções teóricas dentro da ciência. São essas
revoluções que trazem algum tipo de resposta aos problemas cientícos,
mesmo que a resposta seja parcial e incompleta, e, por isso, possibilita
algum tipo de avanço no corpo cientíco. É por isso que ele vê essas revo-
luções como elementos de ruptura, de quebra, com a tradição. Para ele, as
“[...] revoluções cientícas são os complementos desintegradores da tradi-
ção à qual a atividade da ciência normal está ligada.” Com isso, forçando
a “[...] comunidade a rejeitar a teoria cientíca aceita em favor de outra
incompatível com aquela [...]”, sendo que tais “[...] mudanças, juntamente
com as controvérsias que quase sempre as acompanham, são características
denidoras das revoluções cientícas.” (KUHN, 2002, p. 25).
Para omas S. Kuhn, as revoluções cientícas trazem, de um
lado, a desagregação ou decadência das teorias cientícas que, antes da
revolução, eram dominantes e vislumbradas como modernas e vanguar-
distas. É o que ele vai chamar de paradigma. Do outro lado, essas revolu-
ções provocam a emergência de um novo paradigma, o qual substituirá
o paradigma anterior. Na análise de omas S. Kuhn, a existência de um
paradigma é de suma importância. Para ele, isso acontece porque na “[...]
ausência de um paradigma ou de algum candidato a paradigma, todos
os fatos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de deter-
minada ciência têm probabilidade de parecerem igualmente relevantes.
(KUHN, 2002, p. 37).
80
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
omas S. Kuhn dene paradigma da seguinte forma: “[...] con-
sidero ‘paradigmas’ as realizações cientícas universalmente reconhecidas
que, durante algum tempo, oferecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (KUHN, 2002, p. 13).
Ainda segundo omas S. Kuhn, o problema é que nenhum pa-
radigma pode manter o estado de novidade e de revolução permanente-
mente. Para usar uma metáfora oriunda do universo militar, arma-se que
não é possível manter o estado de guerra eternamente. Por isso, é preciso
reformar o Estado, gerar empregos e desmobilizar os soldados. Da mesma
forma acontece com a ciência, ou seja, não se pode manter o status de no-
vidade e de vanguarda indenidamente. É preciso ensinar a ciência, formar
professores, funcionários públicos, cientistas, prossionais da divulgação
da ciência e outras estruturas da sociedade. Com isso, o status de novida-
de se perde para aquilo que o próprio omas S. Kuhn vai denir como
ciência normal.
Sobre a ciência normal, omas S. Kuhn dá o seguinte conceito:
[...] “ciência normal” signica pesquisa rmemente baseada em uma
ou mais realizações cientícas passadas. Essas realizações são reconhe-
cidas durante algum tempo por alguma comunidade cientíca especí-
ca como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.
(KUHN, 2002, p. 29).
Para ele, a “[...] maioria dos cientistas, durante toda sua carreira,
ocupam-se com operações de limpeza (do paradigma estabelecido). Elas
constituem o que chamo de ciência normal”, sendo que a “ciência nor-
mal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos. A
pesquisa da ciência normal está dirigida para a articulação daqueles fenô-
menos” (KUHN, 2002, p. 4). Por causa disso, a “[...] ciência normal pode
avançar sem regras [explicitas] somente enquanto a comunidade cientíca
relevante aceitar sem questões as soluções de problemas especícos já obti-
dos.” (KUHN, 2002, p. 72).
Segundo omas S. Kuhn, a nova ciência, expressa pelo movi-
mento de vanguarda e de renovação trazido pelo surgimento de um novo
paradigma, o qual veio dar algum tipo de solução, mesmo que supercial
e passageira, para problemas tradicionais que o antigo paradigma não
81
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
consegue resolver; é expressa em livros e artigos inovadores e revolucio-
nários. São textos que provocam grandes debates e até mesmo rupturas
na comunidade de intelectuais. Por sua vez, passada a fase inicial, a fase
de revolução e vanguarda, esse novo paradigma tende a se acomodar e,
por causa disso, passa a produzir um tipo de literatura de manual, uma
literatura voltada a fazer propaganda e a divulgar as ideias, métodos e
outras questões relacionadas com a dinâmica interna do paradigma. Esse
tipo de literatura, uma literatura de propaganda, omas S. Kuhn vai
chamar de literatura de manual. Para ele, esse tipo de literatura “[...]
corpo da teoria aceita, ilustra muitas das (ou todas as) suas aplicações
bem-sucedidas e compara essas aplicações com observações e experiên-
cias exemplares.” (KUHN, 2002, p. 29).
No entanto, apesar desse tipo de literatura estar carregada dos
mais altos valores éticos, ela demonstra que na prática o paradigma per-
deu o seu vigor, o seu caráter de novidade, de vanguarda e de revolução.
Ele se transformou em ciência normal e, por isso, precisa ser superado
por outro paradigma.
o PARAdigmA modERno dA PAz
Apesar do conceito de paz ainda estar em aberto e, desde o mun-
do antigo, está sendo edicado, debatido e reetido, percebe-se que, numa
perspectiva próxima ao conceito de paradigma de omas S. Kuhn, foram
construídos modelos de paz ao longo da história. Sinteticamente é possível
se armar a existência de cinco modelos históricos da paz. O primeiro
modelo ou – na terminologia de omas S. Kuhn – paradigma da paz é
o modelo da Grécia antiga. O segundo modelo de paradigma da paz é o
modelo do antigo império romano também conhecido como Pax Romana.
O terceiro modelo de paradigma da paz é o espiritual e subjetivo presente
na pregação de Jesus Cristo. O quarto modelo de paradigma da paz é o da
integração espiritual-poético e política presente em pensadores como, por
exemplo, Santo Agostinho e Tomás de Aquino. O quinto modelo de pa-
radigma da paz é o da paz perpétua. Trata-se de um modelo desenvolvido
pelo pensador alemão Immanuel Kantno século XVIII (SANTOS, 2017).
82
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Salienta-se que, dentro de um debate sobre a problemática da
paz, o tema da paz perpétua, proposto por Kant, é de vital importância.
Trata-se de um tema que, de um lado, sintetiza as esperanças humanas de
um futuro próspero e pacico, longe das guerras, da destruição e da vio-
lência e, de outro lado, é um tema que fundamenta as discussões modernas
sobre a paz (SALATINI, 2014).
O presente estudo não é uma apresentação pormenorizada do pa-
radigma moderno da paz. O paradigma que, por razões diversas, ainda está
em vigência dentro da sociedade. No entanto, a título de esclarecimento,
arma-se que o paradigma moderno da paz, que tem como um dos seus
fundamentos a ideia da paz perpétua desenvolvida por Kant, tem cinco
eixos centrais. Estes eixos são: 1) Segurança básica do cidadão (saúde, edu-
cação, previdência etc.); 2) Predomínio da razão e da pessoa; 3) Equilíbrio
de poder entre forças antagônicas (religiões diferentes, entre público X pri-
vado, capitalismo X socialismo etc.); 4) Criação de espaços privilegiados
para o debate político e diplomático internacional. No século XX e início
do XXI a Organização das Nações Unidas (ONU) ganha destaque como
um organismo internacional que, juntamente com outros organismos
(União Europeia, OEA etc.), deve promover a paz, e 5) Uso da coerção. A
coerção consiste no uso da força por um país, um grupo de países ou por
algum organismo que tenha legitimidade internacional (ONU, UE etc.)
para promover e estabelecer a paz.
No entanto, dentro da perspectiva de paradigma, para se reetir
sobre o problema da paz anglofônica é necessário se conhecer, mesmo que
de forma introdutória, o paradigma da paz do antigo império romano
também conhecido como pax romana.
A pax RomAnA
Em linhas gerais, arma-se que o paradigma de paz do império
romano segue a ideia de paz na pólis estabelecida pelos gregos, ou seja, uma
paz que consiste na ausência de catástrofes naturais e grandes conitos
sociais (fome, falta de água potável etc.). Assim como na Grécia antiga,
especialmente Atenas, Roma era uma cidade-Estado governada por um de-
mos – o governo dos cidadoas – e realizou, dentro da história, a importante
83
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
experiência de ter um senado, ou seja, o governo das lideranças políticas,
dos líderes das oligarquias e lideranças políticas oriundas do exército, do
empresariado e de grupos sociais independentes. Em tese, a paz em Roma
era mantida por uma complexa rede de diplomacias e negociações políticas
realizadas no senado.
O problema é que a Roma, uma pequena aldeia de agricultores
do século VII a.C., com o passar dos séculos, das conquistas militares e
do crescimento do poder político do exército romano (ROSSI, 2011), se
transformou em um vasto império que aterrorizou e levou a inuência da
cultura greco-romana para quase todo o mundo antigo.
Com essa gigantesca transformação, o senado romano perdeu
poder diplomático e político. Foi transformado, em grande medida, num
espaço de disputas de privilégios políticos e de aparente normalidade de-
mocrática. Na prática o poder político-diplomático e, por conseguinte, o
estabelecimento da paz, estava nas mãos do exército, do imperador e da
sua respectiva corte. Por sua vez, o período do império romano, que vai do
século I a.C. até o século II d. C., o chamado mundo civilizado, ou seja, o
mundo existente dentro das fronteiras do império romano, incluindo o seu
raio de inuência em regiões como o Egito e o Líbano, experimentou um
dos mais longos períodos de paz que a humanidade já desfrutou.
Esse longo período de paz cou conhecido como pax romana.
Na prática, a pax romana consistia na garantia de suprimentos de água po-
tável, comida e moradia para as populações das principais cidades e zonas
rurais mais inuentes do império, incluindo a capital, a cidade de Roma.
Além disso, havia a sólida política imperial, mantida pelo exército, de se-
gurança das fronteiras. Uma política de contenção dos inimigos externos
ao império (invasões de outros povos, deter o avanço de exércitos inimigos
etc.) e inimigos internos (rebeliões populares, insurreições, tentativas de
golpes militares, tentativas do senado reconquistar o poder político etc.)
(WENGST, 1991; SERIQUE, 2011).
O paradigma da pax romana se caracteriza por 300 anos de au-
sência de grandes conitos armados, de relativa tranquilidade nas frontei-
ras do império e de estabilidade política nas cidades. No entanto, toda essa
estabilidade foi conquistada à custa da centralização do poder político, da
84
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
perda crescente do poder de decisão do senado e do demos – a classe dos
cidadãos –, da ampliação da repressão da população civil, das aspirações de
liberdade sócio-política, da ampliação da escravidão e de políticas popu-
listas de conquistas de apoio popular. Políticas que caram caracterizadas,
por exemplo, pela distribuição de pão, de vinho, de festas ao lar livre com
a presença de grupos musicais populares e muito mais. É o conhecido pe-
ríodo do pão e circo.
A existência do paradigma da pax romana demonstra que, de um
lado, de fato é possível amplos períodos da história com tranquilidade so-
cial e ausência de grandes conitos armados. Do outro lado, é um período
que abre espaços para o questionamento e a reexão em torno do sentido
da paz. A paz é apenas a ausência de guerras militares? A população roma-
na e principalmente os povos que viviam sob o julgo da Roma imperial,
viviam realmente em paz? A liberdade de expressão e a liberdade política
são fatores que fazem parte da paz? Um bom exemplo de como a pax ro-
mana era na prática uma paz social, mas não atingia uma perspectiva mais
profunda de paz, foram os cristãos. Trata-se de uma religião que nasce e se
desenvolve dentro da pax romana. No entanto, é uma religião perseguida,
onde os seus éis tinham que escolher entre negar a sua crença religiosa e,
com isso, proclamar publicamente a divindade do imperador ou morrer.
Uma escolha nada livre, uma escolha que não apresenta uma postura do
que se espera de um período de paz.
O paradigma da pax romana ruiu junto com o império roma-
no. No entanto, de um lado, o período da pax romana demonstra que a
humanidade realmente necessita vivenciar longo e estável período de paz.
Durante o tempo que compôs a chamada pax romana, o ser humano ex-
perimentou um raro momento de prosperidade material, estabilidade e
pacicação social. Do outro lado, a queda do império romano – ao menos
o império romano ocidental, com o m da pax romana, demostra que a
ausência de um processo duradouro e constante de paz pode conduzir a
humanidade a experimentar momentos de profundas perturbações na or-
dem social. Perturbações que tem, dentre suas bases, a violência, a fome, o
medo, o desespero, a imigração, guerras sectárias e muito mais. É necessá-
rio recordar que com o m da pax romana, a sociedade ocidental foi con-
duzida a mergulhar num longo período de pobreza, de guerras sangrentas
85
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
e de disputas irracionais pelo poder. Apensar da pouca inuência do im-
pério romano ocidental desde o século V d. C., apenas no século XIII, ou
seja, 800 anos depois, o Ocidente voltou a ter um padrão socioeconômico
compatível com a antiga sociedade romana e apenas no século XVIII, o
Ocidente conseguiu ter um processo de desenvolvimento econômico e de
pacicação social comparável à pax romana.
Em grande medida, apesar de toda a necessária crítica ética, a
pax romana, a experiência de desenvolvimento econômico e de pacicação
social realizada pelos romanos é um grande feito para a humanidade e
que, por isto, até os dias atuais provoca controvérsias e lutas, por parte de
governantes e de lideranças políticas e militares, para reviver, para colocar
em prática novamente tal experiência.
A PAz AnglofônicA: EnTRE A PAz bRiTânicA E A PAz AmERicAnA
Nos atuais debates travados dentro das ciências humanas e, espe-
cicamente, em torno da temática da paz, é comum se pensar a chamada
pax americana como um processo independente, autônomo, algo próximo
do conceito de paradigma de omas S. Kuhn. O presente estudo não é
uma negação profunda deste tipo de debate. No entanto, para a presente
discussão arma-se que a chamada pax americana está inserida dentro de
um contexto maior, ou seja, da paz anglofônica ou paz de língua inglesa.
Por sua vez, a paz anglofônica é um dos rmes fundamentos do para-
digma moderno da paz. Os gigantescos recursos nanceiros, administra-
tivos, diplomáticos e militares dos países de língua inglesa, especialmente
a Inglaterra e os EUA, são uma das principais bases de sustentação do
paradigma moderno da paz.
O paradigma moderno da paz é alicerçado em conceitos (re)cons-
truídos pelo pensamento moderno como, por exemplo, Estado, nação, ra-
zão, indivíduo, cidadania, autonomia e coerção.Apesar desta construção
conceitual-losóca, que encontra algum nível de respaldo na realidade
social, desde os primórdios da modernidade, já com o advento da renas-
cença, nos séculos XVI e XVII, tenta-se edicar a paz por meio da buro-
cracia estatal e do restabelecimento da política militarista que caracterizou
a pax romana.
86
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A cada momento histórico da modernidade existe um país ou
grupo de países, uma língua, um idioma que, por razões diversas, irá ma-
terializar e, ao mesmo tempo, impulsionar o processo de paz. Será um
processo que, em muitos aspectos, irá copiar o modelo da pax romana.
Dentro deste contexto tem-se, por exemplo, entre os séculos XVI e XVII
a paz Ibérica representada por Portugal e Espanha que, naquele momento
histórico, eram as duas potências militares e econômicas da Europa e esta-
vam liderando a corrida pelo descobrimento e exploração do novo mundo;
no século XVIII, com o enfraquecimento político e militar de Portugal e
Espanha, emerge a paz francesa; no século XIX existe a predominância da
paz britânica e no século XX a paz americana.
Como se pode ver entre os séculos XVI e XX, à medida que o pro-
jeto moderno amadurece e, em muitos aspectos, entra em crise, tem um
país, língua e região do mundo (Portugal, Espanha, França, Inglaterra e os
EUA) que irá orientar e liderar o processo de modernização do Ocidente e,
dentre outros fatores, a construção da paz.
Dentro deste processo, deve-se ver a paz anglofônica como um
processo de integração entre a pax britânica e a pax americana. Um proces-
so de integração que, além do fator do idioma, ambos têm o inglês como
língua ocial, leva em consideração a profunda aproximação cultural, reli-
giosa, étnica e os interesses estratégicos que possuem em comum ao redor
do mundo (BUENO, 1997).
No século XIX coube ao império da Inglaterra, num processo
de substituição da hegemonia francesa, levar para vários lugares afastados
e isolados do planeta Terra os valores da modernidade, do Iluminismo,
do cosmopolitismo e da cidadania. Num processo contraditório, que re-
monta a contradição da pax romana (prosperidade econômica X opressão
militar), a pax britânica levou a liberdade econômica, a prosperidade ma-
terial a muitas regiões da África e da Ásia. No entanto, essa prosperidade
é conduzida por meio da marinha real inglesa, dos fuzileiros navais e, por
conseguinte, da guerra e da opressão militar (LESSA, 2006).
No processo de estabelecimento da pax britânica houve uma sé-
rie de intervenções político-diplomáticas e militares em várias regiões do
mundo. Também em diferentes regiões da África e da Ásia o governo e o
87
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
exército britânicos interviram e, com isso, retiraram do poder governantes
locais, promoveram guerras sectárias e ajudaram a criar nações. Um bom
exemplo de como agiu, ao redor do mundo, a pax britânica foi o processo,
na segunda metade do século XIX, de independência do Uruguai, o qual
cou independente tanto da Espanha como também do Brasil. Vale salien-
tar que o Uruguai chegou a compor o território brasileiro com o nome de
Província Cisplatina. O problema é que a independência do Uruguai, além
de uma reivindicação da população local, era um projeto político-militar
da Inglaterra para, ao mesmo tempo, deter o avanço do império brasileiro,
sob a liderança do imperador Dom Pedro II, o avanço das reivindicações de
hegemonia militar de países, por exemplo, como a Argentina e o Paraguai e
estabelecer uma ampla rede de distribuição, dentro dos países da América
do Sul, das mercadorias fabricadas em território inglês (PADRÓS, 1996).
Vários são os fatores que conduziram ao enfraquecimento da
pax britânica. Dentre outros citamos: a Primeira Guerra Mundial (1914–
1918), que enfraqueceu o poderio militar inglês, a emergência da Rússia
socialista, pós-revolução de 1917, que, liderada por Lenin e Stalin, deseja-
va espalhar o seu poder ideológico e militar ao redor do mundo. Nas pri-
meiras décadas do século XX o Ocidente viu a hegemonia político-militar
passar das mãos da Europa, que detinha essa hegemonia desde o século
XVI, para a América do Norte, especialmente para os EUA (SARAIVA,
2001). Com o m da Segunda Guerra Mundial (1939–1945) o questio-
namento da hegemonia europeia, em grande medida representada pela pax
britânica, cresceu. Este crescimento se dá, dentre outros fatores, pelo pro-
cesso de descolonização da África e da Ásia e da busca, dentro desses dois
continentes, de formas autônomas e até mesmo alternativas de desenvolvi-
mento econômico e de convivência recíproca (BARRACLOUGH, 1976).
A mudança da hegemonia da Europa para a América do Norte
não signicou o m de uma cultura que pode ser classicada como cultura
para o imperialismo (IANNI, 1976), ou seja, uma estrutura cultural que,
fundamentada nos mais diversos argumentos racionais, tem por missão
levar para as amplas regiões do mundo, muitas vezes de forma autoritária,
seus próprios valores culturais.
Pelo contrário, a mudança da hegemonia da Europa para a
América do Norte representou na prática a radicalização do projeto racio-
88
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
nal-iluminista da modernidade e, ao mesmo tempo, a retomada, de forma
mais aperfeiçoada, da pax britânica. Neste sentido, deve-se ver esse projeto,
liderado pelos EUA, como um projeto imperialista. No entanto, não se
trata de império da forma clássica, tal como foi constituído pelo império
romano, mas de uma nova e sosticada forma de dominação. Uma domi-
nação alicerçada na razão, na democracia, na liberdade e na sociedade civil
(SCOWEN, 2003; LENS, 2006; MONIZ BANDEIRA, 2006).
Em grande medida, os EUA conseguiram, até a segunda déca-
da do século XXI, realizar de forma radical o projeto racional-iluminista
da modernidade e dar continuidade a pax britânica porque estão imbu-
ídos e mergulhados numa imagética missão de redenção da humanidade
(AZEVEDO, 1988).
Os EUA construíram essa imagética missão de redenção da hu-
manidade a partir da doutrina do destino manifesto (Manifest Destiny).
Trata-se de um conjunto de ideias – não chega a ser uma doutrina da for-
ma, como, por exemplo, o direito e a losoa pensam essa palavra – que,
no século XIX, defendia a crença que os americanos deveriam se expandir
pelo território da América do Norte e até mesmo por outras regiões do
planeta. Essa crença era fundamentada principalmente na convicção de
que o povo americano foi eleito por Deus para civilizar o continente ame-
ricano. Fruto desta crença, por exemplo, é a violenta conquista do oeste
americano com as clássicas cenas de matanças de índios (RAMOS, 2008;
COSTA, 2011).
No nal do século XIX e início do XX a crença no destino ma-
nifesto foi reforçada com a difusão da ideia do poema fardo do homem
branco (e White Man’s Burden). Trata-se da ideia que o homem branco,
ocidental e, em grande medida, produto do iluminismo europeu tem a
nobre missão de levar aos conns do mundo, a regiões isoladas e tecnolo-
gicamente atrasadas a civilização, o livre comércio, a livre iniciativa, a de-
mocracia e os benefícios da tecnologia moderna. É possível se tomar como
referência histórica do chamado fardo do homem branco na ocupação, no
nal do século XIX, militar das Filipinas pelos EUA. Os americanos só se
retiraram denitivamente das Filipinas no ano de 1946 (DIAS, 1974).
89
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Desde o nal do século XIX, mas principalmente ao longo de
todo o século XX, os EUA desenvolveram uma série de guerras de con-
quistas, guerras preventivas e outras modalidades de intervenção militar
ao redor do planeta. Em grande medida, no século XX e no início do
XXI, os EUA se tornaram uma espécie de polícia do planeta. Uma polí-
cia responsável, dentre outras funções, de manter a ordem, a estabilidade
entre as nações, entre os povos e etnias. Com isso, os EUA conseguiram
dar continuidade a pax britânica e, com certo êxito, restabelecer em plena
modernidade a pax romana.
Vários são os fatores que fundamentam e, ao mesmo tempo, im-
pulsionam os EUA a serem a polícia do planeta e, com isso, criar a chamada
pax americana. Entre estes fatores é possível citar, por exemplo, a depen-
dência do mundo moderno – e porque não dizer, a dependência da pró-
pria civilização moderna – de fontes de energia, especialmente do petróleo
(TORRES FILHO, 2007; MARINHO, 2010), o colapso da experiência
socialista nos países do Leste Europeu e as diversas crises econômicas que,
desde a década de 1930, assolam os países capitalistas e colocam em risco
o projeto da modernidade (KURZ, 1999).
A pax americana demonstra que, apesar do antigo paradigma da
pax romana (a paz militar, a paz armada etc.) ter entrado em decadência
– junto com o império romano, suas táticas, métodos de atuação e prin-
cipalmente o fato de ter conseguido estabelecer um longo processo de paz
para grande parte da humanidade, continua a inspirar e a motivar modelos
de implantação da paz ao longo da história.
É importante esclarecer que a pax americana não se funda ape-
nas na superioridade econômica e militar dos EUA e de seus aliados mais
próximos (Inglaterra, Canadá etc.), mas sim numa série de problemas in-
ternacionais como, por exemplo, a inaptidão tecnológica de outros países
de concorrerem com a alta tecnologia produzida nos EUA – a tentativa
mais recente e, até certo ponto questionável, é o avanço tecnológico e eco-
nômico da China –, o fracasso do socialismo, a incapacidade da ONU e
de outros organismos de promoverem a paz e a diculdade de países se
organizarem em blocos e, com isso, constituírem uma força econômica e
militar compatível com os EUA.
90
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Face a tais circunstâncias atuais é necessário dispender tempo
em análise sobre quais são os limites e problemas intrínsecos à chamada
paz anglofônica.
limiTEs E PRoblEmAs dA PAz AnglofônicA
No atual momento histórico a paz anglofônica é liderada pelos
EUA. Uma liderança que se materializa por meio da pax americana. Isso
não signica que os demais países de língua inglesa não participem deste
processo de paz. Se for tomada por base a história do século XX, ver-se-á
que se trata de uma história com a forte liderança americana, mas, ao
mesmo tempo, os EUA não estão isolados no exercício do poder político,
diplomático e militar. Pelo contrário, ao menos durante o século XX, os
demais países de língua inglesa (Inglaterra, Canadá etc.), salvo alguma ex-
ceção, estiveram ao lado dos EUA nas guerras, nas disputas internacionais
e diplomáticas.
Existe um certo senso comum – quase um mito – que arma que
seria bom os EUA perderem a liderança mundial no campo da economia,
da política e principalmente militar. Essa ideia pode ser encontrada nos
discursos do cidadão comum e até mesmo de intelectuais e artistas.
Dentro de um debate ético e democrático deve-se pensar a mé-
dio e longo prazo a diminuição e até mesmo a perca do gigantesco poder
político-militar que atualmente os EUA desfrutam. O problema que não
se pode esperar e até mesmo desejar que num curto espaço de tempo o
poder americano seja enfraquecido, que a pax americana seja quebrada,
que entre em decadência. O motivo de não dever existir essa esperança é
que não existe nenhum paradigma de paz para substituir a pax americana,
não existe algum consenso internacional, organismo internacional ou algo
semelhante que possa, no caso de decadência da pax americana, manter
um nível de equilíbrio no mundo e, com isso, evitar o caos, a desordem
generalizada e até mesmo a barbárie.
O exemplo da decadência do império romano deve guiar as ree-
xões sobre a superação da pax americana. Quando Roma caiu e, com isso,
houve o m da pax romana, não havia um novo paradigma de paz para
91
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
substituir a pax romana. Com exceção da Igreja, não havia uma institui-
ção internacional capaz de manter o equilíbrio mundial, a ordem entre as
nações, povo e etnias. O que se viu após a queda do império romano do
Ocidente e o m da pax romana foi a difusão do caos, da desordem, da
fome, da violência e da barbárie. O Ocidente levou 1.300 anos para su-
perar o trauma que representou o m da pax romana. De forma análoga,
este mesmo problema pode acontecer no Ocidente moderno caso a pax
americana seja rapidamente e de forma abrupta rompida, esvaziada e aban-
donada. Em preciso esclarecer que em hipótese alguma está se defendendo
a manutenção eterna da pax americana. Apenas está se demonstrado que
em curto prazo – talvez nos próximos 50 ou 100 anos – a pax americana é
necessária para que a sociedade moderna continue num processo de aper-
feiçoamento material e tecnológico e, ao mesmo tempo, possa construir
estruturas sociais que possam promover a paz.
Ao mesmo tempo em que, em curto prazo, existe a necessidade
da manutenção da pax americana, é necessário compreender que este mo-
delo de paz está inserido dentro de um paradoxo, é o chamado paradoxo do
poder americano (NYE JR., 2002).
Existem várias formas de se pensar o paradoxo do poder ameri-
cano. Dentro do atual debate, ele será pensado a partir da problemática da
paz. A paz anglofônica, e de forma especíca a pax americana, reproduz,
dentro da modernidade, o dilema da pax romana. Esse dilema se materiali-
za pelo fato de tanto a pax romana como a pax americana conseguem, com
eciência, estabelecerem a paz armada, a paz militar, controlar territórios,
derrotar exércitos inimigos e controlar rebeliões populares. Além disso, as-
sim como o império romano, a paz anglofônica leva o desenvolvimento
tecnológico e conforto material para várias regiões ao redor do mundo. O
problema é que apesar de toda essa eciência, algo digno de elogio, falta
uma integração – dentro do paradigma da paz – das comunidades locais,
das nacionalidades, das etnias, das línguas e linguagens, das religiões e de
todo um contexto sociocultural. Essa falta de integração culmina no ques-
tionamento e até mesmo na rebelião (guerras, insurreições etc.) contra a
paz anglofônica.
Além do problema da falta da integração, existe outro problema.
Atualmente a paz anglofônica, especialmente a pax americana, experimen-
92
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
ta um dilema vivido pelo império romano e pela pax romana. Trata-se do
fato que tanto Roma como os EUA – e os outros países que compõem
a paz anglofônica – levarem ao mundo o aperfeiçoamento material e o
desenvolvimento tecnológico. Esse aperfeiçoamento conduz que as popu-
lações locais e que as pessoas tenham vidas mais confortáveis e que suas
necessidades básicas (água, comida, moradia) sejam saciadas com mais ra-
pidez e facilidade. O problema é que historicamente quando as comunida-
des locais e as pessoas levam vidas mais confortáveis, com suas necessidades
básicas saciadas de forma mais fácil, essas mesmas pessoas passam gozar do
privilégio da liberdade e, com isso, a se dedicarem a atividades lúdicas e do
espírito (arte, música, literatura, cinema etc.), a buscarem novas formas de
organização social, novas explicações para o mundo real, novas teorias no
campo do direito, da política e da losoa.
A consequência de todo este movimento é o surgimento de cor-
rentes de pensamento contrárias ao paradigma da paz dominante e he-
gemônico. É o que omas S. Kuhn vai chamar de crise do paradigma.
É interessante notar que essa crise é causada exatamente pelo êxito, pelo
sucesso do paradigma. Foi o êxito dos romanos em levar o conforto mate-
rial ao mundo que fez que este mesmo mundo se voltasse contra Roma. O
império romano não conseguiu lidar com a crise do paradigma e terminou
entrando em decadência. A pergunta que se faz: a paz anglofônica e, por
conseguinte, a pax americana saberão lidar com a crise do paradigma? Será
possível haver um processo interno de reconstituição do paradigma?
O presente estudo não tem por missão dar uma resposta deni-
tiva a essas e outras perguntas semelhantes que podem ser realizadas. No
entanto, dentro de um quadro de reexão sobre o problema, é necessário
pensar o debate da paz, incluindo a pax americana, dentro do atual con-
texto das crises éticas e sociais contemporâneas. É necessário, como adverte
Appiah (2008), pensar o debate ético atual dentro do quadro que a socie-
dade contemporânea é, muitas vezes, formada por estruturas e indivíduos
estranhos que não se reconhecem mutuamente e nem se quer conseguem
reconhecer o mínimo de coesão necessária para haver vida social. São gru-
pos e indivíduos que vivem quase como nômades, ou seja, unidades autô-
nomas, independentes do mundo social e dos demais indivíduos.
93
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
cAminhos do humAnismo: nEcEssáRiA consTRução dE um novo
PARAdigmA dA PAz
Neste contexto é preciso, de um lado, repensar o papel ético e
humanizador da sociedade, do ser humano, repensar os valores da moder-
nidade (liberdade, cidadania etc.). Do outro lado, é preciso perceber que,
num contesto de um mundo de estruturas sociais e de pessoas que não se
reconhecem mutuamente, que vivem uma espécie de estranheza mútua,
não será possível abandonar o projeto da paz anglofônica e da pax america-
na de forma tão rápida. Ao menos em médio prazo o mundo de estranhos
exigirá o arbítrio duma forma maior, uma força político-militar capaz de
impor uma certa ordem, capaz de evitar, ao menos temporariamente, o
caos e a barbárie.
No entanto, dentro do debate contemporâneo sobre o cosmopolitis-
mo (SALATINI, 2016) é necessário se repensar o papel da paz anglofônica
e da pax americana. Um modelo de paz que, como visto anteriormente, a
curto e médio prazo ainda será necessário.
No debate contemporâneo sobre a paz deve-se repensar o pa-
pel da diplomacia e dos organismos multilaterais que representam vários
setores, grupos e atores dentro das relações internacionais. Um projeto
de paz para o século XXI deve levar em conta as aspirações das grandes
nações ao redor do mundo, mas principalmente as pretensões das demais
nações de participarem no poder global e de democratização dos espaços
de construção da paz oriundos dos organismos multilaterais (ARAVENA;
GARCIA, 1999).
Dentro deste debate emergem os projetos de regiões ao redor do
mundo como, por exemplo, o projeto da Ásia-Pacíco (PINTO, 2009) e
da América do Sul (MIYAMOTO, 1987; LIMA; COUTINHO, 2007).
São projetos que não têm condições de rivalizar, de forma direta, com
o poderio econômico-militar da paz anglofônica, mas que, por diversos
meios e métodos, poderá se integrar ao projeto maior de paz, complemen-
tá-lo e até mesmo ajudá-lo a passar pelo processo de transição para outro
paradigma da paz.
Além da integração dos projetos regionais e dos organismos mul-
tilaterais, é necessária a construção de caminhos e meios diplomáticos, po-
94
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
líticos e econômicos para a efetivação da municipalidade, dos municípios
na construção de um projeto mais ecaz para a paz na sociedade (BRITO,
2011). Os munícipios são os grandes canalizadores dos conitos e proble-
mas sociais, das estruturas que geram a guerra e a violência. Sem um pro-
jeto de pacicação dos municípios, de instalação de harmonia e tranqui-
lidade dentro da municipalidade, não será possível o sucesso de qualquer
modelo de paz. A paz passa obrigatoriamente pelos municípios. Por isso,
os gigantescos recursos econômico-tecnológicos e diplomático-políticos
devem, além de estar a serviço da paz internacional, da paz entre as nações,
devem estar a serviço da construção da paz dentro dos municípios, dentro
da municipalidade.
Também, dentro do debate contemporâneo sobre a paz deve-se
repesar o papel e a própria dinâmica interna dos principais organizamos
internacionais de promoção e manutenção da paz, especialmente o papel
da Organização das Nações Unidas (ONU) (NASCIMENTO, 2007).
A ONU foi criada para ser um organismo internacional, cuja
principal função é a promoção e a manutenção da paz mundial. No en-
tanto, por diversos fatores (burocracia, corrupção, conselho de segurança
unicado, crise de legitimidade etc.) não consegue cumprir sua missão.
Dentro de um quadro de repensar a paz anglofônica, especialmente a pax
americana, é necessária uma revisão do papel e da função da ONU no
cenário internacional. Por si só, a ONU não possui estrutura para subs-
tituir os países de língua inglesa, especialmente os EUA, no processo de
construção e manutenção da paz ao redor do mundo, mas ela poderá ser
um organismo internacional capaz de, em médio e longo prazo, ajudar a
revisar o atual paradigma da paz.
conclusão
Ao longo da discussão demonstrou-se que a modernidade tem
vivido uma sucessão de modelos de paz baseados na força político-diplo-
mática e principalmente militar. Neste contexto, houve, entre os séculos
XVI e XVII o modelo Ibérico liderado por Portugal e Espanha, no século
XVIII tivemos o modelo francês e a partir do século XIX temos o modelo
da paz anglofônica. Inicialmente no século XIX este modelo foi protago-
95
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
nizado pela Inglaterra e a partir do século XX até as primeiras décadas do
XXI liderado pelos EUA.
A paz anglofônica conseguiu, por meio da forma político-diplo-
mática e militar, restaurar, dentro das condições sócio-históricas modernas,
a antiga pax romana, ou seja, a paz armada, militar, de controle de territó-
rio e fronteiras.
Devido ao grande poder econômico, tecnológico, diplomático e
militar não será possível, em curto prazo, o abandono da paz anglofônica.
No entanto, tanto para haver uma maior integração das nações, comunida-
des e cidadãos como também para haver uma reexão sobre este modelo,
visando a construção de outro modelo de paz, é necessário se repensar o
papel na construção e efetivação da paz dos organismos multilaterais, dos
projetos regionais na Ásia, na América do Sul e em outras regiões do plane-
ta, se valorizar o espaço do município, como espaço de construção da paz,
e se repensar a missão dos organismos internacionais para a manutenção da
paz, especialmente a ONU.
Por m, arma-se que a paz anglofônica, a exemplo da pax ro-
mana, trouxe para a sociedade moderna uma onda de violência e de níveis
diferentes de opressão. No entanto, não se pode negar que este mesmo
modelo de paz, seguindo o modelo histórico da pax romana, trouxe para
a sociedade uma onda de benefícios materiais, de conforto físico e de tec-
nologia. O desao contemporâneo é conseguir unir o desenvolvimento
técnico-material com as reivindicações de participação, de integração, de
liberdade e de convivência mais amistosa, dentro de um espírito caracterís-
tico de uma sociedade fraternal.
REfERênciAs
APPIAH, K. A. Cosmopolitismo: ética num mundo de estranhos. Lisboa: Europa-
América, 2008.
ARAVENA, F. R.; GARCIA, P. M. Diplomacia de cúpulas: o multilateralismo
emergente do século XXI. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 291–
359, 1999.
AZEVEDO, C. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de
História Regional, Ponta Grossa, v. 3, n. 2, p. 77–90, 1998.
96
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
BARRACLOUGH, G. A revolta contra o Ocidente: a reação da Ásia e da África à
hegemonia europeia. In: BARRACLOUGH, G. Introdução à história contemporânea. 5.
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 101–131.
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BOBBIO, N. O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: Ed. da Unesp, 2003.
BRITO, S. R. U. Diplomacia das cidades: participação dos municípios na consolidação
da paz e direitos humanos. In: SALA, J. B. (Org.). Relações internacionais e direitos
humanos. Marília: Ocina Universitária, 2011. p. 59–74.
BUENO, C. Da pax britânica à hegemonia norte-americana: o integracionismo nas
conferências internacionais americanas. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10,
n. 20, p. 231–250, 1997.
COSTA, P. B. O Destino Manifesto do povo estadunidense: uma análise dos elementos
delineadores do sentimento religioso voltado à expansão territorial. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE HISTÓRIA,5., 2011, Maringá. Anais... Maringá:
Universidade Estadual de Maringá, 2011. p. 2267–2276.
DIAS, M. O. O fardo do homem branco: um estudo dos valores ideológicos do império
do comércio livre. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
DIP, R. Segurança jurídica e crise pós-moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2002.
GUIMARÃES, M. R. Paz, reexões em torno de um conceito. In: BALESTRERI, R.
(Org.). Na inquietude da paz. Porto Alegre: Capec, 2003. p. 33–60.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2004.
IANNI, O. Imperialismo e cultura. Petrópolis: Vozes, 1976.
JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo:
Ática, 2002.
KAPLAN, A. O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções cienticas. São Paulo: Perspectiva, 2002.
KURZ, R. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da
economia mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LENS, S. A fabricação do império americano. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006.
LESSA, A. C. A Pax Britânica e o mundo do século XIX. História das Relações
Internacionais, ano 11, n. 20, p. 187–189, jun. 2006.
LIMA, M. R. S.; COUTINHO, M. V. A agenda sul-americana: mudanças e desaos no
início do século XXI. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007.
LYON, D. Pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1998.
LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
97
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
MARINHO, H. A. de M. P. Estados Unidos: o contexto dos anos 1970 e as crises do
petróleo. História em Reexão, Dourados, v. 4, n. 7, p. 1–10, jan./jun. 2010.
MIYAMOTO, S. Atlântico Sul: zona de paz e de cooperação? Lua Nova: Revista de
Cultura e Política, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 20–23, 1987.
MONIZ BANDEIRA, L. A. Formação do império americano. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
NASCIMENTO, B. L. F. Solução de controvérsias internacionais: revisão do papel da
ONU como pilar da segurança internacional. São Paulo: Juruá, 2007.
NYE JR., J. S. O paradoxo do poder americano. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
OLIVEIRA, M. A. Para além da fragmentação: pressupostos e objetivos da racionalidade
dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002.
PADRÓS, E. S. A pax britânica e a independência do Uruguai: estado-tampão e
balcanização no espaço platino. Anos 90: Revista do Programa de Pós-Graduação em
História, Porto Alegre, n. 5, p. 107–135, jul. 1996.
PINTO, P. A. Notas sobre a formulação de um projeto regional na Ásia-Pacíco.
Parcerias Estratégicas, Brasília, DF, v. 1, n. 2, p. 38–44, 2009.
POZZOLI, L. Maritain e o direito. São Paulo: Loyola, 2001.
______.; LUCA, G. D. de. Papel dos tratados internacionais como instrumento de
combate à discriminação racial. In: SILVA, M. A. M. da et al. Refugiados, imigrantes e
igualdade dos povos: estudos em homenagem a António Guterres. São Paulo: Quartier
Latin, 2017. p. 721–730.
RAMOS, A. L. A.; MIRANDA, A. R. A. Religião civil, destino manifesto e a política
expansionista estadunidense. Ameríndia: História, Cultura e Outros Combates,
Fortaleza, v. 3, n. 1, 2008.
ROSSI, L. A. S. Exército romano: conquista, terror e violência. Revista Pistis Praxis,
Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61–76, 2011.
ROUANET, L. P. A paz reexaminada. In: SALATINI, R. (Org.). Reexões sobre a paz.
Marília: Ocina Universitária, 2014. p. 51–68.
SALATINI, R. O tema da paz perpétua. In: SALATINI, R. (Org.). Reexões sobre a paz.
Marília: Ocina Universitária, 2014. p. 33–50.
______. Debate contemporâneo sobre o cosmopolitismo. In: SALATINI, R. (Org.).
Cultura e direitos humanos nas relações internacionais. Marília: Ocina Universitária,
2016. p. 11–22.
SANTOS, I. A crise da paz na sociedade contemporânea. In: GIRO MARÍLIA, Marília,
4 maio 2016. Caderno Opinião. Disponível em: <http://www.giromarilia.com.br/
colunas/congresso-da-paz/a-crise-da-paz-na-sociedade-contemporanea/5628>. Acesso
em: 8 jul. 2017.
98
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
______. Crise do paradigma moderno da paz. In: SERRA, C. (Org.). O que é paz?
Maputo: Escolar Editora, 2017. p. 12–37.
SARAIVA, J. F. S. Relações internacionais: dois séculos de história: entre a
preponderância europeia e a emergência americano-soviética. São Paulo: Ibri, 2001.
SCOWEN, P. O livro negro dos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
SERIQUE, I. Pax Romana e a Eirene do Cristo. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21,
n. 1, p. 119–134, 2011.
TORRES FILHO, E. T. O papel do petróleo na geopolítica americana. In: FIORI, J. L.
(Org.). O poder americano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 309–346.
VATTIMO, G. O m da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
WENGST, K. Pax romana, pretensão e realidade: experiências e percepções da paz em
Jesus e no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1991.
99
A      -
   
Heloísa Helena Silva Pancotti
Fábio Luís Binati
Larissa Fatima Russo Françozo
inTRodução
O presente trabalho pretende, através da pesquisa bibliográca,
utilizando-se do método dedutivo indutivo, sem, todavia, pretender esgo-
tar o tema, apontar como o Estado de bem-estar social é um importante
instrumento de coesão e garantia de atendimento aos direitos sociais ins-
culpidos nos ordenamentos jurídicos, mantendo a sociedade fraternalmen-
te interligada pacicamente.
Na pré-história, o homem buscava proteção vivendo em gru-
pos, estocando e compartilhando os alimentos, reunindo esforços para
defender-se dos infortúnios, conjugando esforços para a melhoria de sua
condição de vida, por meio da convivência tribal fraterna. É, portanto,
seguro dizer que a base da proteção social é permeada pelo espírito da
fraternidade e da economia de recursos com vistas à garantia frente a
vicissitudes futuras.
100
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A sociedade ocidental sempre valorizou o primado do trabalho.
A partir do cenário segundo o qual o trabalho é a razão da existência hu-
mana, já presente na doutrina de Cristo, já que, antes de sair pelo mundo
transmitindo seus ensinamentos, aprendeu o humilde ofício de carpinteiro
transmitido por seu pai.
