Corpo, cultura e
educação
Jordi Planella ribera
Tradução para o porTuguês:
M J V J
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L A L
Corpo, cultura e
educação
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2017
Diretor
Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Ana Maria Portich
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Giovanni Antonio Pinto Alves
Marcelo Fernandes de Oliveira
Maria Rosangela de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Planella Ribera, Jordi.
P712c Corpo, cultura e educação / Jordi Planella Ribera ; tradução para o português:
Maria José Vicentini Jorente, Natalia Nakano, Lais Alpi Landim. – Marília : Ocina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2017.
415 p. : il.
Título original: Cuerpo, cultura y educación.
Inclui bibliograa.
ISBN 978-85-7983-938-2 (impresso)
ISBN 978-85-7983-939-9 (digital)
1. Corpo humano – Aspectos sociais. 2. Corpo humano – Aspectos simbólicos.
3. Comunicação e cultura. 4. Educação. I. Jorente, Maria José Vicentini. II. Nakano,
Natalia. III. Landim, Lais Alpi.
CDD 306.4613
Revisores
Lucinéia da Silva Batista
Nandia Letícia Freitas Rodrigues
Capa
Maria José Jorente
Mariana Cantisani Padua
Imagem da capa
Micael Faccio
License Creative Commons (Inserir selo (CC - By 2.0)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
DOI https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-939-9
Sumário
Prefácio
Rosane Michelli de Castro ---------------------------------------------------- 13
Apresentação da Edição Brasileira
Jordi Planella ------------------------------------------------------------------ 17
Pensamiento encarnado
Jordi Planella ------------------------------------------------------------------ 19
CaPítulo 1
Corpos, resistências e subjetividades: uma introdução ------------------ 21
1.1. Dos atores e suas narrativas corporais ---------------------------------- 26
CaPítulo 2
Epistemología do corpo ----------------------------------------------------- 29
2.1. Epistemologia da corporalidade ----------------------------------------- 32
2.2. Signicados e etimologias corporais ------------------------------------- 40
2.2.1. O corpo e sua etimologia ----------------------------------------- 40
2.2.2. Lexicograa corporal ---------------------------------------------- 43
2.2.2.1. A construção do corpo nos dicionários de língua geral ---- 44
2.2.2.2. A construção do corpo nos dicionários terminológicos das
Ciências Sociais ------------------------------------------------------------ 50
2.2.2.3. A construção do léxico corporal nos dicionários de
Pedagogía -------------------------------------------------------------------- 53
2.2.3. Denindo o corpo simbólico ------------------------------------ 57
CaPítulo 3
Genealogia do corpo---------------------------------------------------------- 61
3.1. A entrada do corpo na historiograa ----------------------------------- 65
3.1.1. Filogênese: a história particular do corpo ---------------------- 66
3.2. O corpo e o olhar histórico ---------------------------------------------- 68
3.2.1. O nascimento do dualismo corporal: perspectivas e
controvérsias ---------------------------------------------------------------- 69
3.2.2. Controvérsias corporais na cultura cristã ------------------------ 81
3.2.3. A percepção do corpo na modernidade: quando os corpos são
máquinas -------------------------------------------------------------------- 88
3.2.4. O corpo objeto do olhar: do controle à medicalização -------- 93
3.2.5. Discursos corporais de guerra e pós-guerra -------------------- 96
3.3. A circularidade da história do corpo ----------------------------------- 99
CaPítulo 4
Situar o corpo na teoría ----------------------------------------------------- 103
4.1. Modelos teóricos no estudo do corpo ------------------------------------ 107
4.2. O corpo na antropologia de mudança de século ----------------------- 112
4.3. O corpo como centro de gravidade -------------------------------------- 115
4.4. A psicanálise e a presença do corpo -------------------------------------- 117
4.5. Técnicas e usos sociais do corpo ------------------------------------------ 119
4.6. O olhar do corpo e a denúncia de sua docilidade --------------------- 122
4.7. O corpo na teoria feminista --------------------------------------------- 126
4.8. Antropologia e sociologia do corpo -------------------------------------- 128
4.9. O corpo e a sociedade da informação ---------------------------------- 131
4.10. Queer eory ----------------------------------------------------------- 134
4.11. Pedagogia e hermenêutica do corpo ----------------------------------- 136
CaPítulo 5
Os outros corpos: a construção social da diferencia --------------------- 141
Introdução --------------------------------------------------------------------- 143
5.1. Dos corpos biológicos aos corpos sociais --------------------------------- 145
5. 1.1. A norma e a natureza --------------------------------------------- 145
5.2. A construção social do corpo -------------------------------------------- 148
5.2.1. As metáforas do corpo e sua construção ------------------------ 149
5.2.1.1. O corpo mercadoria --------------------------------------------- 151
5.2.1.2. O corpo pornograa -------------------------------------------- 152
5.2.1.3. O corpo linguagem ---------------------------------------------- 154
5.2.1.4. O corpo dominação --------------------------------------------- 155
5.2.1.5. Corpos institucionais ------------------------------------------- 156
5.2.1.6. Corpos pragmáticos --------------------------------------------- 158
5.2.1.7. Corpos discursivos ---------------------------------------------- 158
5.2.1.8. Corpolia --------------------------------------------------------- 160
5.2.1.9. Corpofobia ------------------------------------------------------- 161
5.2.1.10. O corpo resistência -------------------------------------------- 162
5.3. A construção dos corpos Freak ------------------------------------------ 164
5.3.1. A conceitualização do monstro ---------------------------------- 166
5.3.2. O conhecimento cientíco e os monstros ---------------------- 171
5.3.3. O monstro como Das Unheimliche ------------------------------ 175
5.3.4. O estigma corporal ------------------------------------------------ 177
5.3.5. A exibição da diferença humana --------------------------------- 179
5.3.6. A monstruosidade na pedagogia --------------------------------- 182
CaPítulo 6
Higienização e controle pedagógico dos corpos educandos ------------ 185
Introdução --------------------------------------------------------------------- 188
6.1. A constitução de uma pedagogia dos corpos higiénicos ---------------- 188
6.1.1. A fundamentação cientíca de uma educação de raíz
biológica -------------------------------------------------------------------- 189
6.1.2. Higiene e pedagogia ----------------------------------------------- 196
6.2. A pedagogia totalitária do corpo ---------------------------------------- 200
6.2.1. Os totalitarismos --------------------------------------------------- 202
6.2.2. Biología e nação na pedagogia política das raças -------------- 204
6.2.3. Pedagogia totalitária dos corpos --------------------------------- 208
6.2.3.1. Em direção a uma pedagogia do totalitarismo -------------- 209
6.2.4. A educação corporal nos Estados totalitários ------------------ 212
6.3. A pedagogia corretiva ---------------------------------------------------- 217
6.4. A construção de corpos heteronormativos a partir da hegemonia
pedagógica ------------------------------------------------------------------- 219
CaPítulo 7
A pedagogia da subjetividade corporal ------------------------------------ 223
Introdução --------------------------------------------------------------------- 225
7.1. Discursividade corporal na pedagogia naturalista -------------------- 226
7.1.1. O naturalismo romântico na pedagogia de Rousseau -------- 227
7.1.2. Os corpos na pedagogia a plein air: o caso da Escola
do Mar de Barcelona ------------------------------------------------------ 229
7.1.3. A recuperação pedagógica do corpo na Escola Nova --------- 233
7.1.4. A psicomotricidade e o corpo da criança na educação -------- 237
7.2. A educação do corpo a partir da perspectiva culturalista ------------- 240
7.2.1. Psicanálise e educação: liberação do corpo do educando ----- 241
7.2.1.1. As abordagens de uma pedagogia do corpo segundo
Wilhelm Reich ------------------------------------------------------------- 242
7.2.2. A educação do corpo simbólico ---------------------------------- 245
7.2.3. O retorno neoromântico à naturaleza e sua pedagogia ------- 247
7.2.3.1. Revolução sexual e pedagogia ---------------------------------- 247
7.3. Pedagogia do corpo em movimento ------------------------------------- 250
CaPítulo 8
A presença do corpo nos discursos pedagógicos contemporâneos ----- 255
Introdução --------------------------------------------------------------------- 257
8.1. O início de uma nova hermenêutica corporal ------------------------- 258
8.1.1. A nova discursividade --------------------------------------------- 259
8.1.2. Pedagogia do silêncio dos corpos -------------------------------- 260
8.1.3. Corpo, poder e educação ----------------------------------------- 263
8.1.4. Pedagogia do corpo na fronteira --------------------------------- 267
8.2. Subjetividade corporal e pedagogia queer ------------------------------ 269
8.2.1. A questão queer na pedagogia ------------------------------------ 271
8.2.2. Desconstruir pedagogicamente a anormalidade corporal ---- 274
8.2.3. O corpo: elemento central da pedagogia queer ---------------- 277
8.2.4. Experiências, propostas e trabalho em torno do corpo a partir
da pedagogia queer -------------------------------------------------------- 280
CaPítulo 9
Novos usos sociais do corpo no século XXI ------------------------------ 287
Introdução --------------------------------------------------------------------- 289
9.1. Os corpos pós-humanos -------------------------------------------------- 290
9.1.1. A cibersociedade, os mundos possíveis e o fosso digital ------ 291
9.1.2. Os corpos cyborg --------------------------------------------------- 293
9.1.3. Uma vida com corpos pós-orgânicos ---------------------------- 295
9.2. O corpo não aceito: desenho, arquitetura e cirurgia corporal -------- 296
9.2.1. A construção de padrões estéticos ou a invalidação dos
corpos existentes ----------------------------------------------------------- 297
9.2.2. A feminilidade dos corpos não aceitos -------------------------- 301
9.2.3. A fabricação de corpos estéticamente corretos: o silicone na
sala de cirurgia ------------------------------------------------------------- 303
9.2.3.1. Genealogia da cirurgia estética -------------------------------- 304
9.2.3.2. Cirurgia e implantes: arquitetura de um corpo para ser
aceito ------------------------------------------------------------------------ 305
9.2.4. O corpo renovado ------------------------------------------------- 307
9.3. O corpo transexual ------------------------------------------------------- 308
9.3.1. A prisão do corpo: os transexuais -------------------------------- 309
9.3.2. Aproximação quantitativa à transexualidade ------------------- 311
9.3.3. Identitades corporais transgenéricas ----------------------------- 312
9.4. Corpos tatuados, corpos perfurados (com piercing) -------------------- 314
9.4.1. Corpos escritos, corpos tatuados --------------------------------- 314
9.4.2. O corpo com piercing ou os metais in-corporados ----------- 318
9.4.3. A transformação corporal como ritual de iniciação ----------- 322
9.5. Corpo, cultura e vulnerabilidade na sociedade contemporânea ------ 326
9.5.1. O corpo transplantado: imaginários e sonhos sobre o corpo - 326
9.5.2. Corpo, medicina e hospitais -------------------------------------- 329
9.5.3. Narrativas do corpo vulnerável ---------------------------------- 333
9.5.4. Geograas do hospital: itinerários dos corpos transplantados 335
9.6. O dom: um ciclo de dar e receber a vida ------------------------------ 339
9.6.1. Biopolíticas do corpo transplantado ---------------------------- 339
9.7. Encarnar o corpo transplantado ----------------------------------------- 343
CaPítulo 10
Pedagogia e hermenêutica do corpo simbólico: bases para a ideação
corporal ------------------------------------------------------------------------ 345
10.1. Sobre a pedagogia hermenêutica -------------------------------------- 347
10.2. Os corpos e a pedagogia hermenêutica: uma primeira aproximação 349
10.2.1. Corpo e cultura na educação ----------------------------------- 350
10.2.2. A formação de um sujeito pedagógico: para ir mais além
dos corpos objetivados ---------------------------------------------------- 352
10.3. Performatividade corporal --------------------------------------------- 355
10.4. Pedagogia da narratividade corporal --------------------------------- 358
10.5. Uma pedagogia do tato e dos sentidos -------------------------------- 361
10.6. Cenografías e territórios para uma pedagogia do corpo simbólico -- 363
10.7. Pedagogia e mestizagem corporal -------------------------------------- 365
10.8. Pedagogia do corpo oprimido ------------------------------------------ 368
10.9. Pedagogia e projeto de ideação corporal ------------------------------ 370
10.9.1. O corpo no projeto de ideação pessoal ------------------------ 371
10.9.2. Pedagogia da compreensão corporal --------------------------- 373
10.9.3. Pedagogia da autonomia corporal ------------------------------ 375
10.10. Pedagogia da corporeidade ------------------------------------------- 377
CaPítulo 11
Bibliograa -------------------------------------------------------------------- 381
11.1. Bibliograa Geral ------------------------------------------------------ 383
11.2. Obras de referência ----------------------------------------------------- 412
13
PrefáCio
Rosane Michelli de Castro
Repleto de paixão pela temática, o autor, Jordi Planella, corpo-
raliza neste livro expressões e aspectos de suas vivências como educando
e educador, à luz de vivências de outros atores e suas narrativas corporais.
Escrito com todo rigor cientíco, transgride, ao mesmo tem-
po, o discurso normativo que busca modelar os corpos, para realizar a
imersão em uma crítica “à pedagogia normativa que tenta viver de volta
nas trocas que ocorrem no Ágora da Polis”.
Nesse sentido, no capítulo Epistemologia do Corpo”, o autor
apresenta resultados de reexões sobre a ciência e seus discursos sobre o
corpo a partir de sua dimensão social, a m de oferecer bases cientícas
para as discussões que empreende nos capítulos seguintes. Trata-se de
buscar constituir um corpus de conhecimentos que permita sistemati-
zar as ideias propostas e denidas sobre tal temática. A propósito, são
apresentadas nesse capítulo “[...] quatro concordâncias na constituição
de uma teoria do corpo [...]”, conduzindo o autor a reexões sobre le-
xicografais e etimologias corporais. A partir de diferentes aproximações
aos conceitos sobre corpo, sob diferentes perspectivas, o autor busca
apresentar bases de uma pedagogia do corpo simbólico.
Jordi Planella Ribera
14
No segundo capítulo, “Genealogia do Corpo, o autor reto-
ma aspecto dos rumos da mudança historiográca preconizada a partir
das tendências que surgem com os historiadores da Escola dos Anna-
les, as quais colocam em evidência as histórias das singularidades dos
corpos mediante as narrativas como as histórias dos homens. Nessa
perspectiva, o autor apresenta aspectos da entrada do corpo na história
e nos processos de humanização da espécie humana, encaminhando
para a formulação de que é por meio de seus corpos que os homens
estão incluídos na sociedade e, em nenhum caso, o corpo é o elemen-
to que os exclui da mesma. A ideia é a de que “não é possível pensar
o homem sem ter presente o corpo.” Daí que, em dada lógica para
normatização da sociedade, os discursos também produzem uma visão
de corpos negativista que se supõe necessitar de controle, disciplina e,
no limite, punição e medicalização. Então, o autor responde a uma de
suas perguntas do início do livro: “o corpo nos é dado naturalmente
ou é uma construção social que se transforma por momentos históri-
cos e contextos sociais e culturais? A resposta [...] é que o corpo é uma
construção social.
No terceiro capítulo, “Situar o corpo na teoria, o autor apre-
senta o o condutor dos próximos capítulos, armando que a presença
do corpo físico nos discursos das Ciências Sociais ressalta a importân-
cia do corpo como elemento de reexão, diante do enfrentamento
histórico entre idealismo e materialismo, de um lado, e metafísica e
dialética, de outro. Também nesse capítulo é retomada a ideia de corpo
como instrumento de e como investimento para o poder, portanto,
passando por uma lógica de gestão da saúde, da alimentação, da higi-
ene, da natalidade, da sexualidade, etc., e, ainda mais incisiva, sobre o
corpo feminino. Por m, nesse capítulo o autor reete sobre desaos
da sociedade da informação, da tecnologia, da Internet e em geral o
que tem se denominado “ciberespaço”, em busca do enfrentamento
ao novo estágio da humanidade em que a mente teria se liberado dos
limites corporais.
Nesse sentido, no quarto capítulo, “Os outros corpos: A cons-
trução social da diferencia”, seguem resultados das reexões sobre o cor-
15
Corpo, cultura e educação
po como construção social e, então, a dimensão biológica e a dimensão
sócio-cultural do corpo são articuladas em um discurso repleto de ágoras
para discutir aspectos sobre diferença.
Seguem, então, igualmente repletos de ágoras para nossa ree-
xão, e subsidiados por falta de bibliograa especializada, sobretudo para
nós educadores, os capítulos “Higienização e controle pedagógico dos
corpos educandos”, “A pedagogia da subjetividade corporal”, “A presen-
ça do corpo nos discursos pedagógicos contemporâneos”, “Novos usos
sociais do corpo no século XXI” e “Pedagogia e hermenêutica do corpo
simbólico: bases para a ideação corporal”.
Por todo o exposto, assim como deseja o autor de Corpo, cultu-
ra e educação, Jordi Planella, também é o meu desejo que a leitura deste
livro “[...] seja frutífera para educadores e investigadores brasileiros”, já
com a certeza de que ela o será, assim como foi para mim.
17
aPreSentação da edição braSileira
Jordi Planella
Apresentar a edição em português do livro Corpo, cultura e edu-
cação (publicado originalmente na Espanha), publicado pela editora Cul-
tura Acadêmica de São Paulo (UNESP) , é quase um sonho. Escreve-se
com a esperança de que será lido por outros, pelos leitores que mostram
certo interesse pelos mesmos temas. Neste caso, trata-se de uma temática
que estava, quando o livro foi publicado pela primeira vez (2006), prati-
camente começando a se desenvolver (e de forma muito especial em sua
aplicação no campo da educação). Falo dos Estudos Corporais.
Ao pensar no que aconteceu, algo curioso ocorreu em relação
à língua na qual o livro agora foi traduzido e no país onde está sendo
publicado. Comecei a trabalhar essa linha de investigação sobre Estudos
Corporais no ano de 2000. Naquele mesmo ano, realizei uma viagem
por distintas cidades do Brasil e aproveitei para coletar informações (li-
vros, artigos, teses de doutorado, revistas) que trabalhavam a temática
Estudos Corporais no Brasil. Tratava-se já de muitos materiais que para
mim foram um impulso inicial muito importante para meus trabalhos
iniciais. Nem esses autores nem mesmo eu sabíamos como o que está-
vamos fazendo seria denominado, como foi mais tarde, nem tampouco
podíamos imaginar que esses temas, no campo das Ciências Sociais e das
Jordi Planella Ribera
18
Humanidades, tomariam a força que tem no ano de 2017. A termino-
logia proveniente do campo dos Estudos Culturais (Estudos Corporais)
ainda não era utilizada.
Percebo que, muitos anos depois, a publicação deste livro em
português produz um efeito hermenêutico de “fechar um círculo”, de
regressar - em parte - àquela viagem do ano de 2000 para devolver à terra
algumas das ideias que já saíram dela mesma. E para fechar esse círculo,
contribuiu meu encontro com a Dra. Maria José Vicentini Jorente e
uma interessante conversa em minha casa na cidade onde vivo (Girona).
Em um momento da conversa me levantei da mesa e mostrei a ela alguns
de meus trabalhos. O presente livro lhe chamou a atenção, então disse
que algum dia o publicaríamos no Brasil. Essa conversa, animada por
um bom vinho - como devem ser todas as conversas que tratam sobre
os problemas do corpo e do ser humano - serviu para estabelecer laços
intercontinentais, para trocar experiências para que alguém do Brasil se
interessasse por Estudos Corporais e para que eu acabasse me interessan-
do por Design da Informação. Trata-se de uma convergência de interes-
ses que também vê seu fruto neste livro traduzido a oito mãos e com a
sensibilidade de quatro de vocês. Tradutoras que têm feito um trabalho
muito bom e que quero agradecer com carinho.
Não posso sentir nada além de um prazer enorme por ver esta
obra traduzida em português e publicada no Brasil; uma língua que
aprecio e que amo estudar, falar e ler, e um país como o Brasil, que dia a
dia me surpreende e me cativa.
Desejo que a leitura de Corpo, cultura e educação seja frutífera
para educadores e investigadores brasileiros.
PenSamiento enCarnado:
Estoy en mi cuerpo. Estar vivo es ser el propio cuerpo. Pienso, escribo, leo, hablo,
produzco cultura desde mi cuerpo y con mi cuerpo. Pienso, miro, gozo con los otros
cuerpos. Cuerpos que me permiten ser-yo-en-el-mundo. Otros cuerpos, pragmáticos,
discursivos, dominados, institucionales, lenguajeados, pornográcos, monstruosos, etc.
Cuerpos naturales y a su vez sociales, vistos como espacios de inscripción de los
valores de la sociedad. Marcas en las carnes, en nuestras carnes, que no podemos
ocultar. Quiero recordar, año a año, curso a curso, las hendiduras, las cicatrices que
el hierro al rojo vivo de la educación dejó en mi piel. Políticas del cuerpo inscritas
en el órgano más grande de nuestro cuerpo, para recordarnos determinadas normas,
peligros, prohibiciones, ….
Disciplinar al cuerpo, a los cuerpos, a nuestros cuerpos, para liberar el alma, ese era
el sueño de Platón. Ahora, tal vez, podemos darle la vuelta. Los cuerpos, revueltos,
revolucionados, han empezado a gritar, a dar forma a sus deseos. Tal vez, hemos
empezado a borrar las marcas inscritas en nuestras carnes que nos demonizan, que
nos paralizan. Ello, puede ser leído y visto como la mirada corpográca a los sujetos
que habitan en nuestro mundo.
Jordi Planella, Medellín, noviembre de 2013
CaPítulo 1
Corpos, resistências e
subjetividades: uma introdução
23
C,  
:  
En el dar directrices a los jóvenes sobre la vida con [...] una orientación
psicológica errónea, la educación se comporta como si los equipase para
ir a una expedición polar con ropa de verano y con mapas de los Lagos
italianos.
[Freud, El malestar en la cultura]
-Cuando yo uso una palabra -insistió Zanco Panco con un tono de voz
más bien desdeñoso quiero decir lo que yo quiero que diga..., ni más ni
menos.
-La cuestión insistió Alicia- es si se puede hacer que las palabras
signican cosas diferentes.
-La cuestión -zanjó Zanco Panco es saber quién es el que manda...,
eso es todo.
[Carrol, 1973, p. 116]
Um livro pode ser lido como uma metáfora da performativi-
dade: sem um programa previamente fechado, entramos em um bosque
de ideias que pouco a pouco nos ajudam a congurar e a tecer a rede de
discursos que apresentamos no texto nal. E se um livro pode ser lido
a partir da metaforização da performatividade é porque está implícita
a ideia de trajeto, de caminho, inclusive de ritual. No meu caso, repre-
Jordi Planella Ribera
24
sentou com certeza encarnar rmemente esta metáfora que me levou
por alguns itinerários de errância. Porém, tal como a mesma pedagogia
performativa sugere, o importante não é chegar ao nal, e sim a vivência
que temos do caminho; o caminho representou um verdadeiro processo
formativo no sentido que nos propõe Gadamer: educar é educar-se; mas,
sobretudo, representou um processo de corporização do mesmo texto.
No trabalho de redação dos textos, tive presente experiências
próprias que se encontravam ligadas ao papel do corpo em minha for-
mação. Desde a disposição regulada dos corpos na escola religiosa (onde
as carteiras escolares se encontravam sempre alinhadas ordenadamente
e nossos gestos eram previamente congurados), até as práticas de resis-
tência nos protestos de estudantes do curso em 1986/1987 (nos quais
unicamente por meio da mobilização corporal era possível fazer sentir
nossa voz). O corpo se expressava como texto, como fundo e forma se
opondo ao exercício bionormativo no qual as políticas educativas refor-
mistas nos queriam situar. Seguramente, eu não era consciente que o
corpo era elemento chave naquele protesto, e tive que esperar a reexão
realizada anos mais tarde para descobri-lo.
Mas não existiram apenas esses dois exercícios vividos - se fala-
mos a partir de uma posição binária - como educando; eu tive presente
também experiências vividas a partir da posição de educador. Esta foi,
sobretudo, a negação, por parte de muitas instituições que trabalham
em projetos educativos com pessoas com deciências, de possibilitar que
os sujeitos pedagógicos sejam os atores de suas corporeidades. A relega-
ção, nos discursos e práxis, dos sujeitos a categorias que não lhes corres-
pondiam (se levarmos em conta o que outros sujeitos com as mesmas
idades podem ou não fazer), fazia com que cassem submergidos em
corpos simbolizados como “infantis”, quando em realidade eram corpos
de adultos, corpos sexualizados que textualizavam, apesar das ações sim-
bolizadoras, esta necessidade. Também tive muito presente o trabalho
com adolescentes em situação de risco social e sua vivência corporal.
Com estes, foi possível colocar em prática boa parte das ideias que se
desenham no decorrer das páginas deste livro. Desde a gestão autônoma
do próprio projeto corporal até a crítica aberta às políticas de controle
25
Corpo, cultura e educação
corporal e de instauração de poder nos corpos dos sujeitos, que as admi-
nistrações pretendiam executar por meio de instituições como as nossas.
Levando em conta essa dupla perspectiva de corpo vivido nas práxis como
educando e de corpo vivido na práxis como educador, pude comparar boa
parte dos textos e discursos interpretados e compreendidos na visão her-
menêutica da pedagogia do corpo simbólico.
No entanto, este livro também é um exercício de crítica à peda-
gogia normativa que tenta voltar a viver nas trocas que ocorrem no Ágora
da Polis. Nos falta perguntar o porquê de a pedagogia não poder (ou não
querer) preocupar-se com os muitos fenômenos que ocorrem ao redor de
seus investigadores. Por trás destas páginas, há muitas horas de observação
de corpos que perambulam pelo ágora e de interpretação de textos que
esses mesmos corpos transmitem por meio da práxis de sua corporeidade.
Sem este exercício de contemplação das corporalidades, muitas das ideias
que eu transmiti durante meu discurso não teriam sido possíveis. Me aju-
daram aqueles que se escandalizaram quando pus lado a lado as palavras
corpo e pedagogia, ornamentadas, por exemplo, com os termos tatua-
gem e piercing. Foi necessário resistir, novamente, a sua vontade de que eu
não entrasse em terrenos pedagogicamente não normativos. A leitura de
Britzman me evidenciou que era importante continuar explorando esses
territórios, e seriam algumas das perguntas que se fazia o autor as que o -
zeram mais real: “¿Es posible que el proyecto educativo se convierta algún
día en un punto de encuentro para las revueltas deconstructivas? ¿Podría
la pedagogía suscitar reaccionas éticas que fueran capaces de rechazar las
condiciones normalizantes del origen y del fundamentalismo, aquellas
que rechazaran la sumisión?” (2002, p. 197).
Também é um exercício de contestação e atrevimento falar de
hermenêutica e focar a metodologia do livro por meio do diálogo com
textos, autores e situações da vida cotidiana. A frase que Ruiz (2003)
pronunciava, em uma de suas obras mais recentes, esteve presente em
minha escolha metodológica: “[...] los partidarios del análisis cuantitati-
vo ridiculizan el carácter fantasmagórico y fantasioso, totalmente caren-
te de rigor de control, de las viñetas e historietas de vida de los estudios
cualitativos” (p. 11). Para poder me localizar e construir meu discurso,
Jordi Planella Ribera
26
a partir desse modelo de trabalho, foi necessário construir um marco
metodológico que, por outro lado, me equipou com uma grande base
hermenêutica. O trabalho com os textos se realizou com a intencionali-
dade de produzir teoria, uma produção teórica que, para Larrosa (1995),
consiste em “reorganizar la biblioteca, colocar unos textos junto a otros,
con los que aparentemente no tienen nada que ver, y producir así un
nuevo efecto de sentido” (p. 259).
1.1 doS atoreS e SuaS narrativaS CorPoraiS
Este livro não teria sido possível sem o apoio, o diálogo, o tato
e a corporeidade de muitas pessoas. Os primeiros interessados e que
participaram de uma ou outra forma foram alguns dos meus alunos,
especialmente, aqueles que reetiram e/ou encarnaram corporeidades
não normativas ou não ortodoxas
1
. Com alguns deles compartilhamos
e encarnamos ideias que me permitem colocar lado a lado a pedago-
gia e o corpo. Essas conversas tomaram diversas direções, entre as quais
é necessário situar seus piercings e tatuagens (surpreendidos, de início,
que um professor estivesse interessado por esses temas) como espaços
de encarnação e de inscrição subjetiva. Também, e sobretudo, à medida
que o livro avançava, dialoguei sobre nossas identidades sexuais. Como
teríamos que nos denir? Heteronormativos? O que poderia signicar e
onde deveríamos situar nossos corpos a partir dessa perspectiva? Come-
çaram a circular ideias, práticas e vivencias dos corpos não heteronor-
mativos. Termos como gay e lésbica nos conduziram à Queer eory, que
pudemos discutir com alguns deles.