À imagem e semelhança de Cristo, a Igreja defendeu o digno e
pleno trabalho e os direitos decorrentes de seu exercício como importante
instrumento para a persecução da paz. A garantia de proteção social sem-
pre foi um elemento indispensável para a coesão e pacicação social, ga-
rantindo um mínino existencial a todos atingidos por contingências sociais
que pudessem trazer privação de rendimentos.
Na Encíclica Pacem in Terris, João XXIII (1963) já proclamava
o direito à existência e a um digno padrão de vida, valores sine qua non à
existência de uma sociedade justa e pacíca, armando:
E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de
início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física,
aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são espe-
cialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência
sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa
tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invali-
dez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro
caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independen-
tes de sua vontade.
À medida que as transformações sociais foram se apresentando,
as reivindicações necessárias para a distribuição de justiça e formação da
sociedade fraterna, reconhecendo no seu vizinho a sua própria semelhança,
aprimoraram-se. Segundo Wagner Balera, o reconhecimento do primado
do trabalho pela Igreja, atribuiu a ele valoração que não encontra limites,
sendo legitimado por toda a civilização.
É que, ao encarar o trabalho humano como valor social já se coloca, de
per si, certa opção dentro de determinada escala de valores que subja-
zem a todo e qualquer ordenamento jurídico. Capacitemo-nos, pois, à
compreensão desse valor considerando o respectivo conteúdo no Direi-
to brasileiro e o modo pelo qual se viu assumido pela nossa civilização.
(BALERA, 1994, p. 1167).
101
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
A cobERTuRA PREvidEnciáRiA
O advento da cobertura previdenciária é relativamente recente, se
levarmos em consideração que o primeiro passo em direção a uma primária
forma legal de proteção social foi dado por Bismarck em 1883. No decurso
de seis anos, os trabalhadores alemães possuíam proteção contra doença,
acidentes de trabalho, velhice e invalidez, mediante um sistema contribu-
tivo restrito aos trabalhadores.
A necessidade de positivação das garantias aos direitos sociais
ocorreu em razão da exteriorização dos valores conquistados por aquela
nação, apaziguando e, por consequência, unindo a nação alemã. Com efei-
to, os valores são produtos culturais, pensamentos moldados por um povo
cujo conteúdo exterioriza a obtenção da proteção de um fato juridicamen-
te relevante (PANCOTTI, 2009, p. 75).
Esse efeito já foi observado por Kelsen, segundo o insigne Salatini:
[...] para Kelsen, a paz internacional deve ser buscada por intermédio
do direito: considerando tanto o direito nacional quanto o direito
internacional igualmente como formas de direito (denido
genericamente como ordenamento normativo coercitivo), a diferença
entre ambos residiria especialmente no fato de que o direito nacional
se baseia numa ordem centralizada, enquanto o direito internacional
se baseia numa ordem descentralizada, o que garante um maior grau
de paz a partir daquele que deste, concluindo que o estabelecimento
de um maior grau de paz nas relações internacionais dependeria do
estabelecimento de um maior grau de centralização entre os Estados,
o que poderia ser conseguido de duas formas básicas: (a) pelo
estabelecimento de um Estado federal (a exemplo dos EUA e da Suíça)
ou (b) de uma confederação de Estados (a exemplo da Liga das Nações
e da ONU). (SALATINI, 2016, p. 43–44).
O entendimento de Kelsen a indicar que o direito deve ser o
instrumento da paz, e que no âmbito internacional a solução estaria numa
maior centralização entre os Estados, encontra ressonância no que sus-
tenta Kant, ao considerar que uma guerra nunca é justa, porque suas ra-
zões advêm internamente, embasada nos sentimentos e pontos de vista do
determinado Estado envolvido, cujas vontades sujeitam-se apenas à sua
constituição e aos seus interesses. Kant sugere a existência ou estabeleci-
102
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
mento de um pacto entre os povos, também defendida por Kelsen. Seria
uma federação especial, cujo nome sugerido por Kant é “federação da paz”,
com o objetivo de pôr m a todas as guerras e para sempre, sem atingir a
soberania de cada Estado (KANT, 2008, p. 18).
A experiência bem-sucedida alemã espalhou os conceitos do bem-
-estar social a toda a Europa, de sorte que a igreja católica, em consonância
com os anseios sociais da época, preocupou-se com a questão em sua encí-
clica Rerum Novarum, na qual o Papa Leão XIII em 1891 destaca a necessi-
dade da intervenção estatal na promoção do bem-estar social, pensamento
que foi externado em consonância com o contexto social progressista da
época, em meio à Revolução Industrial, armando-se:
Certamente, se existe algures uma família que se encontre numa si-
tuação desesperada, e que faça esforços vãos para sair dela, é justo que,
em tais extremos, o poder público venha em seu auxílio, porque cada
família é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar
doméstico que seja teatro de graves violações dos direitos mútuos, que
o poder público intervenha para restituir a cada um os seus direitos.
O texto é minucioso em defender a coexistência possível da pro-
teção da propriedade particular e das riquezas adquiridas honestamente,
com a promoção do bem-estar social e através do trabalho e da proteção de
direitos fundamentais convidando o homem a “[...] amar a Deus e ao seu
próximo com uma caridade sem limites, a ultrapassar corajosamente todos
os obstáculos que dicultam o seu caminho na estrada da virtude.
Leão XIII convida toda a Igreja a não se deixar absorver pelo
trabalho confessional e assumir uma postura ativa na luta pelos direitos
humanos fundamentais pugnando que “[...] pelo que em particular diz
respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços para os arrancar
à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor.
O pontíce convidou os cristãos a práticas mais efetivas e frequen-
tes da caridade e destacou a importância do Estado para dirimir a miséria
e a indigência, salvaguardando os interesses da classe operária, apontando
princípios igualitários, de cidadania e destacando que “[...] os pobres, com
o mesmo título que os ricos, são, por direito natural, cidadãos; isto é, per-
103
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
tencem ao número das partes vivas de que se compõe, por intermédio das
famílias, o corpo inteiro da Nação.
Acerca da igualdade, citou São Tomás de Aquino, convocando os
governos a tratar igualitariamente seus cidadãos, observando rigorosamen-
te as leis da justiça distributiva, armando que “[...] assim como a parte e
o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo
pertence de alguma sorte a cada parte.
Preocupou-se também com a questão da dignidade do trabalho,
orientando o Estado a intervir nas greves, “[...] removendo a tempo as
causas de que se prevê que hão de nascer os conitos entre os operários e
os patrões [...]” além de pedir a garantia ao descanso semanal, jornada de
trabalho não exaustiva, proteção contra o trabalho exercido em condições
insalubres, proteção da mulher, vedação do trabalho infantil e cumprimen-
to das obrigações salariais.
Quanto às associações sindicais ou o seu equivalente à época,
aduziu o pontíce que “[...] mais valem dois juntos que um só, pois tiram
vantagem da sua associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado do
homem só, pois quando cair, não terá ninguém que o levante.” E ainda que
“[...] o irmão que é ajudado pelo irmão, é como uma cidade forte.
As fundações da solidariedade que permeia o sistema de cobertura
previdenciária estavam rmadas; porém, no período compreendido entre
a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1932 e ao nal da Segunda Guerra
Mundial, um período de imensa privação tomou conta do continente eu-
ropeu, muitas pessoas não podiam acessar as coberturas previdenciárias
por falta de contribuições ou em razão dos benefícios não serem previstos
para beneciar dependentes dos contribuintes.
O modelo bismarckiano tinha sofrido a inuências políticas ad-
vindas do New Deal e da losoa de Keynes, primando pela maior inter-
venção estatal no sistema previdenciário, com aportes nanceiros estatais e
maior controle na distribuição de recursos.
Todavia, o modelo não atendia à cobertura das contingências
sociais malécas surgidas na guerra, com uma legião de viúvas e órfãos
impossibilitados de prover o seu sustento. Urgia que fossem estabelecidos
novos parâmetros para atendimento à população de desvalidos do período.
104
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Em 1941, na Grã-Bretanha, convocou-se William Beveridge, um
lord que foi colaborador de Keynes, conforme nos ensina Castro e Lazzari
(2017), a m de reestruturar aquele sistema que não atendia mais às carên-
cias da população. A adoção dessa nova normativa, que cou conhecido
como o plano Beveridge, democratizou o acesso ao sistema previdenciário
estabelecendo a universalização de cobertura propiciando um amplo aten-
dimento à saúde e proteção em caso de desemprego.
Os dois modelos, o bismarckiano e o beveridgeano (ou de repar-
tição), conviveram na Europa do pós-guerra, ambos baseando-se na solida-
riedade que permeia a convivência humana desde os primórdios.
Em função da expansão do modelo de segurança social concebido por
Beveridge, no pós-Segunda Guerra, depois das experiências totalitárias,
nada menos que cinqüenta Estados elaboraram novas constituições
buscando adaptação às novas exigências políticas e sociais, nas
quais os direitos sociais ocupam um lugar de destaque. Com isso,
concluímos que dessa época em diante se materializa a universalização
dos direitos sociais, acrescendo-se aí o seu reconhecimento como
categoria integrante so rol de direitos fundamentais, o que ca
patente em nível mundial a partir da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1.948) mais especicamente em seu artigo 25.
(CASTRO; LAZZARI, 2017).
Inegavelmente, o bem-estar social é um instrumento pacicador
importante que pode ser comprovado na crise das décadas de 1980 e 1990,
que trouxe enorme desemprego em escala global. Mesmo com 23 mil pes-
soas dormindo nas ruas ou abrigos públicos da Nova Iorque de 1993, havia
menos inquietação social, pois a população ainda fruía a cobertura previ-
denciária mantida à custa da arrecadação da era de ouro:
Como os países capitalistas ricos estavam muito mais ricos do que
nunca e seu povo, em geral, estava agora protegido pelos generosos
sistemas de previdência e seguridade social da Era de Ouro, havia
menos inquietação social do que se poderia esperar, embora as nan-
ças do governo se vissem espremidas entre enormes pagamentos de
benefícios sociais, que subiam mais depressa que as rendas do Estado
em economias cujo crescimento era mais lento do que antes de 1973.
(HOBSBAWM, 1995).
105
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
A garantia de efetividade dos direitos fundamentais e sociais
insculpidos nos regramentos constitucionais são pilares viabilizadores da
paz social, da estabilidade dos regimes democráticos. A política do Estado
de bem-estar social, por mais alterações que tenha sofrido no decorrer do
tempo, ainda hoje é essencial para garantir a proteção social, ou ao menos
diminuir a desigualdade material.
De nada adiantaria se a normativa não pudesse ser efetivada atra-
vés de uma política possibilitadora de sua aplicação, distribuindo ou realo-
cando recursos entre os segurados e seus dependentes.
bEnEfícios PREvidEnciáRios
A Constituição Federal brasileira atualmente vigente protege o
trabalhador e as atividades laborativas através de inúmeros dispositivos.
Percebe-se isso porque logo em seu primeiro artigo, inciso IV, o Estado
preserva os valores sociais do trabalho. Enquanto já no artigo 3º esclarece
que os objetivos da República são o desenvolvimento nacional e a erra-
dicação da pobreza e, consequentemente, diminuindo as desigualdades
sociais. Já no artigo 6º elenca o trabalho como sendo direitos sociais.
Inclusive no artigo 7º o trabalho é colocado como direito dos trabalha-
dores urbanos e rurais, visando à melhoria de sua condição social. No
artigo 170, o trabalho é colocado como sendo questão de ordem eco-
nômica. e, por m tem-se o artigo 193, que elenca o trabalho como a
ordem social (BRASIL, 1988).
Percebe-se, portanto, que os constituintes brasileiros elegeram o
trabalho para ser o componente capaz de concretizar os objetivos constitu-
cionais, tanto é que defenderam e protegeram as atividades laborativas em
vários momentos e de diversas maneiras. Assim, é o trabalho que torna o
homem digno, colaborando para uma melhor situação de vida do traba-
lhador e de sua família, tendo como nalidade a erradicação da pobreza e
da marginalização. Por isso, o trabalho deve ser considerado como elemen-
to de inclusão social.
Dessa forma, a Previdência Social é um direito fundamental asse-
gurado a todos os trabalhadores e seus dependentes, pois esse sistema visa
106
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
garantir que, nas situações em que estes estejam desamparados, por moti-
vos de desemprego, incapacidade laborativa e velhice, o Estado possa am-
pará-los, não os deixando em situações precárias. Destaca-se que o amparo
previdenciário é dirigido a todos os trabalhadores, desde que completem a
carência necessária para cada espécie de benefício previdenciário.
A necessidade de proteção estatal surgiu com o advento da so-
ciedade industrial, pois se vericou que a classe trabalhadora era devas-
tada pelos acidentes de trabalho, havia a presença de trabalho infantil e
o trabalhador era explorado. Dentre várias formas de escravidão traba-
lhista, verica-se o constante abuso dos empregadores. Tudo isso ocorria
porque o trabalhador não tinha de onde tirar o seu sustento, ou seja,
sua única fonte de renda era o seu salário mensal. Daí a importância da
participação do Estado para maior proteção de todos, criando o Estado
do bem-estar social.
As ações estatais modernas não se limitam ao campo previdenciário,
mas, ao contrário, também tendem a proporcionar ações em outros
seguimentos, como a saúde e o atendimento a pessoas carentes. É a
seguridade social, grau máximo de proteção social. O Brasil tem segui-
do esta mesma lógica, sendo que a Constituição de 1988 previu um
Estado do Bem-Estar Social em nosso território. Por isso, a proteção
social brasileira é, prioritariamente, obrigação do Estado, o qual impõe
contribuições obrigatórias a todos os trabalhadores. Hoje, no Brasil,
entende-se por seguridade social o conjunto de ações do Estado, no
sentido de atender ás necessidades básicas de seu povo nas áreas de Pre-
vidência Social, Assistência Social e Saúde. (IBRAHIM, 2012, p. 3–4).
Dessarte, a Seguridade Social, através da Constituição de 1988,
é um sistema protetivo, que até então era inexistente em nosso país. Dessa
forma, o Estado evoca para si a responsabilidade de atender os anseios e
as necessidades de todas as pessoas, inclusive dos trabalhadores, na área da
assistência e previdência social.
Percebe-se, portanto, que a proteção social, que engloba os ser-
viços de assistência social e benefícios previdenciários, é um conjunto de
oferta de bens, renda e serviços que combatem a pobreza e buscam reduzir
as desigualdades, possibilitando a cada ser humano padrões mínimos de
bem-estar, garantindo a sua inclusão no meio social.
107
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
No que tange especicadamente à previdência social, esta é co-
locada como sendo um seguro sui generis, pois, em relação a sua liação,
ocorre de forma obrigatória para os regimes básicos, porque tem o condão
de amparar os seus segurados contra os chamados riscos sociais. O ingresso
a esse “seguro” também pode ocorrer de forma voluntária, que são os cha-
mados contribuintes facultativos.
Podemos conceituar os riscos sociais como sendo aqueles que to-
das as pessoas estão sujeitas, como, por exemplo, os eventos imprevisíveis
que são as doenças ou acidentes e até mesmo os eventos previsíveis, como,
por exemplo, a idade avançada e a necessidade da retirada do trabalhador
do ambiente de trabalho nocivo a sua saúde ou integridade física.
Os benefícios previdenciários estão previstos na Lei n° 8.213/1991,
assim denominados: aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo
de contribuição, aposentadoria por invalidez, aposentadoria especial, au-
xílio-acidente, auxílio-doença, auxílio-reclusão, pensão por morte, salário-
-maternidade, salário-família, bem como amparo assistencial ao idoso e ao
deciente (BRASIL, 1991).
Percebe-se então que os benefícios previdenciários, por amparar
o segurado em casos previsíveis e imprevisíveis, possuem como objetivo a
garantia do mínimo vital para a vida do trabalhador e de sua família, não
deixando que chegue ao extremo da marginalização da sociedade, concre-
tizando a dignidade da pessoa humana.
A Previdência Social é, portanto, um direito fundamental, por-
que garante a cada trabalhador, liado a este sistema, a sua dignidade,
protegendo-o, não o deixando sem os meios indispensáveis à subsistência
da pessoa, e por isso a importância da previdência social para as situações
inesperadas da vida de um trabalhador é de grande valia.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a
defender que a prioridade do Estado deve ser o cidadão, ou melhor, o ser
humano. Por isso, a seguridade e a previdência social adequam-se perfeita-
mente aos objetivos estatais.
108
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Mais do que um bônus, a garantia necessária da vida digna é um ônus
social, já que a dignidade da pessoa humana é também um dever de
todos para com todos. A dignidade da pessoa humana não é somente
uma prerrogativa dos particulares perante o Estado, mas também um
dever daqueles para com o próximo31. As indiscutíveis vantagens tra-
zidas pelo reconhecimento da primazia e inviolabilidade da pessoa hu-
mana, conquistadas a muito custo, trazem também pesados encargos,
dentre os quais a cotização forçada para a manutenção da malha prote-
tiva. Daí justica-se a exação coercitivamente aplicada pelo Estado para
ns de garantia da vida digna, impondo não somente contribuições
compulsórias da sociedade, mas também o ingresso forçado no sistema
protetivo. (IBRAHIM, 2016).
Verica-se que o trabalho dignica o homem, porque retira ele da
condição de miserável, permite conhecimentos a ele e muitos outros bene-
fícios. Porém, todas as pessoas estão diante de casos que podem retirá-las
do mercado de trabalho por tempo indeterminado ou não, e a previdência
social colabora para garantir o mínimo a todos os cidadãos e garantir esse
mínimo é garantir também uma paz social.
bEnEfícios AssisTEnciAis
No que se tange à Assistência Social, esta tem a incumbência de
zelar por todos os cidadãos que precisam de ajuda estatal. Pode-se dizer que
ela cobre as lacunas da previdência social, garantindo proteção da família,
maternidade e infância.
Entretanto, a legislação brasileira nem sempre atribuiu à
Assistência Social o seu devido valor. Esta era considerada anteriormente
no âmbito do direito do trabalho, não guardando relação direta com a
Previdência Social. Somente com a Lei 6.439 de 1977, que instituiu o
Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, foi que esse siste-
ma começou a ganhar importância, e, posteriormente, rearmada na atual
Constituição de 1988, com os artigos 203 e 204, que, porém, só veio
a ser organizada verdadeiramente em 1993, através da Lei Orgânica da
Assistência Social (Lei 8.742/1993).
O conceito de Assistência Social pode ser encontrado no próprio
texto da lei, conforme se vê:
109
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Art. 4º A Assistência Social é a política social que provê o atendimento
das necessidades básicas, traduzidas em proteção à família, à mater-
nidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de
deciência, independentemente de contribuição à Seguridade Social.
(BRASIL, Lei 8.212, 1991).
O mesmo texto é repetido no artigo 3º do decreto 3.048/1999,
que aprovou o regulamento da Previdência Social e deu outras providências.
A Assistência Social é, portanto:
[...] um conjunto de atividades particulares e estatais direcionadas para
o atendimento dos hipossucientes, consistindo os bem oferecidos em
pequenos benefícios em dinheiro, assistência à saúde, fornecimento de
alimentos e outras pequenas prestações. Não só complementa os ser-
viços da Previdência Social, com a amplia, em razão da natureza da
clientela e das necessidades providas. (MARTINEZ, 1992, p. 83).
Como se vê, a Assistência Social é prestada de forma gratuita pelo
Estado, a quem dela necessitar, e com gratuidade pretende-se dizer que
independe de contribuições anteriores do beneciário, diferentemente da
Previdência Social, reetindo a obrigação original do Estado, que é ga-
rantir condições mínimas de sobrevivência e vida digna àqueles que não
tiverem condições de fazê-lo ou de ter este socorro provido pela própria
família (MARTINS, 2005, p. 498).
Mas os objetivos da Assistência Social não são apenas o de dar
ou fornecer serviços aos mais necessitados, mas também primar pelo valor
do trabalho, com mecanismos de reintegração do segurado ao mercado de
trabalho, reabilitação dos portadores de deciências e dos que sofreram
acidente do trabalho com sequelas irreversíveis, além do socorro ao idoso
que não tem condições de sobrevivência ou de trabalho, bem como não
faça jus a benefícios previdenciários.
Apesar dos esforços do Estado brasileiro, através das legislações
para garantia de dignidade no trabalho, há imprevistos, chamados de con-
tingências sociais, que rompem a linha de normalidade, e colocam o ser
humano em situação de necessidade, perturbando a paz social do indiví-
duo, com reexos familiares e também na comunidade em geral.
110
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Assim, nas situações em que o cidadão não puder socorrer-se da
Previdência Social, a Assistência Social presta este socorro, de forma, por-
tanto, suplementar, conforme preleciona Ibrahim:
O seguimento assistencial da seguridade tem como propósito nuclear
preencher as lacunas deixadas pela previdência social, já que esta, como
se verá, não é extensível a todo e qualquer indivíduo, mas somente aos
que contribuem para o sistema, além de seus dependentes. [...] Não
compete à previdência social a manutenção de pessoas carentes; por
isso, a assistência social é denida como atividade complementar ao
seguro social. (IBRAHIM, 2012, p. 13).
É perceptível no texto da lei que a Assistência Social é um meio
de políticas públicas de apoio ao ser humano vulnerável, seja por desem-
prego, doença, deciência, idade, etc., a m de que seja mantido e pre-
servado o bem mais importante do rol dos direitos humanos, a dignidade
da pessoa humana, através da garantia de um mínimo existencial, além,
é claro, de ser importante meio de distribuição de riquezas e enfrenta-
mento da pobreza.
Num mundo ideal, todas as pessoas teriam condições de traba-
lho, empregos dignos, condições laborais salubres, salário suciente para
manter uma vida digna, verteriam contribuições à Previdência Social e se
aposentariam na velhice com valores compatíveis com sua renda anterior.
Esse é inclusive um dos fundamentos da nossa Constituição
Federal, previsto no artigo 1º, IV, que estabelece “[...] os valores sociais do
trabalho [...]”, no caput do artigo 170, que estabelece que a ordem econô-
mica é “[...] fundada na valorização do trabalho humano [...]”, e ainda no
artigo 193, que dispõe que “A ordem social tem como base o primado do
trabalho [...]” (BRASIL, 1988). Indiscutível, portanto, a importância do
exercício do trabalho para o desenvolvimento da nação, mas também para
o engrandecimento do seu povo, garantia de bem-estar social, e instrumen-
to de justiça e pacicação sociais.
De tal sorte, conclui-se que o trabalho é um valor vital para o
homem, não tendo sido por acaso que a Constituição Federal o vincula a
este toda a ordem social, e a sua realização deve ser assegurada como direito
fundamental para todos, quando possível.
111
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Ocorre que ainda não vivemos num mundo ideal, e diga-se
ainda” porque não se pode perder a esperança de que dias melhores
virão, mas a realidade indica que graves imprevistos podem ocorrer du-
rante a vida do ser humano que lhe impinjam à situações de necessidade
de um mínimo existencial, e é nesse momento que a Assistência Social
ganha suma importância.
Há que se destacar ainda que não há que se falar em obrigação
social consistente na oferta de trabalho, não cabendo ao Estado responsa-
bilizar-se por esse ônus, mas cabe à ordem econômica e à própria socie-
dade buscar meios de proporcionar a realização deste direito. A parte que
cabe ao Estado é, portanto, mediante a Assistência Social, socorrer digna-
mente aos que estão impedidos de exercer esse lídimo direito ao trabalho
(LEMOS, 2015).
Nesse contexto é que a Assistência Social se mostra fundamental
à proteção da vida humana, e mais do que simplesmente à vida, mas a uma
vida minimamente digna, com universalidade de cobertura dos direitos
sociais, supremacia do atendimento às necessidades básicas, com respeito à
dignidade do ser humano, igualdade de acesso para todos e mediante pres-
tação de serviços de qualidade, sempre com o to de proteger a dignidade
da pessoa humana e manter a paz social, não olvidando o espírito comuni-
tário fraterno que sempre permeou o tema da proteção social desde que o
homem decidiu viver em grupo e estocar alimentos em busca da união de
forças como forma da proteção coletiva.
O princípio da fraternidade que hoje foi internalizado nos orde-
namentos jurídicos de inúmeros Estados, inclusive o brasileiro, aglome-
rado com a seguridade social, signica concretizar todos os direitos dos
cidadãos, sejam eles segurados ou não, porque é através desse princípio
que se garante não só o bom relacionamento entre as pessoas, mas uma
relação fraterna e de acolhimento, construindo uma relação em que todos
se sintam protegidos pelo direito e pelo Estado.
Percebe-se então que a construção e a efetivação da dignidade da
pessoa humana só estarão completas aliadas a fraternidade, vez que é nesse
sistema em que se busca o bem-estar social, deixando de lado o egocentrismo.
112
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Ademais, a dignidade da pessoa humana se fez presente nos maio-
res documentos em favor de todas as pessoas do mundo, como é o caso
da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela resolução
217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948. Conforme nos ensina Lafayette Pozzoli:
A referida declaração, objeto de um estudo mais especíco no item
seguinte, consigna no seu texto o reconhecimento da dignidade da
pessoa humana inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis como constitutivos do fundamento
da liberdade, da justiça e da paz. Foram elementos importantes que
tornaram os direitos da pessoa humana protegidos, para que a pessoa
não se veja levada ao supremo recurso da revolta contra a tirania e a
opressão. (POZZOLI, 2001, p. 110).
O autor nos ensina que reconhecer e preservar o indivíduo
como sendo um humano, que precisa do mínimo existencial para a sua
sobrevivência, é um impacto tão grande na vida de toda a humanidade
que colabora para a construção da liberdade, justiça e da paz. Assim, a
Assistência Social cumpre o seu papel para a efetivação e construção dos
valores acima citados, porque preserva e acolhe o ser humano, não o dei-
xando à beira da marginalidade.
conclusão
Através do estudo realizado, pode-se concluir que o advento da
cobertura previdenciária teve suas origens em 1883, na Alemanha, quan-
do os cidadãos e, consequentemente, trabalhadores daquele país possuíam
proteção contra doença, acidentes de trabalho, velhice e invalidez median-
te um sistema contributivo.
Naquele momento, começou-se a perceber a necessidade de ga-
rantir às pessoas o bem-estar social, que era auxiliar o trabalhador quando
por algum motivo este não podia usufruir de seu salário mensal. Assim, o
bem-estar social e coletivo é um meio de instrumento de pacicação.
Verica-se a presença da seguridade social, que contempla a
Previdência e a Assistência Social, como sendo um direito fundamental,
113
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
porque esse é um sistema que assegura o amparo, o acolhimento e garante
ao trabalhador o mínimo existencial para a sua sobrevivência.
Especicadamente a Previdência Social assegura a todos os tra-
balhadores e seus dependentes uma renda mensal, de forma vitalícia ou
momentânea, quando essas pessoas estiverem diante dos riscos sociais e,
consequentemente, desamparados. Assim, o Estado acolhe-os, não os dei-
xando em situações precárias, ou seja, abandonados.
Cabe destacar que, para o recebimento dos benefícios previdenci-
ários, que estão previstos na Lei n° 8.213/91, é necessário que o trabalha-
dor tenha completado a carência estipulada para cada espécie de benefício,
vez que esse sistema é reconhecido como sendo um seguro sui generis.
Já a Assistência Social zela pelos cidadãos que precisam de aju-
da estatal, porém, por algum motivo, não conseguiram contribuir com a
Previdência, por isso armou-se que ela cobre as lacunas da Previdência
Social, garantindo proteção da família, maternidade e infância.
Destaca-se que, ao falar de Assistência Social, percebe-se a pre-
sença do princípio da fraternidade, que, aglomerado com os direitos pre-
videnciários e assistenciais, concretiza e efetiva o amparo estatal a todas as
pessoas, sejam elas seguradas ou não.
Dessa forma, reconhecer e preservar os trabalhadores segurados
e as pessoas não seguradas ao sistema da previdência é garantir o mínimo
existencial para a sobrevivência de todos, permitindo-lhes alimentação,
saúde e lazer, concluindo-se, portanto, que a seguridade social contribui
efetivamente com o papel de construir a paz.
REfERênciAs
BALERA, W. O valor social do trabalho. Revista LTr, São Paulo, v. 58, n. 10, p. 1167–
1178, 1994.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1992.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/
bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf>. Acesso em: 28 set. 2017.
114
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
______. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade
Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Brasília, DF, 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8212cons.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.
______. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da
Previdência Social e dá outras providências. Brasília, DF, 1991. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.
BRUMER, A. Previdência social rural e gênero. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 7,
p. 50–81, jan./jun. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a03n7>.
Acesso em: 28 set. 2017.
CASTRO, C. A. P. de; LAZZARI, J. B. Manual de direito previdenciário. Rio de Janeiro:
Forense, 2017.
HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 1995.
IBRAHIM, F. Z. Curso de direito previdenciário. 17. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.
______. A previdência social como direito fundamental. 2016. Disponível em: <https://
www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uac-
t=8&ved=0ahUKEwjbj9r_jsbWAhWLjpAKHenSA-8QFggmMAA&url=https%3A%-
2F%2Fwww.impetus.com.br%2Fartigo%2Fdownload%2F21%2Fa-previdencia-social-
-como-direito-fundamental&usg=AFQjCNGBX4yZ9Cv4qodVYRVKnGZmD_bQ>.
Acesso em: 27 set. 2017.
JOÃO XXIII. Pacem in Terris: Carta Encíclica. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana,
1963. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/
documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html>. Acesso em: 3 maio 2017.
KANT, I. A paz perpétua: um projeto losóco. Tradução Artur Morão. Covilhã:
Universidade da Beira Interior, 2008. Original de 1795.
LEÃO XIII. Rerum Novarum: Carta Encíclica. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana,
1891. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/
hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html>. Acesso em: 3 maio 2017.
LEMOS, R. S. de. A valorização do trabalho humano: fundamento da república, da
ordem econômica e da ordem social na constituição brasileira de 1988. Revista Páginas
de Direito, jun. 2015. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/index.php/artigos/306-
artigos-jun-2015/7243-a-valorizacao-do-trabalho-humano-fundamento-da-republica-
da-ordem-economica-e-da-ordem-social-na-constituicao-brasileira-de-1988>. Acesso
em: 26 set. 2017.
LIMA JUNIOR, L. P. A fraternidade como um princípio esquecível: olvido e
rememoração na história recente. Disponível em: <http://www.catedrachiaralubich.
org/uploads/artigos/artigos_2014-08-12_ruef2012artigolauropaisdelimajunior_pdf_
a4908353b2b 237ce2c83e9922af840f9.pdf>. Acesso em: 3 maio 2017.
115
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
MARTINEZ, W. N. A seguridade social na constituição federal. 2. ed. São Paulo:
LTr, 1992.
MARTINS, S. P. Direito da seguridade social. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
______. Direito do trabalho. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
______. Comentários à lei nº 8.212/91: custeio da seguridade social. São Paulo:
Atlas, 2013.
PANCOTTI, L. G. B. Conitos de princípios constitucionais na tutela de benefícios
previdenciários. São Paulo: LTr, 2009.
PEDREIRA, C. de A.; PIERDONÁ, Z. L. A violação do primado do trabalho pela
legislação previdenciária. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 2010,
Fortaleza. Anais eletrônicos... Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rc-
t=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwiP85Pv8sXWA-
hVBDJAKHfSjCD8QFggtMAE&url=http%3A%2F%2F150.162.138.7%2Fdocu-
ments%2Fdownload%2F559%3Bjsessionid%3D27888EEC83E71FD0DC341E-
158739622E&usg=AFQjCNFP3N_q_jLwzj3JTNTYYN0E5mc3HA>. Acesso em: 27
set. 2017.
PEREIRA, A. J. O benefício de prestação continuada e a tutela do mínimo vital.
Revista Espaço Acadêmico, Maringá, v. 16, n. 191, p. 71–82, abr. 2017. Disponível
em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/
viewFile/32989/1892>. Acesso em: 27 set. 2017.
POZZOLLI, L. Maritain e o direito. São Paulo: Loyola, 2001.
RIBEIRO, M. H. C. A. Aposentadoria especial. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2010.
SALATINI, R. O tema da paz no século XX. In: PASSOS, R. D. F. dos; FUCCILLE, L.
A. (Org.). Visões do Sul: crise e transformações do sistema internacional. Marília: Ocina
Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2016. v. 1, p. 35–52.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II–II. Questão 61, A1, Ad. 2. Disponível
em: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1225-1274,_omas_Aquinas,_
Summa_eologiae,_ES.pdf>. Acesso em: 3 maio 2017.
PARTE 2
Reflexões sobre a tolerância
119
R L (–)   
   I M O L 
T   C ()
Ricardo da Costa
Imagem 1
Nesta colorida e expressiva ilustração da artista catalã África Fanlo para uma edição infantil
do Livro do Gentio e dos Três Sábios (Barcelona: Petit Fragmenta, 2015), o melancólico gentio
(à direita, de pé) encontra os sábios das três religiões (o muçulmano, com um pássaro azul no
ombro; o judeu, ao centro, e o cristão, de vermelho) e expõe sua angústia, em meio à Natureza
que, atenta, observa o diálogo.
120
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
1 dEfiniçõEs
Antes de tudo, por um princípio racional, é necessário denir: o
que é tolerância? Sempre com base factual, com a História a alicerçar nossas
considerações teóricas, estabeleçamos três âmbitos, três perspectivas que
denominaremos de via negativa, via positiva e via extrema. Por via negativa,
entendemos todas e quaisquer atitudes mentais privadas, íntimas, ou seja,
excluídas do foro público, da coisa pública. Trata-se da vida interior, vida
do espírito. Por exemplo, posturas de resignação ou impassividade diante de
pessoas ou grupos que pensam ou se comportam de um modo diferente do
nosso. É o que a historiograa conceituou como o “outro” (TODOROV,
1982). A via negativa em relação a esse “outro”, aos outros, é um compor-
tamento passivo muito semelhante aos que os antigos (estoicos, por exem-
plo) e, especialmente, os medievais (com o Cristianismo), atribuíam como
consequência da virtude da paciência (LLULL, 2010, p. 35).
1
Por sua vez, a via positiva é a defesa pública da coexistência pa-
cíca entre pessoas ou grupos com pensamentos diferentes. Difere da via
negativa por sua manifestação social (ou política). O defensor dessa via,
necessariamente, expõe seus pontos de vista, se comporta como um ani-
mal político, atua e pretende interferir e inuenciar outras pessoas, outros
grupos que pensam de modo distinto. Como veremos, apenas em seu en-
tardecer a Idade Média conheceu esse novo tipo social. Isso porque o con-
vencimento pacíco através do diálogo é algo estranho às formas políticas
anteriores às democracias contemporâneas (e mesmo nessas, ainda hoje,
têm em seu seio defensores da violência como um instrumento político,
especialmente pensadores de esquerda (GUEVARA, 1966; MARX, 1975,
p. 829; DEBRAY, 1980)
2
.
O próprio Llull inseriu a paciência em uma das oito bem-aventuranças: “1. A paciência é o refreamento da
vontade ocasionada pela ira convertida em caridade. Por isso, no Evangelho, Jesus Cristo prometeu que aqueles
que forem pacientes serão lhos de Deus; 2. Amável lho, todos somos lhos de Deus pela criação, mas pela
paciência o homem é lho da graça, e pela impaciência é lho da culpa e da maldição. Por isso, a paciência faz
ser lho de Deus todos aqueles que Lhe são obedientes e submissos.”
Desde Marx (1818-1883) – a violência como fato estruturante da História (“[...] é sabido o grande papel
desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravidão, pela rapina e pelo assassinato, em suma,
pela violência.”, O Capital. Crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, v. 2, p. 829)
até Che Guevara (1966) e Régis Debray (1980) a violência sempre esteve na pauta dos partidos de esquerda.
Para isso, ver especialmente Sorel (1992) e, mais recentemente, Zizek (2014).
121
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Por m, a via extrema, historicamente mais recente que as an-
teriores, é a defesa da tolerância com o uso de todos e quaisquer meios
possíveis (através da violência verbal, da intimidação, da censura, etc.).
Durante toda a história da civilização ocidental prevaleceu, sempre que a
tolerância foi pensada por lósofos e literatos, a via negativa. A positiva
mais recentemente (a partir do Iluminismo
3
). A extrema, por m, só a partir
da segunda metade da década de 1960, especialmente com a ascensão dos
radicais nas universidades (KIMBALL, 2010).
A história do conceito de tolerância, ou melhor, do processo de
construção desse conceito, do ponto de vista losóco, nasce justamente no
coração da Idade Média, com o lósofo Ramon Llull (1232–1316), par-
ticularmente com uma de suas obras mais conhecidas, O Livro do Gentio e
dos Três Sábios (c. 1274–1276). Nele, o lósofo catalão deniu a tolerância
como diálogo. Em outras palavras, o imperativo de debater os pressupostos
de sua fé com os sábios de outras fés (no caso, o Judaísmo e o Islamismo)
(LLULL, 2001).
4
Após Llull, a Idade Média ainda especulou relativizações da fé
católica no próprio seio da Cristandade. Guilherme de Ockham (c. 1287–
1347), franciscano, argumentou que a salvação poderia ser possível fora do
catolicismo, além de criticar virulentamente a autoridade papal – até ele, o
princípio era Extra Ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja não há salvação”),
rmado no IV Concílio de Latrão (1213–1215) pelo papa Bonifácio VIII
(1294–1303). Em sua bula Unam Sanctam (1302), o pontíce armou
que “Para a salvação de toda criatura humana, é absolutamente necessário
estar sujeito ao Pontíce Romano.”; era uma reiteração do que já armara
o papa Inocêncio III (1198–1216): “Com nossos corações cremos e com
nossos lábios confessamos que existe só uma Igreja, não a dos hereges, mas
a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, fora da qual cremos que não
há salvação.” (COSTA, 2011, p. 19–35).
O Iluminismo (ou Ilustração) foi um movimento losóco (e contestador da herança clássica medieval)
característico do séc. XVIII. Sua obra mais emblemática foi a Enciclopédia (1751-1772), editada por Diderot
(1713-1784), d’Alembert (1717-1783) e uma equipe formada por mais de cento e cinquenta cientistas.
Pretendia abarcar e rediscutir tudo, da Metafísica à Música. Sua bibliograa é incomensurável. Indico apenas
três obras: Cassirer (1972), Gay (1977) e Vovelle (1995).
Embora essa seja a “edição denitiva” da lavra do Prof. Bonner, de minha parte, ainda aprecio muitíssimo seu
Bonner (1989, p. 89-272). Há uma publicação brasileira. Citamo-la por obrigação, pois infelizmente não é uma
publicação bem cuidada: Lúlio (2001).
122
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A seguir, Boccaccio (1313–1375) discorreu nessa mesma linha
argumentativa-relativista: a salvação era possível a judeus, cristãos e muçul-
manos (Decamerão, Conto 28 “Os Três Anéis”) (BOCCACCIO, 2013).
Mas só a partir do séc. XVI iniciar-se-ia um caminho mais sóli-
do rumo à convivência pacíca entre diferentes. O ambiente intelectual
foi o jurídico. Jacob Acontius (c. 1520–1566), jurista, teólogo e lósofo,
em sua obra Satanae Stratagemata (1565), armou que a intolerância reli-
giosa era uma armadilha do diabo (2010); Jean Bodin (1530–1596), tam-
bém jurista e lósofo, defendeu o retorno a uma religião natural para evi-
tar discussões dogmáticas (em Coüoquium heptaplomeres) (BODIN, 1975);
Montaigne (1533–1592) assentou o âmbito losóco no qual o tema fruti-
caria: a defesa da liberdade de consciência (Ensaios, II, 19) (MONTAIGNE,
2010); por m, Espinoza (1632–1677) apresentou o argumento denitivo: a
violência ou a imposição não poderiam ser instrumentos válidos para o esta-
belecimento da fé no âmbito íntimo (em seu Tractatus theologico-politicus, de
1670) (ESPINOSA, 2008). Isso em meio às guerras religiosas (1524–1697)
– da Guerra dos camponeses alemães (Deutscher Bauernkrieg, 1524–1525), in-
centivada por Lutero (1483–1546), à Guerra dos Nove Anos (1688–1697)
entre a França e a Liga de Augsburgo (MACCULLOCH, 2003).
2 o conTExTo: os mongóis
Muito já foi escrito a respeito do sentimento dos cristãos
medievais em relação ao fato de terem a consciência de serem minoria no
mundo – e, por isso, o renovado espírito apologético do séc. XIII (MITRE
FERNÁNDEZ, 2004). A própria losoa de Ramon Llull é uma losoa
de conversão, calcada na diferença, de espírito atuante, vibrante, disposta
a dialogar para converter, com argumentos “racionais (em suas palavras,
necessários”) (VILLALBA I VARNEDA, 2015). Por isso, além de se
voltar para judeus e muçulmanos, o lósofo se preocupou com a “questão
tártara” (“tártaros”, como caram conhecidos os mongóis na Europa).
Na verdade, o tema fez parte de seu tempo. Passou ao ambiente
europeu quando, em 1237, um frade chamado Júlio enviou uma carta ao
legado papal na Hungria para informar a invasão dos mongóis (ou tártaros).
Após conquistarem boa parte da Ásia em um dos acontecimentos mais
123
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
impressionantes da História (CAHEN, 1989, p. 301) (no que a historiograa
chamou de Expansão Mongol [1206–1294]) (RUNCIMAN, 1985, p. 223–
238) e se apoderarem do Principado de Moscou, os mongóis chegaram à Europa:
assolaram a Polônia e a Hungria em 1241 (Batalha de Legnica). Gregório IX
(1227–1241) pregou a cruzada para a Hungria, sem sucesso; Inocêncio IV
(1243–1254), no Concílio de Lyon (1245) incitou os reinos cristãos a tomarem
medidas militares para impedir novos ataques (LLULL, 2016, p. 13), também
sem sucesso. Missões diplomáticas foram enviadas. Os mongóis recusaram
unir-se aos cristãos. Em compensação, atacaram os muçulmanos (Alamut,
Bagdá, Damasco e Alepo) até o sultão mameluco Baybars (1223–1277)
recuperar as terras perdidas e fazê-los recuar até o rio Eufrates.
Imagem 2
A Batalha de Legnica e a decapitação do duque Henrique da Silésia com sua alma levada ao Céu por
anjos (1353). Iluminista desconhecido. Silésia, têmpera colorida e tinta em pergaminho, 34,1 x
24,8 cm. e J. Paul Getty Museum.
124
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Com a chegada em cena dos mamelucos, a partir de 1260,
os mongóis mudaram de posição e procuraram pactuar com o mundo
cristão (com a promessa de libertar a Terra Santa). Foi nesse contexto
que Llull chegou a Roma, em 1287. Tinha cinquenta e cinco anos.
Estava disposto a propagar sua proposta de conversão do mundo ao
cristianismo, e desejava um apoio político. Sua primeira ideia foi o
papado, naturalmente. O estudioso Pere Villalba (1938– ) denominou
essa nova (e terceira) fase de sua vida de etapa de expansão (VILLALBA
I VARNEDA, 2015, p. 193).
3 O LivrO dO TárTarO e O CrisTãO (1288)
Não é muito fácil, nem possível, nem proveitoso discutir como o Deus
omnipresente e gloriosíssimo pode ser conhecido e estimado por aque-
les que o desconhecem. Não obstante, a Piedade nos impulsiona e a
Caridade nos mostra que os inéis, ofuscados pelo erro e lançados à
morte sempiterna, perigo mortal, podem e devem ser corrigidos no
caminho da salvação eterna – Caminho dos caminhos, Luz das luzes,
Verdade das verdades – por onde transitaram antes de terem se afastado
por seus erros. Por isso, eu, pobre e pecador, indigno e desonrado, há
muito me entrego fervorosa e assiduamente a esse trabalho, e com a
ajuda daquele sem o qual nada posso fazer de bom, redijo este sermão
por meio de parábolas e metáforas. (RAMON LLULL, O Livro do
Tártaro e o Cristão, Prólogo, 2, 2016).
Em Roma, o prolíco lósofo escreveu duas obras: Os Cem
Nomes de Deus (a 38
a
de sua lavra) e o Livro do Tártaro e o Cristão (a 39
a
)
(DOMÍNGUEZ REBOIRAS, 2008, p. 125–242). Em relação a esse úl-
timo escrito, objeto desse pequeno trabalho, foi o segundo texto de Llull
em que seu conteúdo discorre em um ambiente de debate entre judeus,
cristãos e muçulmanos (o primeiro foi o Livro do Gentio e dos Três Sábios,
sua obra de n˚. 11, escrita em Maiorca, entre 1274 e 1283).
As circunstâncias da vida de Llull explicam bem a redação da
obra. O lósofo chegou a Roma provavelmente em abril de 1287, pouco
após a morte do papa Honório IV (1285–1287). Ainda se encontrava na
cidade quando chegou uma embaixada do rei mongol da Pérsia, Aryun
125
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Khan (1258–1291), budista, mas simpatizante de católicos e nestorianos.
5
Seu representante, um bispo nestoriano, vinha propor uma aliança contra
os mamelucos do Egito. Devido à vacância do papado e aos distintos inte-
resses de ambos os lados – enquanto a embaixada desejava tratar de temas
políticos, os cardeais estavam interessados em debater temas teológicos
(VILLALBA I VARNEDA, 2015, p. 198) – o encontro diplomático não
surtiu qualquer resultado prático, a não ser colocar o lósofo a par do tema
que passou a fazer parte das preocupações da Cristandade.
Embora tenha uma semelhança formal com o Livro do Gentio e dos
Três Sábios, devido à estrutura narrativa dialogante, com os debates do tárta-
ro, desejoso de “fruir uma religião” com o “sábio” judeu (I, 3), o “sapientíssi-
mo” muçulmano (II, 18) e o “pobre eremita cristão” (IV, 32) – e também seu
diálogo com o eremita Blaquerna (IV, 41) – o Livro do Tártaro e o Cristão tem
um objetivo claro, apresentado pelo lósofo logo em seu Prólogo: apresentar
o salmo Quicumque vult, que representa e transmite a fé católica.
Para isso, Llull cria a seguinte estrutura textual:
I. A inquietude do tártaro;
II. O tártaro indaga um sábio judeu. E conclui: o Judaísmo é a
preparação de outra Lei;
III. O tártaro indaga um sapientíssimo muçulmano. E conclui: o
Islamismo nada sabe da essência divina;
IV. O tártaro indaga um eremita cristão, que o aconselha a visitar
o eremita Blaquerna;
V. O Quicumque vult (Credo de Atanásio, séc. VI);
VI. A conversão do tártaro (Generoso) e sua visita ao papa;
VII. O nal aberto da obra: é melhor uma missão ao Oriente ou
uma cruzada?
Nestorianismodoutrina cristológica proposta por Nestório (386-450), Patriarca de Constantinopla, que
distinguia a natureza humana da divina em Cristo. Após ser condenada como herética nos concílios de Éfeso
(431) e da Calcedônia (451), muitos de seus seguidores foram para o Império Sassânida e fundaram a Igreja do
Oriente. Ver Chapman (2017).
126
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
3.1 O CredO de aTanásiO
Após dialogar com o judeu e com o muçulmano, ainda insatis-
feito, o tártaro procurou um cristão, eremita, que, no entanto, se declarou
incapaz de convencê-lo racionalmente da verdade de sua fé. Por isso, o
eremita aconselhou o tártaro a procurar Blaquerna, outro eremita, porém
muito sábio” e que conhecia muito a fé cristã (IV, 41). O tártaro viajou
por um deserto até um monte onde soube que Blaquerna descansava, e o
encontrou em uma igreja, com os “[...] ornamentos sagrados para celebrar
a missa em nome de Deus.” Recitava o salmo Quicumque vult. O tártaro
se apresentou e lhe disse:
Senhor, de muito longe vim até vós. Dúvidas e erros envolvem meu
coração. Rogo que, caso conheceis o caminho da salvação, me encami-
nheis, pois o procuro todos os dias com muito esforço. Não encontro
ninguém, judeu, sarraceno ou cristão, que professe o verdadeiro ca-
minho da fé. Inclusive penso que os cristãos cometem um erro ainda
maior do que os judeus, os sarracenos e os tártaros, um dos quais sou
eu mesmo. (IV, 44).
Imagem 3
127
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Detalhe do Cotton Faustina (MS B. VII, folio 42v) que mostra o Scutum Fidei ou Diagrama triangular
do escudo da Trindade (o Quicumque vult), com a representação de Cristo na cruz (acima do círculo
Filho). É parte de uma iluminura do Compendium Historiae da Genealogia de Cristo do teólogo (e
escolástico) Pedro de Poitiers (Petrus Pictaviensis, c. 1130–1215), escrito por volta de 1210.
O salmo que Blaquerna recitava é uma conssão cristã em forma
de compêndio. Hoje sabemos que foi composto na primeira metade do séc.
VI, provavelmente na Provença, nos círculos teológicos (e agostinianos) do
monge Vicente de Lerins (†450), do bispo Fulgêncio de Ruspe (c. 468–
533) e do arcebispo Cesário de Arles (c. 470–543) (LLULL, 2016, p. 29).
Em contrapartida, a tradição medieval atribuiu sua autoria a Atanásio de
Alexandria (c. 296–373) – por isso o título Credo de Atanásio (Quicumque
vult são as primeiras duas palavras do salmo).
Ao utilizar o Credo de Atanásio como a melhor e mais simples
composição para o personagem Blaquerna dialogar com o tártaro e con-
vencê-lo da verdade da fé cristã, Ramon Llull seguia uma sólida tradi-
ção de comentadores do Credo, de Venâncio Fortunato (c. 536–610) a
Hildegarda de Bingen (1098–1179). Assim, preliminarmente, Blaquerna
explica ao tártaro a diculdade de se entender sua fé:
Escuta, amigo, e entenda: nossa fé é muito difícil de expor e de en-
tender. Nem todos conseguem compreendê-la, somente os iluminados
pela nobreza intelectual que investigam a secreta Filosoa da Natureza
e se tornam doutos nas ciências. Sugiro que não duvideis em abraçar a
nossa fé tal como ela é. Eu é que me declaro incapaz de demonstrar a
fé católica, verdade pela qual anseias. (IV, 48).
A necessidade de provar racionalmente a fé cristã era um tópico
das conversas intelectuais pelo menos desde que Anselmo da Cantuária (c.
1033–1109) criou seu argumento ontológico (a prova da existência de Deus
– “Aquilo do qual nada maior pode ser pensado.”) somente com a razão,
sem recorrer à autoridade da fé (a Bíblia) (FLASCH, 2006, p. 179–184)
Ramon Llull é um dos maiores pensadores dessa corrente racionalista da fé.
O tártaro insiste: diz que é um estudioso e que a Filosoa não
o impedirá de conhecer os segredos da Natureza!
6
Assim, Blaquerna lhe
A Natureza era um importante tópico dos estudos losócos clássicos que os pensadores cristãos herdaram e
desenvolveram. Deu origem ao moderno conceito de ciência (e sua consequente especulação investigativa). Ver
Costa (2015, p. 363-373).
128
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
entrega um livro de salmos que inicia com o Quicumque vult. No entanto,
essa conssão de fé não é um tratado de losoa! Por isso, Llull acrescen-
ta ao diálogo entre Blaquerna e o tártaro explicações então consideradas
racionais – e cientícas, pois baseadas principalmente na teoria dos quatro
elementos
7
, de origem aristotélica.
8
Devido à exiguidade do espaço, propo-
nho apresentar somente os seis primeiros versos, e a explicação deles no
diálogo luliano. São esses:
Credo de Atanásio
1. Quicumque vult salvus esse, ante
omnia opus est, ut teneat catholicam
dem:
1. Quem quiser ser salvo deve, antes de tudo,
professar a fé católica.
2. Quam nisi quisque integram
inviolatamque servaverit, absque dubio
in æternam peribit.
2. Quem não a observá-la, integral e
inviolavelmente, perecerá por toda a
Eternidade.
3. Fides autem catholica hæc est: ut
unum Deum in Trinitate, et Trinitatem
in unitate veneremur.
3. Esta é a fé católica: veneramos a um só Deus
na Trindade e a Trindade na unidade.
4. Neque confundentes personas, neque
substantiam seperantes
4. Não confundimos as pessoas, nem
separamos as substâncias.
5. Alia est enim persona Patris alia Filii,
alia Spiritus Sancti:
5. Pois uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho,
e outra a do Espírito Santo.
6. Sed Patris, et Fili, et Spiritus Sancti
una est divinitas, æqualis gloria, coeterna
maiestas.
6. Mas só uma é a divindade do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, igual à glória e coeterna
à majestade.
3.1.1 quEm quisER sER sAlvo dEvE, AnTEs dE Tudo,
PRofEssAR A cATólicA. quEm o A obsERvá-lA, inTEgRAl E
inviolAvElmEnTE, PEREcERá PoR TodA A ETERnidAdE
Na verdade, a apresentação do Quicumque vult no Livro do
Tártaro e o Cristão é um pretexto teológico para o lósofo utilizar sua teoria
dos correlativos (que, na ocasião, ainda estava sendo por ele elaborada).
Logo após começar a recitá-lo, o personagem Blaquerna discorre sobre a
essência do fogo – suas propriedades (ígneas, luminosas, aquecedoras, etc.):
o ignicativo e o ignicável, o luminicativo e o luminicável, o calefativo e
o calefatível, etc.
Tratei da teoria dos quatro elementos – e, especialmente, como Llull dela se vale (ANGOTTI NETO; COSTA,
2015, p. 1-30).
Teoria exposta sobretudo em Aristóteles (2009).
129
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
O que essas palavras signicam? Llull entende que, como
Deus, tudo no mundo (todo ente) está em movimento, é dinâmico.
Nada está em repouso – em suas palavras, não existe ociosidade. A ação
é boa; o ócio, ruim. Essa ação das coisas no mundo signica para ele que
a Santíssima Trindade está impressa em tudo – uma clara herança agos-
tiniana da tríade da alma.
Mas de que forma? Para Llull, em tudo existe uma trindade: 1) a
essência (que ele denomina bonicativo) é a capacidade de se fazer o bem, de se
fazer algo de bom (e, por isso, bonicativo – de Bem); 2) o objeto é aquilo que
pode se tornar bom (bonicável) e 3) o próprio ato (bonicar) de fazer o bem
conecta as duas partes anteriores. Essa teoria dos correlativos racionalmente
explica e idealmente projeta a Santíssima Trindade no mundo: naquela or-
dem, a essência, o sujeito (propriedade ativa) é o Pai (bonicação); o objeto
(propriedade passiva) é o Filho (bonicatividade), e o verbo (propriedade co-
nectiva) é o Espírito Santo (bonicar) (GAYÀ ESTELRICH, 1979).
A TEoRiA luliAnA dos COrreLaTivOs
Em outras palavras, existe o amante, o amado e o Amor. Neste
caso, Llull é o amante. Seu amado? Deus. E seu amor pelo amado o impul-
siona à ação, ao bem, que ele entende como um incessante impulso apolo-
gético. É por isso que, do ponto de vista lológico-losóco, Llull cria essas
declinações nominais e verbais nas desinências dos termos – Pere Villalba
as denomina graus de intelecção encontrados nos sujeitos (VILLALBA I
VARNEDA, 2015, p. 249).
130
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A seguir, Blaquerna apresenta ao tártaro esses correlativos na alma
racional (COSTA, 2005, p. 142–156) e na essência divina (a Bondade, a
Grandeza, etc.), além de alertá-lo para o fato de que quem ousar violar a
primeira frase do Quicumque vult desaará as semelhanças divinas, ou seja,
desaará a essência de Deus e, por isso, perecerá no Inferno. Mescla, assim,
argumento com autoridade. O tártaro se mostra admirado com o raciocí-
nio de Blaquerna e imagina que deva existir uma fé acima da dos cristãos
que também discorra sobre as operações dos elementos, da alma e de Deus.
Blaquerna é incisivo: nenhuma religião tem a grandeza da fé católica por-
que nenhuma trata da ação intrínseca da obra de Deus. E passa à segunda
sequência do salmo.
3.1.2 “EsTA é A CaTóLiCa: vEnERAmos A um dEus nA
TRindAdE E A TRindAdE nA unidAdE. não confundimos As
PEssoAs, nEm sEPARAmos As subsTânciAs
Com variantes, o método prossegue o mesmo: a exposição da es-
sência do fogo, da alma e de Deus. O complexo raciocínio de Llull, posto
na boca de Blaquerna, merece uma citação completa:
Na essência divina há um bonicativo, um magnicativo, um eterni-
cativo, um possicativo, etc., mas apenas um producente, um bonica-
do, um magnicado, etc., a partir de um bonicável, um magnicável,
etc. E como nessa produção não há qualquer inconveniente, o que
é produzido de ambos resulta em outro, como o elementado é pro-
duzido pela conveniência entre a matéria e a forma e resulta em uma
substância ou subsistente dessa conveniência. Mas não desejo dizer
que exista matéria em Deus.
E assim como o fogo produz em si algo que lhe é semelhante mais do
que produz em outra coisa, na essência divina a Bondade, a Grandeza
e as outras dignidades produzem em si o que lhes é semelhante mais
que nas criaturas. Por isso, se as divinas Bondade, Grandeza, etc., não
produzissem em si mesmas e a partir de si mesmas algo que lhes fosse
semelhante, não teriam em si mesmas a Grandeza da Eternidade, do
Poder, etc., o que é impossível. Essa impossibilidade manifesta que na
unidade divina há uma trindade de pessoas: uma que produz e as ou-
tras duas que são produzidas. (V, 68–69, grifos nossos).
131
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
O argumento é circular e se baseia em uma conclusão lógica a
partir da premissa da existência das dignidades de Deus, tema comum às
três religiões monoteístas. O tártaro não entende muito bem e pensa que
Blaquerna, com suas “metáforas e exemplos”, está dizendo que existe maté-
ria em Deus. Blaquerna então oferece outra analogia: a da água e da terra,
e então o tártaro ca convencido de que existe Deus.
Para reforçar essa convicção, Blaquerna apresenta três argumen-
tos que considera denitivos para a existência de Deus: 1) se Deus não
existisse, o intelectivo e o inteligível seriam maiores na razão humana do que
na realidade; 2) se Deus não existisse, o intelectivo seria maior na realidade
que o inteligível, e 3) se Deus não existe, o inteligível é maior que o inte-
lectivo. Os argumentos têm uma clara liação ao pensamento anselmiano
(isto é, de que o fato de entender o que se pensa é uma realidade mental
que faz com que o pensado exista fora do pensamento
9
).
A seguir, convencido da existência de Deus, o tártaro pede a
Blaquerna que demonstre que só existe um Deus, não vários. Novamente
o eremita apresenta três argumentos: 1) a existência de muitos deuses
impossibilita que em todos esses deuses haja a mesma innitude das dig-
nidades (innitude da Bondade, da Grandeza, etc.) – em outras palavras,
não é possível que vários deuses sejam iguais em essência; 2) se houvesse
muitos deuses, nenhum deles seria o sumo m; haveria muitos sumos
ns, todos necessariamente nitos, o que é impossível; 3) a pluralidade
de deuses não é apetecível para a razão humana, se acima dessa pluralida-
de há um m sumo.
O trecho do Proslógio é esse: Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba, o
que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o que cremos. E certamente cremos que
Tu és algo maior do qual nada mais pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza, como quando diz o
insipiente em seu coração não existe Deus? No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer ‘algo
maior do qual nada pode ser cogitado’, entende o que ouve, e o que entende está em seu intelecto, embora
não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe.
Porque quando o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda
não entende que exista o que ainda não fez. Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o
que fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelecto, existe algo maior do qual nada
pode ser cogitado, porque, quando ouve isso, entende e, tudo o que se entende, está no intelecto. No entanto,
aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir somente no intelecto, pois se só existe no
intelecto, pode pensar-se algo que seja maior e que também exista na realidade. Assim, se aquilo maior do
qual nada pode ser cogitado só existe no intelecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-
se-ia o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo. Portanto, existe, sem dúvida, algo
maior do qual nada pode ser cogitado, tanto no intelecto quanto na realidade.” (II, grifos nossos).
132
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A segunda tríade apresentada no Livro do Tártaro e o Cristão é
mais racionalmente compreensível que a primeira pois, além de não apre-
sentar um argumento de autoridade (a ameaça do Inferno), se baseia no
princípio da nalidade aristotélica.
10
O tártaro se convence que há somente
um deus e pede que Blaquerna lhe mostre a trindade do deus uno. E o
sábio cristão passa à terceira sequência.
3.1.3 “umA é A PEssoA do PAi, ouTRA A do filho, E ouTRA A do
EsPíRiTo sAnTo, mAs umA é A divindAdE do PAi, do filho
E do EsPíRiTo sAnTo, iguAl à glóRiA E coETERnA à mAjEsTAdE
Do mesmo modo que nas duas partes anteriores, a forma da exposi-
ção é a mesma: Llull inicia com a metáfora do fogo, ou melhor, com a relação
existente entre suas partes; depois a alma e sua substância e, por m, a essência
divina. A novidade de sua interpretação dessa passagem do Quicumque vult em
relação às anteriores é o acréscimo da relação entre as Pessoas da Trindade no
trecho que Blaquerna discorre ao tártaro sobre a essência divina:
Na essência divina há a Bondade, a Grandeza, a Eternidade, o Poder,
etc. A Bondade é bonicativa e bonicável, e existe com a Grandeza, a
Eternidade, o Poder, etc. Por si mesma e pelas outras dignidades produz
o outro na Grandeza, etc.; e em si mesma na Grandeza e etc., como
também, a partir de si mesma na Grandeza, etc. Pois se a Bondade
fosse bonicativa e bonicável sem um ato e uma operação intrínsecas,
estaria privada da Grandeza e de seu ato. O mesmo pode ser dito da
Eternidade e etc., o que é impossível.
Tudo isso torna manifesto ao entendimento que na substância divi-
na há um producente – o Pai – e um produto – o Filho. Dos dois
procede o Espírito Santo, mas não podemos dizer que pessoalmente
um seja o outro, pois toda propriedade pessoal seria vã ou a Bonda-
de divina não seria bonicativa nem bonicável. Se isso fosse assim,
ela existiria em si sem nalidade ou poder. O mesmo teríamos que
concluir de todas as propriedades divinas, o que é impossível e incon-
veniente, pois em Deus há um outro que, pessoalmente é distinto do
outro. (V, 89, grifos nossos).
10
Tese segundo a qual a organização do mundo e dos acontecimentos obedece a um m, a um objetivo. Embora
Anaxágoras (c. 510-428 a. C.) tenha sido o primeiro a propor essa teoria – e Platão (c. 428-348 a. C.) tenha feito
um importante acréscimo (qual seja, de que a inteligência (a mente) é a causa ordenadora do mundo (Fedão, 97c)
– foi Aristóteles seu principal defensor (“[...] o m se encontra entre os seres imóveis”, Metafísica XII, 7, 1072b).
133
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
O argumento apresenta uma causa e duas consequências: da re-
lação ativa e incessante entre as propriedades (dignidades) de Deus decorre
a procedência de Jesus Cristo, e da relação entre ambos, o Espírito Santo.
Em outras palavras, Jesus “nasce” da ação entre as dignidades de Deus
(o Poder com a Eternidade, a Grandeza com o Poder, a Eternidade com a
Grandeza, etc.) e da “soma” de ambos “nasce” (procede) o espírito Santo.
Outro axioma que fundamenta esse raciocínio é a ideia aristotélica, muito
difundida na Idade Média, que a ação no mundo é positiva e obedece a
um sentido natural – Deus e a Natureza não criaram nada que não tivesse
sua utilidade.
11
Na verdade, nesse tema, o argumento dos correlativos é a
explicação do lósofo do Escudo da Trindade, representação esquemática
do Quicumque vult.
Imagem 4
Representação esquemática do Quicumque vult. Da esquerda para a direita, a partir do triângulo
externo, o Pai não é o Filho, o Filho não é o Espírito Santo, o Espírito Santo não é o Pai; a partir do
círculo interno e as linhas que se irradiam para os extremos, Deus é o Pai, Deus é o Filho e Deus é o
Espírito Santo.
conclusão
Da redação do Livro do Gentio e dos Três Sábios para o Livro do
Tártaro e o Cristão, duas obras com uma estrutura narrativa dialogante, o
conhecimento do mundo por parte de Ramon Llull ampliou-se considera-
11
“Deus e a natureza nada criam que seja inútil” (ARISTÓTELES, Do Céu, I, 4, 271a1, linhas 34-35). “Deus
em Aristóteles é o “Primeiro movente imóvel”, como o Amor atrai o amante para si (Metafísica, XII, 7, 1072b 3).
134
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
velmente. Do âmbito da Coroa de Aragão (Palma de Maiorca-Montpellier)
– sua fase introspectiva –, o lósofo alargou seus horizontes: foi à então
capital intelectual do mundo cristão, Paris; apresentou sua Arte na univer-
sidade; esteve na corte papal em Roma, quando se inteirou da pressão que
a Cristandade sofria com os mongóis – sua fase de expansão ((VILLALBA
I VARNEDA, 2015).
Imagem 5
Alegoria do Cavaleiro Cristão. Iluminura (Harley MS 3244, folios 27–28) da Suma das Virtudes e dos
Vícios (c. 1255–1265) do dominicano Guilherme de Peraut (c. 1190–1271). Na parte superior, um
anjo da guarda. Tem a inscrição “Ninguém será coroado se não lutar realmente” no antebraço direito;
no esquerdo, uma lista das sete bem-aventuranças combinadas com os sete dons do Espírito Santo que
combatem os sete pecados capitais e seus lhos, à esquerda. Ele coroa um cavaleiro que se prepara
para o combate mortal contra os vícios. Está protegido com o Escudo da Trindade (representação do
Credo de Atanásio). A simbologia de suas armas: Capacete: a Esperança na felicidade futura; Escudo:
a (a Santíssima Trindade); Armadura: a Caridade; Lança: a Perseverança; Rédeas: a Discrição;
Suadouro: a Humildade; Sela: a religião cristã; Esporas: a Disciplina; as Quatro Ferraduras do
Cavalo: o Deleite, o Consentimento, o bom trabalho, o hábito; Cota de malha: a Caridade; Espada:
o Verbo de Deus; Bandeira: o desejo do reino celeste; Cavalo: a boa vontade; Estribos: o propósito do
bom trabalho.
Seus diálogos literários com judeus e muçulmanos (e agora com
um tártaro), inicialmente “abertos” – isto é, sem o autor dizer claramente
ao leitor qual religião o descrente escolheu (como no caso do Livro do
Gentio e dos Três Sábios) – com o vislumbre da complexa política europeia,
passaram a ser mais incisivos: no Livro do Tártaro e o Cristão, após o diálogo
com o eremita Blaquerna, o asiático se converte ao Catolicismo, vai à cúria
135
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
romana, adota o nome de Largo (de largueza, isto é, aquele que é generoso,
abundante) e é batizado pelo papa.
A seguir, entrega ao Sumo Pontíce um livro – Quicumque vult
– e se dispõe a ir ao “país dos tártaros” para proclamar “a verdade da fé
cristã”, pois os sarracenos divulgam em suas cartas o nome de Maomé – “o
pior de todos os homens” – e, por isso, faz-se necessário pregar entre eles
o nome de Jesus Cristo. Largo parte com uma carta papal. Após sua saída,
os bispos começam a debater se não seria mais importante que o papa in-
centivasse algum príncipe a assediar a nação dos inéis e os eliminasse, ou
se era melhor propagar a fé católica por meio da ciência e do martírio (ao
invés da guerra e da espada). O Livro do Tártaro e o Cristão termina com
esse debate inconcluso:
Consequentemente, a questão cou assim colocada diante do papa:
qual das duas propostas é a mais útil para a Igreja Católica e mais
agradável a Deus? Será que as duas são necessárias? Esperemos que se
encontre uma solução adequada em honra do Deus onipotente que
reina uno e trino. (IX, 297).
Se no Livro do Gentio e dos Três Sábios o leitor não sabe qual reli-
gião o gentio escolheu, no Livro do Tártaro e o Cristão não sabemos qual foi
a resposta do papa para a questão que lhe foi apresentada pelos bispos. Para
sabermos a posição do lósofo a respeito do diálogo entre as religiões, é
preciso conhecer de modo amplo sua vastíssima obra. Para o “desfecho” do
Livro do Gentio, em duas obras posteriores Llull explicita a decisão do pro-
tagonista: no Livro das Maravilhas (cap. 79) ele arma que “[...] o cristão
provou estar sua Lei na verdade e todas as outras na falsidade, conforme
está provado no Livro do Gentio.” (LÚLIO, 2009, p. 161); no Livro do Fim
(1305), escrito quase vinte anos após a redação do Livro do Gentio, o lóso-
fo reitera que a religião cristã tem que ser escolhida acima de todas as outras:
Pelo que faz a Teologia, nossos livros indicados seriam muito úteis,
sobretudo o Livro do gentio, no qual um cristão, um sarraceno e um
judeu disputam sobre a verdade diante de um gentio. Por esse livro,
os gentios poderiam saber, se desejassem, que a santa fé católica é a
verdadeira e que os judeus e os sarracenos estão no erro. (I, 5) (2009).
136
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Em outras palavras, não existe na Idade Média o conceito de tole-
rância tal qual entendemos hoje. Ramon Llull, lósofo da diferença, procu-
rador dos inéis, talvez o pensador medieval mais cosmopolita, pois conhe-
cedor das fronteiras da Cristandade, não foge à essa regra: seus personagens
literários cristãos debatem, dialogam, mas não movidos por um desejo de
dialogar por dialogar, sem qualquer conclusão, mas para converter o mundo
à fé cristã. Nesse sentido, o maiorquino não é um lósofo da tolerância, pelo
contrário, mas um pensador de uma losoa de ação em prol da Igreja.
12
***
fonTEs
ACONTIUS, Jacob. Satanae strategemata: Libri octo. Ed. Carl von Reitz. Saarbrücken:
Verlag Classic Edition, 2010.
ARISTÓTELES. Sobre a geração e a corrupção. Tradução e notas de Francisco Chorão.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.
BODIN, Jean. Colloquium of the Seven about Secrets of the Sublime. Princeton: Princeton
University Press, 1975.
BONNER, Antoni. Obres selectes de Ramon Llull (1232–1316). Volum I: Edició,
introducció i notes de Antoni Bonner. Mallorca: Editorial Moll, 1989.
DAVID HUME. Obras sobre religião. Tradução Francisco Marreiros e Pedro Galvão.
Lisboa: Gulbenkian, 2005.
ESPINOSA. Tratado teológico-político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. (Coleção Paideia).
GIOVANNI BOCCACCIO. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. Porto Alegre:
L&PM Editores, 2013.
MONTAIGNE. Ensaios. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Penguin
Companhia, 2010.
RAIMUNDO LÚLIO. O Livro do Gentio e dos Três Sábios (1274–1276). Introdução,
tradução e notas de Esteve Jaulent. Petrópolis: Vozes, 2001.
RAIMUNDO LÚLIO. Félix ou O Livro das Maravilhas. Parte II: Apresentação e
tradução Ricardo da Costa. São Paulo: Ed. Escala, 2009.
12
Agradeço ao Prof. Vinicius Muline por sua leitura crítica e sugestões a este trabalho.
137
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
RAIMUNDO LÚLIO. Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Tradução Waldemiro Altoé,
Ricardo da Costa e Eliane Ventorim. Rio de Janeiro: Ed. Sétimo Selo, 2009.
RAMON LLULL. Llibre del Gentil e dels Tres Savis. A cura d’Antoni Bonner. Palma:
Patronat Ramon Llull, 2001.
RAMON LLULL. Doutrina para crianças (c. 1274–1276). Tradução Ricardo da Costa e
Grupo de Pesquisas Medievais da UFES III). Alicante: IVITRA, 2010. Disponível em:
<www.ivitra.ua.es/RicardoCosta/Llull2.pdf>. Acesso em: 5 maio 2018.
RAMON LLULL. Llibre del Tàrtar i el Cristià. Ed. a cura de Josep batalla, Óscar de
la Cruz Palma, amb la col·laboració de Francesc Rodríguez Bernal. Turnhout · Santa
Coloma de Queralt: Brepols: Obrador Edèndum, 2016.
REfERênciAs
ANGOTTI NETO, Hélio; COSTA, Ricardo da. A lepra medieval e a Medicina
metafórica de Ramon Llull (1232–1316). Mirabilia Medicinæ, n. 5, p. 1–30, 2. sem.
2015. Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/sites/default/les/medicinae/
pdfs/med_2015-02-02_1.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2018.
CAHEN, Claude. Oriente y Occidente en tempos de las Cruzadas. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989.
CASSIRER, Ernest. La losofía de la ilustración. México: FCE, 1972.
CHAPMAN, J. Nestorius and Nestorianism. In: THE CATHOLIC Encyclopedia.
New York: Robert Appleton Company, 2017. Retrieved September 3, 2017 from New
Advent. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/10755a.htm>. Acesso em:
7 jun. 2018.
COSTA, Ricardo da. O que é, de que é feita e por que existe? Denições lulianas no
Livro da Alma Racional (1296). Mirabilia, n. 5, p. 142–156, 2005. Disponível em:
<http://www.revistamirabilia.com/sites/default/les/pdfs/2005_07.pdf>. Acesso em: 7
jun. 2018.
COSTA, Ricardo da. Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão: a
imagem do Profeta na losoa de Ramon Llull (1232–1316). Revista NOTANDUM,
Porto, ano XIV, n. 27, p. 19–35, set./dez. 2011. Disponível em: <http://www.
ricardocosta.com/artigo/maome-foi-um-enganador-que-fez-um-livro-chamado-alcorao-
imagem-do-profeta-na-losoa-de>. Acesso em: 7 jun. 2018.
COSTA, Ricardo da. El concepto de Naturaleza en la Metafísica Teológica de San
Bernardo de Claraval (1090–1153). In: FUERTES HERREROS, José Luis; PONCELA
GONZÁLEZ, Ángel (Ed.). De Natura: la Naturaleza en la Edad Media. Ribeirão,
Port.: Edições Húmus, 2015. p. 363–373. Disponível em: <http://www.ricardocosta.
com/artigo/el-concepto-de-naturaleza-en-la-metasica-teologica-de-san-bernardo-de-
claraval-1090-1153>. Acesso em: 7 jun. 2018.
138
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
DEBRAY, Régis. Revolução na revolução. São Paulo: Centro Editorial Latino
Americano, 1980.
DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. Works. In: FIDORA, Alexander; RUBIO,
Josep E. Raimundus Lullus: an introduction to his life, works and thought. Turnhout:
Brepols & Publishers, 2008. p. 125–242. (Corpus Christianorum. Continuatio
Mediaeualis, 214).
FLASCH, Kurt. El pensament losòc a l’Edat Mitjana: d’Agustí a Maquiavel. Edició a
cura de Josep Batalla. Santa Coloma de Queralt: Obrador Edèndum, 2006.
GAY, Peter. e enlightenment: an interpretation: the rise of modern paganism. New
York: W. W. Norton & Company, 1977.
GAYÀ ESTELRICH, Jordi. La teoría luliana de los correlativos: historia de su formación
conceptual. Palma de Mallorca: [s.n.], 1979.
GUEVARA, Che. Estrategia de la guerrilla urbana. Montevideo: Manuales del
Pueblo, 1966.
KIMBALL, Roger. Radicais nas universidades: como a política corrompeu o ensino
superior nos Estados Unidos da América. São Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2010.
MACCULLOCH, Diarmaid. e Reformation: a history. New York: Penguin, 2003.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
MITRE FERNÁNDEZ, Emilio. (Coord.). Historia del Cristianismo. v. II: el mundo
medieval. Madrid: Universidad de Granada, 2004.
RUNCIMAN, Steven. Historia de las Cruzadas. v. III: el Reino de Acre y las últimas
Cruzadas. Madrid: Alianza Editorial, 1985.
SOREL, Georges. Reexões sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1982.
VILLALBA I VARNEDA, Pere. Ramon Llull: escriptor i lòsof de la diferència: Palma
de Mallorca, 1232–1316. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 2015.
VOVELLE, Michel. El hombre de la ilustración. Madrid: Alianza Editorial, 1995.
ZIZEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.
139
C   
,    
     
Raphaella Cinquetti Vilarrubia
Roberto da Freiria Estevão
inTRodução
O presente trabalho é fruto de pesquisa que está em curso, com
textos já apresentados em outros eventos abordando-se a temática da to-
lerância
1
. Com o uso do método dedutivo de pesquisa e do procedimento
bibliográco, o objetivo é realizar uma sucinta contribuição ao tão relevan-
te tema que é a intolerância religiosa na seara nacional e internacional, bem
como para a construção de melhor harmonia entre os povos por meio do
respeito ao princípio da tolerância.
Assim como a religiosidade sempre acompanhou o ser humano,
com ela continuamente existiram os conitos de natureza religiosa, que es-
tão presentes em toda a história da humanidade, chegando aos dias em que
vivemos, não obstante os valores preconizados para a vida em sociedade,
V Semana do Conhecimento do UNIVEM, Marília/SP; 2º Encontro de Pesquisa em Relações Internacionais
- EPRI - UNESP, Campus de Marília/SP; VII Simpósio Internacional de Análise Crítica do Direito - Siacrid –
UENP, Jacarezinho/PR.
140
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
na contemporaneidade. Do que se extrai das práticas que atualmente são
vistas no meio social, o ser humano não consegue tolerar o outro, notada-
mente o diferente.
Nesse contexto, a tolerância se apresenta como caminho necessá-
rio para a pacicação dos povos.
O regime democrático está intimamente ligado ao Iluminismo
– o Século das Luzes –, um importante movimento cultural, político e
losóco do século XVIII que buscou combater os ideários da aristocracia
e a inuência que a Igreja Católica exercia nas searas políticas e governa-
mentais durante a Idade Média (SILVA, 2011, p. 2).
Este movimento visava reconhecer o ser humano mediante a ra-
zão, propondo uma verdadeira reconstrução do ambiente social por meio
da liberdade religiosa e o m do poder centralizado da Monarquia, trans-
formando com isso a concepção do mundo e do homem.
A contribuição de importantes lósofos iluministas, como John
Locke (1632–1704), Voltaire (1694–1778) e Immanuel Kant (1724–1804),
foi de importância notável para o cisma entre Igreja e Estado, acontecimento
este que levou à laicidade e à secularização, processo pelo qual a religião per-
deu sua inuência na sociedade (GONÇALVES, 2013, p. 104).
Os iluministas preconizavam pela democracia, liberalismo eco-
nômico e pela liberdade religiosa e de pensamento (GONÇALVES, 2013,
p. 3), inuenciando importantes movimentos como o da Revolução
Francesa, cujos ideais defendidos ‒ liberdade, igualdade e fraternidade ‒
ainda surtem efeitos na seara jurídica contemporânea.
É indiscutível a inuência desse movimento Iluminista para o
surgimento dos direitos humanos, a exemplo do que se vê no habeas cor-
pus act, de 1679, e o Bill of Rights em 1689, entre outros (GONÇALVES,
2013, p. 108).
Depois dessa gênese, com ênfase nas Revoluções Francesas e
Americana, os direitos humanos passaram a ter novos contornos após as
duas Grandes Guerras Mundiais, culminando no surgimento da ONU –
Organização das Nações Unidas – em 1945 e da Declaração Universal dos
141
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Direitos do Homem, em 1948; documento este inspirado pela Declaração
de 1789 (GONÇALVES, 2013, p. 109).
Sem margem para qualquer dúvida, a Declaração dos Direitos
do Homem foi um grande progresso na seara de direitos e garantias in-
dividuais do ser humano, bem como o marco da superação da Igreja na
seara política, já que fora elaborada sem a interferência desta, abran-
gendo todos os grupos e não apenas alguns. Com esse documento, pas-
sou-se a buscar a valorização do ser humano e a dignidade da pessoa
humana, que se tornou a maior preocupação e alvo máximo de proteção
(GONÇALVES, 2013, p. 110).
Como se verá no decorrer do trabalho, os princípios fundamen-
tais emanados de tais processos históricos são constantemente violados em
meio aos conitos religiosos. Daí a importância em solucioná-los, salva-
guardando, assim, tais direitos essenciais à personalidade do homem.
E, a solução a esse seriíssimo problema, que tem dimensões inter-
nacionais, é o respeito ao princípio da tolerância, que teve sua primeira fase
no campo da religião, mas que, hoje, pode e deve ser aplicado em tantas
outras perspectivas, como é o caso da diferença de gênero, da homossexu-
alidade, da diferença de raça e classe social, entre outras.
Dessa forma, a tolerância é o único e efetivo instrumento para
que a diversidade e a pluralidade, próprias de uma sociedade democrática,
sejam de fato respeitadas.
concEiTo E cARAcTERísTicAs do REgimE dEmocRáTico
Quando se fala em democracia tem-se que, conforme Argelina
Figueiredo e Marcus Figueiredo, a origem do poder está no cidadão, in-
dividualmente, e, ao mesmo tempo, em todos os membros da sociedade,
bem como está nas mãos do povo a distribuição do poder e o controle de
seu exercício (1993, p. 16). Este pensamento encontra-se em conformida-
de com a etimologia da palavra, que vem de “démokratía”: demos (povo) +
kratía (governo, força, poder).
A respeito desse regime, não é razoável deixar de buscar a tradi-
ção. E, no particular, Norberto Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p.
142
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
319–320) anotam que, na teoria da democracia, conuem três tradições
históricas, a saber:
[...] a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três for-
mas de Governo, segundo a qual a Democracia, como Governo do
povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos di-
reitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um
só, e da aristocracia, como Governo de poucos; b) a teoria medieval,
de origem romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há
a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção des-
cendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se
torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação
do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria
de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes
monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo são es-
sencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia
nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde
se origina o intercâmbio característico do período pré-revolucionário
entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuina-
mente popular é chamado, em vez de Democracia, de república. O
problema da Democracia, das suas características, de sua importância
ou desimportância é, como se vê, antigo. Tão antigo quanto a reexão
sobre as coisas da política, tendo sido reproposto e reformulado em to-
das as épocas. De tal maneira isto é verdade, que um exame do debate
contemporâneo em torno do conceito e do valor da Democracia não
pode prescindir de uma referência, ainda que rápida, à tradição.
Nos regimes democráticos há uma só fonte de legitimidade
consistente no igual direito político que todos têm, salvo privilégio
estabelecido por lei consoante a vontade da maioria. Sua base está na
soberania popular, que é, em outras palavras, o alicerce da organização
de um regime democrático.
Para Norberto Bobbio (2000, p. 30), quando se discorre a respei-
to da democracia fala-se na oposição a todas as formas autocráticas de go-
vernar, além do que ela pressupõe regras que denem quem poderá tomar
decisões coletivas, quais os procedimentos que serão adotados para tanto, e
envolve a mais ampla participação possível dos interessados.
Também no tocante ao signicado da democracia, Giovanni
Sartori (1994a, p. 18) observa que “Todos os termos que entram signi-
cativamente na(s) denição(ões) de democracia foram modelados pela
143
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
experiência e reetem o que aprendemos enquanto experimentadores ao
longo da história.” Ele aduz que, “[...] argumentativamente, há muitas de-
mocracias possíveis, isto é, logicamente concebíveis; mas não há muitas
historicamente possíveis.
Bochenek (2013, p. 98), invocando Crick (2006, p. 16), ob-
serva que o vocábulo democracia pode ser entendido como uma palavra
promíscua e muitas vezes apenas retórica, mas não será certamente um
valor único que compreende ou afasta todos os outros valores em todas
as circunstâncias.
Todavia, Sartori (1994a, p. 22) lembra que, não obstante a ex-
pressão “democracia” tenha diversos signicados, com o que é possível
conviver, não se pode concordar com a posição de que “Democracia pode
signicar absolutamente qualquer coisa [...]”, pois “[...] aí já é demais.
E, conforme a advertência de Robert Dahl (2001, p. 12–14),
há 25 séculos a democracia vem sendo “[...] discutida, debatida, apoiada,
atacada, ignorada, estabelecida, praticada, destruída e depois, às vezes,
restabelecida aparentemente [...]”, de modo que não se pode falar em
concordância sobre alguns de seus pontos fundamentais, pois o refe-
rido regime tem “[...] signicados diferentes para povos diferentes em
diferentes tempos e diferentes lugares.” Assim, ele questiona: com tão
díspares signicados, “Como poderemos nós concordar sobre o que sig-
nique hoje?”, além de indagar “Quão democrática é a ‘democracia’ nos
países hoje chamados democráticos ‒ Estados Unidos, Inglaterra, França,
Noruega, Austrália e muitos outros?.” Ademais, prossegue ele em seus
questionamentos, “Será possível explicar por que esses países são ‘demo-
cráticos’ e tantos outros não?.
Mas é certo que alguns elementos mínimos são exigíveis para se
falar em democracia.
Em seu livro “Poliarquia”, Robert Dahl, em última análise, sus-
tenta, em outras palavras, que são necessárias as seguintes “garantias insti-
tucionais” para se falar em efetiva democracia: a) direito de voto; b) direito
de elegibilidade para cargos públicos; c) a ocorrência de eleições livres e
honestas (“idôneas”); d) liberdade de expressão; e) direito de os líderes
políticos disputarem apoio e votos; f) a existência de fontes alternativas
144
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
de informação; g) a liberdade de integrar organizações e a de reunião; e h)
a existência de instituições que sejam capazes de fazer com que as políti-
cas (medidas) governamentais dependam de eleições (do voto) e de outras
formas de manifestações de preferência da vontade popular (2005, p. 27).
Na mesma linha, Guilhermo O’Donnell (2013, p. 22) expõe
que o regime democrático é aquele em que as principais posições de go-
verno são alcançadas “[...] mediante eleições que são por sua vez limpas
e institucionalizadas [...]”, além do que, “[...] durante e entre as eleições
[...]”, deverão ser garantidas “[...] diversas liberdades – habitualmente
chamadas ‘políticas’ – tais como as de associação, expressão, movimento
e de disponibilidade de informação não monopolizada pelo estado ou
por agentes privados.
E, numa democracia tem-se a plena admissibilidade do conito
de posições, com diferentes propostas que podem se contrapor e com a
possibilidade de se escolher entre uma e outra, sem qualquer espécie de re-
presália. Daí a relação entre democracia e a necessidade de plena tolerância
para com o outro, inclusive o diferente.