A reexão sobre nossas identidades era relevante, porque nos
perguntavámos: que papel tem a educação sexual na educação? que mo-
delo sexual transmitimos? que gêneros damos por válidos?. Os estudan-
tes com quem conversei eram do segundo e terceiro ano de Educação
Social, e muitos deles já trabalhavam nesse campo prossional ou esta-
Especialmente aqueles que compartilharam comigo o Seminario de Introducción a la Salud Mental (2001-
2002), no qual lemos e discutimos textos de Foucault e Guillermo Borja, e os do Seminario de Análisis de la
Práctica Educativa (2002-2003), onde pusemos em jogo ideias, sensações, corpos e experiências de trabalho
com sujeitos com corporeidades não normativas.
27
Corpo, cultura e educação
vam a ponto de fazê-lo. Falar e discutir esses temas era relevante para po-
der entender a pedagogia do corpo a partir de outra perspectiva: Lluís,
Laia, Mercê, Patricia, Francesc, Asun, Patri, Joan e outros me ajudaram
a entender os aspectos e detalhes de seus corpos que, do contrário, te-
riam sido mais difíceis de captar.
Um dos temas de discussão seria sobre os corpos das pessoas
com deciência. O trabalho das corporalidades freaks é parte de um
projeto mais amplo denominado Seminario de Teoría Crítica y Dis-K@
pacitat, dedicado a estudar, discutir e compartilhar outras formas de en-
tender, interpretar, compreender e acompanhar as pessoas com deci-
ência: Quais são os modelos normativos e os modelos não normativos
nas formas estéticas, nos usos e odores, no tato e nas condutas de nossos
corpos? No âmbito da disciplina Intervención con personas con discapa-
cidad, também discutimos muitos desses temas a partir da discussão do
lme Hazme bailar mí canción, no qual a protagonista Júlia - uma me-
nina com paralisia cerebral - aparece nua e mantendo relações sexuais
com um sujeito sem nenhuma deciência aparente. O corpo de Júlia era
um ato de resistência, contestação e pedagogia. Mostrou-nos que existia
outra hermenêutica dos corpos das pessoas com deciência e que não
necessariamente tinham que se construir a partir de sua negatividade.
Muitos imaginários caíram por terra com o lme e com a discussão en
torno dos temas que nos suscitavam.
É assim que o livro parte de textos e autores, mas também da
minha experiência relacional e reexiva com e em torno da corporeidade
que, como Toraine aponta, se constrói tendo muito presente que “la idea
de Sujeto tiene sus raíces con la experiencia vivida” (1997, p. 91). É por
esse motivo que quero insistir na ideia que parte da construção do livro
passa por minha experiência vivida da corporeidade, mas também de
muitos outros atores e de suas narrativas corporais.
CaPítulo 2
Epistemologia do Corpo
31
E  C
Le retour en force du corps sur la scène philosophique, sa réhabilitation
ontologique, sa promotion à la dignité de “l’être-pour-nous”, procèdent
d’une constatation empirique: le corps existe et il fait savoir en faisant
intrusion dans l’ordre du Logos, en brisant las chaînes qui l’ont
maintenu jusqu’alors dans las caveaux du musée philosophique.
[J-M. Brohm, 2001, p. 2]
Começar um livro que tem por objeto o estudo do corpo hu-
mano e sua construção social me obriga a partir da análise detalhada
de seu signicado, de suas exceções e da etimologia que lhe dá forma e
que vem construindo-o ao longo dos séculos. Dedicarei este capítulo a
reetir sobre a ciência e aos discursos que se produzem sobre o corpo a
partir de sua dimensão social, assim como a analisar o status de solidez
cientíca que se tem conseguido, com a nalidade inicial de consolidar
os fundamentos do livro para capítulos posteriores.
A necessidade de reetir sobre a epistemologia surge como
consequência da proliferação de discursos sobre o corpo. Este aspecto
torna necessária a revisão de argumentos que conduzem o conjunto de
discursos para o que podemos denominar teoria do corpo (Body eory
ou Body Studies). A necessidade de reexão e de construção de uma
teoria do corpo se fundamenta na ideia de constituir um corpus de co-
nhecimentos que permita sistematizar as ideias propostas e denidas so-
bre tal temática. Essa perspectiva é uma demanda de parte dos autores
Jordi Planella Ribera
32
que, a partir das Ciências Sociais, têm trabalhado em reexões, estudos e
pesquisas cujo tópico de estudo é o corpo humano. Uma demanda que,
em parte, tem obtido resposta, mas que segue apresentando múltiplas
interrogações. Não é meu objetivo responder a tais interrogações, mas
procurar sistematizar e ordenar os conhecimentos e discursos existentes
que conuem em uma epistemologia do corpo. Para poder concretizar
as bases que conguram o estatuto cientíco dos saberes corporais, sis-
tematizei e ordenei aqueles discursos das Ciências Sociais que colocaram
o corpo como elemento discursivo central. Com essa nalidade, ofereço
as bases para a constituição de uma epistemologia corporal.
2.1 ePiStemologia da CorPoralidade
Antes de apresentar-nos aos avatares da epistemologia, quero
deter-me e analisar o termo em questão e a relação que mantém com
os estudos e pesquisas sobre o corpo. Epistemologia é um conceito que
provém da forma grega episteme, e signica conhecimento e teoria do
conhecimento
1
. O termo grego não faz referência a qualquer conheci-
mento que não seja àquele que de maneira aproximada hoje conceitua-
lizamos e denimos como ciência. Este tipo de conhecimento pode ser
qualquer saber bem fundamentado porque foi construído seguindo deter-
minadas normas que o ordenam e o sistematizam. Para Batesson (1977),
a epistemologia se relaciona com as leis das quais nos valemos para dar
sentido ao mundo e faz referência à noção mesma de problema. Arma
que, antes de tudo, existem os problemas de como conhecemos alguma
coisa, como conhecemos em que espécie de mundo nos encontramos e
que tipologia de criaturas somos que podemos conhecer alguma coisa
2
.
Foucault dedicará parte de sua obra a reetir sobre a episteme, (embora o fará de forma mais detalhada
na sua obra Les mots et les choses). O autor dirá que “es necesario representarse más bien el dominio de la
episteme moderna como un espacio voluminoso y abierto de acuerdo con tres dimensiones. Sobre una de
ellas colocarían las ciencias matemáticas y físicas (...); en otra dimensión, estarían las ciencias (como las del
lenguaje, la vida, de la producción y distribución (...) En cuanto a la tercera dimensión, se trataría de la
reexión losóca que se desarrolla como pensamiento de lo Mismo” (1968, p. 333).
O tema da epistemologia tem um papel relevante no seu libro Steps to an ecology of mind. Quando fala
de epistemología e ontologia adverte que “usaré en el presente ensayo el término único de ‘epistemología’ para
abarcar ambos aspectos de la red de premisas que gobiernan la adaptación (o mala adaptación) al ambiente
humano y físico. Para emplear el vocabulario de George Kelly, son estas las reglas mediante las cuales un individuo
‘construye’ su experiencia” (1998, p. 344).
33
Corpo, cultura e educação
Em sentido semelhante, a epistemologia é denida por iebaut (1998,
p. 41) “como o estudo de las creencias y los conocimientos racionalmen-
te justicados y, en concreto, de los conocimientos cientícos”. O fato
de que os conhecimentos aos quais se refere iebaut sejam racional-
mente justicados, os diferencia de outras tipologias de conhecimentos
não justicadas de forma racional
3
. Por outro lado, Larrossa nos propõe,
partindo da Pedagogia, que:
El discurso epistemológico suele ser visto como primariamente
referencial. Es decir, como un discurso en el que se dice algo sobre
algo. Sobre la ciencia en este caso. En esta perspectiva, el discurso
epistemológico sobre un campo determinado será aquel que tenga
por objeto producir una descripción epistemológica de ese campo
(Larrosa, 1990, p. 15).
Dessa forma, a epistemologia permite a construção do conhe-
cimento de uma determinada área, realizada não de qualquer forma, e
sim com a clara nalidade de que o resultado seja normativo e referen-
cial. Esse é o caso de alguns trabalhos que se centraram no corpo como
objeto de estudo, embora seja certo que ainda são poucos os que dedi-
caram parte de sua produção a sistematizar e reetir sobre a sua episte-
mologia. Os estudos de Brohm são, possivelmente, os que deram mais
frutos em relação à elaboração da epistemologia do corpo. Tal como
indica este autor:
Universitariamente me he esforzado en dar una consistencia
epistemológica de la transversalidad y de la complementariedad
que inscribe la corporeidad en un horizonte transdisciplinar
que no se atreve a coger libremente, sin totems ni tabues, sin
cuestionamientos, sin prolemáticas, sus referencias a diferentes
campos de conocimiento, de la fenomenología, al etnopsicoanálisis,
de la metafísica a la anatmodiología (Brohm, 2001, p. VII).
Em relação com o tema da epistemologia e a inuência do pensamento mítico na sua construção, Durand
manifesta que tem como objetivo interrogar-se sobre “los referentes mitológicos que marcan, acompañan y
quizá permiten el reencarnamiento de una ciencia sociológica debilitada desde hace tiempo por el exclusivo método
del recuento de los hechos exclusivos y el mitologema -¡reprimido como tal!- del sentido de la historia heredado de
los providencialismos y mesianismos judíos y cristianos” (1997, p. 156).
Jordi Planella Ribera
34
O esforço para elaborar uma epistemologia não se pode limi-
tar à tarefa desenvolvida por somente um pesquisador e a partir de uma
única disciplina, e sim que a epistemologia do corpo se constitui por
um corpus de conhecimentos construídos – compartilhadamente - por
aqueles autores que têm construído saberes sobre esse tema. Entre este
corpus de conhecimentos, encontramos o trabalho de Bayard (1992,
p. 22), no qual propõe que “o trabalho epistemológico realizado sobre
os conceitos de corpo e de si mesmo, parece, depois destes últimos
vinte anos, estar marcado por uma crescente heterogeneidade
4
”. Esta
disparidade de aproximações, olhares, modelos e formas de denir e
interpretar o corpo, à qual faz referência Bayard, cará exposta ao lon-
go dos primeiros capítulos do livro. Se estudamos as diferentes disci-
plinas que se aproximaram do corpo (a história, a losoa, a medicina,
a pedagogia, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história da
arte, etc.), nós daremos conta do representativo volume de conheci-
mentos que se produziram sobre o mesmo. Apesar de a diversidade
de enfoques, disciplinas e olhares sobre o corpo ser signicativa, esta
disparidade pode fazer com que os trabalhos realizados caiam em uma
confusão de pontos de vistas teóricos que dicultem a consecução dos
objetivos pretendidos
5
.
Um dos trabalhos que colaborou mais para a elaboração de um
corpus de conhecimento sobre o corpo foi o número especial da revista
Current Sociology dedicado a Les Sociologies et le Corps, editado em 1985,
pela International Sociological Association (ISA)
6
. O volume, publicado
não em forma de artigos, e sim como monograas, revisa, criticamente,
as publicações realizadas em torno do corpo até o ano de 1985. O traba-
lho de Current Sociology é, em si mesmo, uma epistemologia do corpo,
porque as 697 referências bibliográcas expostas permitem organizar a
teoria do corpo desde o século XIX até a data de edição da revista. A
Outros autores que tratam a perspectiva social e que incluem capítulos sobre epistemologia nas suas obras
são: Turner (1983), Le Breton (1992) e Brohm (2001).
Nesse sentido Reischler (1983) avisa do perigo que a diversicação extrema de aproximações pode provocar
a dispersão da substância e da coerência do corpo. Se todo mundo constrói seu modelo corporal, que estatuto
teórico podemos compartilhar? pergunta-se o autor.
Este trabalho monográco, ao revisar a reedição do presente livro (2015), segue praticamente sem ser
citado nos trabalhos referenciados no disciplinar dos Estudos Corporais.
35
Corpo, cultura e educação
tarefa de investigação a que se propõem os autores se inicia formulando
as seguintes questões:
qual é o estado do corpo como objeto de estudo?
que dimensões da corporalidade se estudam?
que conceitos se usam para apreender o corporal?
O posterior trabalho de análise, revisão e estudo do conjunto
de publicações sobre o corpo conduz os autores às seguintes conclusões:
Existem múltiplas dimensões sociais da corporeidade, especial-
mente a partir de disciplinas como a medicina, a demograa, a
biometria, a ergonomia; embora seja a sociologia a que oferece,
no ano de 1985, um olhar muito tangencial à temática do corpo.
Uma prática corporal pode ater-se ao ponto de vista contextual,
social, institucional ou cultural em que se encontra inscrita.
A conceitualização da corporalidade cará, em termos sociológi-
cos, limitada e dependente de teorizações sociológicas parciais.
O corpo, como ser social, é o resultado de um jogo social duplo
entre aquilo que é orgânico e aquilo que é social (1985, p. 136).
Para Le Breton, as diculdades na consecução de uma episte-
mologia se concretizam nas duas seguintes ambiguidades:
As concepções do corpo têm altos níveis de variabilidade de uma
cultura a outra.
O uso do termo corpo, no lugar do termo pessoa, pode cair na ar-
madilha de uma proposição dualista inconsciente (1992, p. 40).
A intenção de construção de uma epistemologia do corpo se
traduziu em uma destacável produção de trabalhos a partir da sociología
del cuerpo. As pesquisas de Turner (1983), Le Breton (1992), Berthelot
Jordi Planella Ribera
36
(1983), Guibentif (1991) e outros autores, buscam uma consistência
epistemológica de uma sociologia do corpo. Le Breton (1992) considera
que a sociologia do corpo exige um conjunto de condições especiais para
poder existir e elas se agrupam em torno de uma constatação de fatos
sociais que conguram o signicado do corpo. Esses exercícios discursi-
vos que buscam construir uma sociologia do corpo seguem três direções
diferenciadas:
uma sociologia contraponto, na qual o corpo funciona como um
analisador da realidade social (o corpo é a base epistemológica);
uma sociologia funcional (com a nalidade de aplicá-la à reali-
dade);
uma sociologia do corpo (produzindo teoria do corpo).
Apesar da anunciada heterogeneidade e ambiguidade nos tra-
balhos sobre o corpo, podemos armar que existem alguns pontos de
convergência que são os que fundamentam meu discurso acerca de uma
epistemologia corporal. O fato de que determinados autores, áreas de
conhecimento, disciplinas e escolas de pensamento apresentam sinergias
em relação ao corpo, possibilita a construção conjunta (e a interpretação
da mesma, se nos posicionamos a partir da hermenêutica) de discursos
corporais. Essas convergências em direção a uma epistemologia do cor-
po podem ser organizadas em quatro pontos diferentes:
O primeiro ponto de convergência é a aceitação de que o signi-
cado de corpo é uma cção. Não se trata de denir e pensar o
corpo como algo irreal ou inexistente, e sim de pensá-lo como
construído socialmente, no sentido de que ele não vem dado
de uma forma natural, e sim, que se encontra elaborado social
e culturalmente por cada sociedade e em cada momento his-
tórico. Le Breton dirá que é necessário partir do pressuposto
que “el cuerpo no existe en estado natural, se encuentra todavía
aferrado en la trama del sentido, incluso en sus aparentes ma-
nifestaciones de rebelión” (1992, p. 37). De fato, a ideia de que
o corpo é construído socialmente é, para Turner, o fundamento
37
Corpo, cultura e educação
principal da sociologia moderna. Citando o trabalho de Parsons
e Structrure of Social Action, publicado em 1937, “la funda-
mentación epistemológica de la sociología moderna ha dado um
giro en el rechazo del positivismo del siglo XIX, especialmente
el biologiscismo que soportaba el comportamiento humano que
podía ser explicado desde la biologia humana” (1994, p. 25), e
que no campo da sociologia, o signicado das ações sociais não
se pode limitar à biologia e à siologia. A dimensão do corpo ga-
nha, à luz dos novos enfoques teóricos, múltiplas opções herme-
nêuticas que permitirão entendê-lo como um elemento social, e
não exclusivamente como um elemento natural.
O segundo elemento chave na constituição de uma epistemolo-
gia do corpo é que o corpo é constitutivo da pessoa. Esta cons-
tituição da pessoa se fundamenta no ressurgimento de alguns
modelos antropológicos não dualistas, que permitem – de novo
– entender o corpo a partir das antropologias que não dicotomi-
zam a pessoa. Esse enfoque se traduz na simbolização da cons-
trução do corpo, que possibilita que o sujeito encarne seu corpo,
o represente e o viva como unidade psicossomática. Nessa linha,
tem se focado o trabalho de García quando se refere ao ato de
encarnar os corpos: “La reapropiación y secularización del con-
cepto de ‘encarnación’ facilita aquella superación [reriendose
a la antropologia dualista] y ayuda a ver en la corporalidad el
lugar básico donde se funden y diluyen muchos de los dualis-
mos” (1994, p. 42). Essa orientação torna-se signicativa espe-
cialmente para nós, pois na concepção antropológica da pedago-
gia, o fato de falar do corpo como constitutivo da pessoa abre as
portas para a construção de um discurso hermenêutico em torno
de uma pedagogia que podemos denominar pedagogia integral.
O terceiro elemento de concordância na constituição de uma epis-
temologia do corpo se fundamenta na ideia de que o corpo é um
dos eixos centrais nos discursos das Ciências Sociais no contexto
cultural pós-moderno. O corpo tem passado de uma situação de
esquecimento no marco teórico das Ciências Sociais para ser um
Jordi Planella Ribera
38
dos seus pontos centrais, praticamente de referência obrigatória
na produção de saberes. Em relação à posição do corpo como ele-
mento central dos discursos, Porter parte da ideia de que:
La antropología cultural ha proporcionado a los historiadores,
tanto en la teoría como en la práctica, linguajes para analizar los
signicados sociales del cuerpo, en especial en la circunstancia de
los sistemas de intercambio social; y de forma similar, la sociologia,
y sobre todo la sociologia médica, ha animado a los historiadores a
tratar el cuerpo como encrucijada entre el yo y la sociedad (1993,
p. 257-258).
Esse fato tem provocado uma mudança signicativa nas Ci-
ências Sociais, que permitiu oferecer um olhar interdisciplinar
cada vez mais amplo ao corpo.
A quarta concordância tem sua origem em uma mudança de
concepção do corpo. Historicamente, diferentes percepções do
corpo têm coexistido e, até pouco tempo, ele tem sido visto sob
a inuência do platonismo, do cristianismo e do cartesianismo,
como algo essencialmente negativo. Será a partir dos anos 1970
que a concepção do corpo se interpreta de forma mais positi-
va. Esta mudança de perspectiva pode ser anunciada como o
abandono de um ciclo de negatividade e o início de um ciclo de
positividade. A positivação tem sido rearmada por diferentes
autores, que a partir de múltiplas disciplinas, insistem na possi-
bilidade do exercício hermenêutico de forma positiva. Possivel-
mente, a mais representativa — pelo que signica na história da
negativação do corpo — seja o trabalho de Martini, Elogio del
cuerpo
7
. Nele, o cardeal parte de uma interrogante inicial: quem
sou?, para chegar a responder o seguinte: “En efecto, nuestro
cuerpo es primero sujeto, más que un objeto; es sujeto no sim-
plemente del tacto y de la vista, sino de todas nuestras acciones
O fato de que a partir da Igreja Católica se proponham discursos nos quais se deixa de negativizar o corpo
signica, embora não se trate de textos amplamente difundidos, que assistimos a uma importante mudança
na percepção do mesmo. Na apresentação do livro, o autor arma que “a pesar de todo, querría intentar
expresar alguna cosa sobre esta realidad sintética que es el cuerpo humano, en el cual y en torno al cual, de
alguna manera todo tiene lugar, y a propósito del cual circulan múltiples teorías, se enfrentan actitudes, se
desarrollan tantas dialécticas” (Martini, 2001, pp. 9-10).
39
Corpo, cultura e educação
(2001, p. 28). Essa ideia, junto com o trabalho de Chittister,
no qual rearma essa mudança em direção a uma concepção
teológica do corpo, me permite armar que assistimos a uma
mudança hermenêutica que agora possibilita entender o corpo
a partir de uma perspectiva positiva. A autora disse, a respeito,
que “creer que la materia es mala y el espíritu bueno, y que am-
bos están denitivamente separados, es una postura lamentable
y sumamente limitada” (2001, p. 100).
As quatro concordâncias na constituição de uma teoria do cor-
po estão representadas no quadro seguinte:
Concordâncias na epistemologia corporal
CONCORDÂNCIAS NA EPISTEMOLOGIA DO CORPO
Primeira concordância O corpo é entendido como um construto, como uma cção.
Segunda concordância O corpo é entendido como aquilo constitutivo da pessoa.
Terceira concordância
O corpo é concebido como o eixo central dos discursos das
Ciência Sociais
Quarta concordância
Atualmente, nos encontramos em um ciclo de positividade do
corpo.
A análise de sinergias na constituição de uma epistemologia
do corpo permite armar que houve uma mudança relevante nos ob-
jetos de estudo das diferentes disciplinas. A obra de Foucault, possivel-
mente, é a que mais colocou em jogo o corpo como elemento estrutu-
rador e a que permitiu uma mudança de olhar sobre a sua realidade e
em torno das práticas das quais tem sido objeto. Nesse sentido, a análise
que faz durante os anos de 1970 já pretendia demonstrar como o corpo
tinha passado de uma concepção fundamentada no poder (era necessá-
rio corrigir os corpos desviados), a uma situação de controle social dos
corpos (estes não podiam ter autonomia) e como, nalmente, se havia
Jordi Planella Ribera
40
chegado à vigilância dos corpos na sociedade produtiva do século XIX
(os corpos deviam estar submetidos à vigilância ocular). Diferente de
outras épocas, a imposição de um poder de tipo disciplinar se centrará
nos corpos dos sujeitos porque o poder toca seus corpos e se insere
em suas ações. Os trabalhos do lósofo francês permitiram colocar em
circulação ideias que serão relidas à luz de outras disciplinas, conver-
tendo-o no catalizador de uma importante produção de conhecimento.
A inuência de seus trabalhos na epistemologia do corpo é a que mais
marcará os teóricos das Ciências Sociais que se dedicam ao estudo e à
elaboração de teoria do corpo.
2.2 SignifiCadoS e etimologiaS CorPoraiS
A reexão sobre a constituição de uma epistemologia do corpo
me conduz aos territórios das lexicograas e etimologias. É a partir desta
perspectiva que formulo as seguintes perguntas:
Qual é a origem etimológica do termo corpo?
Como ele tem se construído em diferentes línguas, especialmen-
te nas línguas antigas do Mediterrâneo?
Qual é a perspectiva macrossocial do corpo na lexicograa?
Qual é a perspectiva microssocial do corpo na lexicograa?
Responder a essas perguntas iniciais requer estudar, analisar,
revisar e criticar alguns dicionários etimológicos, de uso, ideológicos,
terminológicos, etc. para formular uma primeira conclusão em relação
ao tipo de conceito que me disponho a estudar ao longo do livro.
2.2.1. o CorPo e Sua etimologia
Entre os termos originários que designam o corpo na língua he-
braica, encontramos três conceitos que me permitem armar sua visão uni-
41
Corpo, cultura e educação
tária do homem
8
. Os termos aos quais me rero são Bāśār, Nefesh e Ruah, e
cada uma das palavras serve para se referir ao corpo detalhadamente. O ter-
mo Bāśār passa a ser traduzido para o grego como Sarx e para o latim como
Caro (carne, e em determinadas ocasiões, corpo). Nas palavras de Gevaert
(1995, p. 73), “La carne no signica el cuerpo en oposición al alma espiri-
tual; signica todo el hombre, corpóreo y espiritual, unidad psicofísica, bajo
el aspecto de ser débil y frágil”. O sentido que pode ter Bāśār é também o de
relação social, aquela parte que nos permite entrar em comunidade (comu-
nicar-nos) com os demais. Em algumas ocasiões, Bāśār serve para designar o
homem inteiro, monísticamente e sem concepções dicotômicas da pessoa.
Nefesh pasou a ser traduzido na tradição grega como Psyché e na latina, como
Anima
9
. Na sua origem, Nefesh signicava pescoço, órgão para respirar; é, de
fato, uma entidade espiritual e corpórea ao mesmo tempo. Para Galimberti
“[...] designaba el carácter indigente e infantil de la vida humana” (1983,
p. 35). Nefesh se identica muitas vezes com o sangue, razão pela qual os
hebreus não podem comer sangue nem alimentos que a contenham. Ruah
foi traduzido para o grego como Pneuma e para o latim, como Spiritus.
Ruah literalmente signica respiração ou vento, e indica uma relação entre o
homem e Deus. Seguindo a Gevaert, Ruah “indica una relación especial del
hombre con Dios” (1995, p. 73).
Com esses exemplos quero mostrar como alguns aspectos, que
em determinadas antropologias são interpretados ora como psíquicos,
ora como corporais, na língua semita devem ser interpretados conjunta-
mente como psíquicos e corporais ao mesmo tempo
10
. Gevaert (1995)
cita como exemplo o desejo de beber ou de comer, que não se encon-
Em e Anchor Bible Dictionary encontramos que o termo hebreu usado para designar body (corpo) em
hebreu era gewiyyâ, e não os outros três conceitos citados.
Tal como arma Duch “resulta sucientemente evidente que el término hebreo <alè> (nefesch) es uno de
los conceptos más importantes de la antropología del Antiguo Testamento: aparece 755 veces. Esta palabra
se traduce 600 veces por psyché en la versión griega de los textos bíblicos” (2003, p. 67). Seguindo o
formulado por Rochetta “el término nephesh aparece más de 750 veces en el AT y abraza una amplia gama
de acepciones. En sentido traslaticio designa la vida y por ende el ser humano que vive (...) El hombre no
se limita a tener un nephesh: es nephesh, es un ser que vive y tiende a realizarse como tal” (1993, p. 33).
10
Em sentido parecido Tresmontant (1953) arma que “El hebreo es una lengua concreta que solo nombra
aquello que existe. Es así que no tiene una palabra para designar la materia, por lo menos no más que para
el cuerpo, ya que estos conceptos no tienen como objetivo la realidad empírica, contrariamente a lo que
pasa con nuestros viejos hábitos dualistas y cartesianos. Nadie ha visto jamás la materia, ni un cuerpo, en el
sentido que lo comprendre el dualismo sustancial” (1953, p. 53).
Jordi Planella Ribera
42
traria na ordem das coisas que fazem referência ao estado corporal, mas
sim na ideia de que o desejo e a psique desempenha um papel funda-
mental em relação ao corpo. Todas as partes do corpo humano ocupam
um papel central no pensamento hebreu, não somente como elemen-
tos da linguagem (gurações e metáforas), mas também como órgãos
propriamente de vida psicossomática. A não dicotomia entre corpo e
alma fazia com que se atribuíssem aos órgãos corporais os sentimentos
e pensamentos que consideramos, antes de mais nada, como atividades
psíquicas ou intelectuais. É necessário destacar que os termos semíticos
e sua antropologia não transpassarão nem a cultura nem a língua grega.
Para os gregos, a existência de um conjunto de palavras para
designar o corpo, e para designá-lo especicamente separado da alma, é
evidente. A palavra mais concreta que se relaciona com nosso corpo é
sôma, somatos (que faz referência ao corpo, ao cadáver e ao indivíduo),
embora também exista o termo sarx, sarkos (que signicava carne, corpo
vivo). De fato, trata-se de dois conceitos que, segundo Duch, “no man-
tienen unas signicaciones consolidadas y constantes, sino que, con una
cierta frecuencia, muestran unas notables oscilaciones de una palabra a
otra” (2003, p. 102). O termo sôma designava originariamente o cadáver
(da mesma forma que ainda o faz o termo corpo) justamente porque ser-
via para especicar o que restava do homem após seu transpasse, de sua
morte. Essa relação entre sôma e cadáver acontece por “todo lo que en él
encarnaba la vida y la dinámica corporal, queda reducido a una pura gu-
ra inerte, a una egie, a un objeto de espectáculo y de deprivación del otro,
antes de que quemado o enterrado, desaparezca en lo invisible” (Vernant,
1991, p. 21). Existem outros conceitos gregos para designar aspectos rela-
cionados com o corpo. É o caso de demas, que usado em sua forma acusa-
tiva refere-se à medida, ao tamanho, à aparência externa de um indivíduo
feito de partes reunidas
11
. Esse termo aparece muitas vezes relacionado a
eidos e phu
que fazem referência ao aspecto visível de quem cresceu e se
desenvolveu de forma correta. Também podemos relacioná-lo com chrōs,
que serve para designar a aparência externa, a pele, a superfície de contato
consigo mesmo e com o outro, assim como a carnosidade (Vernant, 1991).