Antônio Cesar Bochenek (2013, p. 103) indaga a respeito do que
se pode considerar uma “sociedade democrática”. E assim ele responde:
Seria uma sociedade pacicada e harmoniosa em que as divergências
foram supera das e na qual se estabeleceu um consenso a partir de uma
interpretação única dos valores comuns? Ou seria uma sociedade com
uma esfera pú blica vibrante em que as visões conitantes podem se
expressar e há uma possibilidade de escolha entre projetos alternativos
legítimos? A resposta depende da perspectiva ideológica adotada. To-
davia, parece correto ar mar que a diversidade humana não contempla
satisfatoriamente apenas consensos a partir da erradicação de antago-
nismos e do obsoleto modelo adversarial de política. Ao contrário, a
especicidade da democracia mo derna repousa no reconhecimento e
legitimação do conito e na recusa em suprimi-lo pela imposição de
uma ordem autoritária.
Ainda a respeito do signicado de democracia, Boaventura de
Sousa Santos, em Refundacion del Estado em América Latina, sustenta que
é possível falar-se em “demodiversidad”, inspirando-se na expressão biodi-
versidade. Segundo o seu pensamento, a “demodiversidade” integra os di-
145
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
ferentes modelos de democracia, vale dizer, “la democracia intercultural”
(2010, p. 94, 98), e essas diversas formas de deliberação democrática são,
para ele, legítimas (2010, p. 130).
Dessa demodiversidade se extrai que todas as manifestações, in-
clusive as culturais e as religiosas, são admissíveis numa democracia.
Em vista do que foi apresentado acima, ela (a democracia) cons-
titui um verdadeiro cenário da pluralidade cultural existente entre os seus
componentes. Assim, Chelikani (1999, p. 35) bem sintetiza o conceito de
democracia como “O compromisso assumido por determinado número
de pessoas, de viverem juntas pacicamente e de guiarem-se em função de
certos valores, tendo em vista a satisfação de suas necessidades e aspirações
individuais e coletivas.
Este regime representa o campo das diferenças culturais, sociais,
econômicas, raciais e religiosas, onde os indivíduos podem construir valo-
res comuns a todos, a m da concretização da cidadania.
Parece acertado dizer, portanto, que a democracia é o regime da
diversidade e do reconhecimento de cada indivíduo como único e essen-
cial para a sua composição, pois “Ele precede a organização estatal e nela
tem de encontrar a estrutura adequada para a satisfação de suas necessi-
dades, criada e em consonância com o respeito à sua condição humana.
(BUENO, 2006, p. 142).
O regime democrático é de grande importância, pois nele o
indivíduo é considerado sujeito de direitos, consistindo em nalidade
e não em instrumento para obtenção de poder. Por isso, o homem deve
buscar, dentro desse regime, a sua constante evolução por meio de sua
liberdade. Renato de Almeida Vieira e Silva (2011, p. 12) também de-
monstra isso ao dizer que
A democracia deve reconhecer e permitir que cada um dos cidadãos
seja considerado um elemento único, cujo valor é-lhe intrínseco e que
possui, na expressão de Kant, um valor em si mesmo, podendo desfru-
tar de uma igualdade e dignidade no que se refere à liberdade pessoal,
[...] que é por si um valor essencial e que deve ser garantido para que
se desenvolva uma sociedade equilibrada e ao mesmo tempo aberta à
participação de todos aqueles que a compõem.
146
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Deste modo, percebe-se que os conitos religiosos nas socieda-
des democráticas constituem verdadeiro ultraje ao signicado do próprio
regime, pois ameaçam os direitos de liberdade, igualdade, solidariedade e
fraternidade, indispensáveis para uma coletividade justa e harmônica.
A REligião nAs PERsPEcTivAs humAnAs E PolíTicAs
O homem sempre se viu ligado intimamente à religião, ainda que
ela fosse explorada de forma muito rudimentar no início, transformando-
-se ao longo da evolução da humanidade até culminar no signicado que
atualmente possui.
A religião é tema de estudo de vários lósofos, como omas
Hobbes, que dizia ser a fé característica peculiar do ente humano, não
sendo encontrada em outras criaturas vivas (FONSECA, 2014, p. 17); e
Emile Durkheim, o qual arma que ela não é uma ideia, mas sim fonte de
força do homem. Nas palavras de Emile Durkheim (1996, p. 459) apud
Francisco Tomazoli da Fonseca (2014, p. 17):
[...] a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enrique-
cer nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos
à ciência representações de uma outra origem e de um outro caráter,
mas sim nos fazer agir, nos ajudar a viver. “O el que entrou em
comunhão com o seu Deus não é meramente um homem que vê
novas verdades que o descrente ignora. Ele se tornou mais forte. Ele
sente, dentro de si, mais força, seja para suportar os sofrimentos da
existência, seja para vencê-los.” O sagrado não é um círculo de saber,
mas um círculo de poder.
Durkheim parece não ser o único a defender a força íntima que
a religião possui; Voltaire, em 1763, com a publicação do Tratado sobre a
tolerância, já armava que a religião fora criada para tornar o homem feliz
nessa e na outra vida, e ainda defendeu que quanto menos dogmas, menos
disputas e, portanto, menos infelicidades (2000, p. 117). Aqui já é percep-
tível a posição otimista do lósofo francês, bem como sua concordância
em que religião e política são esferas autônomas e independentes.
147
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Para Voltaire, o ser humano, de natureza fraca e perversa, não po-
dia se ver desligado da religião. A fé é algo próprio e inerente à sua essência.
Nas suas palavras (2000, p. 113):
Tal é a fraqueza do gênero humano e tal a sua perversidade, que, para
ele, certamente é preferível ser subjugado por todas as superstições pos-
síveis, contanto que não sejam mortíferas, do que viver sem religião. O
homem sempre teve necessidade de um freio e, ainda que fosse ridículo
fazer sacrifícios aos faunos, aos silvanos, às náiades, era bem mais útil
e razoável adorar essas imagens fantásticas da divindade do que entre-
gar-se ao ateísmo.
Infelizmente, a crença em algo sobrenatural não é apenas
fonte de força, tranquilidade, consolo, descanso e felicidade para a
alma do homem mortal, mas é o motivo de incontáveis conflitos in-
terpessoais e internacionais.
É relevante também ressaltar a diferença entre os termos laicismo
e laicidade, este último fundamental para que haja o respeito à liberdade
religiosa como um direito humano/fundamental, como também para a
efetivação da tolerância.
O laicismo signica a manifestação de verdadeira intolerância à
própria Igreja, na medida em que instaura a proibição de cultos religiosos
e propaga a supressão da religião no seio da sociedade, descaracterizando-a
como um ato de fé (GONÇALVES, 2013, p. 105).
Em outras palavras, o laicismo demonstra a ruptura entre o
Estado e a Igreja, esta última sofrendo verdadeira censura na realidade es-
tatal. Pode-se dizer que esse fenômeno resultou dos inúmeros atos arbi-
trários cometidos pela própria Igreja, cuja inuência na política, graças ao
movimento iluminista e às revoluções francesa e americana, fora proibida.
No entanto, este instituto não demonstrou uma ruptura pacíca,
mas sim uma autêntica penalidade do poder público à religião, uma vez
que esta passou a ser negada no ambiente social. O laicismo foi mais inten-
so na França, no ano de 1905, quando o Estado denitivamente rompeu
com a Igreja (GONÇALVES, 2013, p. 105).
148
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
O Papa João Paulo II escrevera uma carta a D. Jean-Pierre Ricard,
Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa,
opinando sobre o laicismo:
Em 1905, a lei de separação da Igreja e do Estado, que denunciava a
Concordata de 1804, foi um acontecimento doloroso e traumatizante
para a Igreja na França. Ela regulava o modo de viver em França o
princípio do laicismo e, neste âmbito, ela mantinha unicamente a li-
berdade de culto, relegando ao mesmo tempo a fé religiosa para a esfera
privada e não reconhecendo à vida religiosa e à Instituição eclesial um
lugar no seio da sociedade. Desta forma, a vida religiosa do homem
era considerada unicamente como um simples sentimento pessoal, não
reconhecendo assim a natureza profunda do homem, ser ao mesmo
tempo pessoal e social em todas as suas dimensões, incluindo a dimen-
são espiritual [...]
2
Fica claro, portanto, que o laicismo não é a separação ideal para
que se tenha o equilíbrio entre ambos os campos, pois ele simplesmente se
volta à punição da religião, não considerando sequer a liberdade religiosa,
de expressão e de pensamento do ser humano.
Para tanto, é preciso a instauração de um Estado Laico, isto é,
a implantação da laicidade, fenômeno que também signica a separação
entre Estado e Igreja, mas aqui tem-se uma separação legítima, ou seja,
garantidora da liberdade de crença e de culto religioso.
Com a laicidade, observa-se a existência de duas esferas: uma in-
terna, própria do indivíduo, na qual ele pode exercitar suas crenças e atos
de fé; e a outra pública, um espaço neutro, reservado a toda comunidade,
objetivando o bem comum de todos os cidadãos, independente de suas
crenças (FAVARIM, 2007, p. 29).
John Locke também era um instigador da ruptura entre a Igreja
e o Estado, sendo aquela uma associação voluntária de homens livres des-
tinada à salvação da alma. Deste modo, qualquer cidadão poderia se unir
àquele grupo, se assim fosse de sua vontade, tendo a liberdade para, a qual-
quer tempo, se desligar dela, caso discordasse de sua doutrina ou culto
(FAVARIM, 2007, p. 13).
 Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/2005/documents/hf_jp-ii_
let_20050211_french-bishops.html>. Acesso em: 13 jun. 2017.
149
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Já o Estado seria uma sociedade formada para garantir e preservar
os bens da vida civil, como a saúde, posses, a vida, a liberdade, etc, e não se
envolver em questões religiosas (FAVARIM, 2007, p. 13).
Muitos pensamentos de Locke podem se ver ligados ao instituto
da laicidade, visto que esse lósofo delimita a atuação de ambas as esferas,
observando-se que a estabilidade é necessária para que haja o respeito aos
direitos fundamentais do homem.
É função do Estado garantir a liberdade de todos os seus cida-
dãos, bem como lhes assegurar as mesmas oportunidades, sendo irrelevan-
te suas convicções pessoais e religiosas. É o que se observa no Art. 2º, item
2.1, da Declaração dos Princípios da Tolerância, de 1995:
No âmbito do Estado a tolerância exige justiça e imparcialidade na
legislação, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judiciário e
administrativo. Exige também que todos possam desfrutar de oportu-
nidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação. A exclusão
e a marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao
fanatismo. (ONU, 1995).
O Estado Laico, mesmo desvinculado da religião, tem importan-
te função de zelar pelo bem de todos os seus cidadãos, ainda que para isso
tenha de traçar limites à própria liberdade do indivíduo.
Isso quer dizer que, mesmo com a separação entre as duas es-
feras, há certa comunicação entre elas, ou seja, o Estado deve garantir a
manifestação de todas as religiões, bem como evitar o abuso às formas com
que essas religiões exercitam sua liberdade de culto, para que não infrin-
jam a incolumidade pública, a moral e os bons costumes, como sacrifícios
humanos, mutilações etc. (FAVARIM, 2007, p. 31). Isso é a laicidade: a
responsabilidade do Estado frente às manifestações religiosas.
O Papa João Paulo II, em sua carta alhures citada, também apon-
ta a laicidade como via alternativa ao laicismo:
Devido à vossa missão, estais chamados a intervir regularmente nos de-
bates públicos sobre as grandes questões da sociedade. De igual modo,
em nome da sua fé, os cristãos, pessoalmente ou em associações, devem
poder tomar a palavra publicamente para expressarem as suas opiniões
e manifestar as suas convicções, contribuindo assim para os debates
150
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
democráticos, interpelando o Estado e os seus concidadãos sobre as res-
ponsabilidades de homens e mulheres, principalmente no campo dos
direitos fundamentais da pessoa humana e do respeito da sua dignida-
de, do progresso da humanidade que não pode ser obtido a qualquer
preço, da justiça e da igualdade, assim como da proteção do planeta,
são âmbitos que dizem respeito ao futuro do homem e da humanidade,
e à responsabilidade de cada geração. Eis por que a laicidade, longe de
ser o lugar de um confronto, é verdadeiramente o espaço para um diá-
logo construtivo, no espírito dos valores de liberdade, igualdade e fra-
ternidade, que são justamente muito queridos ao povo da França [...]
Dessa maneira, a importância de um Estado Laico para o exer-
cício pleno dos direitos e garantias fundamentais ao homem, bem como
do princípio da tolerância numa sociedade democrática, diversa e plural,
é inquestionável.
Contudo, apesar dessa importância, se torna mais fácil a teoria do
que a sua efetivação, já que existem Estados que se denominam laicos, mas
que praticam ou não combatem a intolerância religiosa (GONÇALVES,
2013, p. 113). Daí a importância do tema na atualidade.
dos confliTos REligiosos
Já se sabe que, desde as civilizações mesopotâmicas, as codica-
ções empregavam uma conotação divina, combatendo formas de expressão
e de culto contrárias ao que era considerado sagrado naquele tempo.
Já se estabelecia, assim, um combate ao diferente, ao desconhe-
cido e ao que era incontrolável perante os olhos dos governantes. É o que
trazia explicitamente o Código de Hamurabi, em meados do século XVIII
a. C, ao disciplinar que o acusado de sortilégio deveria saltar ao rio e,
se tragado fosse, estaria provado o seu envolvimento com bruxaria.
3
Essa
disposição comprova o quão a fé em algo sobrenatural esteve ligada ao
homem e as suas ações políticas e governamentais.
Art. 2º do Código de Hamurabi: “Se alguém avança uma imputação de sortilégio contra um outro e não a
pode provar e aquele contra o qual a imputação de sortilégio foi feita, vai ao rio, salta no rio, se o rio o traga,
aquele que acusou deverá receber em posse à sua casa. Mas, se o rio o demonstra inocente e ele ca ileso, aquele
que avançou a imputação deverá ser morto, aquele que saltou no rio deverá receber em posse a casa do seu
acusador.” (BOUZON, 1976).
151
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Infelizmente, esse entrelaçamento entre religião e política se de-
senvolveu no decorrer dos séculos, como explicado anteriormente, e junto
a ele a intolerância, os conitos religiosos, o preconceito e a discriminação
nas esferas nacionais e internacionais.
É de salutar importância ressaltar aqui a intensicação dos con-
itos religiosos com a passagem das religiões politeístas para as monoteístas,
também chamadas de “religiões de livros”, modelo adotado pelos cristãos,
mulçumanos, judeus, etc. (GONÇALVES, 2013, p. 92). Nas primeiras
havia uma dimensão muito vasta de religiões, admitindo a coexistência
de vários deuses, enquanto nas religiões monoteístas cultua-se um único
Deus, com aspiração universal, contendo o seu livro verdades reveladas
(SCARPI, 2004, p. 11–12).
Exatamente porque as religiões monoteístas têm a preten-
são de serem universais é que surgiram inúmeras discussões e interpre-
tações a respeito de qual Deus deve ser honrado e qual verdade deve
ser seguida, não demorando muito para que os conitos se iniciassem
(GONÇALVES, 2013, p. 94).
Com o fanatismo e o fundamentalismo desempenhados por
essas religiões (FAVARIM, 2007, p. 35), ou seja, com apego literal às
interpretações dos livros sagrados, defendendo a sua verdade absoluta em
detrimento das interpretações de outras crenças, estão abertas as portas
para a intolerância.
Em vista disso, verdadeiras guerras entre religiões aconteceram e
ainda acontecem em vários lugares do mundo, como o caso da perseguição
dos cristãos durante o Império Romano e a perseguição que mais tarde eles
(cristãos) perpetraram durante a Inquisição Espanhola, em 1478, objeti-
vando conquistar éis ao evangelho de Cristo, torturando e perseguindo
aqueles que se opunham à conversão (FERREIRA, 2011, p. 2).
A disputa entre a China, Índia e o Paquistão pela posse do territó-
rio de Caxemira também é um exemplo de embate religioso, observando-
-se, de um lado, mulçumanos, e de outro, hindus; assim como os atentados
de Setembro de 2001 e o massacre ao jornal francês Charlie Hebdo, em
2015 ‒ forte exemplo de intolerância religiosa ‒ entre outros.
152
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A Irlanda do Norte também vive um confronto religioso entre
católicos e protestantes, que remonta ao século XII, motivado ainda por
questões políticas, territoriais e étnicas. Esse exemplo, em especial, demons-
tra o quão avassalador e perpétuo um conito religioso pode se tornar.
Voltaire, em seu Tratado sobre a tolerância, no século XVIII, já
armara, otimista, que (2000, p. 23) “[...] a Irlanda povoada e enriquecida
não verá mais [...]” seus cidadãos católicos e protestantes assassinarem-se
uns aos outros das mais diversas e cruéis formas. Infelizmente, o lósofo
francês estava errado e os conitos no território da Irlanda ainda se encon-
tram presentes, mesmo passados dois séculos.
Com esses conitos, observa-se um verdadeiro problema de âm-
bito internacional, uma vez que ameaçam a segurança e a paz mundial,
bem como renegam aos direitos humanos de liberdade e igualdade entre
todos, ferindo, por consequência, a dignidade da pessoa humana.
Por mais diferentes que sejam as várias religiões, os seus adeptos
entram em conito pelo mesmo motivo: em nome da fé. Na realidade, em
todas as crenças em que se observam esses confrontos há um incessante
objetivo de converter os éis de uma crença diversa a sua própria, o que é
chamado de proselitismo.
O proselitismo, portanto, é o intuito de conquistar fi-
éis e diminuir, senão erradicar, a influência das demais religiões
(GONÇALVES, 2013, p. 95), sendo praticado por quase todas elas.
Percebe-se, com isso, uma verdadeira intolerância religiosa, exercita-
da pela não-aceitação do outro.
Os conitos religiosos ganham espaço a partir da ausência da fra-
ternidade entre os povos, que erradicam a solidariedade e lutam pela pró-
pria autonomia em exercer o seu credo, negando-a ao outro pelo simples
fato de não compartilhar da mesma crença religiosa, não obstante a neces-
sidade de coordenação entre eles para a construção da totalidade humana.
É o que aduz Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, (2016, p. 63):
“Esse mosaico mostra a complementaridade mútua de todas as culturas.
Para alcançar a totalidade, todas elas precisam das demais. Somente na
coordenação mútua de todas as grandes produções culturais se aproxima o
homem da unidade e da totalidade de sua essência.
153
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Percebe-se, pois, que a intolerância provém da infantilidade e ir-
racionalidade do ser humano, tem origem em sua ignorância que, segundo
Cardoso (2003, p. 21), “[...] é causa primeira do medo, do preconceito, do
fanatismo, da intolerância e, por consequência, da violência.
De fato, a intolerância é causa da violência e do desrespeito entre
os indivíduos, consistindo numa afronta ao princípio da dignidade da pes-
soa humana, inerente a todo e qualquer ser humano independentemente
de seu credo, raça, opinião, classe social ou cultura.
A presença dos conitos religiosos nas sociedades democráticas,
portanto, constitui um paradoxo, já que nestas a diversidade entre os cida-
dãos deveria ser compreendida como algo comum e pacíco, não permi-
tindo uma política igualitária e autoritarista. Dessa forma, esses conitos
são verdadeiros ataques aos direitos de liberdade e igualdade garantidos
pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, previstos em seus
artigos 1º e 4º:
Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distin-
ções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o
próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser
determinados pela lei. (FRANÇA, 1789).
Desta maneira, com a inércia e a indiferença em relação a es-
ses confrontos religiosos, os direitos humanos fundamentais se encontram
constantemente ameaçados, pois continuarão a ser suprimidos à maneira
que se impõe à força uma forma de pensar, proibindo a liberdade de cons-
ciência do outro.
Assim, com a presença da intolerância há a descaracterização da
natureza humana; foi o que Voltaire (2000, p. 34) quis dizer ao armar
que “O direito de intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos
tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto
nós exterminamo-nos por parágrafos.
154
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
As batalhas travadas em nome da fé também atacam direta e
constantemente a liberdade religiosa, prevista no Art. 18 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos:
Art. 18 – Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença
pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.
(ONU, 1948).
Toda a pessoa deve ser livre para escolher o credo que lhe for me-
lhor, desde que respeite a moral e os bons costumes da comunidade em que
vive. Uma religião imposta é uma pseudo-religião, é assumir uma persona-
lidade que não é sua, uma vez que, segundo o Papa Bento XVI (2016, p.
58) “Se se retira de uma cultura a religião que lhe é própria e que a gerou,
rouba-se o seu coração.
Os conitos religiosos na contemporaneidade demonstram o
quão a humanidade ainda precisa evoluir, buscar sua emancipação, para
que, de fato, possa ser chamada de civilizada, construindo um ambiente
saudável e seguro para todas as pessoas e suas diferenças.
A TolERânciA como conduToRA à PAz sociAl
Diante de todo o exposto, vê-se na tolerância o único caminho
para interromper esses conitos religiosos, a m de o ser humano conquis-
te a sua emancipação e a superação de sua irracionalidade para que possa
ser construída uma coletividade mais justa e solidária, na qual a convivên-
cia entre os seus indivíduos seja de fato pacíca, uma vez que a tolerância é
elemento essencial para a construção da paz (CHELIKANI, 1999, p. 24).
Não se considera aqui a tolerância como simples capacidade de
suportar a existência de coisas e pessoas diferentes, mas sim a faculdade de
enxergar no outro um indivíduo de direitos e deveres iguais aos seus, par-
ticipante da mesma coletividade que a sua e de respeitar as suas escolhas,
compreendendo-as como essenciais para uma sociedade plural e evoluída.
Nas palavras de Chelikani (1999, p. 30), “A tolerância consiste em ter
crenças e aceitar dialogar com outras pessoas que têm convicções diferen-
155
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
tes. É chegar a um consenso com os outros para estabelecer uma coexis-
tência dinâmica e engajar-se em um processo de enriquecimento mútuo
permanente.
Ela é uma virtude antes individual do que coletiva, mas só pode
ser exercitada de um indivíduo em função do outro, ou seja, no seio da co-
letividade. Assim, ela só tem espaço numa sociedade democrática, em que
o diálogo e a pluralidade cultural se encontram presentes e na qual cada
indivíduo é livre para exercitar suas crenças e demais convicções.
Parece compactuar com esse pensamento o lósofo político
Norberto Bobbio, ao defender que a tolerância é um dever moral de todos
os cidadãos democráticos, de modo que ela só pode ser praticada na plura-
lidade de pessoas. Nas suas palavras (2002, p. 42–43):
Como modo de ser em relação ao outro, a serenidade resvala o territó-
rio da tolerância e do respeito pelas idéias e pelos modos de viver dos
outros. No entanto, se o indivíduo sereno é tolerante e respeitoso, não
é apenas isso. A tolerância é recíproca: para que exista tolerância é pre-
ciso que se esteja ao menos em dois. Uma situação de tolerância existe
quando um tolera o outro. Se eu o tolero e você não me tolera, não há
um estado de tolerância mas, ao contrário, de prepotência.
Deste modo, a tolerância, para Bobbio, se apresenta como fruto
da serenidade, uma virtude fraca, passiva e impolítica. Fraca não no sentido
de fraqueza, mas no de pertencer a todas as pessoas, a todos os cidadãos
normais, simples, comuns, sem-poder. Passiva e impolítica por ser uma
virtude moral absolutamente desvinculada do poder, mais próxima de ati-
tudes de tranquilidade, paciência e doçura (SOUZA, 2006, p. 101–102).
Pode-se perceber, portanto, que, segundo Bobbio, a tolerância é
própria do homem sereno, do que se opõe ao abuso de poder, do compro-
metido com a busca por um mundo melhor, um mundo da não-violência.
Para ele a serenidade (2002, p. 40–43) “[...] é uma virtude fraca
que torna possível entre os concidadãos um acordo forte: a tolerância. O
sereno é, ao contrário, aquele que ‘deixa o outro ser o que é’, ainda quando
o outro é o arrogante, o insolente, o prepotente.
156
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
O princípio da tolerância, em todos os seus aspectos, é funda-
mento de um Estado Constitucional Democrático (HABERMAS, 2013,
p. 6), pois somente com a sua efetivação se terá o respeito e a valorização
da dignidade da pessoa humana.
No âmbito religioso, tratado mais profundamente neste trabalho,
o exercício da tolerância religiosa se faz urgentemente necessário; o uso da
razão pelo homem aqui é indispensável para que se entenda que a vida na
comunidade religiosa se diferencia da vida na comunidade civil, que é mais
ampla e neutra (BOBBIO, 2002, p. 40–43).
Em outras palavras, a prática religiosa deve respeitar o campo
dos direitos políticos e civis, que é inerente a todos e não a alguns homens
apenas. O ser humano pode exercer o seu credo, pois lhe é garantida a
liberdade religiosa para isso; no entanto, ele deve permitir que os demais
também a exerçam, independentemente da religião professada.
A tolerância é o que qualica todos os homens como irmãos,
como seres essencialmente humanos, dignicando-os enquanto seres ra-
cionais e compassivos. A concretização desse princípio é o único meio
para se combater as decorrências da intolerância, inclusive os violentos
conitos religiosos, bem como para garantir aos homens e mulheres o
direito de ser quem eles são e assumirem suas personalidades sem medo
da coerção alheia.
Cabe reforçar mais uma vez que a tolerância não signica indife-
rença para com o outro, não é meramente um deixar fazer e ser ou suportar
a existência do estranho, do diferente. Locke (1980, p. 27) defendia que
cada religião deve exercitar este princípio, pois ele tem de ser propagado,
difundido a todas as áreas da sociedade.
A tolerância está na coragem em impedir o fanatismo e a intole-
rância, bem como impedir que se negue o direito do diferente em ter uma
existência livre e digna (SOUZA, 2006, p. 55).
Ainda para John Locke, a tolerância signica a garantia da diver-
sidade; esta, por sua vez é elemento que constitui o ente humano e não
pode ser evitado. Nas suas palavras (1980, p. 33):
157
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a
recusa de tolerância para os que têm opinião diversa, o que se poderia
admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se têm
manifestado no mundo cristão por causa da religião.
Portanto, segundo o pensamento do lósofo, a diversidade
não foi o estopim para as guerras religiosas, sendo plenamente possível
de ser aceita.
O princípio da tolerância, assim, é uma exigência moral de toda
comunidade plural e diversa, tratando-se da erradicação da intolerância em
respeito às consciências individuais (LOCKE, 1980, p. 33).
O homem ainda tem de percorrer um longo caminho para a sua
emancipação, transcendendo o simples desejo de crescimento tecnológico
e nanceiro; ele deve buscar o seu autocrescimento constante, que só é
possível com o exercício de sua liberdade em estar, pensar e ser. No entan-
to, a liberdade só tem sentido se praticada com reciprocidade, ou seja, é
necessário permitir aos outros fazer aquilo que deseja que eles permitam
que você faça (LOCKE, 1980, p. 41).
Sendo assim, para que a humanidade alcance a sua verdadeira
emancipação, supere a irracionalidade em perpetrar conitos provocados
pelas diferenças religiosas e se liberte das correntes da ignorância é preciso
que haja o respeito e a efetivação do princípio da tolerância. É o que se
extrai do Art. 1º, item 1.1, da Declaração de Princípios sobre a Tolerância:
A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diver-
sidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e
de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É
fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e
a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a
harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmen-
te uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que
torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra
por uma cultura de paz. (ONU, 1995).
Percebe-se com isso que a tolerância tem por objetivo a coexis-
tência pacíca e enriquecedora entre os povos em âmbito nacional e in-
ternacional, para que todos os seres humanos se empenhem em criar um
158
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
ambiente em que as mais diversas histórias, culturas, características, reli-
giões e tradições possam conviver de forma harmônica (GONÇALVES,
2013, p. 114).
Só assim os direitos humanos e fundamentais, principalmente a
dignidade da pessoa humana, poderão ser assegurados e efetivados de fato.
Só assim será possível falar-se em uma humanidade serena e racional, com-
prometida com o bem-estar de todos.
Destarte, o princípio da tolerância é instrumento-chave para a
fraternidade entre os povos, pois só é possível a solidariedade quando os
seres humanos se respeitam mutuamente, se reconhecem e, apesar de pos-
suírem costumes, crenças, raças, gêneros e ideais diferentes, eles devem
perseguir o mesmo m: a paz entre todos.
considERAçõEs finAis
Em breve conclusão, entende-se que os conitos religiosos são
marcas da ignorância do ente humano frente ao seu desrespeito para com
os princípios essenciais à dignidade da pessoa humana.
Diante dos vários conceitos de tolerância, percebe-se que em to-
dos eles há a persecução da valorização do ser humano, bem como da
rearmação de sua natureza racional e capaz de modicar o cenário em
que vive.
A inércia frente aos confrontos religiosos só demonstra o quão o
homem dispensa o uso de tal virtude, que é a razão, mantendo-se no cam-
po da ignorância e infantilidade.
Outrossim, apontou-se que não é apenas um dever moral da
pessoa humana, mas a tolerância também é um dever político e jurídico,
na medida em que o Estado Laico desempenha o papel de garantidor das
liberdades individuais, das manifestações religiosas e, ao mesmo tempo,
da proteção do grupo social de eventuais abusos a que essas liberdades
possam levar.
159
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Apesar disso, é preciso mais comprometimento dos Estados
Laicos para com a superação desses conitos, pois muitos deles ainda con-
tinuam encobrindo a ocorrência de tais embates.
Com a perpetuidade desses conitos religiosos, a dignidade hu-
mana e os demais direitos fundamentais ao homem continuarão a ser vio-
lados, bem como a serenidade continuará perdendo espaço para uma po-
lítica de violência.
Os conitos não são provocados pelas diferentes formas de
vida, de cultura, de tradição, de características ou de convicções, até
porque o que identica um ser como essencialmente humano não pode
ser motivo de guerras. A nascente de tais confrontos está na intolerân-
cia, na incansável tentativa de impor ao outro a forma de pensar ou de
viver que não lhe é própria.
À vista disso, sustenta-se que o princípio da tolerância é pres-
suposto básico para o exercício dos mencionados direitos humanos, bem
como o único caminho para a pacicação do todo, com a cessação dos con-
frontos religiosos e a busca da emancipação da humanidade, a qual, com o
seu exercício, será efetivamente fraterna, solidária e serena.
REfERênciAs
BOBBIO, N. O futuro da democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 8. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2000.
______. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Ed. da UNESP, 2002.
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 11. ed.
Tradução Carmen C. Varriale et al. Coordenação da tradução João Ferreira. Brasília,
DF: Ed. da UnB, 1998. v. 1.
BOCHENEK, A. C. A interação entre tribunais e democracia por meio do acesso aos
direitos e à justiça: análise de experiências dos juizados espe ciais federais cíveis brasileiros.
Brasília, DF: Conselho da Justiça Federal – CJF, 2013.
BOUZON, E. Código de Hamurabi (tradução). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
BUENO, R. A filosofia jurídico-política de Norberto Bobbio. São Paulo:
Mackenzie, 2006.
CARDOSO, C. M. Tolerância e seus limites: um olhar latino-americano sobre
diversidade e desigualdade. São Paulo: Ed. da UNESP, 2003.
160
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
CHELIKANI, R. V. B. J. Reexões sobre a tolerância. Brasília, DF: UNESCO, 1999.
DAHL, R. A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília, DF: Ed. UnB, 2001.
______. Poliarquia: participação e oposição. Tradução Celso Mauro Paciornik. São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2005.
FAVARIM, F. N. Limites da tolerância nos conitos entre grupos religiosos. Piracicaba:
Universidade Metodista de Piracicaba, 2007.
FERREIRA, A. G. Inquisição católica: em busca de uma desmisticação da
atuação do Santo Ofício. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS
INQUISITORIAIS, 2011, Salvador. Anais... Salvador: Universidade Federal da Bahia,
2011. p. 2.
FIGUEIREDO, A. C.; FIGUEIREDO, M. O plebiscito e as formas de governo. São
Paulo: Brasiliense, 1993.
FONSECA, F. T. da. A liberdade religiosa como direito fundamental e a laicização do
estado democrático de direito. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, 2014. Disponível em: <https://www.fdsm.edu.
br/site/posgraduacao/dissertacoes/38.pdf>. Acesso em: 2 maio 2017.
FRANÇA. Assembleia Nacional. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
[S.l.], 1789. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-
Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-
cidadao-1789.html>. Acesso em: 17 jun. 2017.
GONÇALVES, A. B. Da intolerância religiosa aos direitos humanos. São Paulo: PUC–
SP, 2013.
HABERMAS, J. Intolerância e discriminação. Tradução iago da Silva Paz. Perspectiva
Filosóca, Recife, v. 2, n. 40, 2013.
LENZA, P. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
______. Democracia, desenvolvimento humano e direitos humanos. Revista Debates,
Porto Alegre, v. 7, n. 1, p.15–114, jan./abr. 2013.
LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).
O’DONNELL, G. Democracia, desenvolvimento humano e direitos humanos. Revista
Debates, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 15–114, jan./abr. 2013.
OLIVEIRA, A. M. Preconceito, estigma e intolerância religiosa: a prática da
tolerância em sociedades plurais e em estados multiculturais. Estudos de Sociologia:
Revista do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 1, n. 13,
p. 239–264, 2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração de Princípios sobre a
Tolerância. Paris: UNESCO, 1995. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/
sip/onu/paz/dec95.htm>. Acesso em: 14 jun. 2017.
161
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
______. Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos
Humanos. [S.l.], 1948. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-
dos-direitos-humanos.html>. Acesso em: 14 jun. 2017.
RATZINGER, J. Fé, verdade, tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo.
São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosoa e Ciência “Raimundo Lúlio, 2016.
SANTOS, B. de S. Refundación del estado en América Latina: perspectivas desde una
epis temología del sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010.
SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada: v. 1: O debate contemporâneo.
Tradução Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 1994a.
______. A teoria da democracia revisitada: v. 2: As questões clássicas. Tradução Dinah de
Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 1994b.
SCARPI, P. Egito, Roma, Grécia, Mesopotâmia, Pérsia Politeísmos: as religiões do mundo
antigo. São Paulo: Hedra, 2004.
SILVA, R. de A. V. e. Os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade na prática
democrática: entre Rousseau e Habermas. Revista Lumen et Virtus, v. 2, n. 4, p. 121–
133, maio 2011.
SOUZA, M. G. A. de. Tolerar é pouco? Por uma losoa da educação a partir do conceito
de tolerância. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 2006.
VILARRUBIA, R. C. Direitos humanos e os conitos religiosos nas sociedades
democráticas: a tolerância como instrumento pacicador. In: SIMPÓSIO
INTERNACIONAL DE ANÁLISE CRÍTICA DO DIREITO (SIACRID), 7., 2017,
Jacarezinho, PR. Anais... Jacarezinho: UENP, 2017.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Tradução Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
WIESEL, E. VADE-MECUM por uma luta contra a intolerância. In: ______. A
intolerância. Tradução Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
163
A      
    
Laércio Fidelis Dias
inTRodução
Quando se fala em antropologia, alguns temas parecem emergir
quase que imediatamente: temas como cultura, tolerância, respeito, aceita-
ção e o escopo do exercício da liberdade. São temas que vêm à tona quando
pensamos nas relações que as nações e que os povos mantêm entre si no
mundo atual em que vivemos. Não armo que da perspectiva de outras
disciplinas os mesmos temas não sejam abordados ou tomados em consi-
deração. Armo, sim, que são questões centrais, incontornáveis e com um
viés próprio a partir de uma perspectiva antropológica.
E são questões centrais e incontornáveis porque nas interações
entre nações e povos entram em jogo hábitos, costumes, religiões e tradi-
ções de diversas matrizes e origens históricas. O que estou querendo dizer
é que hábitos, costumes, religiões e tradições medeiam e dinamizam as
relações entre os nações e povos.
Tolerância e respeito não são antídotos seguros contra ruídos, ten-
sões e possíveis conitos que possam emergir nessas interações. Porém, são
atitudes que procuram circunscrever e situar divergências, ruídos, tensões
164
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
e mesmos conitos no âmbito da civilidade. Pode-se discordar, mas estas
discordâncias, muitas vezes indigestas, quando se é tolerante e respeitoso,
cam emolduradas dentro de um quadro de civilidade. Com isto quer-se
dizer ninguém deve sair por aí aniquilando ou trucidando o outro por cau-
sa de divergências no âmbito dos costumes, hábitos e tradições culturais.
o quE é TolERânciA, REsPEiTo E AcEiTAção?
Tal como propõe a Organização das Nações Unidas (ONU,
1995, p. 11):
A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diver-
sidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e
de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É
fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e
a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a
harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmen-
te uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que
torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra
por uma cultura de paz.
É uma denição bastante difundida e conhecida com a qual, em
larga medida, também concordo. As ressalvas que tenho com tal denição,
espero, carão claras ao longo da exposição.
Tolerância não foi, entretanto, primeiramente denida pela
ONU. No Tratado acerca da tolerância (1763) e Carta sobre a tolerância
(1689), respectivamente, de Voltaire e Locke, são uns dos trabalhos mais
conhecidos sobre o tema.
A razão voltairiana, apoiada na douta ignorância socrática, exige
uma tolerância recíproca, cujo objetivo essencial é a liberdade. Pressupondo
que toda a humanidade é feita de fraquezas e de erros, o dever de cada um
consiste, necessariamente, em perdoar os erros dos outros. Verica-se, en-
tão, que essa noção de tolerância aproxima-se, intimamente, com a indul-
gência, a doçura e a paciência. Tal caráter de condescendência expressava,
no entanto, uma certa superioridade que, certa feita, era atribuída à noção
de tolerância (COSTA, 1999, p. 4).
165
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
A reexão feita em torno do pensamento de Locke, por seu lado,
permite-nos constatar que a tolerância é entendida e defendida como co-
rolário da liberdade da consciência individual e da igualdade de todos, não
apenas em matéria religiosa, mas também de costumes e formas de vida.
A soberania dos Estados e das Igrejas encontra os seus limites na soberania
da consciência individual. A problemática da tolerância é abordada por
Locke na dupla perspectiva religiosa e política. Enquanto em termos vul-
gares a tolerância expressava a atitude benevolente de respeito mútuo, em
termos losócos e políticos pressupunha uma dominância do poder. É
neste contexto, que Locke pede tolerância ao Estado, podendo essa posição
manifestar-se por omissão ou por mera indiferença. A sua obra expressa o
primado do político sobre o religioso. Fazendo da liberdade a ideia central
do seu pensamento, refere, no entanto, a necessidade de controlar o uso
abusivo do poder, isto porque os membros do Estado também são homens
e devem ser controlados (COSTA, 1999).
De qualquer modo, nem ONU, nem Voltaire, nem Locke são
pioneiros na reexão sobre tolerância. O lósofo Ramon LLull (1232–
1316) é precursor da reexão sobre tolerância. Em sua obra O Livro do
Gentio e dos Três Sábios (c. 1274–1276), o autor apresenta a tolerância
como diálogo, e a dene do seguinte modo: 1) Via negativa (privada),
entendido como resignação, impassividade diante de pessoas que pensam
de modo distinto. Nesse sentido, tolerância aqui assemelha-se à virtude da
paciência; 2) via positiva (pública), pela qual tolerância se caracteriza como
defesa da coexistência social pacíca de pessoas ou grupos com pensamen-
tos diferentes; 3) via extrema, entendida como defesa da tolerância com o
uso de todos os meios possíveis (violência verbal, censura, etc.).
Além de Ramon LLull, e bem antes de Locke e Voltaire, vários
os pensadores podem ser apontados como precursores da tolerância como
exercício do diálogo; o franciscano William of Ockham (c. 1287–1347),
com a obra Sent., III, q. 8, na qual aponta a possibilidade de que a salvação
da alma seria possível fora da Igreja Católica; o poeta Giovanni Boccaccio
(1313–1375), na obra, Decamerão, Conto 28 (Os Três Anéis), que também
aponta para a possibilidade de salvação de judeus e muçulmanos; Jacob
Acontius (c. 1520–1566), jurista, teólogo, lósofo e engenheiro, que em
Stratagemata Satanae, sugere que a intolerância seria uma armadilha do
166
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
diabo; o Jurista e lósofo Jean Bodin (1530–159) que em Coüoquium hep-
taplomeres propõe o retorno a uma religião natural para evitar discussões
dogmáticas; Michel Eyquem de Montaigne (1533–1592), lósofo francês
que, em Ensaios (II, 19), sai em defesa da liberdade consciência; Hugo
Grotius (1583–1645), jurista que também sai em defesa da religião natu-
ral; o poeta John Milton (1608–1674) que defende a liberdade de impren-
sa na obra Areopagitica (1644); e Baruch Spinoza (1632–1677), lósofo a
quem, em Tractatus theologico-politicus (1670), a fé não pode ser estabele-
cida pela violência ou imposição.
1
Respeitar quer dizer deslocar o ponto de vista de si e ver a situa-
ção a partir do ponto de vista do outro. A palavra respeito vem do «lat[im]
respectus,ūs, “Ação de olhar para trás; consideração, respeito, atenção, con-
ta; asilo, acolhida, refúgio”; f[orma] hist[órica] sXIV respeyto, sXV res-
peito, sXV rrespecto» (Dicionário Eletrônico Houaiss, 2009). Ao acrescer a
dimensão ética à ação de olhar para trás, considerar, dar atenção, acolher,
respeitar adquiri um sentido de deslocar a perspectiva de si em direção ao
outro, anal de contas estou diante de um semelhante, de um irmão. É
tão mais difícil realizar este deslocamento quanto mais divergentes foram
as opiniões e valores. E, consequentemente, tão mais fácil quanto mais
convergentes forem.
Aceitação quer dizer compartilhar da visão de mundo do outro.
Em uma só palavra: concordar. Em larga medida, nestes casos, a aceita-
ção do outro é a aceitação de si mesmo. Quando se aceita a perspectiva
do outro não se quer com isto dizer que haja concórdia em 100%. Mas,
muito provavelmente existe concórdia num núcleo de questões que são
fundamentais ou essenciais. Dando, assim, a impressão de que as visões de
mundo são indistintas ou muito próximas disto.
Não é difícil notar que ruídos, tensões e conitos costumam ser
mais comuns nas situações em que as atitudes em relação ao outro se-
jam marcadas pelo sinal da tolerância. E menos comuns nos casos em que
os valores fundamentais são compartilhados. É mais provável que aquele
que comigo concorda mantenha relações com menos ruído. Ao passo que
Agradeço ao professor Ricardo da Costa que apresentou este histórico acerca da tolerância durante o III
Encontro de Reexões sobre a Paz “Paz e Tolerância (http://www.marilia.unesp.br/#!/noticia/1830/encontro-de-
reexoes-sobre-a-paz-sera-em-abril/) com a palestra “Ramon Llull (1232-1316) foi o lósofo da tolerância na
Idade Média?”.
167
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
aquele que não concorda pavimenta um campo mais fértil para a emergên-
cia de tensões.
A questão-chave que permeia a tolerância, respeito e aceitação
é a cultura. De todo modo, ao mesmo tempo em que a noção de cultura
é fundamental para a grande maioria das escolas e tradições antropo-
lógicas, é, também, objeto de divergências acaloradas, uma vez que, ao
longo da história da disciplina, o conceito recebeu um sem-número de
denições. Além do que, a cultura como ferramenta analítica é também
apropriada por outras disciplinas: história; sociologia; política; psicolo-
gia; economia; etc. E cada uma destas disciplinas maneja a noção de
cultura com nuances próprias.
Isto posto, quaisquer que sejam as denições propostas para o
conceito de cultura, elas estão sempre sujeitas a críticas e objeções. Mas a
esta altura do campeonato, quero dizer, da palestra eu já me comprometi
o suciente e não tenho como tergiversar e não propor uma denição de
cultura. Anal de contas não é está uma questão-chave que permeia a to-
lerância, respeito e aceitação? De todo modo, qualquer que seja a objeção,
tenho grandes reticências de que se consiga demonstrar que cultura não é,
ao menos, o que se propõe a seguir:
o quE é culTuRA?
Cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, seja no pla-
no concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos até ideias
e crenças. Cultura é todo complexo de conhecimento e toda habilida-
de humana empregada socialmente. Além disso, é também todo com-
portamento aprendido, de modo interdependente da questão biológica
(TYLOR, 1871).
É uma denição enxuta. São três frases. Destas três frases que
denem cultura, segundo Tylor (1871), pode-se apreender:
1. Que cultura tem uma primeira acepção que inclui aspectos mate-
riais e imateriais. Ou seja: idéias, valores, e, objetos cultura mate-
rial, entre os quais estão incluídos tanto o microfone e computa-
dor que utilizamos aqui agora, como o carro, avião, instrumentos
de pedra lascada, lança, arco-e-echa e assim por diante;
168
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
2. O segundo aspecto desta denição de cultura diz respeito ao seu
sentido social. E sentido social aqui não tem o signicado hodierno
de engenharia, crítica e transformação sociais. Mas, com a expressão
quer-se enfatizar o aspecto da cultura como conhecimento, fruto
da conjugação de esforços de várias pessoas, de diferentes lugares e
épocas, que é apropriado por essas mesmas pessoas, transmitida a
gerações futuras, na construção e realização de suas vidas.
3. Em terceiro, a interdependência da cultura e biologia. A cultura não
nasce da biologia, mas dela não pode prescindir. Por exemplo, eu
não teria como estar aqui falando e expressando o que penso se não
tivesse um aparato cerebral e aparelho fonador que me permitem
emitir o som característico da voz humana e operar os fundamentos
gramaticais da língua portuguesa. A língua que falo, o seu acento ca-
racterístico, revela onde nasci e me criei, portanto são aspectos con-
tingenciais de minha fala, mas o aparato cerebral e aparelho fona-
dor, aos quais me referira, são condições necessárias da fala humana.
Creio que, em síntese, poder-se-ia dizer que cultura são todos os
objetos de cultura material, modos de agir, pensar e sentir e apreendidos
e transmitidos a partir do convívio social. Como alertei, anteriormente,
há uma série de divergências acerca do que vem a ser cultura. Propus, até
aqui, uma denição bastante ampla e geral que, como penso, poucos dirão:
cultura não tem absolutamente a ver com isto.
Como tolerar, como respeitar, como aceitar? Em que medida é
possível ser livre?
Creio que a problemática que está por trás destas perguntas aqui
apontadas poderia ser sintetizada na seguinte indagação: se somos de uma
espécie, por que organizamos nossas vidas de modos tão distintos? Notem,
estamos aqui diante da clássica tensão entre o universal e o particular. Onde
está o “nós” em meio à diferença. O que nos une dissipa nossas diferenças?
Os índios também se indagavam sobre essas questões. Vejam o
que escreve Lévi-Strauss (1961, p. 33) a seguir:
Ocorrem curiosas situações onde dois interlocutores dão-se cruelmen-
te a réplica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da
América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de inquérito para
pesquisar se os indígenas possuíam ou não uma alma, estes empenha-
vam-se em imergir brancos prisioneiros am de vericar, por uma ob-
servação demorada, se seus cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação.
169
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
A problemática da diversidade ou variabilidade comporta pelo
menos duas questões cruciais (que como não poderia deixar de ser dinami-
zam a tensão entre o particular e o universal): 1) estranhamento; 2) como
se portar diante da diferença?
EsTRAnhAmEnTo
A relação próxima com sociedades socioculturalmente tão dis-
tantes provoca em nós um estranhamento: “[...] perplexidade provocada
pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo en-
contro vai levar a uma modicação do olhar que se tinha sobre si mesmo.
(LAPLANTINE, 2003, p. 12).
Por que o estranhamento teria tal poder? Porque nos faz perceber
que aquilo que nos era natural em nós mesmos, de fato é cultural.
Como resolver (no sentido de explicá-la, não de eliminá-la) a ten-
são entre o universal (natural) e particular (cultural)?
Se denirmos o que natural signica aqui como algo inato, ou
seja: uma predisposição para um determinado agir, pensar ou sentir, pre-
disposição esta, dada pela natureza, e, o que cultural como a forma da
predisposição natural adquirida pelo convívio sociocultural, creio que se
consiga equacionar satisfatoriamente a tensão entre o natural e cultural.
como sE PoRTAR diAnTE dA difEREnçA?
Três atitudes são possíveis: Tolerar, respeitar e aceitar. Aceitar
quer dizer compartilhar da visão de mundo do outro. Respeitar também
quer dizer compartilhar da visão de mundo do outro. Porém, se preciso
respeitar, quer dizer que esse compartilhar exige algum esforço, alguma
armação. Tolerar, por sua vez, signica permitir que o outro seja como
ele quer ser, embora não haja um compartilhar de visão de mundo e, neste
sentido, tolerar exige esforço.
Classicamente a antropologia tem proposto como medida para
denir o escopo da liberdade o ato de relativizar. O ato de relativizar
seria o caminho, o pano de fundo que permitiria emoldurar as divergên-
170
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
cias no âmbito da civilidade, conforme apontei a poucos minutos atrás.
Relativizar para tolerar. Relativizar para respeitar. Relativizar, em grau
menor, para aceitar.
O que é relativizar, porém? Relativizar implica que se deve ana-
lisar um traço cultural no contexto sociocultural ao qual pertence e que
é sua fonte de sentido. Numa única expressão: relativizar é sinônimo de
contextualizar. E para tanto é preciso deslocar o ponto de vista, ou seja,
fazer um esforço para mudar a perspectiva da qual miro o comportamento
cultural. É muito fácil falar aqui numa palestra, mas não é tão fácil quanto
parece na vida real. No uxo dos acontecimentos que permeiam a nossa
existência, deslocar o ponto de vista a partir do qual estamos acostumados
a ver as coisas costuma ser difícil.
Há um problema com essa denição, ou se preferir, ela ao menos
não está completa. E assim eu próprio assumo o papel de advogado do dia-
bo de mim mesmo e aponto mais precisamente para o título desta palestra,
ou seja, usos devido e indevidos do ato de relativizar, ou, como apontei no
título, relativismo moral.
Vejamos. Como todos os seres humanos vivem em contextos cul-
turais sempre o que zermos terá algum sentido. Assim, tudo poderia ser
justicado já que faz sentido num certo contexto cultural. O contexto é
capaz de produzir um porquê, um sentido, uma motivação para o que as
pessoas fazem. Seria, então, apenas o contexto a fonte de vida (ou seja:
sentido) para o que fazem as pessoas?
O primeiro passo para sair deste imbróglio, deste círculo vicioso
é tomar o ato de relativizar como um procedimento metodológico. E não
tomá-lo como axioma, não tomá-lo por princípio ético de que as práticas
culturais são sempre moralmente relativas porque são produtos de contex-
tos particulares.
E por que esta distinção, entre procedimento metodológico e prin-
cípio axiológico, que me parece tão crucial, é, também, tão negligenciada?
Creio que porque somos, senão lhos da modernidade, ao menos
netos. A modernidade imaginou poder combater com as luzes da razão,
do conhecimento e da tolerância, toda a ignorância, pobreza, superstição
e desigualdade social. Por isso, Alain Touraine (1992) diz-nos que a ideia
171
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
de modernidade substitui, no centro da sociedade, Deus pela ciência, re-
metendo, na melhor das hipóteses, as crenças religiosas para o interior da
vida privada. Não basta que estejam presentes as aplicações tecnológicas
da ciência para que se possa falar de sociedade moderna. É necessário tam-
bém que a atividade intelectual esteja protegida das propagandas políticas
ou das crenças religiosas, que a impessoalidade das leis sirva de proteção
contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, que as administrações
públicas e privadas não sejam instrumentos de um poder pessoal, que vida
pública e privada permaneçam separadas, como devem permanecê-lo tam-
bém as fortunas privadas e o orçamento do Estado ou das empresas.
Não quero me entendam mal. Não vejo problemas numa sociedade
e cultura racionalmente organizadas. O problema aqui é içar a razão ao nível
de um fundamento em si. Um princípio auto-evidente e auto-suciente. O
relativismo moral pensado como axioma é uma tolerância hipertroada, jus-
tamente porque pensada como auto-evidente e auto-suciente, assim como
almejam ser as sociedades e culturas modernas, ao menos no Ocidente.
à guisA dE conclusão: TolERânciA ondE jAmAis sE TolERA
o inTolERávEl
Faz parte da essência de toda verdade não tolerar o princípio que a
contradiz. A armação de uma coisa exclui a negação dessa mesma
coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é
denido, podem-se partilhar os sentimentos, podem variar as opiniões.
Compreendo e peço a liberdade de opinião nas coisas duvidosas: “In
dubiis, libertas” (Na dúvida, a liberdade). Mas logo que a verdade se
apresenta com as características que a distinguem, sendo por isso mes-
mo verdade, ela é positiva, ela é necessária, e, por conseguinte, ela é una
e intolerante: “In necessariis, unitas” (No necessário, unidade)
2
. Res-
tringir a verdade ao perímetro da tolerância é condená-la ao suicídio. A
armação se aniquila ao duvidar de si mesma, e ela duvida de si mesma
ao admitir com indiferença ser posta ao lado de sua própria negação.
Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício
legítimo dum direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa
[verdadeira], é necessário defendê-la, sob pena de logo se ver despojado
dela. (PIE, 1841, p. 1).
As duas expressões latinas “in dubiis libertas” e “in necessarii, unitas” é uma referência ao conhecido princípio
de Santo Agostinho, segundo o qual “In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas, ou seja, nas
questões necessárias, unidade; nas questões de livre opinião, liberdade; em todos, caridade.
172
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
“L’Église est intolérante dans son principe parce qu’elle croit. Elle
est tolérante en pratique parce qu’elle aime. Les ennemis de l’Église sont
tolérants dans leur principe parce qu’ils ne croient pas. Ils sont intolérants
en pratique parce qu’ils n’aiment pas.” (GARRIGOULAGRANGE,
1950, p. 725)
3
.
Assim, só se tolera o que não é bom circunstancialmente. Seja
para evitar um mal maior, seja em ordem a um bem mais valioso. Assim,
por exemplo, podemos tolerar os defeitos de um amigo para manter a
amizade, do cônjuge para não se desfazer o casamento e os nossos próprios
para não enlouquecermos, por excesso de escrúpulos (SILVEIRA, 2018).
Tolerância não é algo que se ostente, pois além de tudo não é
sequer princípio moral. Tolerância é claro um ato contextual que visa um
bem maior e, neste sentido, aproxima-se do ato de relativizar mencionado
anteriormente (SILVEIRA, 2018).
A tolerância será boa apenas quando estiver conformada pela vir-
tude da prudência.
Prudentia é ver a realidade e, com base nela, tomar a decisão certa.
Por isso, como repete Tomás, não há virtude moral sem a prudentia,
e mais: ‘sem a prudentia, as demais virtudes, quanto maiores fossem,
mais dano causariam’ (in III Sent. d 33, q 2, a 5, sc 3). A prudentia
é necessariamente corajosa e forte’ (I–II, 65, 1). Sem esse referencial,
fundamentados em que tomamos nossas decisões? Quando não há a
simplicitas, a simplicidade que se volta para a realidade como único
ponto decisivo na decisão, ela acaba sendo tomada, como dizíamos,
com base em diversos outros fatores: por preconceitos, por interesses
interesseiros, por impulso egoísta, pela opinião coletiva, pelo ‘politica-
mente correto’, por inveja ou por qualquer outro vício [...] (TOMÁS
DE AQUINO, 2016, p. 439–440).
Se hoje a palavra prudência tornou-se aquela egoísta cautela da
indecisão (em cima do muro), em Tomás de Aquino, ao contrário, pru-
dentia expressa exatamente o oposto: é a arte de decidir corretamente com
base não em interesses oportunistas, não em sentimentos piegas, tampou-
co em impulsos, temores, preconceitos, porém, unicamente, com base no
 “A Igreja é intolerante em seus princípios porque crê. É tolerante com a prática porque ama. Seus inimigos são
tolerantes em seus princípios porque não crêem. E são intolerantes com a prática porque não amam.
173
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
real, em virtude do cristalino conhecimento do ser. Conhecimento este
signicado pelo termo ratio, presente na denição própria denição de
prudentia: recta ratio agibilium, reta razão aplicada ao agir (TOMÁS DE
AQUINO, 2016, p. 439).
Em todos os demais casos ela é falha grave ou gravíssima, razão
por que tem comumente outros nomes: tolerar o vício é permissividade;
tolerar a mentira, cumplicidade; tolerar a maldade, covardia; tolerar o erro,
estupidez; tolerar a tirania, suicídio político; tolerar a louvação da medio-
cridade, assassinato civilizacional.
O mundo onde se quer enar a tolerância goela abaixo como se
ela fosse dever moral, ter-se-ia, talvez, um nome apropriado: inferno. Esta
é a forma mais terrível de ser intolerante. Onde é proibido proibir impera
o mal. A intolerância será boa sempre que representar a adesão a princípios
dos quais não se pode abrir mão: a verdade, o bem, a justiça.
REfERênciAs
COSTA, M. G. G. M. A tolerância como paradigma antropológico: contributo para a
construção de uma losoa da educação. 1999. Dissertação (Mestrado em Filosoa da
Educação) - Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 1999.
GARRIGOULAGRANGE, R. Dieu, son existence et sa nature. Paris: Edité par
Beauchesne, 1950.
HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo:
Objetiva, 2009.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.
LÉVISTRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2008.
LLUL, R. O Livro do Gentio e dos Três Sábios (1274–1276). Tradução e notas de Esteve
Jaulent. Petrópolis: Vozes, 2001.
LOCKE, J. Carta sobre a tolerância. Lisboa: Edições 70, 1975.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração de Princípios
sobre a Tolerância. 1995. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001315/131524porb.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2018.
PIE, L-E. A intolerância católica (sermão pregado na Catedral de Chartres em 1841). In:
MONTFORT Associação Cultural, 1841. Disponível em: <http://www.montfort.org.
br/bra/veritas/religiao/intolerancia/>. Acesso em: 7 jun. 2017.
174
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
SILVEIRA, S. Cosmogonia da desordem. Rio de Janeiro: Edições C.I., 2018.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Campinas: Ecclesiae, 2016. v. 2–3.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.
TYLOR, E. e primitive culture. London: Murray, 1871.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015.
175
A       

Gislaene Martins de Menezes
inTRodução
As pessoas com deciência ao longo dos tempos sofrem uma
espécie de intolerância velada, ainda que atualmente não seja tão explí-
cita e tão agressiva como nas antigas civilizações, que permitiam com
que as famílias ou os grupos sociais sacricassem a pessoa que nascesse
com alguma deciência.
Antigamente, havia uma questão cultural muito presente nos
diferentes grupos sociais, nos quais a deciência era vista como uma
maldição ou até mesmo como um “castigo de Deus” e as próprias famí-
lias sentiam vergonha do ente que possuía deciência, e consequente-
mente condenavam essas pessoas à morte com a permissão das autori-
dades e da sociedade.
Historicamente, as pessoas com deciência possuem uma trajetó-
ria marcada pelo preconceito, pela discriminação, pela invisibilidade e pela
falta de tolerância que também pode ser chamada de falta de “paciência”,
pois a sociedade não reconhece seu papel diante dessas pessoas.
176
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
O presente estudo traz a tolerância sob a perspectiva da aceitação
e do respeito para com a pessoa com deciência, e a prática até os dias atu-
ais da intolerância no sentido de discriminação e preconceito, que, embora
tenha sido alvo de discussões e de proteção, ainda não é possível armar
que as diferenças entre os indivíduos caracterizadas pela deciência são
aceitas pela sociedade.
A presente pesquisa aponta como solução para a efetiva tolerân-
cia no sentido de aceitação e respeito para com a pessoa com deciência a
orientação da Organização das Nações Unidas, na Declaração de Princípios
sobre a Tolerância, que traz que “A educação é o meio mais ecaz de preve-
nir a intolerância.” (ONU, 1995, art. 4.1).
É através da educação que pode ser modicada a forma de com-
portamento e até mesmo a cultura de um povo, pois somente quando o in-
divíduo compreende as razões pelas quais deve modicar a forma de pensar
e de agir é que efetivamente ocorre a transformação e consequentemente a
modicação das suas atitudes.
Dessa forma, foi realizada análise através de fontes bibliográcas
e doutrinárias, a partir de uma metodologia dedutiva, com a pretensão de
provocar uma reexão sobre a questão da tolerância (paciência, aceitação,
respeito) em relação às pessoas que por alguma deciência não possuem
as mesmas habilidades que as pessoas ditas normais, trazendo como uma
solução efetiva a necessidade de educar para transformar a forma de pensar
e de agir em relação à diversidade.
o conTExTo hisTóRico dA PEssoA com dEficiênciA nA sociEdAdE
Historicamente, a pessoa com deciência possui uma trajetória
marcada pela discriminação e pelo preconceito. Na antiguidade na maioria
das civilizações, as pessoas com deciência sequer eram consideradas sujei-
tos de direito. Em Esparta e na Roma antiga, por exemplo, era permitido
sacricar as pessoas que nasciam ou adquiriam algum tipo de deciência,
portanto não se cogitava que essas pessoas tivessem direitos, nem mesmo
o de continuar vivos.
177
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Já em Atenas, sociedade inuenciada pelo pensamento do lósofo
Aristóteles, que defendia o princípio segundo o qual se deve “tratar igual-
mente os iguais e desigualmente os desiguais”, não se praticava o sacrifício
das pessoas que nasciam com deciência, mas amparavam essas pessoas.
Otto Marques da Silva, que iniciou suas atividades em reabili-
tação prossional de pessoas com deciência em 1957, no Instituto de
Reabilitação, da Universidade de São Paulo, arma em sua obra A epopéia
ignorada, uma obra clássica sobre o assunto, que a deciência é tão antiga
quanto à própria humanidade: “Anomalias físicas ou mentais, deformações
congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de consequências
incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão
antigas quanto à própria humanidade.” (SILVA, 1987, p. 21).
A discriminação e o preconceito também existem desde o surgi-
mento da humanidade.
a Bíblia Sagrada, no Velho Testamento, traz no LV 21,
18 e seguintes, a proibição da participação de pessoa com defici-
ência no culto divino:
18 Pois nenhum homem em que houver alguma deformidade se che-
gará: como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membros
demasiadamente comprimidos, 19 ou homem que tiver o pé quebra-
do, ou quebrada a mão, 20 ou corcovado, ou anão, ou que tiver belida
no olho, ou sarna, ou impigens, ou que tiver testículo quebrado. 21
Nenhum homem de semente de Arão, o sacerdote, em quem houver
alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do
Senhor; falta nele há; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus.
(BÍBLIA SAGRADA, 1995).
Naquela época, a deciência era vista sob duas óticas, como elei-
ção divina ou como “castigo de Deus”, e, portanto, muitas vezes as pessoas
que padeciam de alguma deciência quando não eram sacricadas, eram
estigmatizadas e deixadas à margem da sociedade, inclusive pela própria
família, o que as tornavam invisíveis.
Nesse sentido, importante destacar que a questão da tolerância
sob a perspectiva da aceitação e do respeito possui também inuência cul-
tural, pois a cultura de um povo, segundo o antropólogo britânico Edward
178
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
B. Tylor (2005), consiste em um complexo que envolve conhecimento,
as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e
capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade e, como
tal, existe uma grande diculdade em interromper uma crença ou prática
de um povo.
A construção da cultura de um povo por ser realizada através de
suas crenças, mitos, conhecimentos, comportamento e etc., forma uma
identidade que não se modica tão facilmente.
Ao assumir um comportamento, uma civilização traz enraizados
os usos e costumes e a crença, e nem sempre essas atitudes mesmo que
sejam consideradas parte da cultura de um povo são aceitáveis nos dias
atuais, como por exemplo, a permissão para sacricar pessoas que nascem
ou adquirem alguma deciência.
A trajetória das pessoas com deciência foi marcada pela invisibi-
lidade e até mesmo pela crueldade, quando se admitia o sacrifício da pessoa
que nascia com alguma deciência, sendo que somente após a Segunda
Guerra Mundial, que deixou um grande contingente de pessoas com de-
ciência adquirida, inclusive civis, foi intensicada a discussão sobre os
direitos dessas pessoas.
Entretanto, mesmo após o reconhecimento das pessoas com de-
ciência como sujeitos de direito, e a proibição do sacrifício dessas pessoas, é
possível armar que não há por parte da sociedade um engajamento efetivo
que caracteriza a aceitação e o respeito pelo indivíduo que possui algum
tipo de deciência.
Nesse sentido, a tolerância como sinônimo de aceitação e respeito
ocupa um lugar de fundamental importância no cenário social em que se
busca a efetiva proteção dos direitos das pessoas com deciência e a inclu-
são social dessas pessoas.
Seja no sentido de aceitação ou de respeito, não basta que haja
normas que tutelem os direitos das pessoas com deciência, mas também
é necessário um movimento cultural que deve emanar de cada ser humano
para com o próximo, o que consiste na prática da tolerância, da aceitação
e do respeito.
179
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Embora a deciência exista desde o surgimento da humanidade,
ainda não é possível armar em toda a sua trajetória que há tolerância por
parte da sociedade. O que se verica é uma sociedade eivada de preconcei-
to, agindo como se a deciência fosse um problema individualizado e que
faz parte tão somente da vida daqueles que possuem tal condição.
É de se destacar que o indivíduo que nasce ou adquire alguma
deciência já sofre as consequências de suas limitações e a falta de aceita-
ção e respeito (tolerância) por parte da sociedade e do Estado congura
ofensa aos seus direitos fundamentais, e, mais, veda a sua participação
plena na sociedade.
Importante mencionar também que não basta que os direitos
fundamentais estejam tutelados em dispositivos legais, sendo necessária
uma conscientização por parte da sociedade de que a tolerância como acei-
tação e respeito também é necessária, no sentido de reprimir a intolerância
calcada na discriminação e no preconceito.
A EducAção como mEio EficAz PARA PRomovER A TolERânciA
É possível discorrer sobre a tolerância sob diversos aspectos.
Historicamente, a tolerância era estudada do ponto de vista da convivên-
cia de crenças, religiosas e/ou políticas, sendo que, posteriormente, essa
discussão foi ampliada para questões como a das minorias étnicas e raciais
e para os que são chamados de “diferentes”.
O conceito de tolerância evidentemente pode ser apresentado de
acordo com as diferentes situações em que pode ser contextualizado.
Norberto Bobbio, em sua obra a A era dos direitos, no capítulo
sobre as razões da tolerância, aduz que esse conceito “[...] é generalizado
para o problema das minorias étnicas, linguísticas, raciais e religiosas e para
os que são chamados de ‘diferentes’, como, por exemplo, os homossexuais,
os loucos ou os decientes.” (BOBBIO, 2004, p. 186).
Bobbio distingue o problema da tolerância de crença e opiniões
diversas do problema de tolerância em face de quem é diverso por motivos
físicos ou sociais, e aborda nesse segundo problema o tema do preconceito
e da consequente discriminação.
180
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A questão da tolerância vem sendo discutida ao longo dos tempos
sob o mesmo viés, ou seja, sobre questões relacionadas à religião, minorias
étnicas, raciais e de gênero, porém ainda nos dias atuais se verica dicul-
dades enfrentadas pelos indivíduos na convivência em sociedade, seja em
relação à tolerância seja em relação à intolerância. Isso porque em relação
a esses assuntos não há uma verdade absoluta a ser trilhada, mas apenas
pontos de vista que devem ser aceitos e respeitados por todos.
Dentre as diversas ações que envolvem a tolerância, pode se des-
tacar a aceitação e o respeito às diferenças, sejam elas em razão da cor, da
raça, da religião ou de alguma deciência; enm das opiniões diversas que
cada ser humano expressa na concepção da sua individualidade.
O signicado de aceitar é apresentado pelo Dicionário Aurélio
(FERREIRA, 2010) como: estar conforme com; admitir; receber com
agrado e respeito como: apreço; consideração; deferência; obediência; sub-
missão; temor e medo. O signicado de ambas as palavras traduz atitudes
que os indivíduos devem ter diante das diferenças existentes entre si.
Para Bobbio, “[...] a tolerância não é apenas um método de con-
vivência, não é apenas um dever moral, mas uma necessidade inerente à
própria natureza da verdade.” (BOBBIO, 2004, p. 89). Sob essa perspecti-
va, pode-se extrair que o ato de “tolerar” é também um dever moral e ético
que cada indivíduo deve praticar.
O autor da obra A era dos direitos distingue as formas de tolerân-
cia entre diversidade de crença e daqueles que são diferentes por motivos
físicos e sociais e apresenta formas diversas de entender, praticar e de justi-
car esses problemas.
Em relação à tolerância de crenças e opiniões diversas, é de se
destacar que não há uma verdade absoluta, e cada ser humano possui a
sua convicção individualizada. Já em relação à diversidade por motivo de
deciência física ou social, a questão da tolerância ou da “intolerância
está relacionada com o fator da discriminação e do preconceito, o que
Bobbio traduz como sendo “[...] uma opinião ou conjunto de opiniões
que são acolhidas de modo acrítico passivo pela tradição, pelo costu-
me ou por uma autoridade cujos ditames são aceitos sem discussão.
(BOBBIO, 2004, p. 86).
181
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
A questão histórica da tolerância vivenciada na Europa entre
católicos e protestantes, no período das guerras de religião nos séculos
XVI e XVII, desencadeou a discussão sobre a idéia de tolerância e a
busca pela solução.
No século XVI, a discussão sobre a tolerância possuía caráter po-
lítico-civil, enquanto no século XVII o conceito de tolerância ganhou cará-
ter de cunho losóco-religioso, o primeiro relacionado com a promoção
do bem comum pelo Estado e o segundo, por sua vez, como um conceito
de ordem losóca que defendia que a questão religiosa era derivada de um
mesmo núcleo comum e, portanto, não deveria existir conito religioso.
O lósofo Pierre Bayle teve uma grande participação no desen-
volvimento do conceito de tolerância, juntamente com outros autores con-
temporâneos como Locke e Voltaire, que apresentaram relevantes contri-
buições a respeito desse tema.
Locke se dedicou por mais de quatro décadas em escritos sobre
a tolerância (1660–1704), adotando pelo menos duas posições sobre a
questão da tolerância, sendo uma em relação à política e a outra em re-
lação à religião. Considerado por Bobbio o maior teórico da tolerância,
Locke escreveu:
Seria de desejar que um dia se permitisse à verdade defender-se por
si só. Muito pouca ajuda lhe conferiu o poder dos grandes, que nem
sempre a conhecem e nem sempre lhe são favoráveis [...] A verdade não
precisa da violência para ser ouvida pelo espírito dos homens; e não se
pode ensiná-la pela boca da Lei. São os erros que reinam graças à ajuda
externa, tomada emprestada de outros meios. Mas a verdade, se não é
captada pelo intelecto com sua luz, não poderá triunfar com a força
externa. (LOCKE apud BOBBIO, 2004, p. 190).
Bobbio pondera que a tolerância não se baseia na renúncia à pró-
pria verdade, ou na indiferença frente à pessoa alheia (2004, p. 191), o
que pode ser traduzido segundo a idéia de que ninguém será obrigado a
renunciar à sua própria verdade, mas respeitar a verdade do outro, devendo
a verdade de cada indivíduo ser fruto da convicção íntima de cada um e
não ser uma imposição por qualquer que seja.
182
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Bobbio apresenta dois signicados de tolerância, sendo um posi-
tivo e outro negativo: no caso do primeiro, a tradução da tolerância corres-
ponde ao reconhecimento “[...] dos princípios fundamentais da vida livre e
pacíca [...]”; no sentido negativo, a tolerância se opõe a “[...] rmeza nos
princípios [...]”. Continua Bobbio:
Mas nem mesmo a tolerância positiva é absoluta. A tolerância absoluta
é uma pura abstração. A tolerância histórica, real, concreta, é sempre
relativa. Com isso, não quero dizer que a diferença entre tolerância e
intolerância esteja destinada a desaparecer. Mas é um fato que, entre
conceitos extremos, um dos quais é o contrário do outro, existe um
contínuo, uma zona cinzenta, o “nem insto nem aquilo”, cuja maior ou
menor amplitude é variável; e é sobre essa variável que se pode avaliar
qual sociedade é mais ou menos tolerante, mais ou menos intolerante.
(BOBBIO, 2004, p. 194).
A tolerância exige sem dúvida atitudes e ações que envolvem uma
postura intermediária entre a aceitação e a oposição, admitindo-se, nesse
cenário, que deva existir limites acerca da tolerância.
Bobbio discorre sobre esses limites, expondo que o único critério
razoável para xar os limites da tolerância pode ser formulado sob a égi-
de de que “[...] a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que
negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser
tolerados, salvo os intolerantes.” (BOBBIO, 2004, p. 196).
O assunto tolerância é um velho dilema que vem sendo objeto
de estudo e discussões ao longo dos tempos. Entretanto, não é possível
armar que tal problema foi solucionado, pois ainda na atualidade se veri-
cam conitos decorrentes de divergências políticas, econômicas, étnicas e
de gênero e discriminação e preconceito entre os indivíduos por razão das
diversidades humanas.
Em 1995, foi aprovada pela Conferência Geral da UNESCO,
em sua 28º reunião, na cidade de Paris, a Declaração de Princípios sobre
a Tolerância, que foi baseada nos princípios da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948).
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância traz no preâmbulo a
prática da tolerância e a necessidade de conviver em paz:
183
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Nós os povos das Nações Unidas decididos a preservar as gerações vin-
douras do agelo da guerra, [...] a rearmar a fé nos direitos fundamen-
tais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, [...] e com
tais nalidades a praticar a tolerância e a conviver em paz como bons
vizinhos. (ONU, 1995).
Verica-se através do preâmbulo dessa Declaração a preocupação
das Nações Unidas com a preservação das gerações futuras em relação ao
agelo da guerra e com a necessidade de praticar a tolerância.
Já no artigo 1º, a Declaração de Princípios sobre a Tolerância apre-
senta o signicado da tolerância:
Artigo 1º – 1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da ri-
queza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos
de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres
humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a
comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença.
A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem
ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é
uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma
cultura de guerra por uma cultura de paz.
1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A to-
lerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimen-
to dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades funda-
mentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada
para justicar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser
praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.
1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo
(inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direi-
to. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as
normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direi-
tos humanos.
1.4 Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tole-
rância não signica tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias
convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância
signica que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita
que o outro desfrute da mesma liberdade. Signica aceitar o fato de
184
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversida-
de de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se,
de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em
paz e de ser tais como são. Signica também que ninguém deve impor
suas opiniões a outrem. (ONU, 1995).
No item 1.1, do artigo 1º, da Declaração de Princípios sobre a
Tolerância, verica-se a intenção da ONU em atribuir à tolerância o sig-
nicado de respeito e aceitação, elementos essenciais para que os cidadãos
possam conviver com o “diferente”.
Inevitavelmente, a prática da tolerância é decorrente das rela-
ções entre os povos, que convivem em sociedade. Sob essa perspectiva, a
Organização das Nações Unidas, ao discutir sobre o conteúdo da Declaração
de Princípios sobre a Tolerância, fez constar no artigo 3º as dimensões so-
ciais, sendo um dos pontos mais relevantes dessa Declaração, pois a prática
da tolerância está diretamente ligada à forma de agir da sociedade, sendo
esta a destinatária da mesma.
Artigo 3º – 3.1 No mundo moderno, a tolerância é mais necessária
do que nunca. Vivemos uma época marcada pela mundialização da
economia e pela aceleração da mobilidade, da comunicação, da inte-
gração e da interdependência, das migrações e dos deslocamentos de
populações, da urbanização e da transformação das formas de organi-
zação social. Visto que inexiste uma única parte do mundo que não seja
caracterizada pela diversidade, a intensicação da intolerância e dos
confrontos constitui ameaça potencial para cada região. Não se trata de
ameaça limitada a esse ou aquele país, mas de ameaça universal.
3.2 A tolerância é necessária entre os indivíduos e também no âmbito
da família e da comunidade. A promoção da tolerância e o aprendizado
da abertura do espírito, da ouvida mútua e da solidariedade devem
se realizar nas escolas e nas universidades, por meio da educação não
formal, nos lares e nos locais de trabalho. Os meios de comunicação
devem desempenhar um papel construtivo, favorecendo o diálogo e
debate livres e abertos, propagando os valores da tolerância e ressal-
tando os riscos da indiferença à expansão das ideologias e dos grupos
intolerantes.
185
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
3.3 Como arma a Declaração da UNESCO sobre a Raça e os Precon-
ceitos Raciais, medidas devem ser tomadas para assegurar a igualdade
na dignidade e nos direitos dos indivíduos e dos grupos humanos em
toda lugar onde isso seja necessário. Para tanto, deve ser dada atenção
especial aos grupos vulneráveis social ou economicamente desfavoreci-
dos, a m de lhes assegurar a proteção das leis e regulamentos em vigor,
sobretudo em matéria de moradia, de emprego e de saúde, de respeitar
a autenticidade de sua cultura e de seus valores e de facilitar, em espe-
cial pela educação, sua promoção e sua integração social e prossional.
3.4 A m de coordenar a resposta da comunidade internacional a esse
desao universal, convém realizar estudos cientícos apropriados e
criar redes, incluindo a análise, pelos métodos das ciências sociais, das
causas profundas desses fenômenos e das medidas ecazes para enfren-
tá-las, e também a pesquisa e a observação, a m de apoiar as decisões
dos Estados Membros em matéria de formulação política geral e ação
normativa. (ONU, 1995).
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância retrata a preocupação
da ONU em relação à tolerância, especialmente pela diversidade e cons-
tante mundialização das relações entre os povos.
O assunto é de extrema relevância para a conscientização de
uma sociedade em que inerentemente uns necessitam dos outros, ha-
vendo, contudo, uma heterogeneidade das pessoas entre si que diculta
as suas relações.
Atualmente, em muitos países a questão cultural não mantém
a mesma inuência que tinha anteriormente, porém a ignorância em re-
lação aos problemas dos outros ainda é um traço de egoísmo forte entre
os seres humanos, o que diculta a prática da tolerância, no sentido de
aceitação e respeito.
As pessoas com deciência ainda não são aceitas pela sociedade, e
muitas vezes nem mesmo pela própria família, considerando que o precon-
ceito, a discriminação, a estigmatização e a ignorância ainda estão muito
presentes no contexto social.
Inegável que os seres humanos são diferentes entre si, mas quan-
do se trata de deciência, principalmente aparente, muitas vezes ocorre
186
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
que essa situação assusta as pessoas e automaticamente a reação pode ser o
preconceito e a discriminação.
Entretanto, é necessária a reexão sobre a necessidade de tole-
rância, que nesses casos é no sentido de aceitação e respeito para com o
próximo que possui limitações decorrentes de deciência.
Na prática, o que ocorre é a intolerância expressada através das ob-
jeções e dos impedimentos causados pelo modelo de sociedade que perdura
desde a antiguidade, pois a segregação e o preconceito são perceptíveis e ain-
da estão presentes no atual cenário principalmente em relação aos diferentes.
Verica-se contemporaneamente um movimento das autorida-
des, principalmente, um movimento de regulamentação legal dos direi-
tos das pessoas com deciência, pois, conforme já mencionado, após a
Segunda Guerra Mundial, as autoridades do mundo todo passaram a dis-
cutir os direitos dessas pessoas de forma mais atuante.
Ocorre que, em relação à tolerância, não se trata de regulamenta-
ção legal, mas sim de atitudes que devem ser praticadas por cada indivíduo
e incorporadas na sociedade para então de forma ecaz promover o com-
bate à intolerância calcada na discriminação e no preconceito.
Nesse aspecto, a maior diculdade que se apresenta é a ruptura de
um comportamento praticado ao longo dos tempos e que deve ser modi-
cado. A Declaração de Princípios sobre a Tolerância aponta que a tolerância
deve ser trabalhada através da educação para a tolerância:
Artigo 4º – 4.1 A educação é o meio mais ecaz de prevenir a into-
lerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em
ensinar aos indivíduos quais são seus direitos e suas liberdades a m de
assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos
e liberdades dos outros.
4.2 A educação para a tolerância deve ser considerada como imperati-
vo prioritário; por isso é necessário promover métodos sistemáticos e
racionais de ensino da tolerância centrados nas fontes culturais, sociais,
econômicas, políticas e religiosas da intolerância, que expressam as cau-
sas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de
educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão,
da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos
étnicos, sociais, culturais, religiosos, lingüísticos e as nações.
187
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
4.3 A educação para a tolerância deve visar a contrariar as inuências
que levam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a
desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar
uma reexão crítica e de raciocinar em termos éticos.
4.4 Comprometemo-nos a apoiar e a executar programas de pesquisa
em ciências sociais e de educação para a tolerância, para os direitos
humanos e para a não-violência. Por conseguinte, torna-se necessário
dar atenção especial à melhoria da formação dos docentes, dos progra-
mas de ensino, do conteúdo dos manuais e cursos e de outros tipos de
material pedagógico, inclusive as novas tecnologias educacionais, a m
de formar cidadãos solidários e responsáveis, abertos a outras culturas,
capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade dos
seres humanos e de suas diferenças e capazes de prevenir os conitos ou
de resolvê-los por meios não violentos. (ONU, 1995).
Para que o processo de educação para a tolerância seja efetivo, é
importante ressaltar a necessidade de uma inclusão social das pessoas com
deciência, pois a convivência com o diferente também é um instrumento
favorável para a aceitação e o respeito.
Ocorre que o mundo ainda não foi preparado para a verdadeira
inclusão das pessoas com deciência, pois, além dos obstáculos sociais e
culturais, existem obstáculos físicos que impedem a efetiva participação
das pessoas com deciência na sociedade, como, por exemplo, as barreiras
arquitetônicas cuja eliminação a própria estrutura das cidades diculta.
Dentre tantos obstáculos externos que levam à falta de tolerância
ou até mesmo à intolerância em relação às pessoas com deciência, outro
obstáculo relevante é a baixa auto-estima das próprias pessoas que padecem
de alguma deciência, pois a discriminação e o preconceito muitas vezes
estimulam a pessoa com deciência a absorver que ela não possui habilida-
des e, portanto, não está no mesmo patamar que as pessoas ditas normais
e não reconhece suas habilidades e potencialidades.
A sociedade impôs padrões generalizados para as pessoas ditas
normais, desconsiderando as diversidades e, portanto, educar para tolerar
implica no reconhecimento de que assim como existem diversidades em
relação aos seres humanos, existem também diversidades no olhar e no
188
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
agir, ou seja, na forma como enxergar as diferenças, como uma condição
que não diferencia a essência dos seres humanos.
Embora as autoridades do mundo todo lutem pela promoção da
tolerância e haja consequentemente o combate a intolerância em todos os
seus contextos, ainda falta muito para que os indivíduos convivam com as
diferenças sejam elas de raça, religião ou em relação à deciência.
Os documentos que tratam direta ou indiretamente sobre a tole-
rância retratam uma preocupação com a necessidade de mudança de com-
portamento dos seres humanos. Com o objetivo de promover a conscienti-
zação dos povos e disseminar a idéia do bem-estar e da tolerância, a ONU
criou em 1996, o Dia Internacional da Tolerância para ser comemorado
sempre no dia 16 de novembro.
Espera-se que a humanidade reconheça as diferenças existentes
entre os seres humanos e passem a “tolerar” cada uma delas para que todos
possam um dia conviver em patamar de igualdade e de respeito entre si.
considERAçõEs finAis
O paradoxo trazido pela falta de tolerância, especialmente em
relação às pessoas com deciência, é incontestavelmente uma preocupação
das autoridades.
Embora tenha ocorrido uma grande evolução em relação ao re-
conhecimento dos direitos das pessoas com deciência, na prática, ainda
há muito que conquistar, principalmente no quesito da tolerância, pois a
questão cultural é de fundamental relevância na ruptura e na construção
do comportamento de um povo.
A presente pesquisa abordou a necessidade da prática da tole-
rância sob a perspectiva da aceitação e do respeito para com o diferente e
apontou a educação como meio ecaz para prevenir a intolerância, solução
apontada pela Organização das Nações Unidas na Declaração de Princípios
sobre a Tolerância.
A tolerância é algo que deve ser praticada e deve fazer parte da
vida dos seres humanos, pois somente assim todas as pessoas, indistinta-
189
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
mente, terão seus direitos fundamentais efetivamente protegidos, especial-
mente o direito à vida digna, que somente é garantido se o seu destinatário
exercer os direitos fundamentais inerentes à condição humana.
REfERênciAs
ANDRADE, M. Tolerar é pouco?: pluralismo, mínimos éticos e prática pedagógica. Rio
de Janeiro: DP&Alli, 2009.
BÍBLIA Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1995.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba:
Positivo, 2010.
LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
MARTÍN, J.-L. La tolerancia em la historia. Valladolid: Universidade de Valladolid,
Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial, 2004.
MARTINA, G. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. 2. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 1996.
MIRANDA, L. F. A. de. Signicado político da tolerância em Locke e Voltaire. Filosoa
Unisinos, São Leopoldo, v. 8, n. 3, p. 287–299, set./dez. 2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração de Princípios sobre
a Tolerância. Paris: UNESCO, 1995. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001315/131524porb.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2018.
SILVA, O. M. da. A epopéia ignorada: a historia da pessoa deciente no mundo de
ontem e de hoje. São Paulo: Cedas, 1987.
TYLOR, E. B. A ciência da cultura. In: CASTRO, C. (Sel.). Evolucionismo cultural:
textos de Morgan, Tylor e Frazer. Tradução Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005. p. 31–45.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
191
B   
Não vim trazer paz, mas espada.” (Mateus 10, 34).
José Carlos Zamboni
Entre 2012 e 2013, um terremoto sacudiu a Igreja Católica: o
Papa Bento XVI renunciou ao cargo. Para os de fora da Igreja, um aconte-
cimento político como outro qualquer. Para os de dentro, não.
A quem interessava a demissão do Papa? A quem incomodava
com sua defesa intransigente dos chamados “princípios inegociáveis”, ex-
postos em famoso discurso lido a 30 de Março de 2006? Esses princí-
pios eram somente três, mas sucientes para contrariar fortes interesses do
mundo atual: defesa da vida em todas as suas fases, da concepção à morte
natural; casamento como união permanente entre um homem e uma mu-
lher; direito dos pais de decidir sobre a educação dos próprios lhos.