11
De acordo com Vernant, “el verbo demõ signica: elevar una construcción por estratos superpuetos, como
se hace para levantar na pared de ladrillos” (1991, p. 22).
43
Corpo, cultura e educação
O termo cuerpo (corpo), que usamos na língua espanhola,
procede do vocábulo latim corpus, corporis, e signica carne, indivíduo,
cadáver. Dessas concepções etimológicas antigas, o termo tem derivado
para outras formas. Encontramos assim corpus, que provém da expressão
latina corpus Christi, que signica corpo de Cristo e que tem múltiplos
usos referencias na língua atual.
2.2.2. lexiCografia CorPoral
Se analisarmos a partir de um ponto de vista estritamente lin-
guístico, os dicionários estabelecem um modelo léxico e gramatical a
partir do qual são emitidos juízos sobre a língua e se denem os sentidos
que damos às palavras. É assim que nos dicionários se estabelece e se de-
termina, especialmente por meio dos dicionários normativos, aquilo que
é melhor dizer e, inclusive, aquilo que não pode ser dito. A partir dessa
premissa, tenho revisado criticamente diferentes dicionários que permi-
tem estudar, tanto em nível de macroestrutura como de microestrutura,
como tem sido construída a concepção do corpo.
A presença ou ausência dos termos permite estudar como a
macroestrutura rejeita determinados conceitos (especialmente nos di-
cionários terminológicos estudados) e privilegia outros. A forma como
se denem os verbetes e a orientação que é dada a cada um deles impõe,
por meio de um sistema ideológico, determinadas concepções sobre as
palavras descritas. É por isso que consultar um dicionário nos permite
conhecer qual é a denição do uso do termo que geralmente se faz. No
entanto, como Cabré sugere:
Los diccionarios no son meros instrumentos lingüísticos al servicio
de los profesionales del lenguaje o de los hablantes en general, sino
que son por encima de todo, herramientas culturales y didácticas
que, con una cierta dosis de perversión, vehiculan una determinada
imagen del mundo y difunden un sistema de valores especícos; son
objetos ideológicos que dan fe de la codicación y de la actualidad
de una lengua y que permiten identicar a los hablantes de una
misma comunidad (1993, p. 20).
Jordi Planella Ribera
44
É pelo fato que por trás de uma denição e de um conceito en-
contra-se escondida uma determinada ideologia e um sistema de valores
que penso ser relevante interpretar a concepção que do corpo se tem nos
dicionários. A partir dessa perspectiva, compartilho com Fullat a ideia
de que é necessário ter presente o contexto sócio-histórico e o uso que
se faz dos conceitos, seja no âmbito dos especialistas, seja no mundo da
linguagem coloquial (2002c).
Para poder contextualizar a minha proposta, estruturei o estudo
dos termos sob sua perspectiva lexicográca a partir de três grandes eixos:
Dicionários de língua geral
Dicionários terminológicos das Ciências Sociais
Dicionários de Pedagogia
Em cada um destes grupos de corpus, tenho analisado a ma-
croestrutura e a microestrutura, interpretando as coisas ditas e as não
ditas, bem como os verbetes incorporados e os ignorados.
2.2.2.1. a ConStrução do CorPo noS diCionárioS de língua
geral
12
O Diccionari de la Llengua catalana (DEC, 1993) da Enciclo-
pédia catalã dene corpo como:
1a) Agregado de todas las partes materiales que componen el
organismo humano. b) Persona. Separación de cuerpos y de bienes.
c) Cadáver. A las cinco ya estaba muerto. Velar el cuerpo. De cuerpo
presente. f) El cuerpo de Jesucristo. La ostia consagrada. g) En cuerpo
y alma. Enteramente, sin reservas. h) Ser como un cuerpo sin alma.
Ser más del otro mundo que de este. 2a) Toda la persona excepto el
12
Os diccionarios consultados para sistematizar a concepção do corpo nas diferentes línguas foram:
-Diccionari de la Llengua Catalana (DIEC) de l’Institut d’Estudis Catalans
-Diccionari de la Llengua Catalana (DEC) de l’Enciclopèdia Catalana
-Diccionari General de la Llengua Catalana (Pompeu Fabra) (PF)
-Diccionario del Español Actual (DEA)
-Diccionario de la Real Academia de la Lengua Española (DRALE)
-Diccionario de uso del español actual (MM)
-Grande Dizzionario della Lingua italiana (GDLI)
45
Corpo, cultura e educação
cuerpo. La cabeza fue encontrada en un valle, y el cuerpo diez pasos
abajo. 3a) El tronco por oposición a la cabeza y a los miembros.
Nesta primeira aproximação ao termo, é relevante a concepção
que os autores lhe inferem, opondo-o frontalmente à alma. A concepção
do corpo está relacionada à materialidade e, portanto, é o fundamento
da construção dicotomizada do homem. Se o corpo se relaciona com a
parte físico/material da pessoa, usar o termo para designar o cadáver re-
forçará essa negatividade existente. Essa concepção encontra-se relacio-
nada a crenças gregas e cristãs que propunham a imortalidade da alma.
Se o homem se divide em duas partes, a alma se eleva para o mundo
imaterial (mundo das ideias, etc.) e o corpo, com o início da consequen-
te putrefacção, cará na terra.
Na sua primeira aproximação ao termo, o Diccionari de la
Llengua Catalana (DIEC) do Institut d’Estudis Catalans o dene como:
Agregado de todas las partes materiales que componen el organismo
del hombre o de un animal (opuesto, en el hombre, al alma). Un
cuerpo viviente, muerto. Un cuerpo robusto, débil. Es necesario
cuidar la educación del cuerpo. No pensar sino en la salud del
cuerpo.
Fica evidente a insistencia do DIEC (1995) na perspectiva an-
tropológica dualista, quando destaca, entre parêntesis, a oposição exis-
tente entre o corpo e a alma. Uma das acepções que o DIEC propõe
para o corpo é a de pessoa e que, portanto, estaria na linha de assimilar o
conceito corpo ao conceito pessoa. As diferenças entre o DIEC (1995) e
o DEC (1993) são praticamente inexistentes. O segundo dene o corpo
como “agregado de todas las partes materiales que constituyen al orga-
nismo humano” (DEC,1993). A segunda acepção centra-se em denir
o corpo, também, como pessoa. Incluir esta perspectiva permite pensar
em um olhar não dividido entre corpo e alma, embora a primeira de-
nição seja a que nos introduzirá em seu signicado.
-Vocabolario della Lingua Italiana (VLI o Zingarello)
-Le Petit Robert (PR)
-e Shorter Oxford English Dictionary (SOED)
-Oxford Advanced Learner’s Dictionary (OALD)
Jordi Planella Ribera
46
Em relação à concepção do corpo nos dicionários de língua es-
panhola, no Diccionario del Español Actual (DEA, 1999), Manuel Seco
dene o corpo como um “conjunto de la estructura física de un humano,
un animal o un vegetal”. O corpo representa exclusivamente a parte física
da pessoa e não há possibilidade para uma hermenêutica corporal funda-
mentada na sua perspectiva simbólica. O corporal é sinônimo do físico e
aquilo físico se encontra contraposto àquilo psíquico, verdadeiro núcleo
central da pessoa. No Diccionario de la Real Academia de la Lengua Españo-
la (DRALE, 1992) se faz referência ao corpo armando que “en el hombre
y en los animales, (es la) materia orgánica que constituye sus diferentes
partes”. A localização do corpo se mantém na linha do material e do físico.
Na denição do DRALE, matiza-se o verbete corpo dizendo que é “lo que
tiene extensión limitada y produce impresión en nuestros sentidos por
calidades que le son propias”. Na mesma direção, o Diccionario de uso del
español (MM, 1966) dene o corpo como “cualquier porción de materia.
Figura de una persona considerada desde el punto de vista de su belleza”.
Como aspecto diferencial às anteriores denições, é notável essa relação
do conceito com a beleza da pessoa. Portanto, nos dicionários consultados
de língua espanhola, o corpo é entendido simplesmente como algo físico,
sem possibilidade de ser interpretado a partir de sua perspectiva simbólica.
São dois os dicionários de língua italiana que escolhi para estu-
dar a concepção que fazem do corpo. O Grande Dizionario della Lingua
Italiana GDLI (1964), editado por Battaglia, propõe diferentes aproxi-
mações ao conceito que estou anotando. Entre outras, há uma que segue
a mesma argumentação que o DIEC e na qual corpo é denido como “la
parte física y material que constituye la estructura del ser humano: im-
plica la idea de un organismo que articula en tanto que parte o miembro
de una unidad”. No dicionário italiano, deixa-se aberta a possibilidade
de entender o corpo como um dos membros que constituem a unidade
da pessoa, mas que não necessita ser contraposto à mente. Aliás, e essa
colocação é signicativa no enfoque que tenho dado ao livro, no mes-
mo dicionário se propõe que, por extensão, o corpo pode ser entendido
como homem, pessoa. No Vocabolario della Lingua Italiana (Zingarello,
1994) se entende o corpo como a parte de matéria que ocupa um espaço
e apresenta uma forma determinada. Que o corpo seja conceitualizado
47
Corpo, cultura e educação
com parte da matéria elimina a possibilidade de deni-lo e interpretá-lo
como inscrição (simbólica ou real) e o limita à existência material. Essa
denição se complementa com a ideia de que o corpo é o complexo dos
órgãos que constituem a parte material e orgânica do homem e do animal.
Dos dois dicionários em língua italiana revisados, somente o GDLI per-
mite a possibilidade de entender o corpo como sinônimo de pessoa ou
sujeito, enquanto o Zingarello situa o corpo como uma parte da pessoa,
claramente separada de sua dimensão espiritual ou psíquica. É neces-
sário insistir na ideia de que o GDLI é um dos poucos dicionários que
abrem a possibilidade de pensar no corpo a partir da sua subjetividade.
O dicionário da língua francesa que consultei é o Le Petit Robert
(PR, 1993), que dene corpo como a parte material dos seres animados. Essa
primeira denição revisada da língua francesa é breve, mas, ao mesmo tem-
po, muito concisa. A palavra chave é, sem dúvida, matérielle (material).
Concretiza a denição do corpo descrevendo o organismo humano por oposi-
ção ao espírito, à alma. Não insiste somente em destacar o caráter materialista
do corpo, mas rearma também a oposição entre corpo e alma.
Dos dois dicionários em inglês, e Shorter Oxford English
Dictionary (SOED, 1973) entende body como the physical or material
frame of man or of any animal; the whole material organism”. Assim,
como na maior parte das denições do corpo nos dicionários gerais da
língua italiana, espanhola, francesa, catalã e inglesa, limita-se a enten-
der o corpo como a parte material do sujeito. Por sua parte, o Oxford
Advanced Learners Dictionary (OALD, 2000) dene body como “the
whole physical structure of a human being or an animal”. Contudo, o
mais relevante nesse dicionário não é propriamente a denição que faz
do corpo, mas sim os conceitos que oferece relacionados ao corpo. Entre
outros, podemos encontrar os seguintes:
body-building: “the activity of doing regular exercises in order to make your
muscles bigger and stronger
body-language: “the process of communicating what you are feeling or thinking
by the way you place and move your body rather than by words
the body politic: “all the people of a particular nation considered as an organized
political group
Jordi Planella Ribera
48
O OALD é, dos dicionários consultados, o que incorpora os
usos sociolinguísticos mais atuais do corpo, e com maior clareza. Resu-
mi as diferentes concepções do corpo nos dicionários da língua geral no
quadro seguinte:
Conceptualização corporal: as denições dos dicionários da língua geral
Dicionário Denição Enfoque/ Perspectiva
PF
Junção de todas as partes materiais que compõem
o organismo do homem ou do animal (oposto, no
homem, à alma).
Dualista. Marcadamente
contraposto à parte espiritual do
homem
DIEC
Junção de todas as partes materiais que compõem o
organismo do homem ou de um animal.
Dualista. O corpo se contrapõe
à alma.
Oferece um certo enfoque
monista na acepção do corpo
entendido como pessoa.
DEC
Junção de todas as partes materiais que constituem o
organismo humano.
Dualista. O corpo se contrapõe
à alma.
DRALE
No homem e nos animais, (é a) matéria orgânica que
constitui suas diferentes partes.
Dualista. Centra-se na ideia
de corpo equivalente a matéria
orgânica.
EA
Conjunto da estrutura física de um humano, um
animal ou um vegetal.
Dualista. O corpo somente se
relaciona com o físico e não com
aquilo pessoal encarnado.
MN
Qualquer porção de matéria. Figura de uma pessoa
considerada sob o ponto de vista de sua beleza.
Limita o termo a questões
relacionadas com o material.
Zingarello
Parte de matéria que ocupa um espaço e apresenta uma
forma determinada.
Dualista. Centra a ideia de corpo
no físico, representável e que
ocupa um espaço físico.
GDLI
A parte física e material que constitui a estrutura do
homem: implica a ideia de um organismo que se
articula enquanto parte ou membro, concorrendo a
formar uma unidade.
Materialista. Deixa aberta
a possibilidade de entender
o corpo a partir de uma
perspectiva monista.
PR A parte material dos seres animados.
Materialista e dualista. Centra-se
exclusivamente na perspectiva
material do corpo.
SOED
e physical or material frame of man or of any
animal; the whole material organism.
Centra-se na perspectiva física
do corpo.
OALD
e whole physical structure of a human being or an
animal.
Centra-se na perspectiva física
do corpo, embora ofereça outros
verbetes como body-building,
body-piercing, body-language,
etc.
49
Corpo, cultura e educação
Armei, ao iniciar este capítulo, que os dicionários reetem a
realidade e são ferramentas culturais e didáticas de uma grande poten-
cialidade. Visto a partir dessa perspectiva, ca evidente que, na leitura
dos dicionários, a concepção que se inra do corpo estará marcada pelos
seguintes princípios:
O corpo faz referência à parte física da pessoa. Esta parte física se
limita ao anatômico, ósseo ou orgânico, sendo, portanto, concebida
exclusivamente a partir de uma perspectiva materialista. De acordo
com as leituras dos diferentes dicionários, é uma das conclusões que
se infere com maior clareza.
O corpo é entendido como contraposição à alma. A antropologia que
sustenta a maioria dos dicionários é uma antropologia dualista. É jus-
tamente nesse ponto que se evidencia a diculdade para incorporar
nessas obras de referência os novos usos sociais que se dão ao termo.
Com frequência acabamos transmitindo por meio dos dicionários o
legado que as diferentes culturas têm deixado na construção do corpo.
O corpo é concebido como sinônimo de pessoa. São relevantes as con-
tribuições feitas por alguns dicionários que abrem as portas a uma
hermenêutica subjetiva do corpo. Apesar da interpretação geral que
z nos dois pontos anteriores, a hermenêutica lexicográca permite
ver a brecha aberta a novas concepções corporais. O fato de que
algumas das obras entendem o corpo como pessoa ajusta-se à recu-
peração de olhares ampliados.
Tal como veremos no capítulo dedicado à construção social do
corpo, o corpo exerce sua condição de construído, mas esta construção é
a que se realiza por meio da linguagem que estrutura determinadas con-
cepções do corpo, e não outras. Essas concepções se concretizam em uma
mudança hermenêutica em direção à antropologia monista, em que o cor-
po é parte integral e indissociável da pessoa. É difícil que essas novas con-
cepções sejam introduzidas nos dicionários de referência e nos dicionários
normativos. Essa diculdade se fundamenta, segundo Estopà e outros, no
fato que “los diccionarios reejan una determinada visión de la realidad,
Jordi Planella Ribera
50
detrás de las palabras se encuentra toda una cultura y una tradición que
hemos ido arrastrando con el paso del tiempo” (2001, p. 63). A sociedade
evolui de forma rápida e, pelos custos que implica a revisão dos dicio-
nários (humanos, económicos, etc.) com frequência, demora anos para
incorporar os termos e as variações sociais em suas concepções.
2.2.2.2. a ConStrução do CorPo noS diCionárioS
terminológiCoS daS CiênCiaS SoCiaiS
Além das denições dos dicionários da língua geral e dos dis-
cursos inerentes a elas, tenho revisado as concepções que alguns dos
dicionários de especialidade das Ciências Sociais fazem do corpo. Não
são todos os dicionários de Ciências Sociais e Humanidades —sociolo-
gia, teologia, losoa, psicologia, antropologia— que incluem o corpo
nos seus verbetes, e este fato nos permite estudá-lo em nível de macro-
estrutura. É signicativo que nos perguntemos por que não guram,
especialmente em alguns dicionários, termos relacionados ao corpo. Se-
lecionei aqueles que têm feito contribuições à denição do corpo que
considerei serem mais signicativas. Referenciei, em notas de rodapé,
alguns dicionários que têm omitido o verbete, quando trato de cada
uma das disciplinas.
Em relação às obras lexicográcas de referência do campo da
Sociologia, pode-se armar que são poucos os que têm incorporado
o termo corpo. O mais signicativo é e Social Science Encyclopedia
(1985) editada por Kupor & Kupor. Nessa enciclopédia gura o verbete
Sociology of the Body, redigido por Turner. O fato de que em 1985 já
tivessem incorporado um verbete sobre sociologia do corpo mostra o
grande interesse no contexto anglófono pela justicativa de essa especia-
lidade da sociologia. Lá, Turner formula que “the sociology of the body
would involve the reproduction bodies in time, the regulation of bodies
in space, the restraint of the interior body and the representation of the
exterior body”. Também o Diccionario de Sociología (1995), editado por
Boudon, incorporou o termo corpo. Ele não é denido a partir de uma
perspectiva materialista, mas a partir das crenças dos autores de que “la
mayor parte de las prácticas sociales pone en juego el cuerpo (gestos de
51
Corpo, cultura e educação
trabajo, movimientos, cuidados personales, etc.
13
.
A maior parte dos léxicos de Teologia consultados tem intro-
duzido o termo corpo. Entre outros, o Vocabulaire Biblique, dirigido
por Von Allment em 1956, assimila o termo corpo ao termo homem.
Nesse caso, não se apresenta uma versão do termo que, de pronto, se
conceba como dicotomizada, e sim propõem o corpo como aquilo que
é constitutivo e indissociável do homem. Em e Anchor Bible Dictio-
nary (1992), o corpo é defeinido a partir da concepção bíblica (Antigo
Testamento e Novo Testamento) e helenística. Entende-se como: “the
word for body appears in a number of theologically signicant contexts
in the NT. Consequently, it is important to note this usage and to seek
its antecedents in the Jewish and Hellenistic world of the time”. O es-
paço que dedicam ao corpo é o mais amplo, preciso e concreto entre
todos os dicionários revisados (tanto de língua geral como das diferentes
especialidades).
Ferrater Mora arma, no Diccionario de Filosofía Abreviado,
que “el concepto cuerpo ha sido tratado desde diversos puntos de vista,
pero en la mayor parte de los casos se ha referido a lo que aparece como
un modo de extensión”. O corpo, na maioria dos casos, é interpretado
não como aquilo constitutivo e central da pessoa, e sim como sua exten-
são (física, material, etc.). Ferrater destaca o renascimento do interesse
do corpo na losoa a partir da inuência exercida pela fenomenologia
de Husserl. O El dictionary of Philophy of Mind inclui um verbete com o
termo dualism onde se faz referência à perspectiva dualista de Descartes
e a outros autores dualistas contemporâneos. Sobre esses últimos for-
mula o seguinte: “More recently, some philosophers have suggested that
the interaction problem is not due to a problem with a dualist ontology,
but a problem with our notion of causation”. El Internet Encyclopedia
of Philosophy também inclui o termo dualism fazendo referência inicial
ao problema entre a mente e o corpo e a um dos autores que sistema-
tizaram algumas das ideias: “the term “Dualism” was originally coined
13
Não incorporaram o verbete corpo o dicionário escrito por Roberto Garvía (1998) Conceptos fundamentales
de sociología. Madrid: Alianza, nem o dicionário coordenado por S. Giner, E. Lamo de Espinosa e C. Torres
(1998) Diccionario de sociología. Madrid: Alianza. Também não consta no Dictionary of Critical Sociology,
nem no Sociology Dictionary editado pela Real Feather Institute for Advanced Studies in Sociology.
Jordi Planella Ribera
52
by omas Hyde around the beginning of the eighteenth century. As
a metaphysical theory, dualism states that the world is made up of two
elemental categories which are incommensurable”. A.M. Sánchez ex-
pressa no Diccionario del pensamiento contemporáneo (1997) que
[…] el hombre está inmerso en el mundo a través del cuerpo. Mi
cuerpo, el que yo vivo, es el punto de partida con relación al cual se
ordenan las cosas, los existentes. No podemos ya hablar de dualismo
alma-cuerpo, es más, es preferible hablar de corporalidad, de carácter
corporal del hombre, o del hombre como espíritu encarnado, antes
que de cuerpo, pues así nos acercamos más a una comprensión
unitaria de la persona.
Nessa aproximação e colocação, a visão monista é clara. Para
Sánchez, o corpo, ou o “espírito encarnado”, nas palavras do autor, não
é a parte material, e sim a concretização, a habitabilidade do corpo ou,
o que seria o mesmo, a vivência da corporalidade.
A maior parte dos dicionários de Psicologia consultados tem omi-
tido a introdução do termo corpo ou algum de seus derivados. O Gran
diccionario de psicología incorporou o sintagma corpo próprio. O corpo pró-
prio se dene como “conjunto de relaciones vividas por el individuo, de
los diferentes aspectos y partes de su cuerpo, en tanto que estos se integran
progresivamente a la unidad de su persona. Na obra de Henri Wallon fun-
damentam-se as explicações em torno do conceito corpo próprio.
Os dicionários de Antropologia consultados nem sempre in-
corporam o verbete corpo. No dicionário coordenado por Aguirre, Dic-
cionario Akal de Etnología y Antropología (1995) sim, gura o verbete,
embora não se centre em denir diretamente o que se entende por cor-
po, e sim formula que:
La literatura etnográca pone de relieve la multiplicidad de las
representaciones del cuerpo en el tiempo y el espacio. De esta
diversidad emergen dos paradigmas fundamentales. Bajo el primero
se alienan las sociedades que disocian, a semejanza de Occidente
desde Platón, el alma de su soporte corporal. El segundo abarca
los sistemas del mundo que consideran al hombre, al microcosmos,
como la réplica o quintaesencia del universo.
53
Corpo, cultura e educação
No dicionário orgnanizado por A. Barnard e J. Spencer En-
cyclopaedia of Social and Cultural Anthropology (1996) se expõe que,
no campo da antropologia, o corpo é sempre reconhecido como um
conceito relativo condicionado por variáveis tão distintas como a so-
ciedade e o cosmos. Esta colocação dos autores enfatiza a dimensão
do corpo como construção social, em função de cada sociedade ou
do cosmos.
Após revisar os dicionários de diferentes disciplinas das Ciên-
cias Sociais, podemos concluir que:
a) Nos dicionários de especialidade, o termo corpo não se refere ex-
clusivamente à condição de materialidade. Esse aspecto difere dos di-
cionários da língua geral, nos quais majoritariamente corpo é sinônimo
de materialidade.
b) O corpo passa a ser sinônimo de pessoa. Uma das constatações mais
relevantes da análise dos dicionários de especialidade é a relação entre o
corpo e a pessoa. Essa perspectiva é especialmente evidente em alguns
dicionários de teologia.
c) O corpo é o que permite que a pessoa socialize. A partir dessa pers-
pectiva também pode ser constatada suas possibilidades comunicativa,
representativa e simbólica. O corpo pode ser entendido não somente
como corpo-objeto, mas também como corpo-sujeito ou corpo-próprio.
d) A antropologia que sustenta a maior parte de denições do corpo nos
dicionários de especialidade é uma antropologia monista.
2.2.2.3. a ConStrução do léxiCo CorPoral noS diCionárioS
de Pedagogia
No campo da pedagogia, existem muitos dicionários termino-
lógicos. Mesmo assim, do conjunto de dicionários estudados, poucos
incorporaram o termo corpo e, desses, somente um está editado em
língua espanhola
14
.
14
Um exemplo de dicionários que não têm incorporado o termo corpo são o de Mesani, A-L. (1983)
Diccionario de pedagogía, Barcelona: Grijalbo; Mialaret, G. (1984) Diccionario de Ciencias de la educación.
Barcelona: Oikos-Tau; Speck, J. y Wehle, G. (1981) Conceptos fundamentales de pedagogía. Barcelona:
Jordi Planella Ribera
54
No dicionário dirigido por Prellezo (1997), Dizionario di
scienze dell’educazione
15
, incorpora-se o termo corpo, e a ele se dedica
um espaço signicativo em seu conjunto. No dicionário, dá-se a ele uma
grande importância quando se arma que “hoy no es posible pensar en
un itinerario pedagógico que no atraviese a nivel de reexión y expe-
riencia la corporalidad. É dos poucos dicionários que incorporam o
verbete, mas essa ideia da impossibilidade de pensar em uma pedagogia
que não incorpore a corporalidade é seu aporte mais signicativo. Essa
necessidade de atravessar o discurso pedagógico com a presença do cor-
po não tem por que seguir uma direção de positividade corporal, mas
a interpretação da sua presença propicia possíveis visões negativas. No
entanto, nesse dicionário se mantém a ideia de que:
[…] el signicado originario y fundamental del cuerpo humano
se caracteriza por la constatación que no se trata del cuerpo de
cualquiera, de un sujeto indeclinable, de una persona única e
irrepetible que al cuerpo, con el cuerpo y en el cuerpo da el sentido
incondicional de la presencia.
Parte-se dessa concepção do corpo como parte fundamental
da pessoa, que a faz única e irrepetível. Na perspectiva que nos oferece,
o corpo revela a pessoa, e o faz a partir de seu interior, com a comple-
xidade, por meio da sua existência, a projeta em sua possibilidade e lhe
confere sua historicidade.
Mas os corpos isolados não têm razão de ser e, portanto, é neces-
sário que mantenham relações com os outros. O corpo não está isolado, está
em relação com outros corpos e o faz a partir da inserção nas dimensões es-
paço/tempo. A concretização dessas dimensões terá lugar no familiar, social
e cultural, que terminarão por modelá-lo como se tratasse de uma segunda
natureza. A concepção e a vivência do corpo, a partir de uma perspectiva ne-
gativa ou positiva, dependerá muito da constituição dessa segunda natureza.
Herder; e o Diccionario de Ciencias de la educación . Madrid: Santillana. Igualmente no incluiram a voz corpo
o de J. L. Domènech e M. Viana (1994) Terminologia bàsica de didàctica y necessitats educatives especials.
València: Nau Llibres. O mesmo acontece com o Dictionnaire de la langue pédagogique. París: PUF, 1971,
com El Diccionario europeo de la educación (1996) J. L. García Garrido, Madrid: Dykinson e com muitas
outras obras de referência terminológica no campo da educação.
15
Editado em Torino por SEI.
55
Corpo, cultura e educação
Mas, além dessas perspectivas que conguram e recongu-
ram os corpos, Pori e Salonic (1997), os redatores do verbete corpo no
Dizionario di scienze dell’educazione, relacionam diretamente a questão
corporal com a pedagógica. É nesse sentido que entendemos a educação
corporal como:
Educar em uma visão global/integral do corpo/alma que, em um con-
texto onde o corpo é um instrumento de produção ou de prazer, a
educação global (entendida a partir de sua presença e da intersubje-
tividade) é necessária.
Educar na respiração: habitar o corpo-próprio exige aprender muitas
coisas relacionadas ao corpo, entre as quais encontramos a respiração.
Educar o corpo vivido: o sujeito se vê condenado a manter um corpo
com um padrão de beleza; para romper com esta imposição externa
dos cânones estéticos, a pedagogia favorecerá a experiência interna
da reapropriação do corpo.
Também no Dictionnarire encyclopedique de l’éducation et de la
formation incorpora-se o verbete corpo
16
. Essa preocupação, que até o mo-
mento não havia sido recolhida nas obras lexicográcas, pelo menos com a
intensidade que agora se propõe, é a que marcará uma das linhas de parte
da futura pedagogia. A conexão que os autores fazem entre bem-estar e
sentir-se bem na própria pele é especialmente signicativa no marco do
livro. De fato, a incorporação da voz corpo nos dicionários de pedagogia
somente acontece nos dicionários de publicações mais recentes.
Desta forma, inclui-se o termo corpo no Glosario de educación
personalizada (V. García Hoz, 1997). Nesse glosário, obra de referência
terminológica do Tratado de Educación Personalizada, se arma em rela-
ção com o corpo:
propio de la naturaleza humana es tener un cuerpo, que con el
espíritu constituye una sola estructura sustancial (...) La corporeidad
forma parte de la esencia humana y tiene una misión tan importante
como insertar al hombre en la realidad. Una problemática actual es
el culto al cuerpo.
16
París: Nathan, 1994.
Jordi Planella Ribera
56
Percebe-se essa mudança epistemológica da pedagogia em re-
lação aos os corpos e em relação à pedagogia, e constatamos que só a
meados dos anos noventa o corpo se insere nas obras terminológicas e é
um conceito que começa a incorporar-se aos discursos e às terminologias
pedagógicas mais sistematicamente. As referências citadas se separam
de uma visão do corpo centrada exclusivamente na sua dimensão física
e passam a abrir-se às suas dimensões simbólica, social e cultural. Esse
aspecto coincide com nossa ideia de propor uma pedagogia do projeto
da ideação corporal.
Fundamentos epistemológicos e terminológicos de uma pedagogia do corpo simbólico
Epistemologia
do copo
................................................................
Terminologia
do corpo
Possibilita que:
• O corpo seja objeto de estudo
das Ciências Sociais
• Se reconstruam outros
modelos de corporalidade
sustentados pelos discursos das
Ciências Sociais
• Se releia o corpo a partir
da antropologia não
exclusivamente dualista.
Possibilita que:
• O corpo seja concebido
como sinônimo de pessoa
• Se rompa a concepção
unilateral do corpo
(materialista e negativizada)
Mas também se corre o risco
que:
• O corpo seja sinônimo do
físico
• O corpo se separe
dicotomicamente da mente.
Epistemologia e Terminologia permitem:
• Repensar as concepções do corpo e construir outras que se fundamentem em
modelos antropológicos monistas.
• Fundamentar as bases para a constituição de uma pedagogia do corpo simbólico.
57
Corpo, cultura e educação
2.2.3. definindo o CorPo SimbóliCo
Até aqui, vimos diferentes aproximações à conceitualização
do corpo a partir de diferentes perspectivas. Parece-me que para poder
construir as bases de uma pedagogia do corpo simbólico é necessário
que nos perguntemos:
A que tipo de corpo fazemos referência?
Quais são as características deste corpo?
Na tradição fenomenológica tem se perlado uma clara dife-
rença entre o que se conhece como corpo objeto e como corpo sujeito; ou,
o que é semelhante, como corpo físico e como corpo simbólico. Trata-se
de dois conceitos que na língua alemã servem para designar duas dimen-
sões ou perspectivas diferentes do corpo: Körper e Leib
17
. A diferença en-
tre as duas concepções de um mesmo termo não foi precisada na língua
espanhola a menos que se concretize com o suporte de outra palavra,
adjetivando-a para lhe dar um signicado mais especíco
18
. O termo
que nos interessa para este capítulo é a concepção do corpo como Leib,
que, para Marzano, trata-se “de un cuerpo-sujeto-intencional” (2002, p.
01). É, pois, a partir dessa perspectiva, que se abre a possibilidade de que
o corpo possa ser visto como algo além do propriamente físico (Karrer)
e seja concebido como a parte constitutivamente subjetiva da pessoa. É
assim que, segundo Merleau-Ponty, se passará a conrmar que “no estoy
delante de mi cuerpo, no estoy en mi cuerpo, sino que soy mi cuerpo
(1945, p. 175).
Desse termo alemão (Leib), que já nos situa na órbita do sub-
jetivo, sensível, vivencial e experimental (ante o exclusivamente objeti-
vado e materializado), desprende-se o conceito corporalidade. A corpo-
ralidade já é a leitura do corpo a partir da sua dimensão simbólica, que
17
A diferenciação entre Körper e Leib é uma precisão terminológica e conceitual compartilhada por boa parte
dos fenomenólogos. Entre outros, é relevante o aporte feito por Edith Stein, no qual formula que “Le corps
(Leib) est caractérisé et distingué de chair (Körper) purement et matérielle qui le constitue, par ceci que tous
ses états et tous ses accidents son ressentis ou peuvent être ressentis” (1992, p. 57).
18
Contudo, poderíamos nos aventurar a traduzi-lo –levando em conta a tradução dos termos de Edith Stein
na sua versão francesa, por carne (Körper) e corpo (Leib).
Jordi Planella Ribera
58
Duch dene como:
Cuando armamos que el cuerpo humano es corporeidad queremos
señalar que es alguien que posee consciencia de su propia vivacidad,
de su presencia aquí y ahora, de su procedencia del pasado y de su
orientación al futuro, de sus anhelos de indenido a pesar de su
congénita nitud (Duch, 2003, p. 282).
Ao longo do livro nos referiremos ao corpo como Leib, como
corporalidade, embora em muitas ocasiões não o fazemos por meio des-
tes termos e sim por meio do corpo
19
. Para ter um consenso conceitual,
entendo por corpo a dimensão do sujeito que possibilita a socializa-
ção, a encarnação e a corporalização do mesmo no mundo (e não
aquela parte do sujeito que se contrapõe à alma).
Contraposição entre Körper e Leib
KÖRPER LEIB
- Trata-se do corpo entendido como objeto
analiticamente denível, passivo receptor das
ações dos outros sobre ele mesmo. Concebe-
se como um ato concluído e fechado, sem
possibilidades de ser transformado nem variado
(Isidori, 2002).
- Podemos considerá-lo como organismo físico
(Merleau-Ponty, 1945).
- Corpo-objeto que equivale à rex extensa
cartesiana, é manipulável pelos demais, (Fullat,
1989).
- O Körper, de forma natural, nunca pode deixar
de ser corpo -entendido sicamente, (Duch,
2003).
- Refere-se à dimensão existencial, subjetiva e
relacional do ser humano enquanto substância
corpórea viva, inconclusa e indeterminada que se
pode transformar e modicar (Isidori, 2002).
- Trata-se de um organismo fenomênico (Merleau-
Ponty, 1945).
- Corpo-próprio que constitui a modalidade de
meu existir (Fullat, 1989).
- O Leib exerce a função de intercâmbio entre
o espírito e a natureza. O Leib se constrói
culturalmente no seu espaço (Duch, 2003).
A concepção do corpo é necessária para esclarecer e concretizar que pos-
sibilidades se desprendem para as práticas educativas. Trata-se de poder
concretizar as possibilidades do corpo na pedagogia com a nalidade de
reduzir ao máximo sua ambiguidade. É assim que, a partir da dimensão
Leib, passamos a:
19
É por isso que insistimos nesta ideia. Exceto se indicamos uma leitura inversa, o termo corpo poderá ser
lido como Leib ou corporeidade.
59
Corpo, cultura e educação
Entender o corpo não como o problema e sim como possibilidade.
Rompe-se com o dualismo que defende que: o corpo é uma prisão
para a alma, o corpo não permite chegar objetivamente ao conhe-
cimento ou o corpo priva de chegar a uma determinada excelência
moral.
Ter uma perspectiva pluridimensional. À diferença da leitura do corpo
a partir de sua dimensão exclusivamente física, o corpo simbólico
permite que tantos olhares quanto pessoas encarnem seus corpos.
Recuperar a possibilidade de desenvolver o “projeto corporal. Além
das concepções do corpo como projetos biológicos aprioristicamen-
te, sua dimensão simbólica permite dirigi-lo para onde o sujeito
acredite ser mais necessário. Essa perspectiva rompe com a ideia dos
corpos em série.
Projetar o corpo em um cenário de fronteiras modicantes. O que
faz, por exemplo, com que as relações educativas não passem somen-
te por uma sincronia dos corpos.
Passar da coisicação à subjetivação do educando. Isso permite falar
de uma pedagogia que não procura educar os corpos, e sim educar
a partir dos corpos.
Repensar as ontologias corporais. Que constroem a realidade a partir
das categorias de corpos ortodoxos e corpos heterodoxos.
CaPítulo 3
Genealogia do corpo
63
G  
El cuerpo se ha adaptado, pues, a los usos, a las costumbres, a los vaivenes
de la historia. Se puede decir que el cuerpo es el huésped silencioso de los
signos de la cultura por lo que posee un alfabeto que es posible conocer
y descodicar.
[Vilanou, 2002, p. 340]
Los hombres creen que, como ellos, los dioses poseen un vestido, la
palabra y un cuerpo.
[Clemente de Alejandría, Stromata, V, 109, 2]
A genealogia do corpo, parafraseando Foucault, consiste em
uma investigação histórica que se opõe à unicidade do relato histórico.
Tal como aponta Revel: “la genealogía trabaja a partir de la diversidad y
de la dispersión, del azar de los inicios y de los accidentes: busca resitu-
ar los hechos dentro de su singularidad” (2002, p. 37). Falar do corpo
ou da realidade do corpo no decorrer da história nos convida a revisar
qual tem sido o seu papel na historiograa, especialmente na mudança
historiográca que marcou a nova historiograa liderada por Braudel. A
escola dos Annales começou a fomentar - a partir dos anos quarenta - a
crítica a uma história que tinha, quase de forma exclusiva, a política por
objeto, e que pretendeu entender o fato histórico por meio de todos os
aspectos da vida humana, privilegiando os coletivos acima das individu-
Jordi Planella Ribera
64
alidades (Figuerola, 2000, p. 67
1
). Como apontamos na introdução, a
mudança de objetos de estudo da história e a incorporação de temáticas
que anteriormente haviam sido consideradas menores permitiu incor-
porar o corpo aos discursos historiográcos. A história da infância, a
história das pessoas com deciência, a história dos jovens, a história dos
idosos são exemplos claros dessa mudança de uma história geral e ocial,
em direção a uma história de grupos especícos, que viveram de forma
rotineira, mas que sempre estiveram à margem dos discursos históricos
e das abordagens historiográcas. Podemos concluir, seguindo Ruiz Ber-
rio “que en la historia nueva se cultivan todos los temas, se tienen en
cuenta las individualidades y se resaltan las masas humanas y los grupos
sociales, se recurre a todo tipo de fuentes documentales” (1997, p. 144).
A abordagem metodológica de nosso trabalho, a hermenêutica,
pede que o objeto de estudo seja abordado a partir de três perspectivas
diferentes: a temporalidade, a linguisticidade e a esteticidade. É neste
marco referencial que Pagano coloca a seguinte reexão:
El hombre deberá ser educado para saber interpretar el contexto en
el cual se encuentra, deberá saber captar las líneas de tendencia de
la historia; y todavía deberá saber leer el texto, la situación histórica
contemporánea porqué debe asumirse la responsabilidad de la liber-
tad individual y debe ser consciente que con su aportación puede
contribuir a modicar la experiencia humana (Pagano, 2001, p. 29).
Portanto, no momento em que os sujeitos são educados para se
reconhecer de maneira historicamente inserida, faz sentido falar sobre a
história do corpo e sua narrativa. Mas falar da condição da historicidade
do corpo exige fazer referência à mesma condição de narrativadade dos
corpos. Os corpos se podem narrar? - poderíamos perguntar-nos antes de
adentrarmos pelos caminhos historiográcos. A compreensão das experi-
ências dos homens em seus corpos é a que coloca e dispõe dos corpos na
condição da possibilidade de narrá-los. Em outras palavras: estar ciente do
próprio corpo, entendendo-o não como algo separado e à parte de mim
mesmo, mas como parte integrante do meu eu, permite “la historia nar-
Para Ruiz (1997), foi com a aposentadoria de Braudel, em 1970, que se iniciou a possibilidade de renovação
da historiograa.
65
Corpo, cultura e educação
rada dice el quién de la acción. Por lo tanto, la propia identidad de quien
no es más que una identidad narrativa” (Ricoeur, 1996, p. 997). Por con-
seguinte, é nessa linha que se faz possível uma história do corpo que, em
última análise, não é outra senão a história dos homens, mas que realça a
ideia ocidental do que temos designado como corpo.
3.1 a entrada do CorPo na hiStoriografia
Somente depois que Rever e Petel (1974) introduziram o cor-
po como alvo de suas investigações historiográcas, é que ele fará a sua
entrada ocial nas páginas da história. Seria um erro considerar que o
corpo cou fora da história, porque a história dos povos que viviam
passava necessariamente pelo papel e pelo lugar que cada sociedade e
momento histórico outorgava aos corpos de seus cidadãos. O corpo faz
parte dos sujeitos que viveram todos e cada um dos momentos históri-
cos, e, portanto, a história se construiu com base em corpos que eram
incorporados pelos sujeitos que neles viviam. Quero dedicar esta seção a
apresentar um relato histórico dos diferentes conceitos e/ou construções
sociais de corpos que viveram, o que nos permitirá interpretar sua inu-
ência na construção dos discursos corporais.
Assim como nas outras disciplinas das Ciências Sociais, alguns
historiadores incorporaram o corpo em seus discursos. A publicação da
obra de Porter, Historia del cuerpo, contribuiu também com esse reforço
historiográco da mudança nos objetos de estudo. Mas, as duas publi-
cações foram apenas o ponto de partida de uma nova linha de temas de
pesquisa intensicada com a publicação, em três volumes, de Fragmentos
para una história del cuerpo humano, de Feher (1991), que participou da
consolidação dos estudos para decifrar e interpretar qual foi o papel do
corpo ao longo da história da humanidade. Neste sentido, Vilanou pro-
põe que “los planteamientos de la Escuela de los Annales y de la historia
de las mentalidades, han presenciado el resurgir de la historia del cuer-
po” (2001b, p. 15 ). Uma conceituação que, de maneira geral, tentou
trazer outros olhares à história. Será nesta direção que Sennett publicará
Flesh and Stone e Body and the City, em cuja introdução arma:
Jordi Planella Ribera
66
Carne y piedra es una historia de la ciudad contada a través de la
experiencia corporal de las personas: cómo se movían hombres y
mujeres, qué veían y escuchaban, qué olores penetraban en su nariz,
dónde dormían, cómo se vestían, cuándo se bañaban, cómo hacían
el amor en las ciudades que van desde la antigua Atenas a la Nueva
York contemporánea (Sennet, 2002, p. 17).
O fato de que a cultura clássica (especialmente por meio do
pensamento grego) e a tradição judaico-cristã se fundamentam em uma
antropologia dualista contribuiu para o estabelecimento de que tudo
aquilo relacionado com o corpo fosse entendido, visto e concebido ne-
gativamente. Das possíveis aproximações ao tema do corpo, é necessá-
rio determo-nos para analisar qual o papel desempenhado pelo corpo
na história do Ocidente. Partilhamos com Aguirre que “no se puede
entender el concepto de cuerpo sin aludir a las grandes corrientes lo-
sóco-teológicas que actúan en la cultura occidental como sustrato con-
ceptual de referencia” (1993, p. 146). Existem múltiplas cosmovisões
do homem e da relação entre corpo e alma que não discorrem de uma
forma linear ao longo da história, mas que o fazem circularmente. São
maneiras de entender o homem que podem ocorrer paralelamente em
contextos geográcos, sociais, culturais e temporais diferentes. Com as
contribuições da antropologia cultural e da sociologia, os historiadores
zeram uso de linguagens que lhes permitiram reconstruir com maior
precisão a história do corpo. Neste sentido, concordo com Porter que
sería groseramente simplista suponer al cuerpo humano una existencia
atemporal como objeto natural y no problemático, con necesidades y
deseos universales” (1993, p. 258). Partindo dessa fundamentação, pro-
ponho-me a reconstruir o papel do corpo por meio da história. Antes
de reconstruir esse caminho, quero dedicar uma breve seção para reetir
sobre a história natural do corpo.
3.1.1 filogêneSe: a hiStória PartiCular do CorPo
O corpo teve em cada sociedade sua história; uma história que
é denominada pelo nome de logênese e que explica qual foi o processo
67
Corpo, cultura e educação
de humanização da espécie humana. Essa história do corpo evolui de
forma paralela com a história do corpo na história. A evolução genética
do corpo humano foi também determinada pelos fatos históricos que
envolviam esses corpos
2
. Assim, por exemplo, a morfogênese do corpo
do homo sapiens comporta várias determinações, o que, nas palavras de
Morin (1973), se pode denir como multidimensional. A reexão em
torno desses temas criou múltiplas teorias que foram descritas, espe-
cialmente por meio da paleoantropologia, mas que habitualmente se
concentram na dimensão genética desta evolução, tendo como ponto
de vista exclusivo a biogênese
3
. Podem existir outros olhares para a evo-
lução do corpo, como o que propõe Dostie, e que denomina sociogênese
do corpo humano (1988, p. 25). A constituição do corpo tem um im-
portante fundamento na evolução genética, mas também evoluiu por
meio de características ecológicas, demográcas e sociais. A organização
social e cultural pressionou signicativamente esta evolução genética e
conduziu a hominização para uma determinada direção. Nesse sentido,
Dostie arma que “la actualización de un gran número de características
somáticas depende de la interacción entre la estructura genética y de las
presiones del medio que a menudo pueden producir variaciones impor-
tantes” (1988, p. 29).
Nessa mesma direção insistem os trabalhos de Jacquard, nos
quais o autor propõe que os homens têm respondido às agressões exte-
riores diferentemente de outras espécies, e que estas respostas se apoia-
ram na cultura, e não na genética (1978). Graças à técnica foi possível
a evolução e o controle do natural, que na interpretação mitológica do
fenômeno era atribuída aos deuses. Na evolução do controle dos efeitos
corporais, Galimberti revela que a técnica antiga era pouco preocupante
porque não contradizia a ordem natural. Um exemplo disso são as for-
mas de proteção do organismo contra várias doenças
4
. A raça humana
Tal como como propõe Dostie: “muchos trechos corporales, de apariencia puramente biológica, que parecen
principalmente determinados por el patrimonio genético, pueden haber sido estimulados culturalmente, de
tal suerte que a genotipos parecidos les pueden corresponder fenotipos diferentes y a la inversa” (1988, p. 29).
A biogênese pode ser denida como a formação da vida. De fato, trata-se de um conjunto de fatores de
natureza biológica que narram a evolução da vida. A partir desta perspectiva, podemos falar de biogênese
do corpo humano.
Para Martí, essa temática se encontra diretamente relacionada à noção de epidemia: “En su noción más
convencional la epidemia es aquella enfermedad infecciosa, accidental y transitoria que se difunde entre un
Jordi Planella Ribera
68
tem lutado contra pragas e doenças, criando vacinas e medicamentos,
mas não evoluindo geneticamente para responder diretamente a esses
contratempos. Essa evolução da espécie “surge como la capacidad de
producir conjuntos estructurantes al margen de la información bioló-
gica, sin que sea necesario pensarlos explícitamente opuestos a la natu-
raleza” (Via, 1992, p. 31). Na verdade, trata-se da invenção das ferra-
mentas como um elemento diferenciador
5
. Para Galimberti, a técnica e
a evolução logenética caminham juntas, dado que “el cuerpo humano
ha tenido la posibilidad de transferir a la mano el campo de su relaci-
ón con el mundo” (2000, p. 97). Uma mão, neste caso, foi entendida
como uma extensão do corpo
6
. Por motivos relacionados ao ambiente,
a forma e a estrutura do corpo evoluiu até chegar ao Homo Sapiens
7
. O
corpo, apesar de sua própria evolução biológica, é o que viveu através
de diferentes culturas, de diferentes momentos históricos, atravessando
ideologias, conceitos e negações. Um corpo que tem atravessado os dife-
rentes momentos históricos, e não deixa de localizar-se (e relocalizar-se)
nas novas percepções e imaginários sociais.
3.2 o CorPo e o olhar hiStóriCo
A imagem social do corpo tem evoluído de forma constante ao
longo dos períodos que compõem a história da humanidade. Há muitas
maneiras possíveis para organizar uma visão histórica do corpo, apesar
de eu ter tomado a decisão de começar das grandes construções do corpo
nos processos históricos
8
. A história que eu estudei é uma história do
gran número de personas de un territorio o una región determinadas (...) Un sacerdote en nombre de los
ciudadanos de Tebas reclama a Ede no una respuesta médica sino una decisión política, orientada a poner
n de manera drástica a la epidemia que arrrasa la ciudad” (1995, p. 47).
A denição de homem como aquele que fabrica ferramentas tem sido polêmica. Neste sentido, se pode consultar
o trabalho de Boné (1979). Como elemento diferenciador é interessante a tese de Via, na qual defende que o
homem é o animal que fabrica ferramentas que por sua vez fabrica outras ferramentas (Via, 1992).
 Esta percepção se perderá nos Homo habilis e Homo erectus.
7 Sobre os trabalhos que estudam a evolução e devido ao alcance do tema, me remeto ao trabalho de
Via (1992). Igualmente interessante é o enfoque que propõe W. Köhler (1930) al expôr sus investigações
realizadas nas ilhas Canárias sobre os chimpanzés onde se podia entrever aproximidade entre o homem e os
grandes símios
Há outras maneiras para agrupar e interpretar o corpo por meio de múltiplas perspectivas. Uma delas é a
proposta de Detrez. Ele aposta em fazê-lo a partir das seguintes etapas: o corpo túmulo, o corpo máquina, a
sionomia do corpo, o corpo na medicina moderna e o corpo objeto (2002).
69
Corpo, cultura e educação
corpo no Ocidente
9
. Corbi, Courtine e Vigarreloo dizem, na apresenta-
ção da sua História do Corpo:
Abordar el cuerpo desde una perspectiva histórica permite restituir
en primer lugar el núcleo de la civilización material, los modos de
hacer y sentir, las adquisiciones técnicas y la lucha con los elemen-
tos: el hombre concreto, en denitiva, del que hablaba Lucien Fe-
bvre, el hombre vivo, el hombre de carne y hueso. De ese universo
sensible emerge una exuberancia existencial, un cúmulo de impre-
siones, de gestos y de producciones que determinan el alimento,
el frío, el olor, el movimiento o el mal, una serie de marcos físicos
primigenios (2005, vol. 1, p. 17).
As três primeiras etapas que apresento – o nascimento de um
dualismo corporal, as controvérsias sobre o corpo na cultura cristã e a
percepção do corpo na modernidade – estão claramente marcadas e guia-
das pelo pensamento losóco, enquanto as duas últimas estão guiadas
pelo pensamento e pela prática médica. Para Detrez, a reconstrução do
corpo pode seguir duas linhas principais: uma que o opõe à alma e a
outra que o opõe ao indivíduo: “El cuerpo, desde la Antiguedad, ha sido
pensado desde dos perspectivas opuestas: una plantea la asociación entre
cuerpo y alma, la otra se reere a él a partir de enmarcarlo solamente
en su materialidad, apuesto al individuo mismo que lo piensa (Detrez,
2002, p. 42). Estudei os diferentes períodos agrupando-os de acordo
com concepções distintas de corpo que existiram ao longo dos tempos.
3.2.1 o naSCimento do dualiSmo CorPoral: PerSPeCtivaS e
ControvérSiaS
Enquanto alguns dos trabalhos que propuseram um olhar ar-
queológico sobre o corpo começaram a sua jornada na Grécia, penso
(pela importância e por sua inuência ao longo do Antigo Testamento
(AT) em toda a cultura ocidental) que não se pode ignorar a concepção,
A história do corpo que eu proponho centra-se no corpo vivido no Ocidente. Eu escolho essa opção
porque este livro não se propõe a estudar a construção de outros corpos nos discursos pedagógicos, mas
centra-se sobre o corpo ocidental. O estudo dos corpos não-ocidentais na educação é em parte uma questão
já estudada mas requer , necessariamente, ser abordada a partir de diferentes disciplinas e áreas geográcas.
Jordi Planella Ribera
70
a presença e a experiência dos corpos nessa cultura
10
. O Antigo Testa-
mento nos oferece uma visão unitária do homem que, nas palavras de
Gevaert, se traduz na ideia de que: “el hombre semita vive y se interpreta
a si mismo como unidad, aun cuando esa unidad puede representar
aspectos diversos según las relaciones en las que está inserto el hom-
bre”(1995, p. 72). A tese de Gallibemberti reforça a ideia da existência
de uma antropologia monista na antiguidade, especialmente quando diz
que: “la tradición judio-cristiana ignora el dualismo griego de alma y
cuerpo” (1983, p. 33). Mas, apesar dessa visão monista do homem no
pensamento hebraico, para Navarro:
El cuerpo, tal vez por su obviedad, no parece haber entrado
plenamente, como categoría, en la antropología bíblica (...)
a excepción de las obras como la ya clásica de H. W. Wol
Antropología del Antiguo Testamento (1975) que dedica un
capítulo al ser humano visto como bâsâr y emplea la terminología
corporal para tratar de otros aspectos antropológicos (1996, p. 137).
Apesar da fundamentação antropológica monista, a recepção
das Sagradas Escrituras, com as suas traduções posteriores no Ociden-
te, provocaram claras confusões terminológicas e hermenêuticas
11
. Isso
aconteceu porque os conceitos relativos ao corpo são traduzidos como
corpo, alma e espírito, conceitos que nas línguas românicas têm uma
clara conotação dualista
12
. No AT não se percebe esta dimensão dua-
lista do homem, mas, apesar disso, existem algumas referências – nos
escritos do judaísmo helênico e muito inuenciados pelo pensamento
grego- que permitem ter e manter uma concepção dualista do ho-
mem
13
. Essa breve referência ao dualismo não irá mudar a concepção
monista do homem que prevalece ao longo do AT, mas o homem he-
10
No caso do trabalho de Andrieu (1993) que na introdução do livro dedica-se a reconstruir a história
do corpo - parte do corpo na Grécia e esquece diretamente a concepção do corpo no contexto hebraico.
Acontece o mesmo no livro de Sennett (2002), no qual começa com o corpo em Atenas de Péricles.
11
A tradução mais conhecida é a conhecida como de los LXX. Nesta versão da Bíblia, traduziu-se basar
(carne) do grego sōma, desde que não se expressasse a caducidade do homem enquanto um ser criado, nem
a diferença entre carne e ossos, mas sua totalidade ou unidade, sem oposição à alma (nefesh). Este assunto é
extensivamente referenciado no dicionário de Ramos (2001), especialmente no verbete cuerpo.
12
Uma explicação para esse fato pode ser encontrada nas raízes gregas de grande parte do vocabulário que
usamos para designar determinadas partes do corpo humano.
13
Veja o Diccionario Enciclopédico de la Bíblia (1993) em seu verbete corpo.
71
Corpo, cultura e educação
breu continuará a ser um corpo, e seu corpo vai ser nada mais do que
ele mesmo.
A questão do corpo na antropologia bíblica torna-se fundamen-
tal, a ponto de que a vida é impensável sem o corpo, a vida além dos
limites corporais
14
. Tanto no mundo daqui quanto no mundo de lá, o ser
humano reivindica o corpo como dado fundamental de si mesmo e de sua
existência (Raurell, 1989). Um exemplo do que Raurell propõe, temos em
Isaias 26, versículo 19 “revivirán tus muertos, sus cadáveres resucitaran; se
desvelan y exhultarán los que yacen en el polvo”. Esta visão positiva do
corpo e da representação da pessoa em seu corpo se torna patente quando
no livro de Gênesis se faz uso do concito arummîm (nu). Adão e Eva estão
no Jardim do Éden e estão nus quando ocorre a narração do surgimento
da serpente e o ato de seduzi-los. Com este episódio terminará a nudez dos
homens na terra e se dará inicío (simbólico) à longa peripécia do corpo
para dissimular-se, para apagar-se como carne
15
.
Após o exílio babilônico, ocorre o surgimento da crença na res-
surreição da carne (Ez., 37, vers. 1-14), que implica em uma existência
real de todo homem após a morte. Mas apesar de todos esses aspectos, a
antropologia do AT prepara a transição para uma antropologia dualista.
Esta mudança é a que se dará por meio do que é conhecido como ju-
daísmo helenístico (século III a.C.) que, inuenciado pelo pensamento
grego, levará a posições de desprezo do corpo humano. O desprezo ba-
seia-se na ideia de que o corpo começa a ser considerado origem e sede
das paixões (Si 7, 24; 23, 17; 47, 19) e é inerente a este fato que se apre-
senta o homem formado por corpo e alma. Essa dualidade do homem
ainda tem as características de dualidade que se representará na metafísi-
ca radical pessimista dos agnósticos do século II d. C. (Ramos , 2001) .
14
Essa abordagem pode ser reforçada com a proposta de Tresmontant, armando que o hebraico é uma
língua concreta, que denomina somente aquilo que existe. Por esta razão, não haverá uma palavra para
descrever o que entendemos por “corpo”. Ninguém jamais viu a matéria ou o corpo e, portanto, não se pode
encontrar em hebreu (1953, p. 53).
15
Sobre este assunto é interessante a interpretação de Navarro:primero están desnudos y no lo saben (Gén.