Isto signicava, concretamente, bater de frente com o pro-
jeto mundial de “desconstrução” da família convencional através do
divórcio, legalização do aborto, disseminação dos métodos anticoncep-
cionais, controle demográco (e suas implicações ambientalistas), for-
talecimento do movimento homossexual, educação voltada para uma
sexualidade self service.
192
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Parte fundamental desse projeto mundialista, de remodelação
comportamental, pressupunha a diminuição do poder das religiões mais
dogmáticas, como a Igreja Católica, favorecendo-se no âmbito ocidental a
difusão de uma espécie de sincretismo religioso — do qual a maçonaria é
o primeiro grande baluarte e o movimento new age o precursor mais ime-
diato —, misturando-se elementos de várias religiões, visando uma futura
e mais exível religião universal, moralmente neutra.
O sacerdote argentino Juan Claudio Sanahuja tratou do assunto
em obra publicada no Brasil, há alguns anos. Fartamente documentada,
apresenta ao leitor todos os organismos internacionais que pretendem “[...]
superar as religiões dogmáticas — aquelas que ensinam princípios imu-
táveis — às quais são atribuídas raízes violentas e fundamentalistas, em
oposição radical à nova civilização do ‘diálogo, da paz e do desenvolvimen-
to’.” (SANAHUJA, 2012, p. 72). Monsenhor Sanahuja manteve um site,
“Notícias globales”, de 1998 até 2015, no qual rastreou incansavelmente
documentos e informações sobre o que chamou de “Una nueva guerra
fría”, um projeto de domínio global empreendido pelos países desenvolvi-
dos (NOTÍCIAS GLOBALES, 1998).
Segundo esse projeto globalista, era necessário que as novas gera-
ções, deixando-se moldar pelo princípio da maleabilidade moral, não mais
acreditassem em verdades imutáveis, válidas para pessoas de quaisquer
épocas, mas em aspirações exíveis e adaptáveis a cada nova circunstância
histórica. O Deus de Isaac e Jacó, encarnado em Jesus Cristo, devia agora
ser substituído pelo multifacetado e hegeliano deus da História.
Papa Bento XVI não quis colaborar com esse programa que, do
ponto de vista cristão, era fatalmente suicida e inaceitável, pois corrói as
bases da civilização que a Igreja construiu nos últimos dois mil anos, com
suas conquistas morais, artísticas, cientícas e tecnológicas. Ao contrário,
repudiou-o com veemência, cunhando uma expressão que cou célebre —
ditadura do relativismo” —, e por isso teve, contra si, inimigos poderosos.
Essa expressão, aliás, foi cunhada um pouco antes de sua elei-
ção, quando ainda era Cardeal Ratzinger, decano do colégio cardinalício.
Celebrava a tradicional Missa «Pro eligendo romano Pontice», na aber-
193
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
tura do conclave que o escolheria como sucessor de São João Paulo II. Era
uma segunda-feira, dia 18 de abril de 2005. Dizia o cardeal na homilia:
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios,
quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pe-
quena barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agita-
da por estas ondas lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao
liberalismo, até à libertinagem, ao coletivismo radical; do ateísmo a
um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí
adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo
acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf.
Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes
é classicado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é,
deixar-se levar “aqui e além por qualquer vento de doutrina”, aparece
como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituin-
do uma ditadura do relativismo que nada reconhece como denitivo e
que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.
(RATZINGER, 2005).
Estava lançado o mote do seu ponticado: o combate àquela dita-
dura do relativismo que não se cansaria de denunciar e que foi, certamente,
a causa principal de sua renúncia.
As narrativas seguintes revelam como setores mais ideologizados
da classe intelectual, utilizando ferramentas artísticas — o happening, o
teatro performático, a instalação —, estavam sincronicamente mobilizados
contra o Papa reacionário.
um PAPA condEnAdo PElA inquisição
Pouco antes de sua renúncia, um fato ocorrido no Brasil — pro-
tagonizado por conhecido nome do teatro de vanguarda —, revelava o
grau de sua impopularidade junto a artistas e formadores de opinião em
geral. O acontecimento se deu justamente numa universidade do Papa: a
PUC paulistana.
No início de novembro de 2012, a professora do curso de Letras
da PUC-SP, Anna Maria Marques Cintra, terceira colocada na eleição para
reitor, acabou nomeada para o cargo pelo cardeal Dom Odilo Scherer,
grão-chanceler da universidade e presidente do Conselho Superior da
194
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Fundação São Paulo, que administra a universidade (de acordo com o es-
tatuto da instituição, cabe ao presidente do Conselho Superior escolher e
nomear o reitor, a partir de uma lista tríplice com os três mais votados pela
comunidade acadêmica, que inclui alunos, professores e funcionários).
As lideranças estudantis, no entanto, descontentes com a nome-
ação da professora Anna Maria — que teria assinado um termo de com-
promisso, não previsto no estatuto, de só assumir a reitoria caso fosse a
mais votada —, mobilizaram-se para assembleias gerais e prepararam atos
de protesto. Um deles consistiu em procurar atores do Teatro Ocina, da
capital paulista, para uma atividade teatral, inspirada em trecho da peça
Acordes, de Bertold Brecht, então encenada em São Paulo por aquela com-
panhia. Talvez não seja de todo inútil lembrar que o Teatro Ocina, a
partir da ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal, teve a
Petrobrás como seu principal patrocinador.
Na peça Acordes, de Brecht, havia uma cena que servia bem aos
propósitos dos estudantes: um boneco, representando o capitalismo, era
despedaçado por dois palhaços. Devidamente adaptado à situação que
vivia a PUC, o boneco capitalista se transformou em boneco vestido de
branco, com grande crucixo no peito e branca mitra na cabeça.
Era o dia 27 de novembro de 2012, no crepúsculo do ano letivo.
Câmeras do Teatro Ocina estavam a postos para registrar o espetáculo.
No pátio da universidade, algumas dezenas de estudantes cantavam e dan-
çavam ao som de instrumentos de percussão. Professores e funcionários as-
sistiriam ao espetáculo pelas janelas do piso superior. Em tomada especial,
ali aparecia sorridente, entre duas jovens, o conhecido diretor de teatro
José Celso Martinez Corrêa, ou Zé Celso, como prefere ser chamado o
diretor artístico do Teatro Ocina.
Depois de um corte, o diretor Zé Celso já se achava no pátio, de
jaqueta estrategicamente vermelha, atrás de uma careta com o rosto do
dramaturgo Brecht. Silenciado o canto dos alunos, logo se ouvia um im-
ponente gongo chinês avisando que o happening ia começar.
Ao som da “Ave Maria”, de Gounod, um grande boneco, vestido
de branco e com a mitra de bispo na cabeça, acompanhava a melodia com
gestos suaves, arremedado pelo diretor Zé Celso. Como o bispo atendia
195
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
pelo nome de “dona Benta” e tinha sotaque alemão, era obrigatório pensar
no Papa Bento XVI. A melodia foi logo interrompida — e entraram dois
jovens atores, rostos pintados como índios, a dentadura aumentada, como
se fossem participar de um ritual antropofágico.
Um deles, de revólver à mão e cabelos longos, gritava repetida-
mente “Golpistas!” e “Não passarão!”. Era o “no pasarán”, da líder comu-
nista da Guerra Civil espanhola, Isidora Dolores Ibárruri Gómez, conheci-
da como La Pasionaria. No que foi logo acompanhado pelo coro de alunos.
A câmara girava para mostrar a adesão e aprovação de todos os
presentes, sempre com especial destaque para o diretor Zé Celso, que era
notoriamente o maestro da banda, o cérebro da manifestação. Um estouro
aos pés do grande cruzeiro central, seguido de fumaça, dava início às falas
dos dois atores e do boneco.
— Não acho bonita! — protestou o boneco, com forte sotaque
alemão, em clara referência ao que via ao redor.
Uma vaia estrepitosa se levantou contra ele. O ator negro, com
sotaque baiano, apontou o boneco e perguntou:
— Ôxe! Você não vê que “dona Benta” quer car olhando pra
essa cruz, rezando pro seu santo predileto, São Paulo, o seu guarda suíço?
— e apontava cinicamente para o cruzeiro central do pátio.
— Ôxe digo eu! — replicou o segundo ator, o de revólver à
mão e cabelos longos. — Por que você ca sempre lambendo o rabo
de “dona Benta”? Isso incomoda “dona Benta”... Ainda mais um gay
africano, veado, preto...
Uma cascata de risos. O ator negro virou o rosto e confessou
ao público:
— Ah! É porque eu quero ir pro Céu! — disse falsamente contris-
tado. — E “dona Benta”, essa gostosinha, é uma celebridade, gente! É por
isso que eu quero car lambendo esse rabão dela.
E, fazendo um gesto obsceno com os órgãos genitais, gritou:
— Multidão! Pede pra ela se sentar “aqui” com a gente...
196
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A multidão gritava, repetidamente, uma mistura de “senta” e
“ca”. O ator branco interrompeu o coro da multidão e pediu, a todos,
que ouvissem “dona Benta” “ci-vi-li-za-da-men-te”. Anal, era um tribunal
democrático:
— “Dona Benta”, fala que a gente te escuta... — dizia, mostran-
do-lhe a plateia com um gesto circular.
A câmera focalizou “dona Benta”. Sob um fundo musical adequa-
do à pregação, o bispo começou a falar. Pediu à plateia:
Todos podiam car de olhos fechados para ouvir esses novos
mandamentos...
Evidentemente, a plateia não obedeceu. A partir desse momen-
to, “dona Benta” passou a expor alguns aspectos da moral católica que os
alunos rebeldes e o Teatro Ocina jamais poderiam aceitar, caricatura dos
princípios inegociáveis da Igreja, que Bento XVI rearmou mais de uma
vez em seu ponticado. Eram dez, como dez os Mandamentos de Moisés.
— Primeiro: não trepar “de antes” de casarem... (Vaias da mul-
tidão). Segundo: se casarem, só foderem para procriarem. (Risos e vaias).
Terceiro: desde o dia 9 de fevereiro de 2011, o Vaticano declarou os homos-
sexuais... (pronunciou uma palavra incompreensível no vídeo). Não pode
casar homem com homem e mulher com mulher! (Vaias) Quarto: pregar
a homofobia. (Vaias) Quinto: não usar camisinha. (Vaias) Sexto: mulher
não é dona de seu corpo. (Fortes vaias femininas). Sétimo: abortar “jamé
(Disse-o com forte acento francês, sob fortes vaias femininas). Oitavo: se quer
anular casamento, pagar oito mil reais pro Vaticano. Nono: queimar todos
os livros da Nietzsche, da Marx, da Freud, da Oswald de Andrade. (Vaias);
revistas gays dos boys e das girls; não ver lme condenado pela Vaticano;
não car pelada “jamé(novamente com sotaque francês). Isso serve pro se-
nhor também, Zé Celso (aqui, a câmera mostrava o diretor Zé Celso sentado
no chão, perto do boneco, num sorriso maroto). Décimo: estudar no livro de
losoa “da” padre Leonel Franca. É só!
Decálogo exposto, voltava à carga o ator negro:
197
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
— Ah! “Dona Benta”, a senhora não precisa pregar tanto! A se-
nhora precisa de uma boa distração... — dizia, enquanto fazia mais um
gesto fálico com as mãos.
Mais um corte. Neste ponto do vídeo, cou claro que o happe-
ning representava um tribunal. Um tribunal de inquisição e condenação,
semelhante aos que aparecem nas “lendas negras” criadas pelos adversários
da Igreja romana.
Depois do diretor Zé Celso voltar a dizer, por duas vezes, coisas
mais ou menos incompreensíveis, começaria imediatamente a decapitação
de “dona Benta”, com julgamento sumário e sem direito de defesa (para
deixar bem evidente a concepção de democracia do Sr. Zé Celso). O ator
branco entrou com uma barulhenta motosserra, grotescamente ameaça-
dor, deslando diante dos jovens mais próximos ao cruzeiro, que o aplau-
diam sorridentes. Diante da Cruz, ergueu a sua arma para a multidão e se
aproximou do boneco, agora já sem a mitra papal. Sob palmas e apupos
unânimes, iniciava-se a decapitação. Enquanto serrava, o sangue manchava
de vermelho vivíssimo, fartamente, a roupa branca de “dona Benta”. Até
que sua cabeça enm rolou pelo chão, parando aos pés da Cruz.
Figura 1: Bento XVI degolado na PUC paulistana
No m de tudo, o ato pela liberdade do ensino laico acabava bra-
sileiramente em carnaval, diante da Cruz e do Papa Bento XVI impiedo-
198
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
samente degolado. O vídeo, produzido pelo Teatro Ocina com lmagem
prossional, ainda pode ser encontrado no youtube sob o título Decapitação
do Papa na PUC (DECAPITAÇÃO..., 2012).
O Teatro Ocina foi acionado na Justiça. Não pela reitoria da
PUC, como seria esperável, mas pelo padre Luis Carlos Lodi da Cruz, da
diocese de Anápolis, Goiás. O padre Lodi, depois de ver pelo youtube a
representação teatral, encabeçou um abaixo-assinado e o encaminhou ao
Ministério Público, que moveu ação contra o diretor Zé Celso e seus dois
atores. O padre baseou a denúncia no artigo 208 do Código Penal, que
prevê pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa, para quem escar-
necer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; ou vilipen-
diar publicamente ato ou objeto de culto religioso. E, também, no artigo
286, referente à incitação pública de prática criminosa, com apologia de
crime ou criminoso.
Dois anos mais tarde, espantosamente, o juiz responsável pelo
caso extinguiu a ação em nome da “liberdade de expressão” que, em tem-
pos de “estado laico”, termina forçosamente por ser mais sacrossanta do
que o próprio Deus cristão.
Num texto publicado em seu blog, o diretor Zé Celso comemo-
rou e contra-atacou: os que acusavam o Teatro Ocina de crime de es-
cárnio religioso, e incitamento à violência, cometiam, eles próprios, um
delito ainda maior: crime contra a liberdade de expressão e a própria arte
teatral. “Estamos sendo processados mais uma vez — escreveu o diretor
— pelos que devíamos processar pelo desrespeito ao Teatro e ao Estado
Laico Brasileiro: os Fundamentalistas Católicos Apostólicos Romanos.
(BOCA NO MUNDO, 2013).
Muito signicativo, no episódio, era o fato de um sacerdote iso-
lado e distante — sem ligações diretas com a PUC de São Paulo, mas
membro da mesma Igreja ofendida —, tomar a iniciativa de defendê-la,
quando ninguém da universidade pontifícia se dispunha a fazê-lo (sem
mencionar, obviamente, os que apoiaram o ato). A propósito dessa Igreja
dividida, um padre que ensinou na PUC paulistana de outros tempos,
entre 1959 e 1969 — o belga Michel Schooyans —, publicou no início do
199
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
ponticado de Bento XVI um livro em que fazia um bom diagnóstico da
Igreja Católica atual, com suas divisões internas e inltrações ideológicas
(SCHOOYANS, 2008).
o Anjos REbEldEs dE noTRE dAmE
Papa Bento XVI, vítima da motosserra paulistana, comunicaria a
sua misteriosa renúncia ao “ministério petrino” dois meses e meio depois de
sua degola simbólica. Deixava de ser Papa em exercício para assumir a condi-
ção inédita de Papa emérito. O anúncio foi feito em 11 de fevereiro de 2013,
dia em que a Igreja Católica comemora o início das aparições da Virgem
Maria em Lourdes (11 de fevereiro de 1858), numa época em que a França
ainda sofria os efeitos da Revolução Francesa (mãe de todas as ideologias
contemporâneas). Uma data, portanto, com indiscutível valor simbólico.
O Teatro Ocina foi profético. Mais ainda: o próprio diretor
Zé Celso se perguntaria, mais tarde, se a queda do Papa não teria sido
provocada pela “bruxaria teatral” que ele e seus dois atores realizaram
poucos meses antes, no nal de novembro de 2012, no pátio de uma
universidade católica generosamente aberta ao pensamento anticristão
(BOCA NO MUNDO, 2013).
Jornalistas católicos saíram, atônitos, no encalço da lógica inter-
na da renúncia de Bento XVI. Era notório que o Pontíce já não sentia a
mesma conança de antes em seus colaboradores imediatos, e tinha plena
consciência de que, na velhice, precisaria cada vez mais deles, como João
Paulo II necessitou em seus últimos anos de ponticado, sobretudo pelo
agravamento de suas doenças. Até que ponto a decapitação simbólica, no
Brasil, teria inuído no ânimo do Pontíce demissionário, somente o pró-
prio poderia dizer. Terá sido, no entanto, mais do que uma simples gota
d’água; mesmo essas, podem pesar toneladas em certas circunstâncias.
Foram muitos os que se alegraram com a decisão papal, junto
com os responsáveis pela agressão brechtiana da PUC. Naquele mês de
fevereiro, logo que a notícia da renúncia chegou ao comando da organiza-
ção feminista internacional Femen — que utiliza moças para invadir, se-
minuas, lugares paradigmáticos do Ocidente conservador para algum tipo
200
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
de protesto —, cuidou logo de acionar oito militantes francesas para uma
performance na Catedral de Notre Dame, em Paris.
Era uma fria manhã do inverno parisiense. Misturadas aos turis-
tas, quase nuas sob os longos casacos, as jovens entraram na milenar igreja
francesa, despiram os casacos e cercaram os grandes sinos silenciosos, que
estavam no chão, sobre o piso da nave principal do templo. Os sinos, que
já tinham sido benzidos pelo arcebispo de Paris no iníciode fevereiro de
2013, soariam pela primeira vez no próximo Domingo de Ramos, na aber-
tura da Semana Santa parisiense, como parte das comemorações dos 850
anos da catedral. Aguardavam ali embaixo, belamente dourados e curvos,
aguardando por abril, à esperaqueos levassem para o alto, quando dariam
pulmões novos às velhas torres medievais da Catedral.
Ninguém imaginaria, porém, que os sinos seriam inaugurados
logo mais, ali mesmo, naquele dia cinzento, pelas mãos daquelas jovens co-
léricas, que os martelavam ruidosamente, enquanto gritavam frases ofensi-
vas ao Papa recém-demissionário. Como sempre ocorre nas manifestações
do Femem, os seios cavam obrigatoriamente à mostra, com agressivas
palavras de ordem gravadas no busto. Em contraponto à pudica sinuosi-
dade dos sinos, as moças exibiam suas próprias e íntimas curvas — curvas
pagãs, furiosamente inadequadas ao casto e velado ambiente cristão. Uma
nudez, aliás, monotonamente eurocêntrica: o grupinho era menos multi-
étnico que o desejável em movimento de democracia radical...
Figura 2: Militantes do Femen comemoram renúncia do Papa
201
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Erguiam os braços, desaadoramente, para o teto da catedral e o
próprio Céu cristão, enquanto as bocas repetiam, aos berros:
— Papa nunca mais!
— A fé está em crise!
Tchau, tchau, Bento XVI!
— Papa homofóbico!
Vestiam sedutores caleçons pretos, como se estivessem no Moulin
Rouge e não em lugar sagrado, no qual diariamente — como creem os
católicos — o pão e o vinho se transformavam no Corpo e Sangue de
Jesus Cristo.
Em poucos minutos, as garotas transformaram o silencioso
ambiente da Notre Dame em ruidoso campo de batalha cultural. Não
havia nenhum senso de humor nos olhos e gestos das oito militantes
— o vídeo revela-o muito bem —; nenhuma atitude de profanação
carnavalesca de ambiente sagrado, embora fosse terça-feira gorda de
carnaval. A cena estava mais para lme de guerra do que para comédia
de costumes (LES FEMEN..., 2013).
Aos que assistem à performance pelo youtube, é quase inevitável
pensar num bando de jovens universitárias, semelhantes às que participa-
ram da decapitação do Papa, na PUC paulistana. Agora em versão topless,
pareciam movidas pela costumeira rebeldia estudantil dos diretórios aca-
dêmicos. Rostos e gestos revelavam um grande ódio pela vida normal
de cada dia, uma vontade insana de redesenhar os hábitos milenares das
pessoas, como se fossem anjos vingadores de uma nova religião, além do
bem e do mal, que já não mais necessitasse do Céu “careta” e repressor
do Papa que se retirava.
Essas garotas, contudo, não eram tão politizadas como pareciam.
Rápida pesquisa na internet é suciente para saber que, em vez de dile-
tantes acadêmicas do barulho e do espalhafato, não passam, na verdade,
de prossionais a serviço de pessoas ou grupos que não simpatizam com a
moral cristã, em especial com a Igreja Católica. Alguém com muito dinhei-
202
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
ro (cochicham-se pela internet algumas hipóteses) é quem paga as viagens
aéreas, as hospedagens e a alimentação do grupo, em troca dos bustos nus,
onde se gravam palavras de protesto do atual programa revolucionário de
esquerda, numa forma inegavelmente original de praticar a gratagem. É
provável que elas acreditem nos valores que pregam, mas só se dispõem
a batalhar por eles enquanto euros e dólares sejam depositados em suas
contas bancárias. Bem assalariadas, recebem treinamento prossional para
as performances teatrais em lugares estrategicamente escolhidos, depois de
vestidas e maquiadas com cuidado prossional.
O protesto de Notre Dame terminou como previsto: oito mulhe-
res, seminuas, enjauladas num camburão de polícia parisiense. Certamente,
a arquidiocese profanada cuidou do ritual de reparação religiosa ao ultraje,
mas não se pode garantir que tenha acionado na justiça as infratoras. Se
acionou, é quase certo que tudo tenha terminado de maneira semelhante
ao episódio da PUC paulistana.
os ERRos dE dEus
Voltemos ao Brasil. Foi nesse momento crítico do mundo cató-
lico, com as fraturas da Santa Sé ainda bastante expostas, que começou a
ser gestada 31ª Bienal de Arte de São Paulo, em surpreendente conexão
com os fatos narrados atrás. Seria aberta ao público em setembro do ano
seguinte (2014), no Museu de Arte Moderna de São Paulo, localizado no
Parque do Ibirapuera.
O tema escolhido para aquela exposição foi “Como sentir coisas
que não existem”, e o gênero artístico predominante era a instalação. A
exposição foi concebida e realizada por um grupo de cinco experts inter-
nacionais: o escritor escocês Charles Esche, os espanhóis Pablo Lafuente e
Nuria Enguita Mayo, os israelenses Galit Eilat e Oren Sagiv. O empresário
brasileiro Luis Terepins, ligado à então ministra da Cultura Marta Suplicy,
era o presidente da Fundação Bienal de São Paulo.
Até onde é possível compreender o texto de apresentação da
Bienal, que expõe e justica o tema de maneira intencionalmente nebu-
losa — aquela linguagem pós-moderna que descende dos Heidegger, dos
203
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Derrida etc. —, o leitor ca sabendo, após algum esforço, que o pessoal
organizador acredita no poder da arte “de agir e intervir em locais e comu-
nidades onde ela se manifesta”, o que faz lembrar logo o conceito de arte
engajada. Linguagem “nova” para velhas ideias.
Segundo os organizadores, vivíamos um momento de crise po-
lítica, social, religiosa, econômica e ecológica, com “distribuição cada vez
mais desigual do poder e dos recursos”. Estávamos num verdadeiro “estado
de virada”. Seria hora, portanto, de realizar uma mudança de fato, mobi-
lizando a arte com sua função preferencialmente “disruptiva”. Seria uma
bienal fundada não em objetos de arte, como seria lícito esperar de uma
bienal de artes, mas em “pessoas que trabalham com pessoas”, para mudar
educacionalmente a cabeça de milhares de outras pessoas.
Para os mentores da 31ª Bienal, nossa compreensão e capacidade
de ação no mundo seriam sempre limitadas ou parciais, com a consequên-
cia de que muitas coisas relevantes cariam de fora dos modos comumente
aceitos de pensar e atuar. Essas coisas que “cam de fora”, só enxergadas
pela mente privilegiada do pessoal organizador, é que deram título à Bienal:
“Como sentir coisas que não existem”, e que só passam a existir depois de
desveladas pela inteligência crítica de uma minoria de iluminados.
O que importava era localizar injustiças, aparentemente insupe-
ráveis, de natureza política, social, religiosa, econômica e ecológica, pois
eram elas que nos impediam de ver essas preciosas coisas que ainda não
existiam” (altamente desejáveis), essenciais para superar nossas pobres ex-
pectativas e convicções atuais.
Um dos objetivos — certamente o principal — era gerar conito,
colocando o “poder disruptivo” da arte a serviço de uma nova sociedade
que só existia, até então, na mente dos organizadores da mostra. A “nova
sociedade” ainda era uma utopia, mas a partir da exposição podia car
mais próxima da realidade comum das pessoas mais simples:
Espera-se que esse momento compartilhado seja transformador para
todos os envolvidos. Para isso ocorrer, os projetos artísticos, as pa-
lavras e ideias surgidas na exposição, discussões e performances que
acontecem enquanto durar a Bienal, todos precisam ser confrontados,
apropriados, usados e abusados. Ao longo desses encontros, dentro e
em torno da 31ª Bienal, por meio do que são fundamentalmente atos
204
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
artísticos da vontade, as coisas que não existem podem ser trazidas à
existência e, assim, contribuir para uma visão diferente do mundo. É
provável que seja este, no m das contas, o potencial da arte. (INTRO-
DUÇÃO, [2014?]).
Até aqui, temos o já conhecido discurso teórico da esquerda
acadêmica, visando “contribuir” para alterar o comportamento humano.
Vejamos o que ocorreu na prática. Um dos problemas propostos para dis-
cussão, na Bienal, era a questão de “deus”, em especial da “sexualidade de
deus” (assim mesmo, com minúsculo, para já deixar bem explícita a “teo-
logia” dos organizadores).
O que o público (sobretudo alunos, crianças e jovens, de escolas
públicas e particulares) encontrou de fato na 31ª Bienal? Quais as coisas
que não existiam e, a partir de então, com seu “poder disruptivo”, passa-
ram a existir, propiciando ao público estudantil “uma visão diferente do
mundo”, adequada ao “estado de virada” em que viviam sem a plena cons-
ciência da coisa?
Foram criados vários ambientes dentro do grande pavilhão
do Museu de Arte Contemporânea. Um desses ambientes se deno-
minava “Errar de deus”. Estava composto de vários trabalhos. Num
deles, o público podia ver famintos corvos devorando o corpo cruci-
ficado de Jesus Cristo.
Pelo menos outros três “homenageavam” a Mãe do mesmo Jesus.
No primeiro, uma Virgem, com o Menino ao colo, se recobria inteira-
mente de baratas e escorpiões de plástico. No segundo, Maria estava toda
enroscada por uma gorda serpente. No terceiro, uma imagem de Nossa
Senhora atada a um ralador de cozinha, como uma abobrinha prestes a
ser triturada. A seu lado, uma Santa Ceia aguardava, dentro de uma fri-
gideira, o momento sublime de ser fritada no óleo. No mesmo ambiente,
os visitantes ainda eram orientados a assinar um urgente abaixo-assinado,
dirigido ao recém-eleito Papa Francisco, pedindo a abolição total do infer-
no, promovido por uma certa CIHABAPAI (Clube dos Ímpios, Hereges,
Apóstatas, Blasfemos, Ateus, Pagãos, Agnósticos e Inéis). Há um site com
fotograas dos trabalhos (ERRAR DE DEUS, 2017).
205
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Figura 3: A Virgem e Jesus cobertos de baratas e escorpiões
Havia, também, uma sala chamada “Deus é bicha”, com outras
obras na mesma linha confrontadora. Novamente, a protagonista era a
Mãe de Jesus. Chamava logo a atenção uma Virgem Maria com barbas;
e, adiante, um grupo de corpos andróginos, em intimidade homossexual
diante de uma complacente Nossa Senhora de Guadalupe. Ainda nesse
ambiente, era possível ver a obra “Casa particular”: uma Santa Ceia ence-
nada num prostíbulo da Rua São Camilo, em Santiago do Chile. Sentada
ao centro da mesa, uma cândida prostituta representava o duplo papel de
Jesus Cristo e do ditador chileno Augusto Pinochet, dizendo depois de
oferecer o pão e o vinho:
— Este é meu corpo, este é meu sangue...
A obra “Línea de Vida” censurava a Igreja Católica por ter força-
do indígenas do Peru a abandonar suas antigas tradições religiosas, à épo-
ca da colonização. No ambiente “Linha do Tempo”, a obra denominada
“Museu Travesti do Peru” exibia uma Virgem Maria com traços masculi-
nos. E, para terminar, uma exposição de cartões postais comemorativos da
206
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
destruição de igrejas, imagens e conventos por comunistas, entre 1936 e
1939, durante a guerra civil espanhola.
Como a Igreja Católica — certamente o principal alvo da 31ª
Bienal — sempre se posicionou contra o assassinato de bebês intraute-
rinos, não poderia faltar referência ao fato. No ambiente denominado
“Espaço para Abortar”, vários cilindros cor-de-rosa se sucediam numa área
circular, feitos de tela transparente, mais ou menos do tamanho de cabinas
telefônicas. Eram representações de úteros vazios, já livres do feto, e onde
era possível entrar para saber como é um útero depois do aborto.
Várias empresas e instituições educativas deram dinheiro, ideias
ou colaboraram com a divulgação da mostra. Mencionem-se só as nacio-
nais: Itaú, SESC, USP, Rede Globo, Instituto Votorantim, Eletropaulo,
Sansumg, Oi, Eternit, Gerdau, Klabin. Não falta o apoio de fundações
culturais de vários países europeus e americanos, como a Bloomberg
Philanthropies (criada pelo conhecido político e magnata norte-ame-
ricano Michael Bloomberg, célebre pela “lantrópica” verba destinada
a políticas pró-aborto em todo o mundo). A República Argentina da
presidente Cristina Kirchner também colaborou com o caixa. E, no
Brasil, vale a pena mencionar a participação do BNDES, do Ministério
das Relações Exteriores e da mesma Petrobrás que nanciava o Teatro
Ocina do diretor Zé Celso.
A guERRA conTinuA
Há um ponto em comum, em todas essas manifestações anticató-
licas: seus autores estão convictos dos “erros de Deus”, ou, pelo menos, da
Igreja que pretendia falar em Seu nome. Tanto na PUC paulista, como na
catedral de Notre Dame e na Bienal do Masp, o principal alvo do escárnio
é a moral cristã, especicamente a questão da sexualidade.
Trata-se, no fundo, de uma atualização materialista do velho re-
púdio gnóstico ao Deus cristão, demiurgo impotente ou mal-intenciona-
do, responsável por uma criação defeituosa que seria preciso corrigir com a
ação humana. Já não creem nesse Deus no qual seus pais acreditavam (no
máximo, são deístas ou panteístas), e por isso aceitam todas as experiências
207
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
com a realidade, em especial com o corpo humano, objeto das mais diver-
sas intervenções, não só no sentido de seu aperfeiçoamento, como de sua
recriação (alterações de sexo, novas técnicas reprodutivas etc.). É a reencar-
nação do gnosticismo dos primeiros séculos do cristianismo, arqui-inimigo
dos católicos, segundo o qual o mundo é essencialmente defeituoso e malé-
volo, necessitando de reconstrução estrutural (GÓMEZ, 2006).
Não é improvável que o diretor Zé Celso já soubesse, à época da
performance na PUC, de um espetáculo encenado em Roma desde janeiro
de 2012, Sul concetto di volto nel glio di Dio, escrito e dirigido por Romeo
Castellucci, montado pela conhecida companhia teatral de vanguarda
Societas Raaello Sanzio. O espetáculo tinha duas cenas. Na primeira, um
lho cuidava do pai idoso com incontinência fecal, trocando-lhe repetida-
mente as fraldas geriátricas e limpando o chão.
Era claro o propósito: sugerir que a obra da Criação era intrin-
secamente defeituosa. Na segunda, o rosto de Jesus, reproduzido de uma
obra de Antonello de Messina, pintor italiano de Quatrocentos, era am-
pliado e estampado no fundo do palco, sobre o qual moleques em idade
escolar arremessavam objetos que iam tirando da maleta escolar (inspirada
provavelmente na malhação do Judas). Era, numa curiosa inversão, a ma-
lhação do próprio Cristo, o Autor da miserável condição humana mostra-
da na primeira cena.
Figura 4: Apedrejamento de Cristo em espetáculo teatral
208
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Poucos meses depois da encenação na PUC e da invasão de Notre
Dame, outro templo católico era objeto dessas incursões espalhafatosas,
sempre promovidas por militantes pró-aborto em coligação com a causa
gay. Era a vez, então, da Catedral Metropolitana, em Santiago do Chile. O
fato se deu em vinte e cinco de julho de 2013, numa data escolhida a dedo:
dia da Festa do apóstolo São Tiago, padroeiro da capital chilena. O vídeo,
no youtube, mostra bem o que ocorreu: centenas de adeptos da nobre
causa entraram violentamente na igreja, em plena Missa, e, enquanto
urravam palavras de ordem, puseram-se a destruir confessionários, agredir
éis, espalhar lixo pelo chão e pichar altares com expressões blasfemas (do
tipo “me cago con Dios”).
Figura 5: Militantes pró-aborto profanam catedral chilena
Diante desses episódios de insulto ao Papa e à Igreja, é justo lem-
brar-se do célebre Ultraje de Agnani, ocorrido na Idade Média, em sete de
setembro de 1303. O episódio costuma ser visto como símbolo do enfra-
quecimento do poder pontifício (logo começaria o longo exílio dos Papas
em Avinhão), em período que o historiador belga Huizinga chamou, com
muita propriedade, de “outono da Idade Média”. O rei francês Felipe IV, o
Belo, em conito com Papa Bonifácio (era a época em que as nações euro-
peias ensaiavam sua autonomia em relação ao poder espiritual de Roma),
mandou mais de dois mil sodados invadirem a pequena cidade italiana
onde o Pontíce se refugiara. Enquanto os soldados pilhavam a catedral
pontifícia, dois homens da conança do rei invadiram os aposentos papais
e o intimaram a convocar um concílio em que seria julgado. Como o Papa
209
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
recusasse, foi esbofeteado por um dos emissários do Rei, um certo Sciarra
Colonna. Logo a população se voltou contra os agressores e libertou o já
velho Bonifácio que, muito abalado pelo fato, adoeceria e morreria um
mês depois (DANIEL-ROPS, 2012).
Nesses últimos setecentos anos, o poder político e, depois, es-
piritual do Papa, foram só decrescendo, até chegar ao nível em que hoje
se encontram. No entanto, sua palavra ainda tem peso e público — uma
pedra no meio do caminho globalista, atraindo sobre si a ação violenta e
o discurso hostil, tão óbvios nessas manifestações ditas artísticas, ou de
protesto, em que ca ostensiva a aliança entre forças militantes fartamente
alimentadas por ideias acadêmicas e dinheiro internacional, com a chance-
la das Organizações das Nações Unidas (PEETERS, 2014).
A mensagem contida nessas manifestações questionava, direta-
mente, dois dos três princípios inegociáveis de Papa Bento XVI, substi-
tuindo-os pela legalização do aborto (contra a defesa da vida em todas as
suas fases, da concepção à morte natural); e a defesa do casamento gay
(contra o matrimônio como união permanente entre um homem e uma
mulher). Indiretamente, voltavam-se também contra o terceiro: jamais po-
deriam aceitar o direito dos pais de decidir sobre a educação dos próprios
lhos, já que a educação familiar sempre estaria a reboque de alguma tra-
dição religiosa. O futuro, que o poder global deseja aos lhos e netos de
um Ocidente já quase pós-cristão, não convém que tenha vínculos com
nenhuma tradição patriarcal, regida por uma “moral de escravos”, confor-
me a lição nietzschiana.
Em suas viagens, Bento XVI — que não escondia a posição da
Igreja sobre sexo, casamento, aborto — sempre teve de suportar duras
manifestações de repúdio ao seu ponticado. Foi assim em Portugal, na
Inglaterra, na Espanha e na Alemanha, entre 2010 e 2011. Era cobrado,
sobretudo, pelos crimes de pedolia cometidos por membros do clero ca-
tólico, com argumento do tipo: “Com que direito a Igreja pontica sobre
sexo, quando há tanta roupa suja para lavar em casa?” De nada serviam
pesquisas sociológicas revelando, com a crueza dos números, que a quan-
tidade de padres pedólos era menor que a de professores de educação
física ou pastores protestantes, uma vez que a grande mídia internacional
já tinha decidido o contrário (INTROVIGNE, 2010).
210
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
umA guERRA PRinciPAlmEnTE culTuRAl
Até aqui, foram vistos acontecimentos que pertencem a uma ca-
tegoria especial de sacrilégio: o ultraje religioso, ideologicamente dirigido
e datado. Nisto, diferenciam-se das cenas habituais de vilipêndio religioso
que se repetem, desde sempre, nas capelas do mundo cristão: imagens des-
truídas, sacrários violados, hóstias consagradas roubadas para cultos sata-
nistas etc., atingindo não pessoas particulares, mas toda uma comunidade
dos éis, pois esse é o efeito de todo ultraje exercido sobre objetos aos quais
se imprimiu um valor simbólico.
É nesta segunda categoria que se enquadram os atos de iconoclas-
tia protestante, episódios atuais de uma guerra que começou há quinhentos
anos e é precursora dos movimentos revolucionários modernos, a começar
pela Revolução Francesa. De um deles, muitos brasileiros ainda certamen-
te se recordarão: foi quando, em 1995, no dia 12 de outubro — dia em
que o país comemora a Virgem Maria como padroeira do Brasil —, um
pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, um certo Sérgio von Helder,
desferiu pequenos chutes na imagem de Nossa Senhora (“um boneco desse
tão horrível, tão feio, tão desgraçado”, ia dizendo diante das câmeras, no
programa “Despertar da fé”, da TV Record). Depois de deixar indignada e
ofendida a maioria da população brasileira, o pastor foi condenado a dois
anos de prisão. Recorreu da sentença e, no frigir dos ovos, nada teve de
pagar (PASTOR..., 2014).
À época da agressão protestante, o presidente brasileiro era
Fernando Henrique Cardoso, célebre por não acreditar em Deus, mas que,
em nota à imprensa, declarava o seguinte:
O Brasil é um país democrático, conhecido pela tolerância religiosa,
e sua força está exatamente na capacidade de convivência com a di-
versidade. Qualquer manifestação de intolerância fere esse espírito de
convivência e, também, o espírito cristão. (CHUTE..., 1995).
São palavras justas, com as quais concordaria plenamente a
maioria dos brasileiros, com exceção de pessoas como o diretor Zé Celso,
os seus atores, o público de alunos que os aplaudiam na PUC, os organi-
zadores e artistas da 31ª Bienal. Teriam escarnecido do político tucano,
211
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
assim como é provável, também, que este ironizasse a performance da
PUC e as instalações do MASP: representam duas maneiras distintas de
viver a mesma causa.
No entanto, o político que as pronunciou é um sociólogo que
nunca deixou de ser marxista; e que, como os socialistas fabianos e grams-
cianos, cona em métodos mais sagazes que os estalinistas ou anarquistas
para realizar a doutrina de Marx: voltam a trilhar caminhos políticos con-
vencionais, enquanto vão realizando discretamente a modicação cultural
das massas. Têm, sobretudo, muita paciência, ao contrário da esquerda
sindicalista latino-americana, com a qual parecem ter anidades os prota-
gonistas da agressão na PUC e no MASP.
Esses inimigos ruidosos da civilização ocidental serão realmente
os mais temíveis? Atos de guerrilha cultural, como os atrás narrados, po-
dem ter o seu efeito aqui ou ali, junto a públicos restritos. Indivíduos que
pensam como o diretor Zé Celso, os organizadores da 31ª Bienal ou as me-
ninas do Femen sempre terão quem nancie com soldo generoso os seus
projetos, na esteira das ideologias gestadas nos últimos séculos. Mas não
são, seguramente, os agentes mais temíveis da guerra cultural. Fernando
Henrique Cardoso — que sempre preferiu caminhar no sentido contrário
aos três princípios inegociáveis de Papa Ratzinger — é o típico represen-
tante de uma esquerda muito mais preocupante para os que defendem a
vida da concepção à morte natural, o matrimônio como união permanente
entre um homem e uma mulher, o direito dos pais de decidir sobre a edu-
cação dos próprios lhos.
Agressões espalhafatosas contra a Igreja não passam de ponta de
um iceberg innitamente maior, invisível a olho nu, em cujo seio se pro-
cessam mudanças sutis e milimétricas, feitas na calada da noite, operadas
por agentes estrategicamente espalhados pelos postos-chaves do campo de
batalha cultural: organizações internacionais, governos, empresas, escolas,
serviços sociais, mídia, religião, e, last but not least, o sistema judiciário,
que não poderia ser deixado de fora do projeto de reordenação mundial
(quando o Teatro Ocina foi acionado, na Justiça, pelo ato de escárnio e
vilipêndio público cometido na PUC de São Paulo, o juiz responsável pelo
caso arquivou-o em nome da “liberdade de expressão” e do “estado laico”).
212
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Já tem pouca valia as palavras sobre tolerância presentes na
Constituição brasileira, “promulgada sob a proteção de Deus”. A palavra
“Deus” lá se encontra, logo no “Preâmbulo”; anal, a maioria quase ab-
soluta dos brasileiros era composta de católicos e evangélicos, naquele já
distante ano de 1988. O Brasil — insistia a Carta Magna —, possuía um
Estado Democrático, destinado
[...] a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liber-
dade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na or-
dem interna e internacional, com a solução pacíca das controvérsias.
(BRASIL, 1988).
Se era uma Constituição “promulgada sob a proteção de Deus
— e destinada, ao menos teoricamente, a assegurar aos brasileiros “di-
reitos sociais e individuais”, “liberdade”, uma “sociedade fraterna, plu-
ralista e sem preconceitos” —, não faria sentido se não defendesse tam-
bém o universal direito à religião. Sem ser um Estado confessional, o
inciso VI, do Art. 5º, refere-se, no entanto, à “[...] inviolabilidade da
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais
de culto e a suas liturgias.
O inciso VII, do mesmo artigo 5º, estabelece que “[...] ninguém
será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
losóca ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a
todos imposta.” Ou seja, nenhuma crença religiosa, ou convicção losóca
e política, podem comprometer o funcionamento do sistema democrático
como um todo, defendido pela “magna carta”.
Belas e boas palavras, mas já faz tempo que não funcionam. O si-
lencioso cerco de Jericó do globalismo, empreendido pelo poder judiciário,
o sistema educacional, a grande mídia, as instituições políticas e as próprias
religiões, tem um objetivo bem preciso: promover uma ambiciosa obra de
engenharia social que substitua hábitos, costumes e, sobretudo, a nossa
linguagem de cada dia. São transformações estruturais que estão recriando
o ser humano a partir de fantasias “disruptivas”, tendo como resultado um
213
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
estranho homem novo, desligado de suas raízes greco-latino-judaico-cris-
tãs, impotente para reagir aos planos de remodelação substancial empre-
endidos por essa espécie de junta planetária — composta de políticos, -
nancistas, intelectuais e agentes espalhados pelo mundo —, que move céus
e terra para ampliar, cada vez mais, o grande poder que já tem em mãos.