2, 25): no han aparecido las diferencias, no se miran, y por tanto no se conocen. La desnudez es aquí el
signo de la inconsciencia, de un espacio sin explorar, sin porsonalizar (...) Luego están desnudos y lo saben
(Gén. 3, 7): tiene lugar una actividad parcial de coapertura. La mirada mútua que les hace de espejo, una
vez que han accedido al conocimiento y a la autonomía, les hace buscar refugio y defensa (...) Ahora (Gén.
3, 21) este cuerpo, desnudo en su creaturidad, es el que Dios cubre, no ya parcialmente, sino como vestido
(1993, pp. 274-275).
Jordi Planella Ribera
72
Comentário à parte merece o tratamento do corpo das mulhe-
res no Antigo Testamento. É necessário insistir na ideia de que existem
poucos estudos sobre essa temática especíca, mas os existentes demons-
tram anos de obscuridade e negação de determinadas evidências. Entre
algumas das poucas publicações que estudaram o corpo da mulher no
AT é notável o trabalho coordenado por Navarro (1996). Navarro diz
que seu objetivo é o de “sacar a la luz y hacer visible lo obvio” (1996,
p. 138). E, no capítulo intitulado Corpos invisibles, cuerpos necesarios, a
mesma autora esclarece que, ao estudar o vocabulário sobre o corpo, o
que é relativo à corporalidade das mulheres, é limitado ao tratamento do
sexo, às instituições de família e descendência (1996, p. 138).
É evidente, a partir dessa perspectiva, que o corpo normativo
do AT é o corpo dos homens, enquanto que o corpo das mulheres é um
corpo da diferença, um corpo preparado para uma função muito especí-
ca: a maternidade. Também se evidencia que quando aparecem no AT
termos próprios da corporeidade feminina (como seria o caso de entra-
nhas – rehem –) essas não merecem mais atenção do que uma menção
16
.
A antropologia do AT é, portanto, uma antropologia androcêntrica e
tudo sobre as mulheres acontece em um plano ofuscado, tanto nos livros
do AT quanto na maioria das exegeses bíblicas posteriores.
Toda essa cosmovisão do homem semita, entendido a partir
de uma unidade psicossomática e que faz referência à sua constituição
ontológica corporal, será em grande parte desconhecida no mundo
grego. Nesse sentido, existem muitas maneiras de ler a história do cor-
po na Grécia. Optei por manter um equilíbrio entre a visão cotidiana e
a visão acadêmica do corpo grego. Essas duas visões dos corpos gregos
nem sempre vão na mesma direção, mas nos podem oferecer paisagens
corporais divergentes. Eu começo com uma descrição das formas de
viver o corpo na Grécia pelos cidadãos e em seguida ofereço dois pon-
tos de vista opostos e ao mesmo tempo complementares entre Platão
e Aristóteles.
16
Sobre estas diferenças corporais e o tratamento dado a cada uma delas, é relevante a proposta de Navarro
“No tengo noticia que exista un término para nombrar la vagina, cuando en cambio existen términos como
mebusim, raglayîm, yerek y yad más o menos eufemísticos para nombrar el pene(1996, p. 138).
73
Corpo, cultura e educação
A concepção não-dualista do homem está presente tanto na
Bíblia quanto nos escritos homéricos
17
. Para Laín Entralgo é Homero
que desenvolve a tarefa de sistematização de ideias e conceitos em torno
do corpo. Homero é o primeiro testemunho do saber dos gregos sobre
o corpo humano porque:
Recogiendo palabras vigentes en el habla de las costas jónicas en
las postrimetrías del siglo IX a. de C., y dando con ello inequívoco
testimonio de la extraordinaria capacidad de los antiguos griegos
para la observación visual y la denominación distintiva, los poemas
homéricos contienen una gran copia de términos anatómicos
que luego serán técnicamente empleados por los médicos (Laín
Entralgo, 1987, p. 67).
A presença do corpo, anunciada na literatura homérica, se fun-
damentará na ideia de que a saúde, a beleza e a juventude do corpo são
os bens supremos que devemos preservar. A doença foi vivida de forma
muito negativa, enquanto que a beleza e a destreza corporal dos vence-
dores das Olimpíadas foi, durante alguns séculos, patrimônio da huma-
nidade (Lain Entralgo, 1987). O corpo, entendido como bem supremo,
terá sua tradução na vivência intensa da sexualidade, que deverá permitir
chegar a esse estado supremo de bem estar.
Com a publicação do primeiro volume de L’histoire de la
sexualité (1976) por Michel Foucault, torna-se evidente que o corpo
na Grécia foi um ponto paradigmático na sua história
18
. Para Foucault,
o que caracteriza o corpo grego é o uso pragmático que dele se faz. A
questão sexual se encontrará no centro das práticas corporais e, como
consequência disso, o desejo e sua consecução será o que fundamentará
uma determinada estética da existência. Nesse contexto social -
especialmente na Grécia de Péricles – a nudez dos corpos será admirada
e não terá nenhuma conotação negativa. “En la ciudad – dice Sennett
– los jóvenes luchaban desnudos en el gimnasio; las ropas sueltas que
los hombres llevaban por la calle y en los lugares públicos dejaban al
17
Em Homero o termo psiché não toma o signicado de alma oposta ao corpo, nem o termo soma não é o
corpo em oposição à alma.
18
Eu trabalhei com a edição de 1984.
Jordi Planella Ribera
74
descubierto sus cuerpos” (2002, p. 35). A nudez, em nenhum caso, teria
um signicado de fraqueza, falta de proteção; muito pelo contrário, o
corpo nu grego era anunciador da condição de uma pessoa forte.
Foucault e Sennett (1982) observam que os espartanos foram
os primeiros a participar dos Jogos Olímpicos nus, enquanto os barbaroi
(estrangeiros bárbaros) cobriam o sexo nas suas aparições públicas. Esta
leitura do corpo nu como símbolo da civilização pode parecer contradi-
tório à luz das concepções contemporâneas do corpo, mas no contexto
grego a nudez armava a dignidade do indivíduo cidadão.
Essa admiração pelos corpos e sua hermenêutica se converte-
rá em um elemento diferencial entre a cultura ateniense e a espartana.
Se para os primeiros a educação do corpo era parte de um amplo pro-
jeto educacional global para a pessoa, para os segundos tratava-se de
possuir um corpo educado e forte; enquanto nos ginásios de Atenas
se formavam jovens na educação corporal e intelectual, em Esparta se
limitava a educar para possuir corpos fortes. Este complemento ate-
niense adicionado à educação corporal se concretizava na educação
dos jovens para o aprendizado de uma determinada maneira de estar
nus na pólis, embora seja verdade que este estar nu não era vivido de
forma negativa pela sociedade
19
.
Mas a visão do corpo nu e das relações sexuais serão para Fou-
cault uma das questões mais controversas na história da humanidade.
Em L’ usage des plaisirs arma que, para alguns autores, “la actividad
sexual era menos favorable a la salud que la abstención pura y simple y la
virginidad” (1984, p. 22). A educação do corpo do jovem grego passava
por converter o corpo individual em um corpo político, sendo, precisa-
mente, no ginásio onde o jovem aprendia que “su cuerpo era parte de
una colectividad más amplia llamada polis y que el cuerpo pertenecía a
la ciudad” (Sennett , 2002, p. 50). Essa concepção do corpo como um
corpo político será uma constante até hoje.
À luz do que eu disse até agora em relação ao corpo grego, po-
de-se armar que na época arcaica, a corporeidade grega não diferencia
19
Os temas da experiência e recepção dos corpos na pólis podem ser expandidos com o trabalho de Jaeger
(1957).
75
Corpo, cultura e educação
entre corpo e alma, mas como Vernant propõe: “lo corporal en el hom-
bre comprende tanto realidades orgánicas como fuerzas vitales, activida-
des psíquicas e inspiraciones o inujos divinos” (Vernant, 1991, p. 21).
A sentença platônica de que o corpo é uma prisão para a alma
impregnou as cosmovisões do homem que chegaram até nossos dias, ini-
ciando uma tradição de pensamento que tem sido caracterizada, sobre-
tudo, pela sua ancoragem na antropologia dualista
20
. Assim, a máxima
sōma sema é, nas palavras de Galimberti , um paradoxo, já que “Platón
sorprende al griego del siglo IV, rompiendo con la visión que el primi-
tivo tenía de civilidad que había conquistado por entero la cultura de
Occidente” (1983, p. 17).
Em uma passagem do Fédon, Platão anuncia que:
Mientras tengas cuerpo y esté nuestra alma mezclada con semejante
mal, jamás alcanzaremos de manera suciente lo que deseamos (…)
En efecto, son un sinfín de preocupaciones las que nos vienen del
cuerpo por culpa de nuestra alimentación; y encima si nos toca
alguna enfermedad nos impide la caza de la verdad. Nos llena de
amores, de deseos, de temores, de imágenes de todas clases, de un
montón de naderías, de tal manera que, como se dice, por culpa suya
no nos es posible tener nunca un pensamiento sensato. Guerras,
revoluciones y luchas nadie las causa sino el cuerpo y sus deseos,
pues es por la adquisión de riquezas por lo que se originan todas las
guerras, y a adquirir riquezas nos vemos obligados por el cuerpo,
porque somos esclavos de sus cuidados; y de aquí que por todas estas
causas no tengamos tiempo de dedicarnos a la losofía. Por su culpa
no podemos contemplar la verdad (Fedón, 66bc).
Mas a fervente hostilidade demonstrada no Fédon de Platão
não é nova no pensamento grego; o lósofo herda a tradição do pensa-
mento órco
21
e pitagórico sobre o conceito de homem e que papel se
20
Existem alguns estudos ainda muito recentes que apontam para uma posição em que o dualismo platônico
entre corpo e alma não é tão claro. Nesse sentido, podemos ver o trabalho de González (1999) que faz
parte de um projeto de pesquisa sobre uma nova hermenêutica platônica que se realiza entre universidades
espanholas e norte-americanas. Como arma González: “Ninguna interpretación de Platón no ha sido tan
inuyente ni ha sobrevivido tanto como la neoplatónica. Perduró prácticamente indiscutida desde el siglo
III hasta el siglo XVIII (...) Cuando se cristalizó el neoplatonismo, en parte gracias a San Agustín” (1999).
Também é especialmente signicativo o trabalho de Reale sobre a nova hermenêutica Platônica (1989).
21
Como proposto por Duch e Melich, “la nalidad de la vida órca, sobretodo a través de unos estrictos y
fundamentados tabús dietéticos, se encontraba, en el centro de la vida cotidiana” (2003, p. 5). Dos muitos
Jordi Planella Ribera
76
outorga ao seu corpo
22
. O que é certo, é que o pensamento platônico
e o lugar que tem ocupado a crença de que o corpo é a prisão da alma
(sōma, sema) marcou grande parte da visão que o Ocidente construiu
do corpo
23
. Uma visão que passa por conceber o corpo negativamente
(desprezível, que não permite o acesso ao mundo das ideias, etc.). De
acordo com Paturet, a visão negativa do corpo para Platão “es a me-
nudo investida de un valor negativo que traduce la falta de la cual la
humanidad, desde los orígenes, se ha sentido culpable” (2001, p. 21). O
próprio Platão arma que a alma “se separa pura, sin arrastrar al cuerpo,
cuando ha pasado la vida sin comunicarse con él por su propia volun-
tad” (Fédon, p. 80a-81a). Essa perspectiva também é tratada por Platão
em La República, em que “el cuerpo, verdadera caverna, se encuentra
preso de las trampas de las ilusiones, confundiendo las sombras por las
realidades” (Detrez, 2002, p. 30). Seguindo a mesma temática, Martinez
defende que para Platão:
El alma vió las ideas en una vida anterior; lo que delimita esa vida
con respecto a la presente es la unión del alma al cuerpo, que es
entendida como una caída. En que cuanto prisionera en el cuerpo, el
alma está entregada a lo sensible y olvidada de la verdad (Martínez,
1973, pp. 135-136).
O dualismo platônico foge do materialismo (que considera
que a alma é também matéria) e do epifenomenismo (que propõe que a
alma não tem entidade por si só, mas sempre depende de outros fenô-
menos ou processos da pessoa) presente em algumas teorias losócas
anteriores ao resto. A saída do encarceramento da alma por parte do
corpo se traduzirá para Platão no acesso ao mundo das ideias. É, nas
palavras de Robin, que “la puricación habitúe al alma a separarse del
trabalhos dedicados ao Orsmo, quero destacar o trabalho de Mircea Eliade (1976).
22
Para Laín Entralgo (1987, p. 198), este fato é a chave. O autor arma que não é por acaso que Equecrates,
tão ansioso para escutar de Phaedon o relato da morte de Sócrates, forma parte do círculo pitagórico de
Flionte, e que Cebas e Simmies, procederam do círculo de pitagórico de Tebas.
23
Neste sentido, é a contribuição signicativa feita por Galimberti (1983, p. 25) “Di qui l’alternativa: o
si mantiene la primitiva identicazione dell’uomo col suo corpo e in questo modo gli si nega l’accesso alla
verità, o glielo si concede ma allora bisogna identicare l’uomo con un elemento immateriale, l’anima
appunto, che, simile por natura all’essenza ideale della verità, guarda il corpo comoe ad un “carcere” o ad
una “tomba”. Nesta mesma linha também é relevante o trabalho de Courcelle (1966).
77
Corpo, cultura e educação
cuerpo para recogerse en ella misma” (1983, p. XXVI). Matéria e espí-
rito seriam duas realidades tão diferentes que não poderiam chegar a
comunicar-se, nem mesclar-se, nem unir-se, como se fossem uma única
substância (Torello, 1993). A obra de Platão que traz com mais energia
essa dicotomia é o Fédon. O estudioso e crítico de Platão, Grube, diz que
é no Fédon, em que se dá “forma más violenta y más tajante que en nin-
gún otro texto platónico, un excesivo dualismo, un divorcio casi com-
pleto, entre el alma y el cuerpo” (1973, p. 45). Esta posição dualista no
Fédon é também conrmada por Starobinski (2000, p. 29) ao armar
que “aquí, el alma abandona el cuerpo tras haberse sentido abandonada
por el cuerpo. En la perspectiva platónica el cuerpo no tiene verdadera
intimidad. Sus dolores, sus placeres, por agobiantes que sean, son ilu-
siones exteriores, como los muros de la cárcel”. Uma prisão que o corpo
exerce sobre a alma que pode ser entendida como “lo térreo, lo visible, lo
mortal, lo impuro, lo que con sus afecciones y movimientos perturba el
conocimiento de la verdad” (Laín Entralgo de 1987, p. 106). Enquanto
a alma, concebida com muito mais frequência a partir de posições posi-
tivas, será entendida como “lo divino, lo invisible, lo inmortal, lo puro,
lo que permite la contemplación de las ideas y por naturaleza debe en él
imperar” (Laín Entralgo, 1987, p. 106).
Platão nos deixa, então, como legado, uma antropologia -
losóca dualista, que será alimentada por muitas tradições até chegar
aos nossos dias. Uma antropologia dualista que fez o homem pensar
ser fundamental cuidar de sua alma e o que lhe poderia impedir de
chegar ao máximo esplendor deste cuidado anímico era, precisamente,
a encarnação do corpo em que vivia. Mas, como citado anteriormente,
a contastação de dualismo platônico pode ser revista e matizada. Em
relação à hermenêutica corporal platônica, Brisson e Frabeau propõem
que “No se trata de privarse del cuerpo, pero si de controlarlo; es decir,
de conocerlo, cuidarlo y gobernarlo” (1998, p. 19). É necessário que o
homem conheça seu corpo e tente buscar um equilíbrio entre sua alma
e seu corpo, sendo o cuidado do corpo um dos aspectos mais relevantes
(Timeo, 88b-89d). Esta revisão do dualismo platônico permanece aber-
ta à espera de novas perspectivas e estudos lológicos que apresentem
com mais detalhadamento o papel do corpo na sua losoa.
Jordi Planella Ribera
78
A concepção da relação entre corpo e alma será compartilhada
por Aristóteles, que criará uma importante mudança na concepção do
corpo
24
. O fato de seu pai ter dedicado sua vida à medicina e que, duran-
te sua juventude, o ajudara no exercício da prossão, o havia conduzido
a realizar uma reexão losóca sobre o corpo, levando-o a conceber o
homem do ponto de vista não estritamente dualista. Em suas primeiras
obras ainda se pode rastrear a inuência do pensamento platônico e dos
posicionamentos dualistas. Em obras posteriores, especialmente em De
anima (seu último período), o corpo já não era uma prisão para a alma,
mas tornou-se um instrumento natural da alma, elaborando, assim, uma
losoa que vai além da dicotomia mente-corpo.
Com as reformulações corporais aristotélicas, o corpo inicia
uma nova etapa na história do pensamento, mas também na vivência e
recepção por parte da sociedade; agora, o homem é formado pela união
de corpo e alma, sendo uma única substância, um único ser. O próprio
Aristóteles arma que:
El alma es el acto de un primer cuerpo natural que tiene la vida en
potencia. Se trata del cuerpo orgánico, de manera que el alma es el
acto primero del cuerpo natural orgánico; por esto no es necesario
preguntar si el alma y el cuerpo son una misma cosa, ... (De anima,
412a26, 412b 1 ss).
Para alguns autores, é necessário entender a obra de Aristóte-
les, assim como a de São Tomás, como uma batalha contra as posições
dualistas antropológicas
25
. Mas é verdade que, apesar dessa tentativa de
superar as posições dualistas, Aristóteles teve a intenção de não cair no
reducionismo da perspectiva materialista atomística do seu tempo. Para
Aristételes, não se tratava de que a psykhē fosse uma realidade material,
mas sim inseparável dele (Laín Entralgo, 1987, p. 119). Corpo e alma não
podem ser distinguidos, eles são a mesma coisa
26
. Estas posições diferentes
24
Nas palavras de Torelló: “de joven, y por inuencia de Platón, Aristóteles tenía un concepto de alma como
el de su maestro; pero después aplica al hombre su teoría del hilomorsmo (...) El cuerpo es materia que está
en potencia para recibir la forma que es el alma” (1993, p. 356).
25
Rero-me ao trabalho de Gevaert (1995).
26
Para entender este aspecto da unicidade do corpo e alma é relevante o que arma Naval ao estudar
educação, retórica e poética em Aristóteles. Assim, o cidadão deve formar-se tanto ao nível intelectual
79
Corpo, cultura e educação
entre corpo e alma na losoa platônica podem ser organizadas a partir
de três períodos conceituais diferentes e, nas palavras de Gallimberti são:
O Período de Eudemo, em que Aristóteles adota a tese platônica
que sustenta o dualismo alma - corpo.
O Período Analítico e Ético, que entende o corpo como instru-
mento da alma.
O período da Alma (e do livro sobre Metafísica) que considera a
alma como uma enteléquia, como uma representação e atuação
do corpo (Gallimberti , 2000, p. 149)
27
.
Apesar da abordagem do encarceramento da alma por parte
do corpo defendida por Platão, a exaltação e vivência cotidiana positiva
do corpo foi um dos pontos relevantes da cultura grega. Andrieu arma
que “con las preocupaciones de uno mismo el cuerpo griego prepara al
cuerpo cristiano” (1993, p. 17). As recomendações para manter certas
abstenções corporais, a exaltação da virgindade, a austeridade em alguns
temas cotidianos, a delidade com o parceiro e o desprezo por amor
homossexual farão, já desde o século IV a.C., que ocorra uma transição
em direção o corpo cristão.
A representação e os usos que os romanos fazem do seu cor-
po é consideravelmente diferente do que faziam os gregos. O corpo
romano é um corpo em situação de transição entre o corpo grego e
o corpo do Novo Testamento. Como Paquet arma em um estudo
interessante sobre a história da beleza, “si el cuerpo griego aspiraba a
una belleza luminosa de atleta, el cuerpo romano, castigado por una
dieta muy condimentada, maltratado por la contaminación de las
calles y las emanaciones de la cloaca maxima, amenaza con pudrirse
sin remedio” (1998, p. 27). A diferença, pelo menos no período em
que a cultura grega ainda não havia inuenciado excessivamente o
mundo romano, é bastante signicativa: o ideal de beleza do corpo
quanto ao nível físico-corporal, e ambas as perspectivas formativas se inuenciarão mutuamente. Para Naval,
“la paideia debe vencer la dicultad de armonizar naturaleza y logos” (1992, p. 47).
27
Estes três períodos podem-se sedimentar e expandir a partir do trabalho de Ross (1982) e Düring (1976).
Jordi Planella Ribera
80
grego contrasta com a imagem de um corpo romano envolto de certa
corrupção carnal.
O conceito do desejo puramente corporal representará outra
diferença na percepção do corpo entre gregos e romanos. Enquanto que
para os gregos era interpretado como algo que não tinha conotações
negativas, para o povo romano a ideia de manter desejos puramente
corporais é sinônimo de terror. Nas palavras de Sennett, o desejo cor-
poral representava para o povo romano “el aniquilamiento de las con-
venciones sociales, el desmantelamiento de la jerarquía, la confusión de
las categorías... el desencadenamiento del caos, de la conagración, del
universus interitus...” (2002, p. 97). Embora o desejo corporal não te-
nha sido concebido positivamente, se começa a desenvolver um culto
ao corpo que se traduz na grande quantidade de horas diárias dedicadas
à higiene e ao cuidado do corpo. As termas de Caracalla, luxuosamente
construídas em mármore, são um exemplo da dedicação e cuidado que
os romanos dedicavam ao corpo. Com uma capacidade para acomodar
mais de duas mil pessoas, reete a necessidade de lavar o corpo do povo
romano. As opções que ofereciam as termas eram distintas. No estudo
que Paquet faz da história da beleza, expõe que nas termas:
Tras haber pasado por el unctuarium, donde se recubría el cuerpo
con arena, polvo y aceite, el bañista se entregaba al ejercicio físico.
A continuación tomaba un baño de vapor (caldarium), se frota-
ba enérgicamente todo el cuerpo para eliminar las pieles muertas
y reactivar la circulación sanguínea. Despues se enjuagaba, y acto
seguido se sumergía en la piscina. (Paquet, 1998, p. 25)
Contudo, salvo a relação do corpo e as fontes termais, uma
maneira de abordar a experiência do corpo romano é analisar que im-
portância tinha a vida (corporal) e de fato, a vida das crianças. A maioria
dos autores que estudou o papel da infância em Roma coincide com a
ideia de que a cultura romana fez importantes contribuições na constru-
ção do conceito de infância e seus corpos. Entre outros, é signicativa a
referência que fez Lucrécio à educação corporal das crianças: “Tampoco
en su desarrollo requerirían los cuerpos paz alguna para la reunión de sus
átomos si de la nada pudieran crecer, pues en un instante los pequeños
se harían adultos” (Lucrecio, Libro I, pp. 185-112).
81
Corpo, cultura e educação
Essa visão da educação da criança se converte na obra de Quin-
tiliano, em uma tentativa de acabar com as brutalidades que muitos
deles recebiam (em nome da pedagogia) sobre seus corpos. Assim, em
sua Institvtionis Oratoriae ele descreve cenas de choro de crianças e pro-
fessores que os agrediam com ira
28
. A crítica de Quintiliano ia contra a
agelação e outras práticas corporais; ele tinha certeza que não poderiam
contribuir para melhorar a educação das crianças.
Em Roma, também a moral dos gestos desempenhará um pa-
pel importante, ao ponto que Cicero a aborda em De ociis com o
objetivo de incutir em seu lho rebelde os princípios da ética estóica.
Essa ética é baseada na beleza moral e consiste em quatro grandes vir-
tutes: a ciência (scientia ou discernimento da verdade), a benecência
(benecientia ou ideal de justiça que impulsiona dar a cada um o que é
seu e que lhe pertença), a fortaleza (fortitudo ou grandeza de alma) e a
modéstia (ou o pronunciamento de toda palavra com medida) (Cicero,
1974, I, V, 15, 111-112). Não se trata de inculcar o que está relaciona-
do com a turbulência do espírito, mas com o que isso tem a ver com a
ação (especialmente o corpo). É necessário controlar os movimentos e
atitudes do corpo, a forma de andar, como sentar-se, como inclinar-se
sobre a mesa, o rosto, os olhos, as mãos e os movimentos das mãos e os
movimentos dos gestos em geral (Schmitt, 1995, p. 141).
3.2.2. ControvérSiaS CorPoraiS na Cultura CriStã
O modelo antropológico inerente ao Novo Testamento (NT)
é baseado na antropologia dualista grega, embora possamos encontrar
inuências da antropologia do AT. No entanto, encontramos autores
que argumentam que o cristianismo mantém com o corpo uma relação
28
A aplicação do castigo corporal como uma ferramenta educacional tem sido uma constante na história da
educação. Se Quintiliano denuncia esta prática comum nos seus dias, em uma investigação que z sobre a
educação no século XVIII ainda era uma problemática grave a ser considerada pelas autoridades. Estes são os
testemunhos que encontrei por meio de depoimentos: “He visto u oído que ha castigado a varios discipulos
suyos de modo irregular y muy estraño, sin atender lo que hace, dominado por la ira (...) Lo castigó tan
severamente y fuera de límites que con la multitud de extraordinarios azotazos le dio con sus azotes en las
piernas, le lastimó pero muy maltratado de forma que le hizo diferentes llagas sangrientas en ellas que por
muchos días le quedaron hinchadas (...) También me consta por haberlo visto, que a otro muchacho de
tierna edad hijo del Dr. en Medicina Sebastian Colomer de esta Villa, con un bofetón del citado Ros en su
estudio le hinchó un ojo que estuvo algunos días sin poder ir a la escuela” (Planella, 1995, pp. 132-133).
Jordi Planella Ribera
82
bastante ambígua. O homem do NT é entendido como corpo e alma,
sendo esta última a parte mais importante e signicativa, verdadeiro ob-
jeto de cuidado e educação. Esta visão dualista do homem se encontra,
acima de tudo, nos livros que foram escritos diretamente em grego e
que eram uma tradução do hebraico para o grego do Novo Testamento.
Assim, em Sav 8, 19; 9, 15 se vê claramente a diferença entre sōma e
psykhé como componentes do homem. Essa oposição entre corpo e alma
é especialmente marcada em Mateus 10, versículo 28, de acordo com o
qual se pode chegar a matar o sōma, mas não a psykhé.
Mas a controvérsia e o distanciamento entre as antropologias
do AT e do NT são atenuados, quando se fala da ressurreição da carne.
Se a carne ressucitará, ou dito de outra forma, se ressuscitaremos na
carne, podemos interpretar que o corpo não tem por que ser concebido
a partir de uma perspectiva negativa, negando suas possibilidades. A
Encarnação é, nas palavras de Duch,
[...] el núcleo central e insuportable de todo el Nuevo Testamento
(del cristianismo), en relación con el cual se establece todo lo que
puede llevar el nombre de cristiano, es la encarnación del Hijo de
Dios, es decir, la entrada corporal de Dios en el tejido de la historia
humana (2003, p. 94).
Esta encarnação dos lhos de Deus se traduziu precisamente
na incorporação de Deus na terra, na presença entre os homens, que foi
armada no Evangelho de São João como “El Verbo se hizo carne” (vers.
1, 14). Com a ideia da encarnação, aparece uma distinção clara entre
o corpo e a carne. Esta diferenciação permite apontar que a carne e o
corpo são opostos, e essa oposição se reete na materialidade e imateria-
lidade dos dois termos.
Dentro do NT, é importante tratar de forma diferenciada a an-
tropologia de São Paulo. O corpo é um conceito-chave na sua teologia,
e como arma Navarro “como buen israelita, Pablo no puede concebir a
la persona si no es con el cuerpo” (1996, p. 140)
29
. O corpo nos escritos
29
De fato, trata-se da Carta aos Coríntios. Remeto o leitor a 1 Coríntios (15, vers. 50-51), onde São Paulo
anunciou:Ahora bien, os advierto hermanos que la carne y la sangre no pueden heredar el reino de Dios;
83
Corpo, cultura e educação
paulinos tem o sentido de pessoa (retornando à antiga concepção he-
braica, grûpa), e Paulo, ao falar da importância do corpo, vai se referir a
ele como o templo do Espírito Santo (1 Cor, 6, vers. 19-20). O homem
não tem um corpo, mas é um corpo, seu corpo. Paulo será quem elabora
a teologia do corpo recuperando a cosmovisão semita corporal, e rein-
terpretará sua visão a partir de uma outra perspectiva muito diferente.
Mas a abordagem paulina não terá uma acolhida muito satisfa-
tória, e em Santo Agostinho reencontramos esta rejeição clara em relação
às questões corporais. Este aponta que é necessário vigiar ansiosamente
todas aquelas coisas que tenham um residual corporal, especialmente
tudo que seja sexual ou tenha alguma orientação sexuada.