Papa Bento XVI condensou admiravelmente, na fórmula breve
dos “princípios inegociáveis”, o objeto dessa contenda planetária, dos quais
— insistia o Pontíce — o Ocidente não pode abrir mão, sob pena de
cometer suicídio civilizacional:
1)
defesa da vida em todas as suas fases, da
concepção à morte natural; 2) casamento como união permanente entre
um homem e uma mulher; 3) direito dos pais de decidir sobre a educação
dos próprios lhos.
Os inimigos dos três princípios contam com muitas entidades e
organizações internacionais, porém nenhuma delas com mais poder do que
as abrigadas pela ONU. O já mencionado Padre Michel Schooyans revela,
em obra bem documentada (SCHOOYANS, 2000), como a Organização
das Nações Unidas foi completamente reestruturada, a partir dos anos ses-
senta. É com espanto que se descobre uma ONU bem diferente da que se
costumava ver — uma espécie de tia bonachona, especializada em botar
panos quentes em conitos internacionais, estimulando a paz e a seguran-
ça do mundo. Este foi o motivo de sua criação, em 1945: aperfeiçoar as
relações entre os povos. Na verdade, seus órgãos — Unicef, Unesco, OMS,
OMC, IPCC etc. — passaram a funcionar como instrumentos a serviço
da criação de um “governo mundial”, pós ou supranacional, planejado por
pessoas ligadas à elite nanceira, empresarial e política, espalhadas pelas
Américas, Europa e parte da Ásia. Para implantar esse macropoder em ní-
vel mundial — na “aldeia global”, para usar a expressão famosa do profes-
sor canadense Marshall McLuhan —, alguns organismos foram criados ou
reciclados, como o CFR americano (Conselho de Relações Internacionais),
a Comissão Trilateral, o Clube Bilderberg, a OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Económico). Foi a partir dos anos noven-
ta que o novo perl da ONU se delinearia com mais clareza: defesa de uma
economia sustentável, disseminação do holismo panteísta (que concebe o
homem como um acontecimento trivial na evolução do universo), redução
da natalidade, políticas de legalização do aborto e de formas alternativas de
214
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
casamento. O livro termina com o confronto dessa postura — oposta ao
conceito cristão de sobrevivência espiritual — e a tradicionalmente defen-
dida pela Igreja Católica, evidenciando-se as razões pelas quais Roma não
poderia caminhar confortavelmente ao lado da nova ONU.
A pesquisa do padre Schooyans sobre a revolução cultural planetária
se completaria com um trabalho da jornalista e professora belga Marguerite A.
Peeters, publicado sete anos mais tarde: Marion-ética, los expertos de la ONU
imponem su ley (PEETERS, 2007). O livro de Marguerite Peeters, que ensina
na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, focaliza mais especicamente
os três princípios de Bento XVI (que não representam opinião particular de
um Papa, mas verdade defendida desde sempre pelo cristianismo católico), e as
ações realizadas em nível mundial para afrontá-los, através da revolução femi-
nista, sexual e cultural. Descreve a nova ética que deve ser imposta ao mundo
(a “ideologia dos direitos humanos”) e identica seus artíces, com as técnicas
e estratégias utilizadas em sua implantação. Revela, sobretudo, o incansável
trabalho realizado no campo das religiões pelos “agentes de transformação”,
que passaram da confrontação direta e agressiva — como as narradas anterior-
mente —, a formas mais inteligentes de assédio, ocultos sob a aparência de co-
laborações e alianças. Sem negar a importância das tradições e ritos religiosos,
fragmentam astutamente, “por dentro”, a unidade do corpo eclesial e dos éis,
que são levados a reivindicar seus direitos sexuais e reprodutivos em nome de
sua própria tradição religiosa. Estimulam, nos teólogos, que busquem em seus
próprios textos sagrados argumentos que apoiem o pensamento globalista, e o
trabalho estará perto do sucesso quando conseguirem transformar a “nova ética
pós-moderna” em dever religioso...
O historiador inglês Arnold Toynbee acreditava que, pelo andar
da carruagem da História, seria inevitável um governo mundial, restan-
do saber se seria democrático ou totalitário. Se depender das agências da
ONU, do poderoso nanciamento internacional e dos métodos postos em
ação, estaria seguramente mais perto do segundo tipo. Será o totalitarismo
doloroso prometido por George Orwell, projetado com base nas experiên-
cias soviéticas que o escritor já conhecia? Será o totalitarismo hedonista de
Aldous Huxley, expresso no romance Admirável mundo novo e outras obras
do autor, no qual seria permitido às pessoas se divertirem tanto, que nem
identicariam como opressora a força que os dominasse?
215
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Até agora, as mudanças revolucionárias das últimas décadas —
provocadas pelos inimigos dos três princípios inegociáveis do Papa Bento
XVI — só tem resultado em
[...] fragmentação familiar, social e intergeracional; solidão e abandono
dos velhos; carências e feridas afetivas de crianças que vivem em famí-
lias monoparentais ou reconstituídas; aumento das depressões; deses-
truturação antropológica; fracassos escolares; desorientação prossional;
aumento dos suicídios, do desespero e da sensação de insegurança de
muitos jovens, que se refugiam na droga, na violência, nas seitas e no sa-
tanismo; perda das tradições culturais e da fé. (PEETERS, 2007, p. 17).
Os efeitos são de uma guerra como jamais se viu antes: uma guer-
ra cultural que não destrói ou aprisiona somente os corpos, mas sobretudo
as mentes. Que remédio poderia curar tantos ferimentos provocados no
tecido social e humano, causados pela obstinada negação das “coisas per-
manentes” (T. S. Eliot) que se encontra no núcleo do projeto de uma nova
ordem planetária? Quantas gerações serão sacricadas, antes que o mundo
volte a compreender que a vida deve ser defendida em todas as suas etapas,
o casamento é união permanente entre um homem e uma mulher, e os pais
— não o Estado, não o governo mundial — têm todo o direito de decidir
sobre a educação dos próprios lhos?
REfERênciAs
BOCA NO MUNDO: querem criminalizar a liberdade total. Disponível em: <https://
blogdozecelso.wordpress.com/2013/06/06/561/>. Acesso em: 31 jul. 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Casa Civil, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 31 ago. 2017.
CHUTE na imagem da padroeira do Brasil choca país e é reprovado por religiosos.
O Globo, p. 1, 14 out. 1995. Postagem no acervo digital do Jornal O Globo em 9 jan.
2015. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/chute-na-imagem-
da-padroeira-do-brasil-choca-pais-e-reprovado-por-religiosos-17738478>. Acesso em:
30 ago. 2017.
DANIEL-ROPS, H. A Igreja das catedrais e das cruzadas. 2. ed. Tradução Emérico da
Gama. São Paulo: Quadrante, 2012.
216
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
DECAPITAÇÃO do Papa na PUC. 25 dez. 2012. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=rhxZupJ08Z8>. Acesso em: 31 ago. 2017.
ERRAR DE DEUS. Disponível em: <https://errardedios.org/errar-de-deus/>. Acesso
em: 31 ago. 2017.
GÓMEZ, M. G. La gnosis y sus rebrotes en nuestros días. Burgense, Collectanea
Scientica, Burgos, v. 47, n. 1, p. 71-130, 2006.
INTRODUÇÃO. In: BIENAL, 31., 2014, São Paulo. Data provável do texto [2014?].
Disponível em: <http://www.31bienal.org.br/pt/information/754>. Acesso em: 31 ago.
2017.
INTROVIGNE, M. Preti pedoli: la vergogna, il dolore e la verità sul’attacco a
Benedetto XVI. Milão: San Paolo, 2010.
KREEFT, P. Como vencer a guerra cultural. Campinas: Ecclesiae, 2011.
LES FEMEN à Notre-Dame pour fêter le départ du pape. 12 fev. 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=01NWMYqU7Ak>. Acesso em: 31 ago. 2017.
NOTÍCIAS GLOBALES. Disponível em: <http://www.noticiasglobales.org/
comunicaciones.asp>. Acesso em: 30 ago. 2017.
PASTOR chuta a imagem de Nossa Senhora. 21 dez. 2014. Vídeo extraído do Jornal
Nacional da Rede Globo de Televisão. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=V1L_xYxCOiI>. Acesso em: 30 ago. 2017.
PEETERS, M. A. Marion-ética, los expertos de la ONU imponem su ley. Madrid:
Rialp, 2007.
PEETERS, M. A. Il gender: una questione politica e culturale. Milão: Edizioni San
Paolo, 2014.
RATZINGER, J. Disponível em: <http://www.vatican.va/gpII/documents/homily-pro-
eligendo-pontice_20050418_po.html>. Acesso em: 11 ago. 2017.
SANAHUJA, J. C. Poder global e religião universal. Tradução Lyège Carvalho.
Campinas: Ecclesiae, 2012.
SCHOOYANS, M. La face cachée de l’ONU. Paris: Le Serment, 2000.
SCHOOYANS, M. Le terrorisme à visage humain. Paris: François-Xavier de
Guibert, 2008.
SEGUNDA Carta de São Pedro. In: BÍBLIA Sagrada. 11. ed. São Paulo: Ed. Ave Maria,
2014. 2Pd 3, 3.
217
D ,  
 : O   

José Geraldo Alberto Bertoncini Poker
A pretexto de uma introdução, explica-se ao leitor que o ar-
tigo ora apresentado pretende abordar a conexão entre Paz e Direitos
Humanos considerando a condição histórica a que estes direitos estão
condicionados, na regulação de relações em âmbitos locais, regionais,
nacionais e internacionais.
Quando se menciona sua condição histórica, isto implica ressal-
tar na argumentação as maneiras pelas quais os Direitos Humanos não se
restringem à Declaração de 1948. Mais do que isto, os Direitos Humanos
devem ser tratados como uma peça normativa que continua em processo
de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que experimenta a efetivação,
como qualquer peça do direito racional. Este processo é impulsionado por
alguns fatores, dentre os quais se cita as exigências decorrentes de sua pró-
pria racionalidade ético-normativa, que demanda permanentemente aper-
feiçoamentos lógicos visando identicar e eliminar eventuais contradições,
incoerências e lacunas na composição, de modo a permitir a expansão prá-
tica dos princípios constitutivos, o que lhe permite abranger, inserir e regu-
lar uma quantidade gradativamente maior de relações sociais.
218
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Apresentar os Direitos Humanos na condição de ser um produto
resultante da experiência existencial humana, também signica considerar
a conexão da normatividade com práticas sociais aparentemente estranhas,
como é o caso de observar a possível convergência entre o processo de
desenvolvimento do capitalismo global e a construção da sustentação es-
truturante que lhe dá suporte, vale dizer a organização estatal-burocrática
da sociedade, que é necessária para a implementação de relações sociais
orientadas e reguladas pela racionalidade típica do direito racional. Esta
é a pré-condição para a armação e efetivação dos Direitos Humanos em
qualquer lugar do planeta.
Por m, destaca-se no processo de desenvolvimento dos Direitos
Humanos, os desdobramentos e as conseqüências de sua apropriação na
orientação de lutas políticas, sobretudo no que se refere às formas pelas
quais estes direitos inuenciam e organizam movimentos sociais. A utiliza-
ção deles simultaneamente como linguagem, instrumento e legitimação de
formulação de demandas retira os Direitos Humanos da condição abstrata
e conceitual, típica do tratamento acadêmico, para colocá-los frente aos
problemas vividos por pessoas concretas no cotidiano.
Por causa disto, os movimentos sociais testam os limites práti-
cos dos Direitos Humanos em equacionar soluções pacícas para coni-
tos decorrentes do choque de interesses ou de tensões inter-individuais e
inter-grupais diversas, provocadas pela dinâmica da vida social. Ao ins-
trumentalizarem os Direitos Humanos, portanto, os movimentos sociais
contribuem criticamente para o aperfeiçoamento deles, à medida que sua
utilização prática somente é possível caso haja a atualização permanente
dos princípios ético-normativos, mediante os quais encontram sustentação
lógica e evocam legitimidade.
A ação dos movimentos sociais pode ser apontada como um fator
de expansão das fronteiras internas e externas dos Direitos Humanos, à
medida que os movimentos encontram formas criativas, inovadoras, de
empregar estas referências na legitimação de demandas e na regulação de
relações originalmente não previstas, como são os casos das reivindicações
presentes nas lutas em torno da sexualidade, etnicidade, relações de gênero,
religiosidades, ambientalismo, entre outras.
219
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Feitas estas ponderações iniciais, passa-se à demonstração do ra-
ciocínio, na forma da argumentação composta por quatro partes, apresen-
tada a seguir.
A TEndênciA PARA A PAz E os diREiTos humAnos
Em contextos de adversidades, em que conitos armados e ten-
sões diversas marcam a política na amplitude de sua abrangência, seja ela
local, regional, nacional e internacional, os indícios empíricos todos pare-
cem apontar e corroborar a armação de que discorrer sobre a Paz nestas
circunstâncias soa como ingenuidade ou falta de conhecimento.
No entanto, acompanhando a argumentação de Höe (2005),
decorrente de sua interpretação da losoa kantiana, a Paz é a tendência
predominante em todas as situações de convivência humana, seja no âm-
bito da ordem externa ou da ordem interna, por mais que as evidências
provenientes da vida prática indiquem o contrário.
A razão desta proposição pode ser encontrada em obras especí-
cas da losoa kantiana. Pode-se começar citando o raciocínio ao mesmo
tempo compacto e complexo desenvolvido por Kant em Ideia de uma his-
tória universal com um propósito cosmopolita, escrito em 1784, obra em que
se encontra a vinculação entre a Paz e a condição necessária para desenvol-
vimento da humanidade, em conformidade com as disposições próprias
da espécie. A Paz a que se referiu Kant, é uma conquista decorrente da
observância de leis criadas pelo direito racional administrado pelo Estado,
de modo que torne possível a universalização simultânea do exercício da li-
berdade por cada indivíduo. Na proposição kantiana, como indica o título
do ensaio acima referido, um projeto de Paz deve começar por considerar
as disposições internas e inerentes ao exercício da liberdade vinculado à
condição da individualidade, passando pelo condicionamento da realiza-
ção do potencial individual ao desenvolvimento da humanidade, o que
seria alcançado mediante o aperfeiçoamento do Direito e do Estado para
ultrapassarem os limites da soberania territorial e alcançarem o domínio da
regulação das relações entre seres humanos numa dimensão cosmopolita.
220
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
A despeito de em Idéia de uma história universal... a argumen-
tação de Kant sobre a Paz e suas condicionantes ser convincente, segun-
do Höe, é em A Paz perpétua, escrito entre os anos 1795 e 1796, que
Kant demonstrou de fato sua teoria, inaugurando uma losoa da Paz
dentro da losoa política. Para Höe (2005, p. 302), “Kant entendia
a Paz como um motivo fundamental ligado não apenas ao pensamento
político, mas ao pensamento como um todo.” Nesse sentido, Kant não
pretendeu dar novos revestimentos a guerra. Ao contrário, Kant ree-
tiu “[...] como seria possível transformar as guerras – anal de contas,
elas ainda podem acontecer –, permitindo que o objetivo principal, a
paz, permaneça plausível, [...]” de maneira que se tornasse possível “[...]
transformar a guerra no interesse da paz, reformar a guerra em função da
paz.” (HÖFFE, 2005, p. 302–303)
Mais ainda, Höe argumenta que a originalidade da reexão so-
bre a Paz, tal como proposta no projeto de Kant, também é marcada pela
rejeição do modelo teórico de Paz inspirado nas leis da Física, predomi-
nantes na Filosoa Política da época, modelo este que em sendo aplicado,
transforma a Paz numa situação fática praticamente impossível de ocorrer,
considerando a impossibilidade concreta e objetiva de que todos os atores
num plano de trocas permanentes entre si, sejam indivíduos ou Estados,
relacionem-se sustentados por um respeito mútuo e por condições de reci-
procidade resultantes de uma rigorosa equivalência de forças a ser mantida
entre eles. O projeto de Paz kantiano encontra sua originalidade, de acordo
com Höe (2005, p. 302), no ponto em que
Muitos dos projetos de Paz anteriores a Kant viram-se marcados pela
idéia de um equilíbrio de poder (na Europa). E os mais espertos den-
tre eles ocultavam seu interesse por hegemonia sob o manto de uma
suposta responsabilidade pelo equilíbrio, como na obra Memories dês
sages ET royales (1635), de Sully. Através de sua ordem de Paz como
ordem jurídica, Kant superou tanto as idéias sobre o equilíbrio, contra-
pondo-lhes um imperativo de Paz moral e incondicionalmente válido,
um imperativo categórico de Paz.
A armação sobre a originalidade da proposta de interpretar a Paz
contida na obra kantiana pode ser melhor observada quando comparada a
outras losoas políticas precedentes.
221
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Nesta linha, pode-se comparar a proposta kantiana com a pers-
pectiva de omas Hobbes, contida no Leviatã (HOBBES, 1988). Nesta
obra, a demonstração hobbesiana deixa claro que a Paz é algo impossível
no estado de natureza, que não é algo espontâneo na vida de seres hu-
manos, portanto. Caso os indivíduos vivam entregues às suas paixões e a
liberdade de exercê-las, o que se tem como resultado provável é a guerra de
todos contra todos.
Para Hobbes, a Paz é uma condição articial de vida social, con-
quistada pelo uso da razão, evocada pelo medo da morte. A razão leva os
seres humanos a calcular o custo da liberdade, e diante da insegurança per-
manente que a liberdade proporciona à existência individual, indivíduos
escolhem renunciar a liberdade e tornam-se cidadãos à medida que se sub-
metem ao domínio de um soberano, que dita as leis necessárias a conduzir
as ações individuais para convergi-las ao estabelecimento da ordem social,
o que passa a ser sinônimo de Paz no raciocínio hobbesiano. A situação de
ordem social é uma situação na qual não deve haver conitos de quaisquer
naturezas; os conitos na interpretação hobbesiana sinalizam a desordem,
vale dizer, a desobediência às leis. Nesta concepção, os cidadãos são antes
de tudo sujeitos de deveres; os direitos são concessões do soberano para
premiar a obediência às leis.
Desta forma, a Paz na forma de ordem social encontra-se vin-
culada a existência de um soberano, que domina mediante leis impostas
para restrição da liberdade individual, leis estas cuja legitimidade provém,
em última instância, do consentimento individual feito mediante o uso
da racionalidade evocada pelo medo da morte, originado na insegurança
decorrente da situação de liberdade de indivíduos que são maus por natu-
reza, e que por isso podem vir a se constituírem em ameaças permanentes
uns aos outros.
Por conseguinte, a proposta de Paz na perspectiva de Hobbes
pode ser enunciada nesta lei geral: a ordem social decorre da obediência
ao soberano que resulta da renúncia individual a liberdade que gera medo;
quanto mais sentirem medo, mais obedientes e dependentes de um sobera-
no se tornarão os indivíduos numa situação de relação. Não há, portanto,
Paz possível na ausência de um soberano que imponha leis legitimadas pelo
medo a indivíduos, que renunciam a liberdade e prometem submissão em
222
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
troca de segurança. E este é um dos argumentos mais empregados para jus-
ticar a tendência da guerra na ordem internacional, porquanto não haver
um governo soberano que seja capaz de estabelecer leis internacionais e as-
sim submeter todos os governos estatais existentes sobre o planeta obedecer
a um único poder centralizado.
Haveria muito o que se diferenciar e distanciar a proposta de
ordenamento criada por Hobbes da losoa da Paz, tal como proposta por
Kant. Para não recorrer a uma argumentação demasiadamente extensa,
grosso modo a principal diferença e distância conceitual entre eles consiste
no fato de que Kant concilia Paz e liberdade, enquanto que para Hobbes a
ordem social depende diretamente da renuncia à liberdade.
Esta comparação da proposta kantiana com aquela elaborada
por Hobbes é necessária para que se possa apresentar a concepção de Paz
a ser utilizada doravante nesta demonstração. Defende-se aqui que a Paz
não se trata de uma situação decorrente da ausência de conitos pela obe-
diência às leis ditadas pelo soberano. Ao contrário, a Paz deve referir-se
a uma determinada situação de convivência entre atores sociais no plano
nacional e internacional, na qual as relações entre eles sejam reguladas
por leis do direito racional, elaboradas a partir do principio kantiano da
dignidade, com o objetivo de promover justiça social e emancipação a
todos os concernidos.
Tal como proposta, a concepção de Paz aqui apresentada traz
consigo exigências práticas e conceituais que se fundem ou se complemen-
tam com os predicados com os quais se pode também compor a concepção
de democracia. A despeito das diferenças históricas e epistemológicas que
levam a diferentes denições de democracia, é possível identicar elemen-
tos comuns entre elas e a maneira pela qual, de um jeito ou outro, a Paz é
apresentada simultaneamente como condição, contingência e decorrência
de qualquer prática democrática. Esta vinculação se observa, sobretudo nas
perspectivas de Touraine (1996), Dalh (2001), Habermas (1997, 2002a),
Höe (2005) e Benhabib (2010a), apenas para citar alguns exemplos.
Desta forma, com inspiração direta no raciocínio kantiano ex-
plicitado logo acima, passa-se ao segundo ponto desta parte, no qual se
toma os Direitos Humanos como os melhores princípios para servirem de
223
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
diretrizes na elaboração de um sistema de direitos que permite a regulação
para a Paz e, ao mesmo tempo, para a democracia, nas relações entre atores
individuais, grupais, nacionais e internacionais.
Há varias razões para justicar esta proposição. A primeira delas
se refere ao fato de os Direitos Humanos serem uma conquista histórica do
pós-guerra, e proporcionarem parâmetros normativos de justiça social e de
Paz, estabelecidos em conformidade com o princípio moral da dignidade,
tal como proposto por Kant.
Em A fundamentação da metafísica dos costumes, Kant (2004)
demonstrou a vinculação entre moralidade, razão e liberdade na exis-
tência humana, de maneira que, qualquer ser humano carrega consigo
o potencial de agir historicamente, e por isso deve ser respeitado em
sua dignidade, característica esta que se refere ao fato de que qualquer
indivíduo humano deve ser considerado um ser que possui um m em si
mesmo, e só pode ser tratado desta forma, não devendo jamais tornar-se
meio ou instrumento para satisfação de interesses ou vontades outras que
não sejam a sua própria.
Segundo se pode depreender da leitura de obras de autores como
Arendt (1981), Habermas (2001), Lafer (2006) e Benhabib (2008), a con-
dição da dignidade de todo ser humano é que consubstancia o princípio
moral que fundamenta os Direitos Humanos, qual seja o princípio de que
toda pessoa, pelo simples fato de existir, tem o direito a ter direitos.
os diREiTos humAnos, A RAcionAlizAção E o PRoblEmA dAs
TRAdiçõEs
Em A era dos direitos, logo na introdução, Norberto Bobbio
(1992) observou que os Direitos Humanos são históricos, portanto locali-
zados no contexto do desenvolvimento da modernidade ocidental. Sendo
históricos, quer dizer, não naturais, os Direitos Humanos, como forma
mais avançada do direito racional, estão condicionados a um permanente
processo de aperfeiçoamento lógico, decorrente de fatores diversos, dentre
eles o próprio desenvolvimento da racionalidade interna do direito, sobre-
tudo da expansão dos princípios da igualdade, liberdade e dignidade.
224
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Neste caso especíco, o desenvolvimento do direito, e dos Direitos
Humanos, mediante o aperfeiçoamento de sua racionalidade interna, se
verica no esforço crítico de identicação e superação de contradições nor-
mativas, em grande medida resultantes da permanência de irracionalidades
provenientes de tradições, que ainda mantém força de regulação de rela-
ções na vida social de pessoas dentro de contextos especícos.
Conforme demonstram Weber (2004) e Giddens (2001), as tra-
dições, por serem regulações irracionais de relações, contêm distorções na
caracterização dos atores sociais que resultam em assimetrias. Tradições se
constituem e, ao mesmo tempo, provocam quebras de igualdade, resultan-
do em situações de discriminação e inferiorização de tipos de pessoas, e
assim condenam previamente à subalternidade atores sociais que carregam
consigo determinadas marcas características, como gênero, origem, cor de
pele, orientação sexual, altura, peso etc.
Num sistema de relações regulado por tradições, determinadas
características pessoais são ajuizadas a partir de preconceitos, de mecanis-
mos de classicação imediata e aparente do mundo objetivo, presentes nos
sistemas simbólicos que constituem qualquer cultura, e é nisto que reside
o elemento de irracionalidade das tradições contra o qual lutam o direito
racional e os Direitos Humanos. Via de regra, mas com exceções, tradições
não são construções normativas sustentadas por princípios do direito ra-
cional, e não reconhecem a dignidade.
Por não reconhecerem a dignidade, tradições se tornam regu-
lações de relações sociais a serem combatidas, caso se pretenda orientar
uma convivência por meio de normas derivadas do direito e dos Direitos
Humanos. A efetivação dos Direitos Humanos encontra-se assim condi-
cionada a processos de desenvolvimento da sociedade, no sentido de haver
mudanças sociais provocadas pela intervenção do Estado, destinadas a for-
çar legitimamente a racionalização de determinadas relações sociais, quais
sejam aquelas orientadas por tradições que contrariam os princípios do
direito racional e dos Direitos Humanos.
O combate do Estado às tradições que se mantém as custas de
assimetrias e provocam e inferiorizações de determinados tipos de pessoas,
não é uma tarefa fácil para o estabelecimento de relações reguladas pelo
225
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
direito racional e pelos Direitos Humanos. Isto porque o direito à própria
cultura, portanto, à manutenção de tradições, também faz parte do rol dos
Direitos Humanos.
Neste caso, uma problemática se abre quando ocorre a tensão en-
tre a manutenção do direito à tradição e a defesa da integridade ambiental,
ela também um dos direitos consagrados na Declaração de 1948. Nota-se
que poder usufruir de um ambiente equilibrado e mantido por meio de
práticas sustentadas também é um direito humano, e a colisão entre ambos
os direitos resulta em conitos de difícil superação, como demonstra o epi-
sódio analisado por Randeria (2003, p. 465), que expressa um caso típico,
ocorrido na Índia: “Enquanto os ambientalistas defendem a proteção da
vida selvagem na oresta Gir, as ONGs de defesa dos direitos humanos
têm estado preocupadas em assegurar o modo de vida e a continuidade
cultural da comunidade pastoril da área.
Toma-se ainda como exemplo a controvérsia criada em torno das
demarcações de terras indígenas e quilombolas no Brasil, em que de um
lado, há o reconhecimento do direito ao território tradicional concedido
aos povos indígenas e quilombolas, versus o direito à propriedade de agri-
cultores empresariais, também um direito presente na Declaração de 1948,
como cou claro nos conitos pela demarcação da reserva Raposa-Serra do
Sol em Roraima, na argumentação constante da ação judicial envolvendo
Estado e produtores agrícolas, que começou em 2005 e foi concluída no
Supremo Tribunal Federal em 2007.
Defender a continuidade de tradições no contexto da arma-
ção da modernidade se torna ainda mais complicado quando se observa
a questão nesta perspectiva, ora apresentada. Na conhecida demonstra-
ção de Weber (2004), reforçada por Schluchter (1981), a legitimidade das
tradições advém da crença naquilo que parece ter existido desde sempre,
somada a uma carga afetiva que prende as pessoas a determinados procedi-
mentos, sentimentos, conhecimentos e valores, que se transformam histo-
ricamente em modelos de ação, dos quais não se conhece a origem e não se
questiona a respeito da ecácia deles na superação de problemas cotidianos
existentes em contextos sociais especícos.
226
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Mais ainda, continuando na companhia de Weber (2004) e
Schluchter (1981), acrescida de Giddens (2001), há que se considerar
que as tradições legitimam um tipo característico de dominação, na qual
a afetividade que liga um grupo de pessoas a determinados procedimen-
tos, conhecimentos, sentimentos e valores, também vincula afetivamente
as mesmas pessoas a alguém que exerce algum tipo de poder sobre elas, e,
portanto, usufrui vantagens na perpetuação das tradições dentro de um
grupo ou sociedade.
Seguindo a conhecida demonstração feita por Weber (2004), e
rearmada por Schluchter (1981), uma dominação tradicional se carac-
teriza por legitimar-se não apenas pela crença naquilo que supostamente
sempre existiu, como também pelo fato de que o poder é exercido de forma
personalizada e absoluta por quem domina. Em contextos assim, as regras
na relação entre dominantes e dominados são criadas e efetivadas caso a
caso, em conformidade com o grau de afetividade, de apreço ou desapre-
ço, que o dominante mantém com cada um dos dominados. As trocas de
favores e as dividas de gratidão são as marcas práticas que permitem carac-
terizar a forma do poder e as relações diversas, mantidas entre dominantes
e dominados num contexto tradicional, no qual não há direito, propria-
mente. Num contexto de dominação tradicional, o direito dos dominados
torna-se uma concessão decorrente da vontade dos dominantes, estando
condicionados à subjetividade deles, portanto.
Neste caso, há que se cuidar para não tomar as tradições na for-
ma reducionista, banalizada, designando-as como sinônimo de vigência de
costumes arraigados. As tradições são muito mais que isso: constituem-se
em referências simbólicas e modelos práticos altamente complexos, que
tornam possível legitimar situações de domínio pessoal e territorial surpre-
endentes, para dizer o mínimo.
Por tudo isso, é preciso considerar a existência de um duplo obs-
táculo a ser superado pelo poder do Estado no processo de efetivação de
normas do direito racional e dos Direitos Humanos na regulação de rela-
ções sociais, numa situação de dominação tradicional. De um lado, é preci-
so vencer a resistência de pessoas a abandonarem procedimentos, conheci-
mentos, sentimentos e valores com os quais mantém vínculo afetivo, e por
vezes conveniente, forçando-as a adotarem referências de conduta que lhes
227
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
são estranhas, porque são impessoais e legitimadas pela racionalidade do
princípio da dignidade. De outro lado, é preciso combater a legitimidade
do poder de dominantes, que usufruem vantagens, inclusive econômicas,
mediante a funcionalidade do vínculo afetivo com os quais se encontram
ligados a determinada população que lhes é submissa, numa dimensão ter-
ritorial demarcada.
Não obstante a resistência das pessoas em função de manter suas
tradições, há que se notar o considerável avanço no processo de efetivação
de normas de regulação de relações sustentadas pelo direito racional e pe-
los Direitos Humanos. Conforme aponta Habermas (2001), atualmente
quase todo o planeta é dividido territorialmente em países, demarcados
pela presença de Estados, constituídos por leis positivadas e instituições de
alguma forma inspiradas em preceitos do direito racional. Isto quer dizer
que, de alguma forma e em graus variados, estão presentes em quase todos
os cantos do planeta as condições necessárias para a efetivação dos Direitos
Humanos e do estabelecimento da democracia, mediante a racionalização
das relações sociais em determinadas dimensões da vida cotidiana.
diREiTo RAcionAl, cAPiTAlismo, EsTAdo E diREiTos humAnos
Muito embora o processo de desenvolvimento social e político, ne-
cessário à efetivação do direito racional que sustenta os Direitos Humanos,
possa parecer um horizonte ao menos utópico, pelo desao apontado logo
acima, há um fator de aceleração da racionalização das relações sociais que
não deve ser desprezado. O desenvolvimento do capitalismo e sua expansão
pode ser apontado seguramente como fatores causadores da implementa-
ção, em âmbito planetário, do modelo de dominação estatal-racional antes
apenas restrito ao ocidente. Isto porque, continuando ainda seguindo o ra-
ciocínio de Weber (2004), o desenvolvimento do capitalismo encontra-se
irremediavelmente condicionado ao desenvolvimento do direito racional e
sua efetivação numa sociedade, mediante a força do Estado.
Conforme demonstrou Weber, as exigências objetivas e subjetivas
para a existência e desenvolvimento do capitalismo são muitas, complexas,
especícas e sem precedentes na história da humanidade. As exigências
objetivas referem-se à pré-existência de um Estado, isto é, de um poder pu-
228
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
blico impessoal, exercido e legitimado por uma infra-estrutura constituída
por um sistema de leis positivadas, criadas mediante diretrizes racionais e
calculadas de forma a instituir e animar instituições, por sua vez responsá-
veis pela efetivação das leis necessárias a garantir que os atores sociais, todos
eles, possam atuar livremente no âmbito econômico, ter assegurado o di-
reito à propriedade privada, aos contratos, e assim cada pessoa poder viver
em conformidade com o que obtém de resultado com o próprio trabalho.
Por causa destas exigências, como também já havia demonstrado
Locke (1991) na fundamentação de sua teoria liberal, para Weber não há
capitalismo sem Paz, sem direito racional e sem burocracia estatal; tudo
isto é necessário para proporcionar a previsibilidade e a segurança jurídica
para que os atores econômicos possam planejar e executar suas ações den-
tro do mercado, e assim reproduzir o sistema, em toda complexidade de sua
consecução prática.
Observando nesta perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo
não está atrelado somente à incorporação de inovações tecnológicas prove-
nientes das descobertas cientícas. Por mais desenvolvido tecnologicamen-
te que venha a ser, a produção capitalista continuará sempre sendo tributá-
ria da existência de um Estado que consiga exercer de fato a soberania, quer
dizer, de uma burocracia estatal que tenha êxito em efetivar as leis que ga-
rantam os direitos fundamentais para a ocorrência da produção e das trocas
diversas que se realizam dentro do mercado. Portanto, o desenvolvimento
do capitalismo encontra-se sempre condicionado à elaboração e efetivação
de leis cada vez mais ecientes na regulação das trocas, em conformidade
com a lógica do sistema.
Quanto às exigências subjetivas do capitalismo, elas são igual-
mente complexas, mas menos diversas que as exigências objetivas. Segundo
Weber (2004) observou, tratam-se elas, grosso modo, de encontrar as con-
dições de legitimidade do domínio estatal, de forma a validar socialmente
o poder impessoal empregado pela burocracia na tarefa de administração
das leis e distribuição do direito.
Como observou Habermas no conhecido texto Tanner Lectures
(1997, p. 193), dedicado ao estudo da sociologia do direito de Weber, a
legitimidade numa dominação racional é altamente exigente em termos de
229
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
subjetividade, devido ao fato de que a validade da ordem se encontra con-
dicionada à crença na validade de leis provenientes de um processo legisla-
tivo, realizado por meio de relações políticas restritas ao interior do Estado.
Na interpretação de Habermas (1997), a principal questão le-
vantada por Weber sobre conexão entre direito, burocracia e dominação
racional pode ser expressada por meio da pergunta: como é possível a legiti-
midade por meio da legalidade? Esta questão para Weber é de fundamental
importância para caracterizar a dominação racional, tendo em vista que
esta forma de dominação é muito diferente da experiência personalizada de
domínio, tal como observada nas formas tradicional e carismática, em que
o poder e seu reconhecimento dependem de uma irracionalidade de fundo,
quer dizer, das características pessoais de alguém, o que torna a submissão
um ato afetivo.
A dominação racional depende do estabelecimento de uma re-
lação abstrata entre pessoas que é regulada por frases escritas, as leis; por
meio das leis, pessoas reconhecem a autoridade designada pelo Estado a
outras pessoas – a burocracia – para que exerçam um determinado poder na
intermediação de determinadas relações sociais. Para Weber (2004), não há
afetividade na relação das pessoas com as leis e com a burocracia, e é este
um dos fatores de impessoalidade que caracteriza a dominação como racio-
nal. Mas isto não signica que não haja um fundo de irracionalidade nesta
forma de dominação, que se encontra exatamente na crença que determi-
nadas pessoas, sob o domínio de um Estado, depositam num procedimento
circular e sem origem denida, isto é, na validade de leis que são criadas
porque obedecem a regulação de outras leis, e assim sucessivamente.
Nisto tudo, importa ressaltar que, desde se obedeça a regula-
ção do processo legislativo, por meio da política praticada no interior do
Estado, é possível aperfeiçoar as leis de forma a diminuir ou eliminar
as contradições nas relações sociais, notadamente aquelas reguladas por
elementos de afetividade, como ocorre com as tradições. E por ser o ca-
pitalismo um sistema econômico dependente do Estado e da burocracia,
é neste ponto que se pode defender, dentro de certos limites, a utilidade
funcional do capitalismo no aperfeiçoamento e efetivação dos Direitos
Humanos em todos os lugares do planeta em que o este modo de produ-
ção venha a ser instaurado.
230
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
movimEnTos sociAis E dEsEnvolvimEnTo dos diREiTos humAnos
Chega-se neste ponto ao momento adequado para nomear mais
um fator histórico no processo de produção e desenvolvimento dos Direitos
Humanos, qual seja o fator eminentemente político que desencadeia con-
frontos e conitos entre as forças sociais e seus interesses, presentes no
interior do Estado. Este fator é aquele proveniente das lutas que ocorrem
dentro da sociedade, especicamente os movimentos sociais em suas dife-
rentes modalidades, classicadas quanto à forma de atuação, abrangência e
reivindicação, o que não cabe esmiuçar aqui.
Para tratar da problemática dos movimentos sociais e de sua atu-
ação no processo de produção e desenvolvimento do direito e dos Direitos
Humanos, há que se reconhecer de início a existência de uma vasta lite-
ratura nas Ciências Sociais, especicamente dedicada ao tema. A pretexto
de oferecer uma localização conceitual, a análise realizada aqui tem como
base, principalmente, as obras de Habermas (1981), Gohn (1997), Alonso
(2009) e Poker e Arbarotti (2015).
Grosso modo, movimentos sociais em geral expressam a dinâmi-
ca da vida social, expondo a tensão provocada pela pretensão do direito
e a forma concreta das relações sociais que envolvem tipos especícos de
pessoas ou grupos em situações determinadas. Assim considerados, as de-
mandas dos movimentos podem sinalizar lutas pela resistência e defesa
de direitos já conquistados, exigindo do Estado a efetivação de leis, ou a
conquista de novos direitos mediante o aperfeiçoamento do ordenamento
jurídico. Em ambos os casos, os movimentos sociais são os fenômenos
que melhor indicam a inconformidade da sociedade diante da atuação do
poder público e da qualidade do direito garantido pelas leis existentes para
enfrentar e superar eventuais discriminações derivadas de tradições na re-
gulação de relações sociais.
A conitualidade exposta pelos movimentos, seja no sentido de
resistir ou de avançar o direito na regulação de relações sociais, deagra
processos políticos fundamentais na avaliação prática das garantias dos di-
reitos presentes num ordenamento jurídico, frente aos princípios ético-va-
lorativos que constituem a racionalidade própria da regulamentação, de
modo que há sempre um desfecho decorrente da ação de um movimento
231
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
social: ou provoca o esforço da sociedade pela manutenção do status quo
mediante a rearmação de valores, ou força o Estado a instituir novas leis
que garantam direitos necessários a proteger relações sociais emergentes,
diferentes e inovadoras num determinado contexto.
De qualquer forma que se realize, portanto, a conitualidade re-
sultante dos movimentos sociais provoca aprendizado na forma de desen-
volvimento moral e social nos lugares em que ocorre, incidindo sobre o
aperfeiçoamento do direito, com desdobramentos que impactam o saber
acadêmico-cientíco nas Ciências Sociais e áreas ans.
E isto também vale para caracterizar o processo de desenvolvi-
mento dos Direitos Humanos. Deve-se em muito à atuação de movimen-
tos sociais a observação de intelectuais acadêmicos sobre as contradições e
inconsistências na Declaração de 1948, sobretudo resultando na crítica que
se refere ao fato de que os direitos armados na Declaração para garantir a
liberdade de povos e pessoas, fossem evocados como justicativa para ins-
tituir relações internacionais destinadas a aumentar o poder das potencias
ocidentais, autorizando inclusive intervenções armadas e conitos bélicos.
Mais ainda, deve-se a atuação dos movimentos sociais a produ-
ção de uma crítica histórica dirigida à Declaração de 1948, que é aquela
formulada com base no relativismo, e se refere à condição dos Direitos
Humanos serem uma expressão de valores constitutivos da cultura oci-
dental moderna, capitalista e cristã. Por causa disto, pesa sobre a proposta
de Direitos Humanos contida na Declaração de 1948 o questionamento
da validade ética apoiada na pretensão de universalidade do modo de vida
ocidental, tal como analisa Boaventura de Souza Santos (2003). Nesse sen-
tido, os Direitos Humanos podem ser considerados como instrumentos de
propagação da cultura ocidental, como forma de poder brando, na concep-
ção de Nye Jr. (2004), reforçando a conquista e manutenção do domínio
do ocidente no planeta.
Ainda na esteira da tensão entre movimentos sociais e Direitos
Humanos, há que se mencionar o fato de a atuação dos movimentos ser
uma oportunidade de luta condicionada a existência de expectativas e
pretensões referentes ao direito, provenientes do conhecimento das prerro-
gativas contidas na Declaração de 1948, mediante as quais torna-se pos-
232
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
sível a determinadas pessoas ou grupos avaliar as relações sociais vividas
no cotidiano, podendo identicar nelas contradições; contradições estas
que, por sua vez, podem ser interpretadas como ofensas, resultando em
sentimentos de indignação diante do tratamento social a que estão sub-
metidas. Neste caso, conforme demonstrado em Alves, Poker e Ferreira
(2015), os Direitos Humanos tornam-se as referências conceituais, a lin-
guagem, por meio do que pessoas podem elaborar projetos de mudança
social e se mobilizarem para a luta política em confronto com outras
forças presentes dentro da sociedade.
Assim, as críticas práticas aos Direitos Humanos decorrem dos
próprios desdobramentos da efetivação deles nas sociedades constituídas
mediante a globalização e a modernidade reexiva, sociedades constituídas
de forma multicultural, nas quais os próprios Direitos Humanos provocam
conitos sociais e demandas pela inclusão. Isto somente pode ocorrer me-
diante o reconhecimento da sociedade e do Estado das peculiaridades exis-
tenciais que motivam a luta pela diferenciação legitima de modos de vida
e visões de mundo, num contexto de convivência intercultural. Segundo
aponta Habermas (2002a), as demandas por reconhecimento de peculiari-
dades existenciais, e que devem motivar políticas de inclusão, estão presen-
tes nos movimentos sociais de emancipação, que se formam em torno de
demandas pela igualdade, provenientes de etnias-tradições, gênero, sexua-
lidade, religiosidades, eticidades, entre outras possibilidades de armação
de peculiaridades existenciais de grupos e indivíduos.
Os conitos provocados pelos movimentos sociais num contexto
de sociedade multicultural apontam para mais uma direção no que tange
aos desaos a serem superados no processo de efetivação e desenvolvimento
histórico dos Direitos Humanos. Diante da complexidade da composição
ética-valorativa que anima visões de mundo e modos de vida discrepantes,
o que é inerente às sociedades multiculturais, a efetivação dos Direitos
Humanos encontra-se condicionada ao desenvolvimento racional de suas
próprias referências simbólicas, de maneira que possa se desvencilhar dos
valores tipicamente ocidentais constitutivos, para se tornar o princípio de
regulação em relações sociais entre pessoas-cidadãos de identidades discre-
pantes, constituídos por meio de subjetividades diversas.
233
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Desta forma, conforme a análise de Benhabib (2008), a efetivação
exige dos Direitos Humanos o aperfeiçoamento ético, lógico e normativo
de forma a se tornarem o instrumento prático, e não somente a linguagem,
que permite conciliar a universalização dos direitos com a diversidade, em
meio às muitas, ou quase innitas, possibilidades de diferenciação que po-
dem marcar a efetivação deles em cada contexto cotidiano.