A concepção do corpo hebraico e do corpo grego difere do
corpo que o cristianismo primitivo trará para a Idade Média. Na cultura
cristã, os corpos devem ser respeitados porque são criados por Deus e só
Deus pode mudar e intervir nesses corpos
30
. A visão teocêntrica da vida
construirá um modelo de corpo que será marcado por doenças e pragas
que afetarão boa parte da Europa. Essa visão teocêntrica do mundo vai
dar lugar a uma visão antropocêntrica em que o homem será o protago-
nista. O cristianismo Medieval está estruturado em torno de dois eixos
principais (corpo e alma) e duas visões destes elementos muito diferen-
ciadas. Por um lado, há uma concepção dualista do homem, e por outro,
uma tentativa de construir sistematicamente uma antropologia monista,
liderado pela losoa de Tomás de Aquino. A visão dualista do homem
marcará boa parte da teologia. No dualismo medieval, o carnal (corpo),
é incompatível com o espiritual (alma). Os homens devem ser capazes
de escapar do carnal para buscar a pureza da alma. Ao se referir ao corpo
e sua impureza estamos falando indiretamente da sexualidade e da cons-
tituição de uma moral sexual que a possa controlar.
ni la corrupción no hereda la incorrupción. Fijaos que os maniesto un misterio: de morir, no moriremos
todos; transformados, eso sí que lo estaremos todos”.
30
Despland (1987) estuda em detalhe estes aspectos. Ele também tem sido trabalhado em profundidade por
Bottomley (1979). Os autores apresentam uma distância clara entre o judaísmo e o cristianismo.
Jordi Planella Ribera
84
A discussão sobre a relação entre o corpo e a alma se torna uma
das principais ocupações e preocupações dos teólogos medievais. Po-
rém, ao contrário do que acontece na modernidade, o corpo do homem
medieval não se encontra ainda contraposto à persona, mas se mantém
em oposição à alma. Apesar da concepção majoritária, que entende o
homem dualisticamente, Tomás de Aquino dará outra perspectiva ao
dualismo negando a existência de potências sensíveis à alma e manifes-
tando a necessidade que esta estivesse mais unida ao corpo. Para o teó-
logo, corpo e alma são a mesma coisa (Weber, 1991). Antes de Tomás, e
com base na negação de Santo Agostinho de expressão platônica de que
o corpo é uma prisão para a alma, Hildegard de Bingen havia escrito
sobre as relações entre a alma e o corpo, anunciando que a alma guarda
a carne, graças ao uxo de sangue em umidade constante (Hildegard de
Bingen, 1997, pp. 81-82). Contra todas as formas de dualismo, estes
autores medievais argumentam que o homem é feito de um único ser,
do qual a matéria e o espírito são os princípios que compõem um todo.
É uma alma encarnada e de um corpo animado.
Contudo, o corpo medieval terá muitos olhares e outras inter-
pretações, como acontece no Concílio de Tours (1163), onde o corpo
se converte em um corpo intocável, pelo menos para aqueles médicos
que possuíam a categoria de médicos universitários, e que muitas vezes
compartilhavam a condição de médicos e clérigos que tinham estudado
medicina (Jacquard, 1981). Estes médicos só poderiam intervir em en-
fermidades externas sem tocar o corpo do paciente, muito menos suas
entranhas corporais.
Por trás da visão do corpo na Idade Média, já levantada ante-
riormente, mas nesse período sistematizada, está a relação entre o corpo
e o poder político. Não me rero exatamente à biopolítica, mas aos pa-
ralelismos metafóricos que foram construídos entre as diferentes partes
do corpo e a estrutura da própria sociedade. A metáfora do corpo social
foi desenvolvida por Juan de Salisbury, em seu livro Polycraticus
31
. Nele,
o autor desenvolve o seguinte esquema:
31
O livro corresponde ao número CXCIX de la Patrologia Latina (PL). Col. 379-822.
85
Corpo, cultura e educação
Comparação entre corpo e sociedade no Polycratus
CORPO SOCIEDADE
Cabeça Príncipe
Coração Conselheiros
Olhos, orelhas, línguas Os Juízes e os administradores provinciais
Mãos Soldados
Costelas, rins Assistentes
Ventre, intestinos Funcionários de nanças
s Povo
Fonte: Adaptado de Le Go, 1964
À luz deste esquema, é pertinente armar que a organização cor-
poral foi usada de forma habitual durante a Idade Média para descrever a
coletividade. Algumas destas metáforas em torno do corpo e da sociedade
serão retomadas posteriormente como elementos comparativos da socie-
dade e perdurarão, de forma mais ou menos denida, até a atualidade.
Uma das grandes diferenças entre a Idade Média e o Renasci-
mento se apresenta na mudança de concepção antropológica existen-
te. O Renascimento subsidia a passagem de uma visão teocêntrica de
mundo para uma concepção antropocêntrica. Com essa mudança de
foco do que está no centro da vida, Andrieu diz que “el cuerpo en el
Renacimiento es el renacimiento del cuerpo” (1993, p. 25). As privações
existentes durante o período anterior ao redor dos corpos dão lugar ao
que poderia ser designado como um momento de gloricação do corpo,
que pode ser traduzido no cuidado do corpo (especialmente a beleza), as
atividades corporais e os “ amores “ do corpo. A beleza corporal é cons-
truída a partir dos cânones estéticos gregos
32
. Saunders armará, refe-
rindo-se às formas de compreender a beleza no Renascimento, que “por
esencia subjetiva (...) las formas anatómicas, consideradas en conjunto,
ofrecen una descripción del cuerpo entero, pero esta descripción se com-
pone de una serie de descripciones fragmentarias de diferentes partes de
32
Paquet arma em relação ao ideal do corpo grego que se trata de “la recuperación de un modo de concebir
el rostro y el cuerpo plenamente inspirado en las leyes de la armonía pitagórica y del ideal platónico de lo
Bello, lo Justo y lo Verdadero” (1998, p. 44).
Jordi Planella Ribera
86
la anatomía de la mujer
33
. O corpo da mulher não se pode escrever nem
descrever completamente. Não acontece o mesmo com a ideia de corpo
genérico (baseado principalmente no corpo de homens) que será um
objeto de obsessão dos artistas e anatomistas renascentistas. Este é o caso
de Durer e Leonardo da Vinci que estabelecem diagramas precisos para
criar a gura ideal. Como Flynn diz, referindo-se a este fato:
Para Leonardo da Vinci la disección no era un mero añadido a la
práctica artística o una oportunidad de exponer cientícamente la
mecánica de la organización corporal. La representación diagramática
de Leonardo de las proporciones del cuerpo, conocida como el canon
vitruviano-policletiano, nos muestra un maniesto gráco de las ideas
del siglo XV sobre el cuerpo (Flynn, 2002, p. 56).
O monge beneditino Agnolo Fiorenzuola armava que a bele-
za torna-se uma espécie de harmonia secreta, resultado da composição e
da combinação de membros, proporções e adequação para o m a que
se destinam. O Renascimento é, portanto, uma fase onde a higiene, o nu
e a forma de vestir o corpo dará um salto signicativo. Em relação aos
costumes de vestir, assistimos uma mudança de roupas que escondiam
o corpo sob vestidos largos para o uso de roupas apertadas que deixam
adivinhar os corpos que as encarnam. E essa mudança de costumes de
vestir vai ser reforçada pela modicação nos hábitos de higiene
34
. O cor-
po torna-se sacralizado pelo seu cuidado e pela higiene, ainda que muito
longe do que se fará em épocas posteriores. A reviravolta na concepção
cristã-medieval é real e simbólica. Já não é necessário que os corpos se-
jam escondidos e, portanto, negados; agora a sua forma pode ser visível e
exibida. A repressão e a negação da corporeidade levam a uma liberação:
a presença do corpo na polis.
Essa liberação corporal terá seus frutos no campo da medici-
na, já que as proibições, medos e desconfortos ao lado da intervenção
interna do corpo do paciente, dará lugar ao que Le Breton denominou
A época da anatomização do homem (1990, p. 47). A modicação em
33
Rero-me à comunicação apresentada no Congresso Internacional Le corps à la Renaissance (1987). Citado
por Andrieu (1993, p. 25).
34
A questão é amplamente discutida por Vigarello (1985).
87
Corpo, cultura e educação
torno das concepções médicas viverá um reforço signicativo com a pu-
blicação do livro De Humani Corporis Fabrica, de Vesalius. O projeto de
Vesalius põe em evidência que o olhar que se dirigia ao corpo esquecia
o homem (em sentido genérico e holístico) e se focava em diferentes
partes do corpo. O livro de Vesalius contém, ao longo de mais de 700
páginas, 300 gravuras realizadas por um discípulo de Tiziano, Joan de
Calcar. O impresso da contracapa do livro nos mostra Vesalius reali-
zando uma dissecação de um cadáver. A importância da publicação De
Humani Corporis Fabrica se dá, segundo Le Breton, porque nela aparece
a verdadeira invenção do corpo no pensamento ocidental (1990). A me-
dicina se centrará, a partir desse momento, não na pessoa, mas naquela
parte do corpo que está doente. O corpo dos homens tem um funciona-
mento similar ao corpo de outros animais e, portanto, não tem por que
ocupar um lugar de privilégio no cosmos.
Essa passagem do corpo impuro (que não se pode tocar) ao
corpo aberto dos anatomistas, terá um cenário privilegiado: o anteatro
anatômico. Os trabalhos de dissecação dos anatomistas serão mostra-
dos nesses espaços por meio de aulas ou de anatomias públicas (Ferrari,
1987). Na verdade, a mesma capa do livro de Vesalius “obra fundadora
de la anatomía moderna, es como un reproche a quienes sólo leían libros
antiguos mientras cirujanos barberos practicaban disecciones” (Laqueur,
1994, p. 137).
No entanto, apesar de todas essas percepções que nos propõem
diferentes olhares para o corpo cristão – desde o cristianismo primitivo
até a Idade Média - não se produzirá uma concepção do corpo separado
do homem. O homem permanecerá unido ao comunitário, ao cósmico,
onde se encontra inserido. Para a existência de uma individualização do
homem, por meio da matéria, será necessário esperar o desenvolvimento
do individualismo, especialmente a partir da modernidade (Le Breton,
2000). Por meio de seus corpos, os homens estão incluídos na sociedade,
mas em nenhum caso o corpo é o elemento que os exclui da mesma.
Não é possível pensar o homem sem ter presente o corpo.
Do mesmo período é a controvérsia de Valladolid, em que se
discutiu se os índios possuíam alma ou deveriam ser tratados apenas
Jordi Planella Ribera
88
como corpos (e, portanto, cosicá-los completamente). Essa discussão e
as conclusões correspondentes terão efeitos diretos sobre a concepção do
corpo. O corpo do outro se torna o assunto do olhar dos conquistadores,
já que se trata de corpos diferentes, corpos esbeltos, corpos nus, corpos
belos. Apesar de conceber o outro (neste caso, o índio americano) como
sujeito com corpo e alma, passam a ser destruídos. O corpo do outro é
objeto de destruição em massa por meio do genocídio dos povos Maya,
Inca, Asteca, etc.
3.2.3. a PerCePção do CorPo na modernidade: quando oS
CorPoS o máquinaS
Há muitos elementos que servem aos historiadores na diferen-
ciação do período que expusemos no momento anterior à modernidade.
Uma dessas características é a que argumenta Le Breton:
Entre el siglo XVI y el XVII nace el hombre de la Modernidad: un
hombre cortado de sí mismo (bajo los auspicios de corte ontológico
entre hombre y cuerpo), cortado de los otros (el cogito no es el
cogitamus) y cortado del cosmos (Le Breton, 1990, p. 58).
Os avanços médicos na anatomia facilitarão a recuperação da
antropologia dualista, agora matizada pelas ideias de Descartes, e farão
com que o corpo do homem moderno se converta em um corpo meca-
nizado, anatomizado e distanciado da concepção antropocêntrica do re-
nascimento. De fato, o próprio Descartes é inuênciado pela anatomia
vesálica e galênica, tal como arma Idoate: “conoce la anatomía vesalia-
na, al parecer no directamente, sino a través de los trabajos de Silvio (...)
como fuentes de conocimiento, emplea a juzgar por la correspondencia,
la disección humana” (Idoate, 1999, p. 163). Nesse novo olhar sobre o
homem e, em particular, para o corpo do homem, o sangue e seu movi-
mento serão o símbolo da mecânica do movimento, como nos mostra
Descartes em seu Traité de l’homme.
Na história da losoa se situaram lateralmente Platão e Des-
cartes, por um lado, e Aristóteles e Santo Tomás, por outro. Seguindo
89
Corpo, cultura e educação
esta ordem, é essencial lembrar que, no século XVII, Descartes retomou
as ideias iniciadas por Platão em relação à antropologia losóca dualis-
ta. Em Meditations, Descartes dene sua própria concepção do corpo:
Por cuerpo entiendo todo lo que termina en alguna gura, lo que
puede estar incluido en algún lugar y llenar un espacio, de tal modo
que todo otro cuerpo quede excluido; que pueda ser sentido o por el
tacto o por la vista, o por el oído, o por el gusto, o por el olfato, que
puede moverse de diversas maneras, no por sí mismo sino por algo
ajeno por el cual sea tocado y del cual sea tocado y del cual reciba su
impresión (Meditaciones, med. II, 1980).
Descartes realizará uma cisão na história do pensamento, (qua-
se denitiva e que nos conduzirá até a atualidade) na concepção do
corpo e da alma. É neste sentido que Gevaert arma que “el dualismo
cartesiano, más aún que el platónico, es importante para comprender la
antropología moderna y las instancias antidualistas que caracterizan la
antropología de hoy” (1995, p. 79). É habitual ler em textos a expressão
“O erro de Descartes” (na obra de Damasio por exemplo), mas, apesar
de terem sido escritos argumentos a favor ou contra, trata-se de uma tese
(a cartesiana em oposição à corporal) que continua marcando a história
do pensamento. Descartes assumiu serem operações da mente separadas
da estrutura e do funcionamento do organismo biológico. Em outras
palavras, o corpo vai ser chamado Res extensa, e a alma, Res Cogitans.
A Res extensa referir-se-á à parte corpórea e será concebida como puro
mecanismo, por tratar-se de algo que se tem à frente e que é sensível.
Sobre a condição corporal cartesiana, Martinez nos diz que “mi cuerpo
no es yo, es tan objeto para mí como el papel que tengo delante. Mi pen-
samiento, en cambio, es algo perfectamente incorpóreo, y tan distinto
de mi cuerpo como de la mesa en la que me apoyo” (1973, p. 68., vol.
II). Com a negativização, mais uma vez, da res extensa, Descartes priva
o corpo de seu mundo e das formações do sentido que se fundamentam
em sua experiência corpórea.
Jordi Planella Ribera
90
Perspectivas dos dualismos platônico e cartesiano
Platão Descartes
A alma platônica aspira liberar-se do corpo
para alcançar ao mundo das ideias.
O ego cogito cartesiano busca dispensar
o mundano e corpóreo para asceder ao
conhecimento da subjetividade.
O corpo é uma prisão para a alma.
O corpo priva o acesso do que é quantitativo.
Descartes eterniza o dualismo platônico.
É importante notar que Descartes não buscava invalidar o cor-
po, mas fundamentar cienticamente o seu pensamento, as formas de
pensar. É dessa forma que se desenvolve a teoria conhecida como Cogito,
ergo sum. Podemos dizer que o dualismo cartesiano é um dualismo com
uma clara intencionalidade metodológica e uma intencionalidade com-
batente (Chirpaz, 1996)
35
.
Com as contribuições anatômicas e losócas, o corpo se con-
verte em algo axiologicamente estranho ao homem. Essa axiologia pres-
siona o indivíduo frente à coletividade, o que reforça a necessidade de
marcar os limites entre o eu e os outros. Neste sentido, deve-se conside-
rar a leitura que se faz do corpo nos tempos modernos e que o classica
como a parte menos humana do homem, mais próximo da sua condição
de animalidade. Separar o homem de sua condição de animalidade é um
dos objetivos e das contribuições da modernidade; rebaixar a condição
de corporeidade para torná-lo mais humano. Daí, também, a insistência
cartesiana na comparação do homem com a máquina, o que certamente
permitirá mudar sua corporeidade. Descartes refere-se ao homem como
máquina armando que “[...] como um relógio composto por rodas e
35
Sobre essa relação ambivalente entre corpo e alma na losoa cartesiana, o próprio Descartes arma na
Sexta meditação que: “muestro como el alma del hombre es realmente distinta del cuerpo, y no obstante le
es tan estrechamente unida que compone una misma cosa con él” (Med. VI).
91
Corpo, cultura e educação
contrapesos ... considero o corpo do homem” (Meditação sexta). É no
Traité de l’ homme que Descartes discute em detalhes a concepção do
homem como máquina.
O homem máquina, o corpo mecanizado, é a metáfora do
corpo que caracteriza a losoa cartesiana; e isso é possível porque o
corpo foi transformado em algo que é axiologicamente externo e longe
do homem. Essa separação afeta a atitude desdenhosa do corpo, o que
lhe confere a categoria da “parte menos humana del hombre, el cadáver
dónde el hombre no se podría reconocer” (Le Breton, 1999, p. 71). Isso
fará com que haja uma contradição, um confronto, não entre corpo e
alma, mas entre o corpo e a pessoa.
A alma e a pessoa em controvérsia com o corpo
Alma
Corpo
Pessoa
Corpo
A losoa cartesiana nos oferece um corpo que se torna ex-
cedente, porque sem a sua presença seria muito mais fácil o acesso aos
conhecimentos, pensamentos ou situações. Há muitos aspectos do cor-
po que é necessário reduzir ou eliminar. Um exemplo são os odores, a
forma, o volume, a consistência, etc. De acordo com Le Breton, encon-
tramos o sentido preciso da losoa cartesiana em relação ao corpo:
desnudar las signicaciones de sus huellas corporales” (1990, p. 73).
Esse interesse em superar a corporeidade torna-se vigente a partir do
início da losoa de Descartes.
Convivendo com a perspectiva cartesiana, encontramos determi-
nados discursos que contribuem com essa visão do corpo excessivamente
negativizada. Assim, acredita-se que o corpo está, por natureza, disposto a
cometer crimes e pecados. É necessário encontrar maneiras de controlá-lo
a partir das duas perspectivas de uma possível transgressão: o direito penal
e o direito canônico. As duas especialidades obrigarão o corpo a retornar
aos caminhos que o conduzirão para um bom caminho corporal.
Jordi Planella Ribera
92
Elementos do processo de negativização corporal
Predisposição do corpo para:
CRIME PECADO
Direito Penal Direito canônico
O corpo é obrigado e
reconduzido ao bom
caminho
A Reforma Protestante apresenta uma outra perspectiva para
a questão corporal que reprime seu estado natural, e provoca um retro-
cesso na sua concepção e nas liberdades que havia adquirido. A m de
preservar a pureza da doutrina evangélica, o corpo é visto como o espaço
de registro do mal. Como Muchembled arma:
La marca diabólica de la existencia de un pacto entre Satán y el
que lo lleva. Es, por lo menos, lo que pretenden lo demonólogos.
Y para los jueces, la marca reemplaza el contrato escrito con el
diablo, contrato que uno no descubre jamás. La marca diabólica
ha sido imprimida por el diablo en algún sitio del cuerpo del brujo
(Muchembled, 1979, p. 58).
A visão cartesiana do corpo, mais esse retorno ao corpo puro
do NT, darão lugar a uma preocupação pela saúde física que resultará
em um grande interesse no controle e higiene corporal.
93
Corpo, cultura e educação
3.2.4. o CorPo obJeto do olhar: do Controle à
mediCalização
Podemos denir, de acordo com a proposta de Andrieu, o cor-
po do século XVIII como um corpo sensível, pois “[…] por una parte
el siglo XVIII va a desarrollar un erotismo de la sensibilidad dando al
cuerpo la posibilidad de realizar todas sus potencialidades, tanto desde
el punto de vista del conocimiento como desde el punto de vista de la
liberación de sus cuidados” (1993, p. 35). Também poderíamos denir
o século XVIII como o século de docilização dos corpos, pois as práti-
cas de controle político dos corpos estão nesse século em plena expan-
são. Trata-se de um período onde se tentará eliminar a sensibilidade do
corpo, exercendo sobre ele uma tecnologia política. É o século em que
Foucault concentra o surgimento de processos de fabricação de corpos
dóceis. Se tomarmos a denição de Revel em Le vocabulaire de Foucault,
perceberemos que o termo controle “[…] designa inicialmente una serie
de mecanismos de vigilancia que aparecen entre el siglo XVIII y el XIX
y que tienen por función no tanto castigar el desvío como corregir y
sobretodo prevenir” (2002, p. 15). Essa ligação da ação de controle dos
corpos tem já uma conotação clara de pedagogia corretiva.
Porém, será necessário desenvolver uma tecnologia que seja
exercida diretamente sobre os corpos. A pedagogia corporal procurará
dar o exemplo por meio das práticas sobre os corpos. Aqueles que ob-
servam o que se passa nos corpos daqueles que transgrediram a norma
sabem que também pode acontecer com eles. Uma das criações mais
signicativas e, atualmente, ainda em vigor em certas instituições, é a
construção panóptica. Jeremy Bentham publicou em 1791 uma memó-
ria sobre a reforma das leis criminais entitulada El panóptico. Foucault,
ao apresentar o Panóptico, diz que “[…] lo que buscaban los médicos,
los industriales, los educadores y los penalistas, Bentham se lo facilita:
ha encontrado una tecnología de poder especíca para resolver los pro-
blemas de vigilancia” (1989, p. 11).
Além da perspectiva legal sobre o corpo, a medicina também
tem como objeto de sua prática uma nova concepção de corpos. Para
Bolufer, “[…] el cuerpo resultó ser así uno de los lugares donde de forma
Jordi Planella Ribera
94
más poderosa se construían y se combatían las nociones culturales sobre
orden social, y la Medicina el discurso que se pretendió más autorizado,
con la revolución epistemológica de la modernidad” (1998, p. 212).
Esse olhar da medicina tem objetivo claro: desenvolver um discurso hi-
gienista e começar a aplicá-lo à sociedade para o bem da prosperidade
geral. Manter um conjunto de comportamentos de higiene e ajudar a
manter e regular a ordem social desejada. Já no século das luzes se obser-
vam vestígios dessa mudança higienista, mas será especialmente ao lon-
go do século XIX, que terá uma melhor acolhida por meio da promoção
de estâncias termais.
Essa ordem social tem como objeto os corpos que tenham uma
aparência estranha e diferente. Os corpos de pessoas com deciência
começam a ser considerados diferentes, e a ideia da ligação entre pobreza
e doença, ou deciência, põe em funcionamento uma importante ma-
quinaria para a reeducação desses sujeitos. A assistência aos corpos com
necessidades especiais passa por uma prática precisa: o isolamento e a
reclusão. É no século XIX que se desenvolverá e sistematizará a ciência
já presente desde os tempos antigos: a ortopedia. Trata-se do nascimento
de um novo ramo do conhecimento médico, que terá um grande im-
pulso a partir da marca deixada por Nicolas Andry, quem dene a orto-
pedia como a arte de prevenir ou corrigir nas crianças as deformidades
do corpo
36
. O termo, das palavras gregas orthos e pedia (reto e criança),
casou perfeitamente na terminologia médica usada no século XVIII
37
.
Tal como Nieto arma “[…] la unión de estas dos palabras sirve para
explicar lo que se propone, es decir, enseñar diversos modos de prevenir
y corregir en los niños las deformidades del cuerpo” (2002, pp. 63-64).
Em relação ao olhar losóco dos corpos, e seguindo os argu-
mentos da maioria dos períodos históricos, encontramos a ambivalência
de modelos antropológicos monistas e dualistas. Os principais autores
que se posicionam no modelo antropológico monista são Feuerbach,
36
Andry (1741) L’Ortopédie ou l’art de corriger dans les enfants les diormites du corps. Bruxelas: George Fricx.
37
Os antecedentes do termo ortopedia são os seguintes: pedotroa (refere-se à alimentação de lactentes que
preconizava ser necessário que eles fossem amamentados com mais leite e de melhor qualidade); callipedia
(maneiras de obter crianças belas). De Andry é a imagem da árvore curvada, representação simbólica da
ciência ortopédica.
95
Corpo, cultura e educação
Stirner, Marx e Nietzsche. A grande maioria deles praticamente reduz
a concepção que o homem tem do seu corpo. Os autores que denem
concepções dualistas do homem no século XIX são Kierkegaard e Schi-
ler. Em contraste, em relação à concepção monista, para o primeiro, o
verdadeiro homem nega seu corpo em benefício da alma. De acordo
com Pastor “[…] en el siglo XIX la sociedad occidental seguía atormen-
tada por la sexualidad del cuerpo. Este énfasis hacía referencia a dos
aspectos principalmente: la prostitución y la masturbación; el primero
un mal social y el segundo un mal solitario” (2000, p. 155).
Entretanto, o olhar para o corpo do século XVIII não se limita
a criar corpos dóceis e a engendrar sistemas de vigilância e controle para
esses corpos. É importante também que o século XVIII seja concebido
como um século de mudanças e transições signicativas na cultura eu-
ropeia. Consequentemente, o século XIX é um século controverso no
que se refere aos usos sociais do corpo. Por um lado, tenta controlar
moralmente os sujeitos por meio da higiene, lentamente conquistando o
domínio social e, por outro lado, pretende-se que as classes trabalhado-
ras (com mais problemas em matéria de higiene e doenças infecciosas) se
confundam com as classes perigosas. O projeto do século XIX é iluminar
os corpos, fazer entrar a luz nos espaços úmidos, tétricos e tristes, natu-
ralizar os bairros cinzas das cidades. Essa construção das classes perigosas
é analisada por Foucault em La vida de los hombres infames. Para o autor:
La gran familia indenida y confusa de los “anormales” que
atemoriza de forma obsesiva a las gentes de nales del siglo XIX
no señala simplemente una fase de incertidumbre o un episodio
un tanto desafortunado de la historia de la psicopatología, sino que
constituye un fenómeno que está íntimamente relacionado con todo
un conjunto de instituciones de control (Foucault, 1990, p. 83).
Na obra de Carballeda (2000) também o corpo tem desem-
penhado um elemento-chave nas práticas de controle e / ou exclusão
de indivíduos considerados perigosos. Quando os corpos se encontram
em situação social de desordem, as administrações entram em jogo e
põem ordem nestes corpos. Portanto, são os corpos moribundos, os cor-
pos indigentes, os corpos mutilados, os corpos envelhecidos, etc., os
Jordi Planella Ribera
96
que provocam esta desordem. A abordagem reete outras perspectivas e
concepções de corpos. O século XIX será o século do impulso do higie-
nismo, que juntamente com a moral vitoriana, exerce o controle brutal
nas relações do corpo com a alma. Se, por um lado, a higiene pessoal
é sinônimo de retidão moral, a sujeira do corpo nos diz que este corpo
pertence a alguém da classe trabalhadora ou das classes perigosas. O cor-
po se tornará uma marca dura que classicará e localizará o sujeito que
a porta. A assimilação de classes por meio da presença estética e física
fará com que se determine a classe perigosa e a classe trabalhadora. O
corpo higiênico e vitoriano oscila entre as possibilidades que os avanços
médicos e biológicos oferecem e o controle teológico sobre suas ações e
pensamentos corporais.
Todo este regenariacionismo corporal parte das novas situações
sociais nas cidades, que são dadas pelo aumento do trabalho em fábri-
cas, alcoolismo, doenças venéreas, etc. Há uma grande transformação
de formas de vida que colocará o corpo de cidadãos em uma posição ex-
trema, na qual começa a degenerar gradualmente. Os discursos médicos
e sociais do século XIX relacionavam a degeneração física com a dege-
neração moral. Esta ligação é importante porque reconecta as questões
corporais com as morais. Os discursos promovem a ideia de que aqueles
que levam uma vida para além do que é moralmente aceitável receberão
as consequências em seus próprios corpos.
3.2.5. diSCurSoS CorPoraiS de guerra e PóS guerra
Ana M. Freire Araujo, no primeiro capítulo de sua tese de dou-
torado, intitulada El cuerpo, la ideología de la prohibición del cuerpo y el
analfabetismo brasileño menciona que ela não analisa o corpo como su-
jeito de si, mas como manipulação política, que docilizado, autoritária e
discriminatoriamente, impede que esse corpo acesse os espaços do saber,
do ter, do ser o do poder (p. 23).