Os movimentos sociais atuais demandam dos Direitos Humanos
a aquisição de uma capacidade plástica, de forma que contenham em si, e
ao mesmo tempo, a complexidade das lutas pelo reconhecimento, a ar-
mação de novos direitos e a garantia de direitos pré-existentes, de maneira
que orientem duplamente a atuação das forças sociais e a elaboração de
políticas públicas de inclusão pelo Estado.
Portanto, os movimentos sociais, na conitualidade que provo-
cam por conta de suas demandas, podem oferecer as pistas que ajudam a
superar a questão fundamental aberta no século XXI acerca da legitimidade
e da efetividade dos Direitos Humanos, qual seja a de conciliar os Direitos
Humanos da Declaração de 48 com o direito a ter direitos, o direito moral –
e universal – fundamental de todo ser humano, segundo Benhabib (2008).
considERAçõEs finAis
Diante de tudo o que se argumentou até aqui, a pretexto de
encaminhar o fechamento do raciocínio aberto no início em torno da
conexão entre Paz e Direitos Humanos, há que se considerar que as de-
mandas dirigidas aos Direitos Humanos apontam para o desenvolvimen-
to necessário à sua efetivação num contexto radical de desaos sociais
a serem superados. Ao contrário do aparente consenso que se criou na
década de 1990 acerca da legitimidade incontestável e da planetarização
dos Direitos Humanos, o século XXI começou trazendo a tona exigên-
cias sociais e políticas que antes permaneciam ocultas; exigências estas
que emergiram na forma de contradições, incoerências e lacunas, cau-
sando conitos ou dicultando a superação pacica deles em âmbitos
diversos, locais, regionais, nacionais e internacionais.
234
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Observa-se que, no contexto das exigências para a Paz próprias
do século XXI, cabe aos Direitos Humanos fornecerem as mediações
conceituais e os instrumentos normativos necessários para superar as di-
culdades na correção das relações sociais num contexto de diversidade,
quando resultam em inferiorizações de quaisquer espécies. Isto signica
que cobra-se dos Direitos Humanos a capacidade de se tornarem os instru-
mentos efetivos na animação de lutas sociais e fundamentação de políticas
públicas, de maneira a facilitar a identicação e a elaboração de estratégias
de ação visando ao estabelecimento da situação de igualdade em meio à
complexidade da sociedade. Em síntese, cobra-se dos Direitos Humanos
que se constituam de fato na mediação adequada a movimentos sociais e
ao Estado na aplicação da conhecida fórmula, exposta por Santos (2003),
no interior de sociedades multiculturais: armar a igualdade quando a di-
ferença inferioriza; armar a diferença quando a igualdade descaracteriza.
O problema da efetivação dos Direitos Humanos é complexo e
controverso. A começar pelo fato de que a universalização dos Direitos
Humanos, sua utilização como instrumento para resolução pacíca de
conitos, quaisquer que sejam, requer a racionalização das relações sociais,
a luta contra as tradições.
Caso o contexto fosse o século XX, o obstáculo criado pelas tra-
dições aos Direitos Humanos poderia ser removido pela intervenção do
Estado e a racionalização das relações sociais inerentes ao desenvolvimento
do capitalismo. No entanto, o contexto é o século XXI, e os obstáculos
que se colocam na fronteira do desenvolvimento dos Direitos Humanos
provêm das experiências históricas de sua própria efetivação, o que cria
tensões dentro de sua construção conceitual, à medida que se considera
que os direitos culturais também fazem parte das garantias consagradas na
Declaração de 1948.
Então, considerando que o direito a cultura e a autodeterminação
dos povos é também um dos direitos humanos, a proposta da Paz, e mes-
mo a democracia a serem conseguidas por meio dos Direitos Humanos,
parecem estar condicionadas à elaboração de respostas convincentes a esta
pergunta: como fazer para conciliar a universalidade com o respeito à di-
versidade num contexto em que particularidades culturais e tradicionais
devem ser reconhecidas por direito, mas tendo em conta que elas podem
235
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
contrariar a base lógica, ética e normativa dos Direitos Humanos, o prin-
cípio da dignidade?
REfERênciAs
ALONSO, A. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova, São
Paulo, n. 76, p. 49–86, 2009.
ALVES, B. S. F.; POKER, J. G. A. B.; FERREIRA, V. C. Reconstrução racional e
direitos humanos: uma proposta de produção de conhecimento crítico das relações
internacionais baseada em Habermas. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos,
Bauru, n. 4, p. 105–132, jun. 2015.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
BENHABIB, S. Otro universalismo: sobre la unidad y diversidad de los derechos
humanos. ISEGORÍA: Revista de Filosofía Moral y Política, Madrid, n. 39, p. 175–203,
jul./dic. 2008.
______. Is there a human right to democracy? Beyond interventionism and
indierence. In: OUR COMMON FUTURE, Hannover, Essen, Nov. 2–6, 2010a.
______. Human rights, sovereignty and democratic iterations. In: OUR COMMON
FUTURE, Hannover, Essen, Nov. 4, 2010b.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
DAHL, R. Sobre a democracia. Brasília, DF: UnB, 2001.
GIDDENS, A. Em defesa da sociologia: ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: Ed.
UNESP, 2001.
GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
São Paulo: Loyola, 1997.
HABERMAS, J. New social movements. Telos, New York, n. 49, p. 33–37, Sep. 1981.
______. Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1–2.
______. A constelação pós-nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
______. A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2002a.
______. O discurso losóco da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002b.
HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São
Paulo: Nova Cultural, 1988.
HÖFFE, O. A democracia no mundo de hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin
Claret, 2004.
236
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
NYE JR, J. Soft power: the means to success in world politics. New York: Public
Aairs, 2004.
POKER, J. G. A. B.; ARBAROTTI, A. E. Movimentos sociais: o que há de novo? In:
SIMONETTI, M. C. L. Territórios, movimentos sociais e política de Reforma Agrária no
Brasil. Marília: Ocina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. p. 15–44.
RANDERIA, S. Pluralismo jurídico, soberania fraturada e direitos de cidadania
diferenciais: instituições internacionais, movimentos sociais e Estado pós-colonial
na Índia. In: SANTOS, B. S. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 463–512.
SANTOS, B. S. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SANTOS,
B. S. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 427–462.
SCHLUCHTER, W. e rise of western rationalism: Max Weber’s developmental
history. Los Angeles: University of California Press, 1981.
TOURAINE, A. O que é democracia?. Petrópolis: Vozes, 1996.
WEBER, M. Economia e sociedade. São Paulo: Imprensa Ocial: UnB, 2004. v. 1–2.
237
A     
      
      
 : O   
Flávia Carrijo Nunes
O homem implora a misericórdia de Deus, mas não tem piedade dos
animais, para os quais ele é um deus. Os animais que sacricais já vos
deram o doce tributo de seu leite, a maciez de sua lã e depositaram
conança nas mãos criminosas que os degolam. Ninguém purica seu
espírito com sangue. Na inocente cabeça do animal não é possível co-
locar o peso de um o de cabelo das maldades e erros pelos quais cada
um terá de responder. (Sidarta Gautama Buda).
1 inTRodução
O tema do presente texto nasceu do interesse da pesquisadora
em conhecer aspectos que estimulam os seres humanos a permanecer pra-
ticando maus tratos contra os animais, condutas essas muitas vezes consi-
deradas como “culturais”, mas que de todo modo impactam diretamente
na devastação do meio ambiente. Considerando que, diante de uma escala
238
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
crescente de devastação ambiental, a lei ambiental ainda continua sendo
branda e muitas vezes inecaz ao ponto de coibir os infratores.
O presente estudo tem como objetivo principal demonstrar que
a atuação humana no meio ambiente se apresenta cada vez maior e que as
leis não acompanham essa realidade, tornando-se impróprias ao combate e
proteção dos animais, levantando para tanto questões tais como: até quan-
do a natureza irá suportar e até quando os infratores carão impunes ou
receberão medidas inecazes?
A ideia é demonstrar que os animais não são “coisas”, mas sim
que devem esses ser protegidos e respeitados. Pois, de qualquer forma, não
há dúvidas sobre a importância do meio ambiente adequadamente preser-
vado para a sadia qualidade de vida da geração atual e da sua manutenção
nesse estado para garantir dignidade às futuras gerações. Anal, este é o
legado que deixaremos para as mesmas.
Fica clara, portanto, a conexão entre a proteção ambiental dig-
na e o seu dever ético jurídico de preservar e respeitar os integrantes do
meio ambiente, precisamente no caso em questão, a proteção da fauna
de atos de violência.
2 hisTóRiA dAs RinhAs
A expressão “luta” de galos ou de cães, também designada “ri-
nha” ou “briga” de galos ou de cães, são termos que designam o combate
entre animais, sendo realizado em uma área delimitada e que envolve,
em geral, apostas em dinheiro. Por extensão, o termo também é usado
para designar o local onde essas brigas ocorrem, também denominados
de “renhideiro”, “rinhadeiro” ou “rinhedeiro”. Os “rinheiros” são lugares
especícos onde ocorrem as lutas dos animais. A “rinha”, por sua vez, é
a expressão do recinto que abriga as práticas de lutas. E, infelizmente,
não é de hoje que existe essa prática abominável com diversos tipos de
animais, em especial galos e cães.
A briga de animais, principalmente de aves, é uma prática mile-
nar. Historicamente, em 5.000 a.C., as lutas de aves eram um passatempo
muito comum entre os gregos e romanos. Naquela época, havia código
239
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
para regulamentar a sua prática. Portanto, as brigas de animais existem des-
de a Grécia antiga e foram trazidas à América pelos espanhóis, chegando ao
Brasil no século XVII, ainda na época da sua colonização. O seu objetivo
até então era incentivar o espírito guerreiro entre os guerrilheiros.
Nos primórdios de sua chegada ao Brasil, a rinha não teve qual-
quer proibição. Antigamente, elas eram amplamente praticadas em nosso
país. Apenas em julho de 1934, com o Decreto Federal nº 24.645, que fora
promulgado pelo presidente Getúlio Vargas, foi estabelecido medidas pro-
tetivas aos animais, xando punições. Contudo, esse Decreto só se referia
às touradas, não mencionando as rinhas
Mas, em maio de 1961, o presidente Jânio Quadros as proibiu
expressamente por meio do Decreto Lei 50.620/61, vedando igualmente
qualquer espetáculo cuja atração envolvesse lutas entre animais de qual-
quer espécie. Porém, o ato do presidente de proteger os animais das violên-
cias aconteceu em uma época em que foi reputado como “bizarrice”, sendo
atacado e contestado pela imprensa.
Não há que ser questionado que, desde aquela época, e na verda-
de até hoje, essa manifestação contrária à proibição de lutas com animais
aconteceu e acontece, pois as lutas visam somente a circulação de apostas
de dinheiro, ou mesmo meramente o lazer.
Logo após, em 1962, o decreto foi revogado pelo primeiro mi-
nistro Tancredo Neves, que revogou a norma proibitiva com a edição do
Decreto nº 1233, possibilitando novamente as rinhas. Posteriormente,
outras leis protetivas foram aprovadas, tais como: Lei da Contravenção
Penal (Decreto Lei 3.688/41) – mas esta não foi nem é clara com relação
as rinhas; Código de Pesca (Decreto Lei 221/67); Lei de Proteção à Fauna
(Lei 5197/67), entre outras normas de proteção animal.
Entretanto, os dispositivos legais não dispõem de proibição clara
e especíca de tais maus tratos, considerando inclusive que algumas deci-
sões judiciais já permitiram essa prática desumana em função do entendi-
mento de que se trata de uma forma de manifestação cultural.
As condutas de brigas e rinhas permaneceram lícitas até a pro-
mulgação da Lei nº 9.605/1998, quando se tornaram crime as práticas
240
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
de maus tratos a animais, coibindo então as brigas de aves e cachorros e
demais crueldades.
Mas, infelizmente, ainda a Lei Ambiental não tem sido freio su-
ciente, sendo muitas vezes uma sanção irrisória, valendo a pena para os
interessados suportá-la.
Nas rinhas, os animais lutam entre si, para tão somente saciar a
ganância dos seres humanos, seja nanceira ou mesmo a ganância pelo po-
der. Não há dúvida de que essas práticas submetem os animais à crueldade
e maus tratos e devem ser combatidas pelo Estado brasileiro, pois é obriga-
ção desse e dever de povo brasileiro tutelar a fauna, o que não acontece ao
utilizar esses animais como fonte de apostas e/ou de lazer, caracterizando
tal prática como maus tratos.
E, por ser considerado por alguns como uma manifestação cul-
tural, há um conito em relação a essa posição e ainda entre os princípios
ambientais e o da liberdade de manifestação cultural.
O Brasil é um dos países signatários da Declaração Universal dos
Animais, proclamada em 1978 pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura, que, em seu artigo 3º abomina toda
forma de maus tratos, e também, no artigo 10º, a exploração de animais
para divertimento do homem. Esses princípios internacionais motivam a
luta do direito contra as práticas muitas vezes tidas por culturais, como no
caso das rinhas.
Entretanto, os dispositivos legais não dispõem de proibição clara
e especíca de tais maus tratos, sendo que algumas decisões judiciais já
permitiram essa pratica desumana foram em função do entendimento de
que se trata de uma forma de manifestação cultural (UNESCO, 1978).
Contudo, ao ser analisado o sistema normativo brasileiro, enten-
de-se que as rinhas promovem a degradação ambiental. Em nosso país,
todos os animais, em qualquer que seja o seu habitat, constituem bens
ambientais vivos e que integram os recursos ambientais compreendidos na
natureza. Assim, fazem parte do meio ambiente e, sem qualquer exceção,
discriminação ou exclusão, espécies ou categorias, consequentemente, são
protegidas pelas normas.
241
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Em nosso planeta, cada um dos animais possui uma função eco-
lógica própria e nenhuma espécie pode ser considerada inútil (BECHARA,
2003, p. 54). E, sem dúvida, a função ecológica é elemento determinante
para que caracterize a fauna como um bem de natureza difusa. Signica,
portanto, que essa função ecológica das espécies é essencial a uma qualida-
de de vida sadia, como é apontado na Constituição Federal, em seu artigo
225, §1º, VII, que veda qualquer atividade contra a fauna que coloque em
risco na sua função ecológica.
A Carta Magna, em seu texto, utiliza-se de cláusula genérica, ve-
dando qualquer forma de submissão de animais às práticas cruéis. Enfatiza
que as atividades e experiências cruéis com animais são incompatíveis com
a norma constitucional, sustentando que tais práticas não podem ser ca-
muadas sob a denominação de atividade desportiva, prática cultural ou
expressão folclórica. Aceitar o argumento de que são “práticas normais” se-
ria referendar uma tentativa de burlar e fraudar o cumprimento da norma
constitucional de proteção da fauna contra a crueldade.
Os atos das práticas de maus tratos ou crueldade são injustica-
dos e realizados por determinados grupos que visam tão somente o lazer
e lucro, em função de realizarem apostas. A provocação das lutas entre os
animais envolve agressividade e crueldade, sendo que muitas vezes acar-
retam a inutilização de partes do corpo dos mesmos, como olhos, pernas,
asas, orelhas, entre outros órgãos, isso quando não resulta em morte do
animal (HIRATA, 2011).
Há duas dimensões dessa atividade cruel contra os animais, em
especial das aves: (a) a primeira delas é a briga de animais como forma
de diversão, da qual fazem parte homens e até mesmo crianças. Nessa
dimensão, participantes têm somente um animal ou poucos animais e
as lutas apresentam caráter especico de lazer. Esses animais convivem
com os demais, como, por exemplo, o galo, e este de qualquer forma
servirá para o sustento da família, seja na forma de receber os valores
das apostas seja, mesmo não sendo utilizado em lutas, sendo abatido
para o consumo da família.
Já a segunda dimensão é a luta de animais como esporte, da qual
fazem parte pessoas que se dedicam à criação desses animais com uma
242
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
única nalidade: fazer rinha. É um grupo formado por número menor de
pessoas, dentro do qual o simples prazer é fazer apostas instigando que os
animais briguem entre si.
As práticas de lutas entre os animais têm uma peculiaridade eco-
nomicamente importante: a diferença de uma rinha grande de uma ri-
nha pequena caracteriza-se pela estrutura do lugar e não pelos valores das
apostas e pessoas que delas participam. O seu diferencial está na estrutura
e a peculiaridade econômica, sendo a grande aliada a toda essa malda-
de o interesse econômico como a máquina inuenciadora e lucrativa das
práticas sangrentas e dolorosas aos animais, sendo que essa máquina gera
empregos, apostas e investimentos.
Apesar dessa peculiaridade econômica, a prática é normalmente
aberta ao público, porém, em algumas cidades, as brigas são realizadas en-
tre pessoas amigas e em recintos fechados ao público geral.
Essas lutas, na maioria das vezes, não ocorrem em centros urba-
nos, por conta do barulho e da movimentação que os participantes fazem,
o que chamaria muito a atenção e resultaria na denúncia para ambientalis-
tas e autoridades policiais. Além da movimentação e barulho que as brigas
causariam, o odor que as lutas proporcionam poderia também chamar a
atenção dessas pessoas ou mesmo do público em geral.
Lamentavelmente, além do atraso social, ainda há um senti-
mento de que os animais são “coisas” e podem ser objeto de qualquer
violência e/ou maus tratos, tais atos não levando na maior parte das vezes
à punição dos praticantes.
Não é raro, ainda, constatar que, em algumas cidades, principal-
mente as interioranas, existem práticas de amarrar gatos para mal tratá-los
ou até para matá-los, atirar em pássaros, entre outras atrocidades, condutas
essas tão gravosas como as práticas de rinhas e farra do boi.
A rinha de galos causa um grande espanto pela forma com que es-
ses animais, em geral da raça gallus-gallus, que são mais selvagens e ariscos,
são tratados antes e depois das lutas. A indignação aumenta ainda mais no
momento em que se percebe que a atividade é praticada como puro entre-
tenimento ou jogo de apostas. Não há dúvidas de que o exercício de expor
243
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
os animais a ambientes de competição e treiná-los para o combate seja uma
forma de crueldade e maus tratos.
Desde pequenos, os animais selecionados para a prática das lutas
são treinados para enfrentar, sem medo, o seu adversário. Não é uma regra,
mas, no caso das aves, muitos criadores costumam aparar as penas deles,
principalmente quando as brigas serão realizadas em locais quentes. Essa
tosa facilita as massagens e o controle de parasitas. No caso dos galos, es-
tes também poderão ter apetrechos, como a biqueira (um bico postiço de
metal que é colocado sobre o natural como forma de proteção) e as esporas
(que servem como armas).
Durante a luta, no caso de nocaute, o juiz abre uma contagem de
tempo de dez segundos, dentro do qual, se a ave não se levantar, perde a
luta; porém, o combate poderá ser interrompido, caso o juiz perceba que
um dos galos está sem condições de continuar (considerado como “nocau-
te técnico”). Caso o galo pare de lutar, ele perde por desistência. O empate
ocorrerá quando não houver decisão no tempo regular da briga.
O tratamento de preparo do animal pode durar de 30 a 90 dias,
dependendo do seu rendimento. O treino inclui basicamente três exer-
cícios: (1) bater asa – com as batidas de asa, a ave trabalha os músculos
peitorais e aumenta a capacidade respiratória; (2) correr – a mesa giratória
trabalha os músculos das coxas e a sua rotação aumenta gradualmente; e
(3) pular – impulsionar o galo para cima, fazendo este exercitar as asas e
coxas. A altura do salto aumentará de acordo com a evolução do animal
(HIRATA, 2011).
É cristalina a ausência de qualquer proteção e cuidado com os
animais, que são utilizados como objetos para satisfazer o sadismo dos
homens, que se distraem ao vê-los guerreando até a morte. Em razão de tal
sofrimento, o crime ambiental inicia-se, como se vê nessa descrição sumá-
ria, muito antes da entrada na arena.
A própria preparação dos animais para a batalha incide nas ele-
mentares do tipo penal, pois o preparo e treinamento conguram nas ações
de “ferir” e “mutilar” (MILARÈ; COSTA Jr., 2002).
244
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
2.1 PRoTEção dA fAunA
Para entender quando tudo teve início, tem-se que levar em con-
sideração que, no início da colonização brasileira, a exploração dos recursos
naturais era realizada sem qualquer compromisso e não havia consciência
alguma com a preservação do futuro. A ideia era de que tais recursos natu-
rais eram innitos e renováveis, fazendo com que as nossas orestas fossem
demasiadamente devastadas, e os nossos animais, exterminados. Sendo que
muitos deles foram e são até hoje levados para fora do Brasil, constituindo-
-se o comércio ilegal de animais silvestres, o que é também um dos gran-
des problemas enfrentados na conservação da fauna brasileira. Milhões de
bichos são mortos pela ganância de quem vende e pela desinformação de
pessoas que criam bichos selvagens como se fossem animais domésticos.
Contudo, nossa cultura popular ainda se encontra presa às raízes
do passado, sendo que grande parte da população não protege ou mesmo
se interessa pela proteção da nossa diversidade biológica.
Não há uma denição absoluta sobre o que seja ou não a expres-
são “meio ambiente”, cada um conservando a sua visão sobre a denição
do tema. Mas, em uma visão mais ampla, o meio ambiente abrange toda
a natureza natural e articial. A Constituição Federal (1988) não o dene
claramente, contudo, em seu artigo 225, caput, ela pincela uma denição.
No direito brasileiro, há o conceito legal sobre o que seja o
meio ambiente no artigo 3º, I, da Lei 6.938/81, onde se dene meio
ambiente como o conjunto de condições, leis, inuências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas.
No Brasil, existe uma enorme variedade de animais. Todas as es-
pécies têm um sentido para o equilíbrio da natureza, além também da sua
importância cientíca, estética e econômica, sendo a fauna silvestre e do-
méstica fundamentais para a sustentabilidade dos ecossistemas.
O Brasil é considerado o país com a maior concentração de di-
versidade biológica e que também abriga o maior número de animais ver-
tebrados, anfíbios e primatas da Terra. Mas, apesar da riqueza natural inve-
jável, a fauna silvestre está sendo ameaçada por uma verdadeira exploração
245
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
predatória. A poluição das águas, o desmatamento, a caça predatória e o
comércio ilegal de animais são fatores que vêm exterminando com muitos
animais e diminuindo a riqueza da fauna.
Dessa forma, ca clara a responsabilidade que temos em proteger
as orestas e seus habitantes, lembrando que a ora e a fauna coexistem
num perfeito equilíbrio natural, não sobrevivendo a oresta e os animais
um sem o outro.
A intervenção humana no habitat natural dos animais, tanto sil-
vestres como os domésticos, pode levá-los à extinção. E, se isso acontecer,
deixarão de exercer seu papel na harmonia do ecossistema, comprometen-
do o meio ambiente como um todo. É por isso que a destruição de habi-
tat é uma das maiores causas de diminuição da biodiversidade no planeta
Terra. Percebe-se, portanto, que a fauna está diretamente relacionada com
o meio ambiente. Se destruímos uma determinada espécie, colocamos to-
dos os demais animais em risco.
Observe-se que o Decreto Lei 16.590/24 foi a primeira norma
no Brasil a tratar sobre os animais, em especial dos maus tratos contra
os mesmos, regulamentando as Casas de Diversões Públicas, proibin-
do-se as brigas de galos ou de canários, corridas de touros, dentre ou-
tras atividades cruéis.
Dessa forma, todos os animais estão protegidos de ações cruéis.
A crueldade é denida como “qualidade de cruel; maldade; perversidade;
ato cruel”. O termo cruel, por sua vez, é conceituado como aquilo que
maltrata, malvado; que causa sofrimento; pungente, doloroso; insensível,
duro, intransigente; sangrento, sanguinolento; contrário ao que se desejava
(ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2008, p. 881).
Não há dúvidas de que proteger o meio ambiente e a fauna é
um dever de todos e, claramente, um exercício de cidadania. Portanto,
é por meio da consciência ambiental que se constrói uma sociedade
democrática, sendo que esta também possui sua responsabilidade jun-
tamente com o Estado.
246
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
2.2 AmPARo lEgAl
Atualmente, a utilização do Direito Penal para garantir a efetiva
proteção ao meio ambiente é cada vez mais necessária, pois as penalidades
decorrentes das práticas de maus tratos contra os animais não são su-
cientes para abolir tal prática, visto que as normas que tratam desse tema
apresentam pena extremamente irrisória em contrassenso ao caráter ilícito
e violento dos fatos.
O tipo penal previsto na Lei 9.605/98 é o ato de praticar abuso
ou maus tratos, ferir ou mutilar animais, que, em seu artigo 32, impõe
àqueles que praticam maus tratos contra qualquer tipo de animal a pena de
detenção de três meses a um ano e multa. Caso ocorra a morte do animal,
a sanção será aumentada de um terço a um sexto.
Ora, sabemos que, em casos de crimes cuja penalidade máxi-
ma seja inferior a dois anos, e tendo o autor dos fatos bons antecedentes,
o Ministério Público poderá ofertar o benefício da transação penal, por
se tratar de infração de menor potencial ofensivo, os famosos “IMPO”
(Instrumentos de Menor Potencial Ofensivo).
Instituto esse que, aceito pelo réu, e acolhido pelo juiz, aplicar-se-
-á de imediato pena restritiva de direitos ou multa e que não importará em
reincidência, apenas não permitirá que ocorra o mesmo benefício dentro
de cinco anos, como pode ser visto no artigo 76 da Lei 9.099/95.
Portanto, as dores, explorações, lesões, morte dentre outros trau-
mas sofrido pelos animais maltratados carão sem a efetiva punição e o
autor da infração continuará provavelmente praticando tais fatos, visto que
a lei não lhe dá a reprovação correta pelo ato criminoso.
Ainda há um descaso maior na Lei nº 3.688/41, que, em seu
artigo 64, prevê a aplicação da pena de prisão simples de dez dias a um
mês ou multa de cem a quinhentos mil réis para quem tratar animal com
crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo. Podendo essa pena ser ma-
jorada pela metade se tais atos forem cometidos em exibição ou espetáculo.
Todavia, também nesse caso, ocorrerá o mesmo m dito anterior-
mente, ou seja, haverá a possibilidade de converter a penalidade importa
em sursis processual.
247
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Infelizmente, na maior parte das vezes, os crimes contra animais
nem sequer chegam ao conhecimento das autoridades. Sendo que a de-
núncia contra animais poderá ser feita por qualquer pessoa, não sendo
necessária a intervenção de ONGs ou Associação de Proteção Animal.
Conforme pode ser vericado, o seu sujeito ativo é tanto a pessoa
física quanto a pessoa jurídica, pois a lei adotou, de forma expressa, o prin-
cípio da responsabilidade da pessoa jurídica. Mas essa responsabilidade
da pessoa jurídica tem seus requisitos, tais como: (a) deliberação do ente
coletivo, (b) vínculo entre o autor da infração penal e a pessoa jurídica, (c)
ato deve ser praticado no interesse ou benefício da pessoa jurídica, entre
outros requisitos. Já o sujeito passivo é toda a coletividade.
Reza o artigo 32 da referida Lei acerca das punições para aqueles
que praticam qualquer tipo de maus tratos contra os animais, sejam eles
domésticos, domesticados, nativos ou exóticos.
As condutas descritas no tipo penal se utilizam de 3 verbos:
praticar”, que é fazer, realizar, executar; “ferir”, que consiste em ma-
chucar, cortar; e “mutilar”, que traduz na destruição e corte de qualquer
parte do corpo.
Dentre os mais de oitenta artigos, temos penas aplicadas a esses
crimes vergonhosamente insignicantes e infelizmente todas passíveis de
suspensão condicional do processo.
O Estado do Rio Grande do Sul foi o primeiro a instituir um
Código Estadual de Proteção aos Animais, através da criação da Lei
Estadual nº 11.915 de 21de maio de 2003.
Contudo, no Estado de São Paulo, foram sancionadas várias
normas, sendo o estado onde se aprofundaram mais os mecanismos
de proteção.1
Os estados, em geral, vêm se mobilizando por uma causa em co-
mum: a proteção do meio ambiente, que, por consequência, protege a
fauna como um tudo.
Em todo o Brasil, encontram-se leis, sejam feitas pelos esta-
dos, ou pelos municípios, sendo que essas legislações estão se tornando
cada vez mais corriqueiras, como, por exemplo, em Curitiba (PR) a Lei
248
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
12.467/2007, em Santos Dumont (MG) a Lei 3.859/2006, dentre outras
tantas criadas por todo o país. Isto faz com que a maior parte da população
se preocupe em proteger seus animais, fazendo com que isso ganhe cada
vez mais importância e força de lei.
Além dessas leis, existem muitas outras leis por todo o Brasil,
reconhecendo os direitos dos animais. E, dada a evolução que o país segue,
nesse sentido, o que se espera é que ocorram, em números cada vez mais
elevados, leis que não só protejam a fauna, mas também reconheçam seus
direitos perante os seres humanos
O objeto jurídico no Direito Ambiental é sem dúvida a har-
monização da natureza, e, como consequência, do meio ambiente, que é
garantida pela manutenção dos ecossistemas e da sadia qualidade de vida.
E o objetivo das leis é reprimir os atentados contra os animais, devendo
o ser humano respeitar os demais seres da natureza e tentar ao máximo
evitar o seu sofrimento desnecessário. A maioria das leis busca que tais
crueldades não se tornem rotineiras ou que sejam tacitamente admitidas
e aceitas pela sociedade.
Tem-se também o Decreto Lei 24.645/34 orienta um rol de con-
dutas omissivas que representam abuso e maus tratos, como, por exemplo,
deixar o animal por mais de 12 horas sem alimentação e/ou água.
O abuso ou mau uso vincula-se à atividade imposta ao animal,
como o trabalho excessivo que vai além das forças do animal, emprego
exagerado de castigo, etc.
Contudo, “ferir” é machucar ou cortar e “mutilar” é cortar em
partes o corpo do animal. Sendo que essas duas condutas demonstram
um grau de maior reprovabilidade em face da prática de maus tratos. Esse
tipo de crime só adota a forma dolosa, não admitindo a forma culposa, nas
modalidades de negligencia, imperícia ou imprudência.
Apesar da existência de leis e princípios constitucionais que pre-
vêem penalidades administrativas, civis e criminais para aqueles que prati-
carem maus tratos ou crueldade contra os animais, a problemática é mais
profunda, pois as leis em geral são brandas.
249
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
Contudo, nessa concepção, perguntamo-nos se os animais são
sujeitos de direitos ou se só aqueles dotados de razão seríamos privilegiados
na concepção fundamental da dotação de direitos. Os direitos dos animais
constituem expressão da própria natureza, traduzem-se em valores éticos
da humanidade. Assim, alimentada pela moral, a lei poderá impor sanções
concretas para os infratores e permissões jurídicas expressas para a tutela
processual dos direitos subjetivos dos animais, já que eles não são meras
coisas”, mas sujeitos de direito.
Nesse entendimento, pode-se concluir que os animais são sim su-
jeitos de direitos, principalmente o direito à preservação da sua integridade
física, psíquica e moral. A posição ética na preservação do bem-estar animal
gira em torno de que cada animal tem seu valor e deverá ser respeitado e,
é claro, protegido, como prevê a Constituição Federal (1988). Os animais
têm sentimentos, instintos e natureza biologicamente determinada, de ma-
neira que o ser humano deveria poupá-los de todo e qualquer sofrimento.
Por serem tutelados como parte do meio ambiente, são, portanto,
sujeitos de direitos, cabendo, dessarte, aos legitimados o exercício constitu-
cional de sua proteção, aplicando-se as normas legais vigentes.
A solidariedade é um dos princípios constitucionais e oferece a
base de sustentação a todos os deveres fundamentais estabelecidos no texto
constitucional e nas normas infraconstitucionais, especialmente em maté-
ria de proteção e defesa do meio ambiente.
Ao ser analisado esse princípio, deve-se destacar que a solidarie-
dade, enquanto princípio fundamental, é um dever inderrogável e que
fundamenta os deveres constitucionais nos planos político econômico e
social. Destaca-se também a importância da solidariedade e responsabili-
dade global pelo meio ambiente, enfatizando que “somos um mundo só”,
devendo todos nós clamar por uma mudança de atitude, e, caso não haja
uma solução imediata, deixaremos uma pesada carga às gerações futuras.
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade,
ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente que permita
levar uma vida digna e gozar do bem-estar, assim como tem a obrigação de
proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
250
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
Pelo princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal, nos ter-
mos do artigo 225 da Constituição Federal (1988), é dever fundamental
do poder público intervir para, no exercício do poder de polícia ambiental,
prevenir danos ao meio ambiente, bem como exigir a devida restauração
do equilíbrio ecológico.
Para o alcance desse objetivo de prevenir danos e exigir a restau-
ração do equilíbrio ecológico, é fundamental que a administração exerça o
seu poder de polícia ambiental para impor comportamentos aos adminis-
trados sob pena da aplicação das sanções correspondentes.
O fundamento legal para a imposição de sanções pela prática
de infrações administrativas está na Lei 9.605/98 e também no Decreto
3.179/99.
De acordo com as doutrinas majoritárias e com as jurisprudên-
cias existentes, a responsabilidade administrativa é sempre objetiva, ou
seja, independe de culpa, e tem como base a teoria do risco integral.
Não é só dever de todos os estados, mas os indivíduos também
devem cooperar na redução dos maus tratos e violência contra os animais,
em um espírito de parceria global, e contribuir para a conservação, prote-
ção e restauração da saúde e da integridade do ecossistema terrestre, sendo
isso que alerta o princípio da cooperação.
3 considERAçõEs
O presente texto versa acerca da proteção animal, que é violada
há séculos, devido ao ímpeto do ser humano em prosseguir na prática de
maus tratos, tornando-se um tema de total signicância, pois os animais
são passíveis de direitos, tendo em vista que são seres vivos e têm sensações
físicas e emocionais semelhantes às sensações humanas.
Portanto, o referido tema se reveste de demasiada importância,
visando o aprimoramento das leis de proteção ambiental, principalmente
no que tange aos animais, demonstrando a necessidade de uma punição
mais severa e compatível com a gravidade dos crimes cometidos contra es-
ses seres, para que o ser humano reconheça, mesmo que de forma forçada,
que não lhe é permitido torturar ou matar um ser pelos simples fato de
251
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
não poder exprimir seus sentimentos e palavras de forma expressa, assim
como o homem.
Há várias formas mais saudáveis de distração que estão à nossa
disposição, não necessitando que se maltrate os animais ou os violente.
O ser humano poderá apreciar a natureza, sem que para isto tenha que
destruí-la ou até mesmo maltratar os animais e submetê-los a quaisquer
formas torturas.
Desde sempre, observam-se muitas arbitrariedades praticadas
pelo homem que aniquilam a dignidade desses seres indefesos, ao pro-
mover todas as modalidades de abusos, crueldade e maus-tratos, ou então
estes são adestrados para se tornar violentos, quando não são abandonados
à própria sorte, transformando-os em vítimas inocentes.
Observados todos esses fatores, que demonstram a relevância do
tema, e abordando sob a ótica das graves e ainda atuais questões de maus
tratos contra animais tidas ainda como “culturais”, em suma, o presente
estudo visa à defesa daqueles que merecem nosso respeito, pois o nosso
século já não mais abarca tanta ignorância com toda essa crueldade insti-
tucionalizada na sociedade contra esses seres viventes e sensíveis e que, é
claro, são portadores de necessidades e direitos.
REfERênciAs
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
ACKEL FILHO, D. Direito dos animais. São Paulo: Ed. emis, 2001.
BECHARA, E. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2003.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF, 1988.
CUSTÓDIO, H. B. Crueldade contra animais e proteção deste como relevante questão
jurídico-ambiental e constitucional. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 7, 1997.
DIAS, E. C. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
ESCOBAR, M. L.; AGUIAR, J. O.; ZAQUI, P. A. Galos em combate na Paraíba: o
descumprimento da legislação ambiental. Revista de Direitos Humanos e Democracia,
Unijiú, v. 2, n. 4, p. 143–165, 2014.
252
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
HIRATA, G. Como é realizada uma briga de galo? Mundo Estranho, São Paulo, ed. 110,
2011. Disponível em: <https://mundoestranho.abril.com.br/religiao/como-e-realizada-
uma-briga-de-galo/>. Acesso em: 12 jun. 2011.
INGER, P. Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico lósofo da atualidade.
Tradução Alice Xavier. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
LANFREDI, G. F. Política ambiental: busca de efetividade de seus instrumentos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
LEITE, F. C. A liberdade de crença e o sacrico de animais em cultos religiosos. Veredas
do Direito, Belo Horizonte, v. 10, n. 20, p. 163-177, 2013.
LEVAI, L. F. Direito dos animais. 2. ed. rev., ampl. e atual. Campos do Jordão:
Mantiqueira, 2004.
MACHADO, P. A. L. Direito ambiental brasileiro. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 1998.
MEIRELLES, H. L. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
1995.
MILARÉ, E.; COSTA Jr., P. J. Direito penal ambiental: comentáriosà
Lei9605/98.Campinas: Millennium, 2002.
PRADO, L. R. Crimes contra o ambiente. São Paulo: RT, 1998.
SIRVINSKAS, L. P. Manual de direito ambiental. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2007.
UNESCO. Declaração Universal dos direitos dos animais. Bruxelas, 1978.
253
S A
cRisTinA dE souzA AgosTini
É doutora em Filosoa pela USP, pós-doutoranda em letras Clássicas
pela USP e professora da Universidade São Judas Tadeu. E-mail:
moranguinhow@gmail.com
fábio luís binATi
É especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário
de Votuporanga e mestrando em Direito pelo Univem. E-mail:
dr.fabiobinati@adv.oabsp.org.br
fviA cARRijo nunEs
É especialista em Ciências Penais pela Faculdade Anhanguera e mestranda
em Direito pelo Univem. E-mail: dra.avia@yahoo.com.br
gislAEnE mARTins dE mEnEzEs
É especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Uniderp e mestranda
em Direito pelo Univem. E-mail: gmfadv@hotmail.com
gusTAvo hEnRiquE dE souzA bodEnmüllER
É graduado em Relações Internacionais pela UFSC. E-mail: gustavo.
herique@hotmail.com
254
Rafael Salatini & Laércio Fidelis Dias
(Organizadores)
hEloísA hElEnA silvA PAncoTTi
É especialista em Direito Processual pela UniToledo e mestranda em
Direito pelo Univem. E-mail: hpancotti@gmail.com
ivAnAldo sAnTos
É doutor em Estudos da Linguagem pela UFRN, pós-doutor em Linguística
pela USP, pós-doutor em Filosoa pela PUC/SP e professor pela UERN.
E-mail: ivanaldosantos@yahoo.com.br
josé cARlos zAmboni
É doutor em Letras e professor da Unesp (campus de Assis). E-mail:
jc.zamboni@hotmail.com
josé gERAldo AlbERTo bERToncini PokER
É doutor em Sociologia pela USP e professor da Unesp (campus de
Marília). E-mail: geraldo.poker@unesp.br
kARinE dE souzA silvA
É especialista em Integração Regional na Universidad Internacional de
Andalucía (Espanha), doutora em Direito pela UFSC, pós-doutora em
Ciência Política pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica), pós-doutora
em Ciência Política pela Université Libre de Bruxelles (Bélgica), titular
da Cátedra Jean Monnet (outorgada ocialmente pela União Europeia)
e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Agência das Nações Unidas para
Refugiados, professora da UFSC e professora visitante da Universidade
Técnica de Moçambique (Moçambique), da Universidade do Minho
(Portugal), da Université Libre de Bruxelles (Bélgica) e da Universidad de
Valladolid (Espanha). E-mail: karine.silva@ufsc.br
lAéRcio fidElis diAs
É doutor em Antropologia pela USP e professor da Unesp (campus de
Marília). E-mail: delis.dias@unesp.br
lAfAyETTE Pozzoli
É doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor em Direito pela La
Sapienza-Università degli Studi di Roma (Itália), e professor do Univem.
E-mail: lafayette@lafayette.pro.br
255
Reflexões Sobre a Paz, Vol. II
lARissA fATimA Russo fRAnçozo
É especializanda em Direito Previdenciário pela EPD e mestranda em
Direito pelo Univem. E-mail: larissa.francozo@hotmail.com
RAfAEl sAlATini
É doutor em Ciência Política pela USP, pós-doutor em Sociologia pela
USP, pós-doutorando em Ciência Política pela USP e professor da Unesp
(campus de Marília). E-mail: rafael.salatini@unesp.br
RAPhAEllA cinquETTi vilARRubiA
É técnica em Serviços Jurídicos pelo Centro Paula Souza (Lins-SP), e
graduanda em Direito pelo Univem. E-mail: raphaellacinquetti@gmail.com
RicARdo dA cosTA
É doutor em História pela UFF, duplamente pós-doutor em História
Medieval pela Universitat Internacional de Catalunya (Espanha), pós-
doutor em História Medieval pela Universidad de Alicante (Espanha),
professor titular da UFES, professor do Programa de Doctorado
“Transferencias Interculturales e Históricas en la Europa Medieval
Mediterránea” da Facultade de Filosoa e Letras da Universitat d’Alacant
(Espanha) e acadèmic corresponent a l’estranger da Reial Acadèmia de
Bones Lletres de Barcelona (Espanha). E-mail: ricardo@ricardocosta.com
RobERTo dA fREiRiA EsTEvão
É procurador de justiça aposentado, doutor em Ciências Sociais pela
Unesp (campus de Marília) e professor do Univem. E-mail: roberto_
freiria@terra.com.br
TEófilo mARcElo dE ARêA lEão júnioR
É doutor em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru-SP), pós-
doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
(Portugal) e professor do Univem. E-mail: teololeaojr@gmail.com
vAnEssA bRAgA mATijAscic
É doutora em História pela Unesp (campus de Franca), pós-doutoranda
em Ciência Política pela USP e professora da FAAP. E-mail: vanessa.
matijascic@gmail.com
Catalogação
Andre Sávio Craveiro Bueno
CRB 8/8211
Normalização
Maria Luzinete Euclides
CRB/8 3451
Revisão
Karenina Machado
Capa e Diagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção Gráca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
Assessoria Técnica
Maria Rosangela de Oliveira
CRB - 8/4073
Renato Geraldi
Ocina Universitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
2018
Impressão e acabamento
Gráca Shinohara
Marília - SP
Formato
16X23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento
Grampeado e colado
Tiragem
300
sobRE o livRo
A presente obra conta com con-
tribuições dos(as) pesquisadores(as)
de diversas instituições de ensino supe-
rior que participaram do “III Encontro
de Reexões sobre a Paz Paz e Tole-
rância”, além de autores(as) especial-
mente convidados(as) para escrever
sobre os temas da “paz” e da “tolerân-
cia”. Os(As) prossionais envolvidos-
(as) na obra são todos(as) pesquisado-
res(as) acadêmico-cientícos(as) dos
temas da “paz” e da “tolerância”, dis-
tribuídos(as) em áreas distintas de for-
mação e atuação acadêmica, como a
Ciência Política, a Antropologia, a
Sociologia, a Filosoa, a História, o
Direito e as Relações Internacionais,
conformando uma obra de reexão
verdadeiramente multidisciplinar
sobre os temas em questão.
CAPES, Processo PAEP Nº 127042/2017-00
CNPq, Processo Nº 441407/2016-1
ISBN 978-85-7983-986-3