O corpo do arame farpado, o corpo dos soldados da Primeira
Guerra Mundial, é um corpo docilizado (como são todos os corpos milita-
rizados), um corpo que é necessário para servir ao Estado, pronto para obe-
97
Corpo, cultura e educação
decer a seus superiores e com a nalidade de eliminar os corpos inimigos. O
tema do corpo tem uma presença fundamental e signicativa na Primeira
Guerra Mundial. Disse Michel Foucault em Surveiller et punir que
[…] el soldado es por principio de cuentas alguien a quien se
reconoce de lejos. Lleva en sí unos signos: los signos naturales de su
vigor y de su valentía, las marcas también de su altivez; su cuerpo
es el blasón de su fuerza y de su ánimo; y si bien es cierto que
debe aprender poco a poco el ocio de las armas, habilidades como
la marcha, actitudes como la posición de la cabeza, dependen en
buena parte de una retórica corporal del honor” (1976, p. 134).
O corpo dos jovens soldados da Primeira Guerra Mundial é ao
mesmo tempo a essência e o suporte material da ação militar. As lutas
corpo a corpo serão ainda possíveis, porque os corpos da Primeira Guer-
ra Mundial são o que – de acordo com Vilanou – podemos denominar
como corpos a motor, quando o autor arma que “el cuerpo a motor
recurre, de nuevo, a la naturaleza, a n de encontrar el aire puro para
alimentar un cuerpo que necesita combustible” (2001b, p. 22). Contu-
do, no caso dos corpos dos soldados, não se trata unicamente de buscar
o combustível no ar fresco, e sim de usar o corpo militar como artilharia
pesada, como um volume corporal de ataque.
A Primeira Guerra Mundial será a última guerra em que haverá
um grande número de soldados na infantaria, nas primeiras linhas do
campo de batalha, entre os quais estão os “Doughboys” (soldados norte-
-americanos). Os soldados da primeira la nem sempre eram soldados
experientes, muitas vezes eles não sabiam usar sua arma (Kaspi 1990, p.
323). Tal fato se traduzirá diretamente no elevado número de soldados
que morreram na linha de frente
38
. Foi também uma guerra em que os
corpos enterrados no anonimato contribuíram para a “desconstrução
do corpo como elemento constitutivo do sujeito.
O efeito da guerra é mais grave que o de muitas doenças, muito
mais espetacular, muito mais impensável. Porém, na Primeira Guerra Mun-
dial (como foram os anos após a Guerra Civil Espanhola), não somente era
38
Como exemplo, no mês de agosto de 1917 morreram 100.000 soldados italianos, uma cifra mais que
signicativa do que acabamos de comentar.
Jordi Planella Ribera
98
preocupante o nome de jovens soldados que morreriam ou sofreriam graves
mutilações em certas partes do seu corpo. A vida diária foi para os soldados
e seus corpos um verdadeiro suplício. Um exemplo é o que nos descreve
Tísner ao narrar sua experiência nas trincheiras: “era necesario vivir allí las
24 horas diarias para poder captar íntegramente la inconcebible realidad de
aquella rigurosa clausura al aire libre” (1990, p. 179).
O período entre guerras é um período prolíco em doenças
infecciosas. A saída da Primeira Guerra Mundial deixou a população
em uma situação evidente de vulnerabilidade sanitária. De acordo com
Barona, o período compreendido entre o nal do século XIX até a 2
a
Guerra Mundial
[…] se caracteriza por un predominio de enfermedades sociales que, aunque
son infecciosas, tienen un carácter crónico y no se maniestan en forma
de epidemia catastróca, a pesar de que afecten a sectores importantes de
la población. Hablo de enfermedades como la tuberculosis pulmonar, el
paludismo, la ebre tifoidea, la difteria o la sílis (1990, p. 59).
Quando Barona as classica como doenças sociais, ele tem
presente que muitas delas são devido às condições de vida das próprias
pessoas: pobreza, superlotação em habitações, insalubridade, etc. Um
relato preciso de algumas das situações que causaram epidemias é o que
Verges oferece:
El otoño del año 1918 nos manda la gripe francesa, nombre con el
cual fue bautizada aquí mientras que los franceses la llamaban gripe
española. ¡Da igual! Los primeros días parecía tener las características
propias de aquellas pasas otoñales que indefectiblemente invadían la
ciudad al llegar octubre o noviembre, pero la cosa era bien diferente.
Rápidamente tomó dimensiones epidémicas y la gente, casi sin
darse cuenta, asistió a la muerte de familiares y conocidos, con una
celeridad que asustaba. La enfermedad se propagaba rápidamente,
los enfermos sucumbían y el pánico colectivo se extendió como un
reguero de pólvora (Saladrigues, 1973, pp. 142-143).
Tal como narra Verges, os corpos doentes nalizavam suas vi-
das. O corpo doente do período entre guerras foi um corpo com muito
pouca chance de sobrevivência. Esses pacientes foram designados, no -
99
Corpo, cultura e educação
nal da Primeira Guerra Mundial, como doentes civis, em oposição àque-
les que foram feridos e mutilados na guerra (Stiker, 1982). No entanto,
apesar do grande número de doenças, após a Primeira Guerra Mundial
há um ressurgimento do eros corporal, que é conhecido como Felizes
Anos Vinte. A dança, a velocidade, a presença corporal renovam a visão
do corpo cinza, estático, cadavérico e uniformizado dos anos preceden-
tes. A retomada dos Jogos Olímpicos, especialmente a partir de Berlim
1936, impulsionou a presença do corpo nas preocupações sociais. É ne-
cessária a passagem do corpo doente para o corpo saudável, e uma forma
de fazê-lo é a prática de esportes para colocar o corpo em forma.
Entretanto, a circularidade histórica faz com que o corpo que
tenta fugir de sua condição de debilidade comece a se tornar um cor-
po militarizado novamente, um corpo politizado e docilizado. O me-
lhor exemplo dessa situação é encontrado na dicotomização corporal na
Alemanha nazista, entre os corpos ortodoxos e os corpos heterodoxos.
Os corpos heterodoxos (pessoas com doença mental, idosos, doentes,
judeus, homossexuais, etc.) serão eliminados por meio do estermínio
em massa. Esse fato, especialmente signicativo na história do corpo,
provocará um movimento de regressão, nos anos posteriores à descober-
ta da Shoah. Uma vez descoberto o massacre, um sentimento geral de
culpa fará com que não exista, pelo menos por alguns anos, a reexão e
a presença aberta dos corpos. Essa situação se romperá com os atos de
maio de 1960 nos EUA, quando a Food and Drug Administration aprova
a pílula contraceptiva, chamada Enovid -o verdadeiro passo para alcan-
çar a liberação sexual (e também sociossexual) dos sujeitos. O orgasmo
desempenhava um novo papel e agora o sexo podia ser divertido e sau-
dável, embora fosse certo que era necessário liberar-se gradativamente de
temores e preconceitos. Teremos que esperar mais oito anos, até a Revo-
lução de Maio de 68, na qual os corpos serão objeto de um processo de
liberação mais amplo.
3.3. a CirCularidade da hiStória do CorPo
Depois de ter analisado o papel que o corpo ocupou em cada
momento histórico, podemos dizer que não se trata de uma história
Jordi Planella Ribera
100
linear, mas de uma história elíptica ou circular. Como diz Sennett, “[…]
la civilización occidental ha tenido un problema persistente a la hora de
honrar la dignidad del cuerpo y la diversidad de los cuerpos” (2002, p.
17). A conciliação de uma concepção de corpo a partir da antropologia
monista até a concepção do corpo a partir de modelos antropológicos
dualistas congurou as imagens, as metáforas e os modelos corporais
que existem atualmente. A partir da concepção platônica do corpo en-
tendido como uma prisão para a alma, até a erotização dos corpos por
meio de Charleston nos anos vinte, passando pela anatomização dos
corpos no Renascimento e da concepção do corpo como uma máquina
na modernidade, pudemos ver esta variação de “corpos possíveis.
Conguração da gura
Circularidade da História Corporal
Ciclos negativos:
.soma sema
.corpo como pecado
.corpo máquina
.corpo objeto
.corpo dócil
.corpo enfermo
.corpo soldado
.corpo físico
Ciclos positivos:
.corpo pessoa
.corpo prazer
.corpo hedonista
.higiene corporal
.corpo liberado
.corpo simbólico
.corpo erótico
.corpo são
Esta múltipla concepção dos corpos, não fundamentada so-
mente em sua dimensão biológica, nos serve para responder uma das
perguntas iniciais do livro: o corpo é dado naturalmente ou é uma cons-
trução social que se transforma de acordo com os momentos históricos e
101
Corpo, cultura e educação
os contextos sociais e culturais? A resposta que damos à pergunta inicial
é que o corpo é uma construção social. Cada momento e cada contexto
nos oferecem, ainda que de maneira não excluente, uma determinada
hermenêutica do corpo e da pessoa que o encarna. Não se trata da mes-
ma interpretação que se fazia do corpo no Antigo Testamento, no Novo
Testamento, na antiga Grécia, em Roma, na Idade Média, na moder-
nidade, no século XVIII, no romantismo. A importância do estudo da
hermenêutica do corpo a partir de uma perspectiva histórica fundamen-
ta a proposta de Fontana ao reetir sobre o sentido da história:
A menudo se piensa que los historiadores nos ocupamos exclusivamente
del pasado, y no es cierto. Nos ocupamos de la trayectoria del hombre y
de las sociedades humanas, y la única manera de hacerlo, la única forma
de poder estudiar la evolución, es examinarlos en un arco temporal que,
para que tenga suciente peso, es necesario que arranque del pasado. Lo
que nos proponemos es entender el presente en el cuál vivimos y ayudar
a otras personas a entenderlo, lo cual explica que debajo de los hechos
del pasado en que se nos ve trabajar existan unos problemas que son de
hoy y, unas preocupaciones que compartimos con el resto de los hombres
y las mujeres (Fontana, 1992 p. 17).
Essa tentativa de entender (compreender) o presente, e em par-
ticular a construção do corpo no discurso pedagógico, é possível graças
ao arco temporal recorrido e à sistematização de ideias e discursos em
torno do corpo.
CaPítulo 4
Situar o corpo na teoria
105
S    
Si l’on accepte cette thèse que le corps est l’ultime référence, le signiant
qui donne sens à tous las signies, autrement dit que le corps constitue
la trame de toute expérience culturelle, le médiateur de tous las rapports
sociaux, le “géométral” de toute perception, de toute pratique, de tous
discours, on est obligé d’en tirer quelques conséquences pour las sciences
humaines.
[Brohm, 2001, p. 40]
Para poder pensarnos como “sexos”, o incluso simple y llanamente como
cuerpos” (más o menos “sexuados”) precisamos conceptos, los cuales son
obra humana, obra cultural.
[Vendrell, 2003, p. 21]
O corpo tem sido um ponto importante de referência ao longo
da história da humanidade, com frequência contraposto à concepção e
visão que tem existido da alma. Essa presença do corpo em diferentes
discursos é para Vilanou um paradoxo “ya que si bien el cuerpo es un
producto social se constata su ausencia en los discursos que, por contra,
han destacado desde antiguo los valores ideológicos” (2001a, p. 99).
Na tradição antropológica dualista, interpretar o corpo como elemento
simbólico tem sido, durante muitos anos, uma tarefa pendente, apesar
de que desde nais dos anos noventa até a atualidade (2015) se multi-
plicaram os trabalhos que podem situar-se na linha dos Estudos Corpo-
Jordi Planella Ribera
106
rais (Body Studies). Apesar da diculdade para produzir conhecimentos
teóricos em torno do corpo, os trabalhos de Laín Entralgo deram já faz
alguns anos uma nova dimensão ao tema. Laín Entralgo propõe em El
cuerpo humano. Oriente y Grecia Antigua que “todo el cuerpo de Flaubert
actuaba de uno u otro modo cuando escribía Madame Bovary, y todo el
cuerpo de Miguel Ángel intervino en la talla de Moises” (1987, p. 32).
Embora pesquisadores como Laín Entralgo
1
(e muitos outros historia-
dores da medicina e historiadores gerais) tenham trabalhado nessa linha
de pesquisa, isso nos leva a armar que o corpo tem sido o grande ausen-
te dos discursos das humanidades; ou, pelo menos, o tem sido de forma
explícita. O corpo teve uma fundamentação histórica que, de maneira
geral, foi concebida como um elemento dissociado da mente, e essa tem
sido a tônica geral imperante em sua concepção e recepção.
A partir dessa realidade, se faz evidente que reetir sobre o
corpo teve por objeto, em múltiplas ocasiões, demonstrar que a alma
era superior ao corpo. Alguns dos autores mais destacados da história
do pensamento ocidental dedicaram uma parte da sua obra para reetir
sobre que papel tem desempenhado o corpo no homem e qual é sua
importância em relação à alma. A presença do corpo físico nos dicursos
das Ciências Sociais nos fala da importância do corpo como elemento de
reexão e nos abre o caminho a seguir nos próximos capítulos.
Comparto a colocação de Medina (1994), quando arma que
na análise evolutiva da concepção do corpo desde a Grécia antiga até os
nossos dias, se revela um enfrentamento claro entre idealismo e materia-
lismo de um lado, e metafísica e dialética, de outro. Devemos buscar a
causa desse dualismo no pensamento existente em torno do corpo que
tem se nutrido da polaridade existente entre corpo e alma. Em contrapar-
tida, Foucault, como Laín Entralgo, Porter e muitos outros, também de-
dicou parte de sua obra a demonstrar que é possível escrever uma história
conjunta dos sentimentos, de comportamento e do corpo. Nesse sentido,
podemos armar que os trabalhos de Foucault servem de base para a aber-
tura desta brecha em torno da teoria do corpo, que já não terá volta.
1
Os principais trabalhos do autor em relação com o tema do corpo são: El cuerpo humano: Oriente y
Grecia (1987); El cuerpo humano (1989); El cuerpo humano. Teoría actual (1989); Cuerpo y alma. Estructura
dinámica del cuerpo humano (1995).
107
Corpo, cultura e educação
4.1. modeloS teóriCoS no eStudo do CorPo
Armei, no segundo capítulo, que o estudo do corpo exige um
enfoque multidisciplinar que faz necessário recorrer aos diferentes dis-
cursos forjados em algumas das disciplinas mais relevantes das Ciências
Sociais, para extrair os principais aportes que constituem o que tenho
denominado Teoría del Cuerpo, e entender melhor toda a perspectiva
que envolve a presente temática de estudo. Existem muitas aproxima-
ções possíveis ao estudo do corpo em função da disciplina a partir da
qual os pesquisadores e pensadores fazem sua tarefa. Isto não signica
que dentro de cada disciplina o espaço dedicado ao estudo do corpo
seja amplo ou majoritário; pelo contrário, os trabalhos sobre teoria do
corpo têm sido produzidos em conta-gotas. Na maioria das disciplinas
cientícas, o estudo do corpo tem sido uma temática marginal, à exce-
ção da proposta defendida por Turner (1989), em que o corpo passa a
ser proposto como a temática central da sociologia. Le Breton também
destaca alguns autores que têm sido centrais pelas suas propostas sobre
teoría do corpo:
el cuerpo hace entonces una entrada real en el cuestionamiento
de las ciencias sociales: J. Baudrillard, M. Foucault, N. Elias,
P. Bourdieu, E. Goman, M. Douglas, R. Birdwhistell, E. Hall,
por ejemplo, cruzan la puesta en juego física, la puesta en escena
y los signos de un cuerpo que merece cada vez más la apasionante
atención del campo social” (1991, p. 137).
Quero oferecer, como introdução à revisão das diferentes te-
orias do corpo elaborada ao longo do século XX, uma visão global de
quais têm sido as disciplinas e alguns de seus autores mais representati-
vos que têm reetido sobre o corpo.
Torna-se difícil concretizar quais foram as primeiras correntes
que se dedicaram abertamente a estudar e reetir sobre o corpo. Apesar
disso, existem indícios de que a losoa tem dedicado a essa empresa
boa parte da reexão feita a partir das diferentes correntes de pensamen-
to. Tal como destaquei no capítulo anterior, os aportes iniciais de Platão
e Aristóteles abrem essa linha de trabalho, e a seguem Descartes em El
Jordi Planella Ribera
108
discurso del método, Nietzsche em Así habló Zaratrusta, Merleau-Ponty
(1945) em Fenomenologie de la perception, Foucault (1976) em Histoire
de la sexualité. 1 La volonté de savoir, Galimberti (1983) em Il corpo, etc.
Não somente se escreveram trabalhos reexivos sobre o papel do cor-
po em determinados momentos históricos, mas também se elaboraram
estudos especícos que têm servido para construir uma verdadeira lo-
soa do corpo. Um bom exemplo disso é o trabalho de Bruaire (1968),
reeditado em diferentes ocasiões, Philosophie du corps, ou o trabalho de
Putnan (2001), La trenza de tres cabos: la mente, el cuerpo y el mundo que,
a partir da losofía, e com esse objetivo especíco, abordam a questão
do corpo. Porém, no campo da losoa, o que neste momento concen-
tra boa parte dos trabalhos que estudam o corpo é Mind-Body Problem.
Trata-se de repensar as relações entre corpo e alma para superar deniti-
vamente o dualismo cartesiano e acabar com os enunciados metafísicos.
Reconhece-se a Ryle como iniciador desta corrente de pensamento a
partir de e Spirit concept (1949).
Por outro lado, a sociologia, especialmente desde Mauss
(1934), com as Techniques du corps, até Gomann (1959) com e Pre-
sentation of Self in Everyday Life, e passando por Bourdieu (1979) com
La distinction: critique social du jugement, tem tentado justicar uma
especialidade dentro da sociologia denominada “Sociologia do corpo”.
A essa tarefa se dedicaram especialmente Le Breton (1985) Corps et soci-
étés: essai de sociologie et d’anthropologie du corps e (1992) La sociologie du
corps, Turner (1984) e Body and Society. Explorations in Social eory,
Berthelot (1985) Les Sociologies et le Corps, Shilling (1993) e Body and
Social eory, Scoot e Morgan (1993) Body Matters. Essays of the Body
(1993), Brohm (2001) Le Corps Analyseur (2001), Baudry (1991) Le
Corps Extrême, etc. Sua tarefa tem contribuído para que neste momento
se fale quase com absoluta normalidade da sociologia do corpo como
especialidade dentro da disciplina sociológica, e prova disto é a edição
da revista Body & Society. Dentre todos os olhares possíveis ao corpo, o
da sociologia toma um especial sentido de acordo com o que defende
Le Breton. Para ele, essa sociologia “no es una sociología sectorial como
las otras, posee un estatuto particular dentro del campo de las ciencias
sociales” (1992, p. 117).
109
Corpo, cultura e educação
A antropologia tem estado também atenta ao corpo como te-
mática de estudo desde a segunda metade do século XIX. O própio
Le Breton (1990, 1992, 1995) trabalhou para justicar e construir os
pilares e a arquitetura de uma antropologia do corpo e, embora anterior
a ele, os trabalhos de omas em torno do cadáver e da antropologia da
morte serviram para abrir essa linha de reexão. Os estudos de antropo-
metria iniciados a ns do século XIX são a semente dessa aproximação
entre corpo e antropologia. Uma perspectiva muito particular do corpo
e da antropologia é a que nos oferece Robert Murphy (1990) em Vivre
à corps perdu. Murphy é um antropólogo que, devido a um acidente,
necessita locomover-se com uma cadeira de rodas. No seu livro, expõe
a experiência cotidiana de viver sem corpo, de viver com a mobilidade
muito reduzida. No entanto, certamente, um dos trabalhos de antropo-
logia do corpo mais completo é a recente obra de Duch (2003), Esce-
naris de la corporeïtat. Antropología de la vida quotidiana. Nela, o autor
formula uma reexão chave no enfoque que damos ao livro:
[…] esto nos lleva a la conclusión que, desde el punto de vista de
una antropología de la corporeidad, el cuerpo humano, porque
siempre, activamente o reactivamente, se encuentra vinculado a un
tipo u otro de acción escénica, nunca no es una nalidad inmutable,
sino una dimensión simbólica que, incansablemente apunta a algo
situado más allá de cualquier más allá (2003, p. 21).
Em última instância, são signicativas as pesquisas realizadas
pela Escuela de Etnografía de Tarragona, em boa parte das quais o cor-
po e a corporeidade são o objeto de estudo
2
. Alguns desses trabalhos se
enquadram na teoria queer e em correntes de pensamento feminista
3
.
Alguns dos autores e trabalhos mais destacados relacionados ao corpo
são: Allué (2003) DisCapacitados. La reivindicación de la igualdad en
2
Como arma um de seus membros: “La Escuela de Etnografía de Tarragona presenta un escenario de
eclecticismo teórico y de conuencia interdisciplinar que incluye la historia de las mentalidades (en su versión
más francesa), el interaccionismo estratégico, así como aportaciones gramschianas. Se trata, pues, de una escuela
formada por un aluvión de tendencias constructivistas que debe denirse más por su praxis investigadora que por
sus presupuestos teóricos. Dichas prácticas etnográcas suprimen la distancia entre obsevador y observados. Esto
signifca que quienes construyen la etnografía tienen algún tipo de relación directa (personal, profesional o de otro
tipo) con lo que investigan” (Guasch y Viñuales, 2003, p. 13).
Devemos entender a teoria queer como uma reação contra as estratégias de armação natural daquilo
comum, destinada a suprimir ou a invisibilizar a diversidade intergrupal.
Jordi Planella Ribera
110
la diferencia; Vendrell (1995) Pasiones ocultas. La gestión del cuerpo y los
procesos de sexualización; Guasch (1991) El entendido: condiciones de apa-
rición, desarrollo y disolución de la subcultura homosexual en España.
A psicologia não deixou de lado o estudo do corpo, espe-
cialmente a partir dos aportes de Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer
(1981) com seu livro Modèles du corps et psychologie esthétique e (1990)
Une psychologie du corps. Além desse trabalho mais genérico, é importan-
te destacar os aportes feitos a partir da psicoterapia por Lowen (1958)
e Language of the Body, Guimón (1997) e Body in Psychotherapy
y (2000) Los lugares del cuerpo, Dolto (1984) L’image inconsciente du
corps, Boadella y Liss (1986) La psicoterapia del cuerpo, Alemany e Gar-
cía (1996) El cuerpo vivenciado. Nesse sentido, os trabalhos elaborados
a partir da psicologia propõem claramente um retorno a uma visão uni-
tária do homem. Apostam por uma conexão e uma não separação do
corpo e da mente, como demonstrado pelas palavras do presidente da
Asociación Española de Somatoterapia na apresentação das IV Jornadas de
Psico-Somatoterapia (Madrid 1995):
“[…]el objetivo último de estas jornadas es la de reunirnos, asociarnos,
crear formas de debate en donde se favorezca el encuentro y el
intercambio en todos sus ámbitos. Intercambio de ideas abierto a todos
aquellos profesionales que abordamos a la persona desde una perspectiva
global, intentando superar así la división cartesiana mente y soma
(Alemany, 1996, p. 20).
A história da arte tem dedicado trabalhos especícos para in-
terpretar o corpo nos diferentes periodos artísticos, sobretudo a partir
do estudo do corpo na pintura e na escultura. Desde a antiguidade, os
artistas têm presente os corpos e sua representação. Já os ilustradores de
ânforas gregas desenhavam o homem como zoon anthropinon, com uma
corporeidade que lhe permite mover-se com precisão. Poderíamos dizer,
parafraseando a Flynn, que a história da escultura é a história do corpo
humano, porque a história das representações tridimensionais do corpo
humano parte de uma história mais ampla das atitudes sobre a corporei-
dade, ou a dimensão corporal da existência humana (2002, p. 8-9). Por
meio da arte, pode-se estudar a construção do corpo realizada em cada
111
Corpo, cultura e educação
período histórico e, ao mesmo tempo, tal estudo nos permite armar
que a representação artística dos corpos tem servido para criar modelos
corporais diferentes. Nessa hermenêutica do corpo por meio da arte, po-
demos analisar os corpos belos e os corpos grotescos. O tratamento do
corpo nas obras de Lucian Freud, interessado em poder pintar os corpos
em seu estado natural, sem lhe importar qual era esse estado, merece um
estudo à parte. Como arma Feaver:
estaba muy interesada en pintarla (haciendo referencia a Sue)
sin nada de maquillaje, ni uñas pintadas, ni los cabellos teñidos,
y quiso esperar unos meses hasta que le marchase del todo el
bronceado de la piel cogido durante unas vacaciones para volverla
a pintar” (2002, p. 11).
A semiótica, por meio dos tratados de comunicação não verbal,
no âmbito da Ciência da Comunicação, propõe múltiplas aproximações e
interpretações do papel do corpo na comunicação. A semiótica consiste
no estudo das diferentes classes de signos e das regras que governam o
fenômeno comunicativo. Se partimos dos estudos feitos pela Escuela
de Palo Alto e publicados em 1967 na obra Pragmatics of Human
Communication, conceberemos a comunicação dividida em dois grandes
grupos: comunicação digital e comunicação analógica. Esta última,
também denominada não verbal, é a que tem uma conexão mais direta
com o corpo como elemento subjetivo e discursivo. Para os autores de
Palo Alto, a comunicação analógica contempla, não somente a cinesia,
mas também “el término debe incluir la postura, los gestos, la expresión
facial, la inexión de la voz, de la secuencia, el ritmo y la cadencia de
las palabras mismas y cualquier otra manifestación no verbal de que
el organismo es capaz” (Watzlawick 1981, p. 63). Já os trabalhos de
Davis, principalmente com seu livro Inside Intuition – What we Know
about Non-Verbal Comunication (1971), têm servido para sistematizar
uma parte importante dos conhecimentos existentes sobre o tema.
Davis arma: “una de las teorías más asombrosas que han propuesto los
especialistas en comunicación es la que algunas veces el cuerpo comunica
por sí mismo” (1998, p. 52). As abordagens da comunicação não verbal
têm uma aplicação direta no campo da educação, especialmente entre
Jordi Planella Ribera
112
os coletivos que apresentam diculdades de comunicação verbal. Um
dos principais aportes a este campo é o trabalho de Heinemann (1979),
Grundiss einer Pädagogik der nonverbalen Kommunikation, no qual o
autor propõe as bases para o uso da comunicação não verbal no contexto
pedagógico. É nesse sentido que Heinemann arma que “los elementos
no verbales de la comunicación didáctica deben ser considerados, pues,
como un elemento esencial para la formación que ha de impartirse en la
escuela” (Heinemann, 1980, p. 128).
A publicidade desempenha o papel da representação dos corpos
humanos, tal como a arte o tem feito ao longo da história. A representa-
ção do corpo na publicidade tem a possibilidade de servir como espelho
e, ao mesmo tempo, como guia ideológico para repensar as corporeida-
des. A publicidade tenta nos dizer qual é a melhor forma de vestir nosso
corpo, como devemos cuidar da nossa apariência física, etc. Assim como
Pérez, concordo que esse modelo de corpo que a publicidade transmite
(e que de certa forma constrói) é o modelo de corpo humano que repre-
senta os países mais ricos e as classes dirigentes de tais países. Os mode-
los anglo-germânicos continuam sendo os mais representados nos meios
de comunicação (2000, p. 69). Dentro desses modelos predominantes
se constrói de forma articial um modelo de beleza que leva muitos su-
jeitos a modicar e transformar seu corpo. A publicidade, especialmente
por meio da televisão, possibilita a criação de corpos a la carte, que nega
a existência da maioria dos corpos que divergem esteticamente dos cor-
pos mostrados pela publicidade.
É por meio das transferências de conhecimentos entre discipli-
nas que os olhares ao corpo se vão reformulando e permitem elaborar
uma teoria do corpo mais ampla e modicada. Essa perspectiva cará
evidente com a inuência dessas disciplinas no campo pedagógico na
construção do conhecimento corporal.
4.2. o CorPo na antroPologia de mudança de SéCulo
A emergência da ciência antropológica fará com que se de-
senvolvam dentro de sua disciplina formas de trabalho e de estudo em
113
Corpo, cultura e educação
torno do corpo humano. É nesse mesmo sentido que, para Turner, “el
cuerpo tomó parte en la más temprana antropología, porque ofreció so-
lución al problema del relativismo social” (1994, p. 43). Como armam
Berthelot e colaboradores (1985, p. 76) “el hecho de tener en cuenta las
relaciones entre cuerpo y sociedad se llevará a cabo durante el siglo XIX,
en el seno de la naciente antropología, bajo los auspicios del positivismo
metodológico y de la deriva ideológica”. Os auspícios do positivismo
metodológico e uma certa deriva ideológica ajudarão a analisar o corpo
a partir de uma perspectiva sociocultural, muito além do estudo e da
interpretação exclusivamente anatômicas e biológicas. Essa disciplina,
conhecida como antropologia física, se serve dos índices cefálicos, entre
outros instrumentos, para estudar as sociedades a partir da presença e a
realidade corporal de seus sujeitos (Berthelot, 1985, p. 19).
Nessa mesma perspectiva, os trabalhos de autores como Bros-
sa, Cuvier e Blumenbach proporão as bases de uma antropologia física
e inaugurarão uma aproximação ao corpo que dominará o pensamen-
to social até que Freud faça seus aportes psicanalíticos. Esses primeiros
trabalhos se baseiam nas comparações entre raças e grupos sociais para
buscar dados quantitativos que permitam a classicação dos sujeitos a
partir de suas características corporais, comuns entre grupos de iguais.
Nesse contexto aparece, em 1870, a obra de Quételet, Anthropometrie.
Para Berthelot, a antropometria, unida à ciência do corpo social, repre-
senta uma atualização única em relação às qualidades físicas das pessoas
(peso, número, força, velocidade...) e a suas qualidades morais (1985, p.
21). Por sua vez, Quételet realiza um estudo do corpo que deixa ver com
total clareza que “a medida que la edad avanza, el cuerpo lleva cada vez
más la huella de la desigualdad de condiciones” (citado por Berthelot,
1985, p. 22).
Uma das principais funções do estudo dos corpos que desen-
volvem os antropólogos físicos da época é a de servir de base para a
futura classicação dos sujeitos delinquentes. Os aportes se concretizam
na última década do século XIX na Itália, com Lombroso, e na França,
com Bertillon, por meio da publicação do livro Photographie judiciaire
(1890). Com essa classicação podem-se justicar ideias que predeter-
Jordi Planella Ribera
114
minam o desenvolvimento dos sujeitos segundo sua conguração gené-
tica e corporal. O estudo do corpo realizado pelos criminólogos servirá
para controlar os criminosos e decifrar seus corpos portadores de perigo.
Era necessário criar ferramentas para coletar dados corporais que permi-
tissem elaborar um retrato dos sujeitos que poderiam ser portadores de
aspectos que os predeterminaram para cometer atos ilícitos
4
.
Desse enfoque antropométrico do estudo do corpo se passará
para enfoques denominados antropossociológicos. Em 1898 aparece, na
Revue Internationale de Sociologie, a tradução ao francês de um trabalho
de Ammon intitulado Histoire d’une idée, l’anthroposociologie. Para esse
autor, o que para nós pode signicar a luta de classes, no fundo trata-se
de uma particular forma de luta de raças: “Es la lucha de los braqui-
céfalos contra los dolicocéfalos” (1898, p. 13). O objetivo era classi-
car a sociedade segundo outros critérios, na ocasião, também critérios
cientícos a partir das categorias Homo Européanus, Homo Alpinus e a
Raça Mediterrânea. Essa classicação é contestada pelo próprio tradutor
do trabalho de Ammon entre os estudantes da escola de Saint-Brieuc
5
.
Muang propõe que, se a indexação entre as três categorias de homem
funciona (do camponês ao operário, do operário ao professor, e de esse
ao notário ou ao médico), teria que existir uma classicação intelectu-
al em função da forma corporal que denotasse a categoria de homem
que a gente é. Isto pode ser traduzido na ideia de que “[...] dentro de
la enseñanza clásica los mejores alumnos son braquicéfalos” (Berthelot,
1985, p. 25).
Após uma série de artigos, no ano de 1900, La Revue deixa de
publicar trabalhos de antropossociologia. O futuro da pesquisa no cam-
po da sociologia passa por abandonar um modelo excessivamente bio-
logicista e por centrar-se em modelos próprios da sociologia. Essa será a
tarefa que realizará Durkheim e seus colaboradores. A partir do exposto,
Nesse sentido, se desenvolveu a craniometria aplicada a questões criminológicas. Em 1842, o sueco Retzis
tinha formulado a teoria do índice cefálico, em que por meio de uma fórmula especíca se chegava a calcular
os índices cefálicos dos crânios dos sujeitos. Um exemplo disso é o descobrimento das impressões digitais,
iniciado pela polícia indiana e adotado pela polícia britânica em 1900. As impressões digitais não variam ao
longo da evolução da pessoa, são hereditárias e enormemente diversas.
As referências exatas da sua pesquisa são as seguintes: H. Muang, “Ecoliers et paysans de St Brieuc”, La
Revue Internationale de Sociologie, 1898, VI, 789-803.
115
Corpo, cultura e educação
podemos armar que a história social do século XIX não pode recons-
truir-se sem fazer referência direta ao corpo das pessoas, especialmente
daquelas que na fábrica viviam e trabalhavam em condições corporais
extremas. A visão do corpo na teoria antropológica de nais do século
XIX se centrará nos aspectos físicos e, como fundamento cientíco para
o estudo do corpo, a antropometria desempenhará o papel de método
ajustado e sistemático.
4.3. o CorPo Como Centro de gravidade
O início do século XX será, nas palavras de Fullat, o ponto de
partida da Pós-modernidade, já que “el año 1900, con el fallecimiento
de Nietzsche, pone en marcha las concepciones llamadas pos-modernas,
las cuales toman pie en los escritos nietzscheanos” (2002, p. 140). Não
é a toa que a pós-modernidade se relaciona com as ideias de Nietzsche
e que o tema do corpo tenha uma presença relevante nos discursos pós-
-modernos. Para o lósofo alemão, pensar o corpo era uma tarefa chave
e necessária, passando a ser esse o centro de gravidade do homem. Nas
palavras de Jara, “Nietzsche se preocupa por pensar e investigar lo que ha
sido negado, o bien, marginado, subestimado, por esa tradición: el cuer-
po” (1998, p. 53). Podemos armar que Nietzsche é um dos pensadores
chave na prática de reivindicar um status não negativo para o corpo ou
de sua condição de submissão e alienação à alma.
Na losoa nietzscheana, espírito e corpo são somente uma
unidade plural. Em De los transmundanos (Z) dirá que “y este ser ho-
nestísimo, el yo –habla del cuerpo, y continua queriendo el cuerpo, aun
cuando poetice y fantasee de un lado para otro con alas rotas
6
. O corpo
é amado, apesar do que possa fazer, ser e parecer. Quanto mais aprende
esse eu (que já ama, de início, o corpo) mais atributos e honras encontra
para desejar o corpo. Essa reivindicação da presença positiva do corpo
passa por denunciar os criadores de mundos espirituais que desestimam
o corporal: “Enfermos y moribundos eran los que despreciaron el cuer-
po” (Z 48). Mas aqueles que insistiram em criar mundos não corporais
 O texto faz parte do libro Así habló Zaratrusta (Z).
Jordi Planella Ribera
116
deviam partir, necessariamente, do corporal. Para aqueles que não apre-
ciam o corpo, sua parte corporal é algo doente, do qual, com muito
prazer, fugiriam para escapar, para habitar territórios incorpóreos, não
materializados, desencarnados.
Para Nietzsche, a alternativa não passa por buscar para além
do corpo, mas sim por entender o presente corporal. O autor disse em
De los transmundanos: “es mejor que oigáis, hermanos míos, la voz del
cuerpo sano: es esta una voz más honesta y más pura. Con más honesti-
dad y con más pureza habla el cuerpo sano, el cuerpo perfecto y rectan-
gular” (Z 59). O corpo, na perspectiva que Nietzsche nos apresenta, se
refere aos instintos (Instinkte) e aos impulsos (Triebe) que interpretam a
realidade e a constituem. Os instintos e os impulsos permitem a mani-
festação da vida na sua totalidade. Mas, se o corpo é menosprezado, os
instintos e impulsos passam a ocupar um espaço de menosprezo, pois
o papel da alma os deslocou. Alma e espírito são valorizados a partir
de uma perspectiva essencialmente moral, e qualquer outra perspectiva
passará a ser marginalizada. Nas palavras de Jara,
[…] el ser del hombre, su existencia concreta, no reside en aquello
que le es inmediatamente presente, su cuerpo, sino que todo esto
queda devaluado a partir de lo único que se puede considerar como
poseyendo un valor en sí, en último término, inmortal: el alma
(1988, p. 63).
O objetivo de Nietzsche se desenha claramente: recuperar o
corpo como centro de gravidade, pois tudo começa no corpo e o corpo
é a base e o fundamento da vida. Em Los despreciadores de cuerpo ar-
ma que “[…] cuerpo soy yo íntegramente, y ninguna otra cosa; y alma
es sólo una palabra para designar algo del cuerpo” (Z 60). O corpo se
converte, de acordo com essa formulação, na totalidade de percepções
possíveis, entre as quais a consciência somente é uma pequena parte
delas. Este novo olhar ao corpo inuirá diretamente no pensamento de
Michel Foucault ao retomar algumas das ideias “corporais” propostas
por Nietzsche.
117
Corpo, cultura e educação
4.4. a PSiCanáliSe e a PreSença do CorPo
Um dos grandes aportes de Sigmund Freud, por meio do que
se conhece como a Segunda tópica, é o descobrimento das três instâncias
ou estruturas psicológicas, a conexão entre as quais acabará determinan-
do a vida mental do sujeito em questão. A psicanálise dará um impor-
tante giro na concepção que até então se tinha do homem. Na concep-
ção psicanalítica, a imagem do corpo se converterá no modelo global da
psicanálise por meio da qual Freud mostrará a maleabilidade do corpo, o
eu sutil do inconsciente na carne do indivíduo (Le Breton, 1992, p. 17).
Também para Andrieu, é necessário situar o corpo no cenário principal
da psicanálise: “la primera forma de ser del cuerpo humano, la imagen
del cuerpo, se convierte en el modelo del psicoanálisis” (1993, p. 75).
Uma das grandes contribuições atribuidas a Freud é que ele deu ênfase
à etiologia de tipo psicológico e, dessa forma, superou a visão médica
(unicamente corporal e anatômica) da enfermidade. Segundo ele, é ne-
cessário buscar a origem do sintoma em uma representação inconsciente
que o sujeito exerce sobre sua sexualidade. É por isso que, já em 1905,
fala de relacionar o impulso sexual às funções corporais básicas (Bellido,
1996). Considerando esse contexto, podemos dizer que Freud relaciona
a formação do eu à ideia externalizada de que a pessoa é a forma do seu
próprio corpo. Este eu será entendido como um eu de tipo corporal e
será um dos aspectos centrais desta corrente de pensamento.
Um dos elementos chave de sua trajetória foi o trabalho em
torno da histeria. Essa passou a ser conhecida como Transtorno de con-
versão somática, (indicando claramente essa conexão direta entre a mente
e o corpo), mas devemos partir da ideia histórica em que para os gregos
se tratava de uma possessão divina e para a sociedade medieval passou a
ser algo de origem diabólica. Antes de começar a trabalhar com questões
vinculadas à histeria, Freud se muda para Paris para assistir às aulas que
oferecia Charcot no Hôpital da Salpetrière. Charcot trabalhava com a
hipnose para fazer desaparecer os sintomas de algumas enfermidades.
Freud vê com muita clareza que, aplicando a técnica da hipnose à his-
teria, existiam muitas possibilidades curativas até então inexploradas.
Durante a estadia em Paris, desenvolverá sua teoria em torno da hipnose
Jordi Planella Ribera
118
(sugestão) e da histeria e, ao chegar a Viena, a exporá ante a Academia
de Medicina
7
. Apesar da novidade de seus aportes, a acolhida dos acadê-
micos será muito pouco calorosa:
Freud habla sobre la histeria masculina delante de la Sociedad de
médicos, el 15 de octubre de 1886; sus revelaciones fueron recibidas
con incredulidad y hostilidad. Fue invitado a presentar un caso de
histeria masculina a la Sociedad y a pesar que lo hizo en fecha de
26 de noviembre de ese mismo año, la hostilidad contra él persiste
y la rotura con sus colegas de Viena se convierte en irremediable
(Ellenberger, 1994, p. 458).
Contudo, o tema do corpo na psicanálise é ambíguo. Se, por um
lado, é evidente a conexão entre mente e corpo, por outro, a relação com
o paciente se estrutura a partir da distância corporal. Uma prova desse
fenômeno é a localização do paciente e do analista na sessão de análise: o
analista se situa estrategicamente atrás do paciente para não ver seus olhos
e seu rosto; para não considerar (pelo menos a partir da perspectiva visu-
al) o corpo do paciente enquanto o paciente permanece deitado no divã.
Segundo Leibson, “el psicoanálisis es una práctica de la palabra donde no
se trata solamente de palabras. Y el cuerpo no consiste solamente en la
carne” (2000, p. 9). Portanto, o corpo, na perspectiva psicanalítica atual,
se entende além do carnal e toma a palavra do sujeito
8
.
Fedor Ferenczi rompe com a ortodoxia psicanalítica que não
permite o contato paciente-analista e propõe um modelo psicanalíti-
co onde o corpo é o lugar e o objeto da análise. Ele mesmo manifesta
que é necessário considerar a forma com que cada interpretação afeta a
postura corporal do sujeito (1984). Finalmente, os aportes de Wilhem
Reich darão um giro radical às conexões entre o corpo e a psicanálise. Na
sua teoria, seguindo a interpretação que dela faz Bellido (1996, p. 28),
elabora un trabajo original y singular en donde el cuerpo deja de ser un
espacio fantaseado para convertirse, en mayor medida, en cuerpo real”.
La Kaiserliche Gesellschaft der Aertzte zu Wien (Sociedad Imperial de Médicos de Viena) era uma das mais
célebres sociedades médicas de Europa. Suas origens datam do ano 1800, tendo tomado por costume se
encontrar uma vez por semana para discutir de forma conjunta problemas de medicina e higiene pública.
Lacan dirá que o corpo é “todo lo que pueda llevar la marca apropiada para ordenarlo en una serie de
signicantes” (1977, p. 19).
119
Corpo, cultura e educação
A represão que sofre o sujeito (interna ou externa) acaba produzindo
uma couraça muscular. O trabalho do analista consiste, precisamente,
em ajudar o sujeito a desbloquear essa couraça.
Um dos trabalhos fundamentais em psicanálise - no que se re-
fere ao tema do corpo - é L’image inconsciente du corps, de Françoise
Dolto. A imagem do corpo é algo próprio, relacionada a cada um de
nós, a nossa própria história e a nossa experiência do corpo. É a encarna-
ção simbólica do sujeito. Para Dolto “la imagen del cuerpo es la síntesis
de nuestras experiencias emocionales (...) La imagen del cuerpo es en
cada momento memoria inconsciente de todo lo vivido relacionalmen-
te” (1984, pp. 22-23). É´o que nos permite por nossa pessoa em relação
com o resto, passando a socializar-nos por meio do corpo.
Os aportes de Freud, colhidos por psicanalistas posteriores,
têm dado lugar a um movimento e a uma losoa que vê no corpo
um elemento essencial em qualquer trabalho terapêutico. Um exemplo
do que estamos dizendo são os modelos terapêuticos corporais seguin-
tes: Análisis Corporal de la Relación (Lapierre), Bioenergética (Lowen y
Pierrakos), Focusing (Gendlin), Psicodrama (Moreno), Gestalt (Perls) e
Vegetoterapia (Reich).
4.5. téCniCaS e uSoS SoCiaiS do CorPo
Ante a Société de Psychologie, o dia 17 de maio de 1934, Marcel
Mauss apresenta um trabalho sobre a noção de techniques du corps. Seu
objetivo era defender a ideia de que as ciências humanas podiam inte-
ressar-se pelo corpo como uma construção sociocultural. Para Mauss,
não se tratava de um território somente explicável por uma determinada
ciência, mas o que se destacava era a aproximação que podia ser feita a
partir de diferentes disciplinas. Para Mauss, o corpo é o primeiro e o
mais natural instrumento do homem, um instrumento produzido (ou
construído) culturalmente. Será a organização social que dará forma ao
corpo em função de suas necessidades.
A visão particular do signicado que Mauss dá à technique (ato
tradicional ecaz – não diferente do ato mágico, religioso, simbólico)
Jordi Planella Ribera
120
lhe permite elaborar uma classicação muito precisa de tais técnicas do
corpo, agrupada a partir de quatro critérios diferentes:
Critério de diferença sexual: existem gestos codicados de formas diferen-
tes para os homens e as mulheres. As técnicas do corpo se dividem
em técnicas masculinas e femininas, segundo os modelos denidos
por uma sociedade e condicionados pelas estruturas biológicas.
Idade: existem técnicas próprias do momento do nascimento, da pri-
meira infância, da adolescência, da juventude, da idade adulta, da
terceira idade, etc. Podemos encontrar técnicas que se relacionam
com o sono, o repouso, a atividade (correr, caminhar, nadar, saltar,
bailar, subir, descer), com o cuidado do próprio corpo, com o con-
sumo (comer, beber) e com a reprodução (todas aquelas técnicas e
posturas que estão relacionadas com o ato sexual).
Formas de transmissão: são aquelas técnicas inerentes às formas da edu-
cação física. Há sociedades que privilegiam o uso da mão direita e
outras, o da esquerda. Analisam de que forma são transmitidas este
tipo de técnicas de uma geração a outra.
O rendimento: trata-se de técnicas relacionadas com a maior ou menor
adaptação. Mauss considera muito, nesse grupo, as habilidades, as
destrezas, etc.
Apesar da relevância dos aportes feitos por Mauss em 1934, o
eco obtido entre a comunidade cientíca teve que esperar mais alguns
anos. Assim, em 1950, Lévi-Strauss apresenta uma nova edição do texto
onde denuncia o fato de que o trabalho de Mauss tenha passado pra-
ticamente despercebido no campo da sociologia. Em 1956, Victoro
destaca novamente que o trabalho de Mauss segue sem ser escutado pela
comunidade cientíca. Em 1983, Orel continua constatando a poca in-
uência do importante trabalho de Mauss. Três anos mais tarde, com a
publicação do monográco Les Sociologies et le Corps no número especial
de Current Sociology, Berthelot e sua equipe continuam denunciando
semelhante situação e oferecem como explicação que “la sociología de
posguerra estaba aún prisionera de la negación del cuerpo que caracte-
121
Corpo, cultura e educação
rizaba el periodo de construcción de la sociología” (1985, p. 58). Final-
mente, o aporte das técnicas do corpo feito por Mauss será recolhido por
Berthelot, Turner e Le Breton nos seus trabalhos de sociologia do corpo.
Anos após Mauss, porém com conhecimento de sua obra e
com uma clara evidência da sua inuência, Gomann retomará o es-
tudo do corpo nas relações humanas. O tema geral e transversal da sua
obra é a comunicação. Tanto em Estigma como em Presentación de la
persona en la vida cotidiana, assim como em Internados, podemos en-
contrar referências analíticas à questão do corpo. No entanto, é prin-
cipalmente na segunda obra citada que ele estuda com mais detalhes a
corporeidade dos sujeitos. Gomann formula que estes adotam cons-
cientemente rituais corporais para expressar, àqueles que os observam,
que seu comportamento é correto. Em Estigma, faz referência à origem
do conceito dizendo que:
Los griegos, que aparentemente sabían mucho de medios visuales,
crearon el término estigma para referir-se a signos corporales con
los cuales se intentaba exhibir algo malo y poco habitual en el status
moral de quien los presentaba. Los signos consistían en cortes o
quemaduras en el cuerpo (Gomann, 1998, p. 11).
Na verdade, sua abordagem se orienta por esses caminhos.
Gomann desenvolve uma sociologia (microssociologia) centrada nas
condições sociais da interação, do encontro, nas quais o corpo ocupa
um espaço central como suporte entre o individual e o coletivo (Buñuel,
1994). Para Gomann, os indivíduos, por meio de seu corpo, denem
sistemas de valores que servem de referente para determinar condutas
que é necessário adotar em diferentes situações.
Para ele existem três formas de expressão corporal que se encon-
tram situadas entre a aparência relativamente xa e o discurso utuante.
Trata-se de gesticulações relativametne conscientes que o indivíduo põe
em jogo com o objetivo de informar aos outros sujeitos de determinadas
questões. Os três modelos de expressão corporal são os seguintes:
Expressão corporal de orientação: um sujeito pode dar acidentalmente a
impressão de inconveniência e de pouco respeito quando subita-
Jordi Planella Ribera
122
mente perde o controle muscular. Pode tropeçar, titubear, cair, arro-
tar, oscilar, ter um lapso, se coçar, soltar gases, empurrar sem querer
a outra pessoa. Pode nos dar a sensação que o ator se interessa muito
pouco pelas interações que mantém conosco. Se for o caso, o sujeito
pode tentar reticar sua conduta para esclarecer os motivos de seu
comportamento.
Expressão corporal de circunspecção: há condutas corporais que podem
suscitar no outro ameaças e, por meio de sua gestualidade, o indi-
víduo arma a boa fé de suas intenções. Um exemplo deste modo
de expressão é uma pessoa que, viajando de ônibus, põe as mãos na
barra -para que sejam totalmente visíveis- e dessa forma mostra sua
boa intenção.
Expressão corporal absoluta: é aquela que se dá quando alguém mantém
um alto grau de autocontrole, embora a situação na qual se encontra
seja preocupante. Trata-se de demonstrar que apesar da situação de
contrariedade a pessoa segue controlando seu corpo. Um exemplo
pode ser uma morte, um acusado em um julgamento, etc.
Gomann é conhecido como o sociólogo dos rituais de intera-
ção e, nesses rituais de interação, a presença e o papel do corpo desempe-
nham um destacado papel. O corpo terá, de acordo com seus trabalhos,
uma presença clara nos discursos que fazem referência à constituição de
um indivíduo social.
4.6. o olhar do CorPo e a denúnCia de Sua doCilidade
A obra de George Bataille pode ser concebida como uma lei-
tura por meio do olhar dos corpos, e não somente dos corpos belos e
padronizados, mas também dos corpos que sofrem. A abordagem dos
trabalhos de Bataille entra em consonância com a obra de Foucault, que
também dirige um olhar aos corpos, principalmente àqueles que têm
sido politizados e docilizados. A permanência da reexão em torno do
corpo é para Bataille um tema fundamental, um tema não unicamente
123
Corpo, cultura e educação
reetido, mas vivido desde sua infância. Quando nasceu, seu pai tinha
cado cego devido à sílis e sua infância esteve marcada pela cegueira e
a posterior parálise do pai enfermo. A rejeição à imagem do pai fará com
que o jovem Bataille emprenda uma investigação obsessiva em torno da
ideia de pureza. Uma investigação da pureza que necessariamente passa
por escapar do corpo impuro e enfermo do pai.
Essa experiência inicial de rejeição do corpo do pai seguirá evo-
luindo e não terá a mesma concepção no Bataille maduro. Para ele, dirá
Navarro em um trabalho dedicado ao corpo em Bataille (2002), o corpo
será entendido como um enigma selado que devemos descobrir. E ainda
que sua hermenêutica do corpo evolua, a ideia de um corpo em negativo
que acompanha a vida do homem, seguirá presente em sua obra. Assim,
a ideia do corpo da alteridade (inerente por outra parte no corpo de toda
pessoa) o levará a reetir sobre a diferença e sua presença. Uma diferença
que a modo de Medusa arruína os ideais estéticos de busca de beleza e
nos obriga a gerar reações de rejeição. A deformidade corporal (enten-
dida por ele como falha) será equivalente à morte, à impossibilidade de
realização humana. No entanto, o mais atrativo da obra de Bataille é sua
armação de presença de “monstruosidad y fealdad, inherentes a todo
cuerpo, que están presentes en él como la peor de las posibilidades y que
ejercen su acción a través de las tendencias bajas y de la atracción por el
horror” (Navarro, 2002, p. 100).
Em uma linha parecida a de Bataille, mas marcadamente dife-
rente e inuenciada pela genealogia de Nietzsche, Foucault recolherá do
lósofo alemão sua losofía corporal. Na obra de Foucault, o corpo tem
representado um papel central, até o ponto que existe um conceito cha-
ve em uma losoa que descobre as práticas sociais em relação ao corpo:
a biopolítica. Para Revel, o conceito biopolítica:
Designa la forma con la que el poder tiende a transformarse,
entre el n del siglo XVIII y el inicio del siglo XIX, con el n
de gobernar no solamente a los individuos a través de un cierto
número de dispositivos disciplinares, sinó del conjunto de seres
vivos constituïdos en población (Revel, 2002, p. 13).
Jordi Planella Ribera
124
A biopolítica, por meio dos biopoderes locais, se ocupará da ges-
tão da saúde, da alimentação, da higiene, da natalidade, da sexualidade,
etc. Na obra de Foucault, a biopolítica centra-se no estudo das formas
de gestão da vida, que busca endireitar e vigiar os indivíduos por meio
de grandes problemas. Paralelamente, Foucault falará da anatomopolitique
o l’orthopédie sociale que se dedica a analisar as estratégias e as práticas
por meio das quais o poder modela cada indivíduo, desde a escola até a
fábrica. Portanto, a primeira forma está dirigida ao controle dos sujeitos
individualmente, enquanto a segunda, o faz de forma coletiva.
Em um trabalho de 1980, (p. 83), Foucault anuncia – em relação
ao controle dos corpos- que: “el dominio y la conciencia del propio cuerpo
pueden ser alcanzados a través de investir el poder en el cuerpo por medio
de gimnasia, ejercicios, musculación, nudismo, exaltación de la belleza
física”. Para Foucault, o corpo é um espaço de investimento do poder; o
corpo se entende como dominação, como lugar de controle e de opressão.
Existiriam duas formas básicas de poder controlar os corpos: as disciplinas
(exercidas diretamente sobre os corpos) e as regulações da população (com
os sistemas institucionais de organização de grupos e pessoas).
Por meio do estudo de diferentes instituições (a prisão, os in-
ternatos, a escola, o quartel militar, as instituiçoes psiquiátricas, os hos-
pitais, etc.), Foucault analisa a forma como essas exercem o controle dos
corpos e das pessoas que os encarnam e habitam. Fará o mesmo anali-
sando, por meio de da Histoire de la sexualité, como as práticas sexuais
(e, portanto, corporais) são construídas socioculturalmente. Tratava-se
de estudar todo o conjunto de técnicas e instituições que desejavam
medir, supervisionar e corrigir os sujeitos considerados anormais, com
a intenção de afastá-los da população geral e assim evitar contágios e
transformações sociais não desejadas. Na introdução do segundo volu-
me, L’usage des plaisirs, arma que a colocação em circulação do termo
sexualidade durante o século XIX se encontrou acompanhada do
establecimiento de un conjunto de reglas y de normas, en parte
tradicionales, en parte nuevas, que se apoyaban en las instituciones
religiosas, judiciales, pedagógicas, médicas; cambios igualmente
orientados a dar sentido y valor a su conducta, sus deberes, a sus placeres,
a sus sentimientos y sensaciones, y a sus sueños (1984, pp. 9-10).
125
Corpo, cultura e educação
A intenção de abordar o corpo e as diferentes instituições
passa por estudar o nascimento da clínica e a inscrição corporal dos
saberes médicos.
Um dos aspectos interessantes, ao realizar sua análise, é que,
dos temas usados por Foucault, seus estudos sobre a prisão e o delin-
quente, o manicômio e o louco, a atenção médico-clínica e os desejos do
corpo na hisótria da sexualidade, são exemplos de construções de cam-
pos discursivos (Popkewitz y Brennan, 2000). Encontramos já no início
de seus trabalhos o interesse pelo tema do corpo. Assim, em Surveiller
et punir (1975) analisou as práticas de controle corporal no capítulo
dedicado aos “corpos dóceis”, em que arma que não é difícil, se segui-
mos os caminhos da história, encontrar práticas nas quais se dava “gran
atención al cuerpo, al cuerpo que se manipula, al que se da forma, que se
educa, que responde, que se vuelve hábil o cuyas fuerzas se multiplican
(1976, p. 140).
Para Turner (1989, p. 61) a relevância desses trabalhos é evi-
dente: “este livro é em parte uma aplicação da losoa de Michel Fou-
cault, algumas das distinções fundamentais realizadas aqui são clara-
mente foucaultianas”. Também Miller, na biograa de Foucault, fala da
importância dos trabalhos do lósofo em relação à temática do corpo,
já que “sus hipótesis sobre el impacto constitutivo de las creencias y cos-
tumbres sociales en el cuerpo humano y en sus deseos han desempeñado
un rol clave en el estímulo de las discusiones sobre la identidad sexual”
(1996, p. 25).
O legado de Foucault mais signicativo em relação a esse livro
é a concepção do corpo como resistência. Um espaço de resistência ao
poder que se dá, necessariamente, onde têm lugar as relações de poder,
para armar sua subjetividade. No entanto, são muitos outros os aspec-
tos da obra de Foucault que levam em conta variadas técnicas de poder
com a nalidade de educar (ou submeter) os corpos dos educandos.
Algumas dessas técnicas são: a vigilância, a normalização, a exclusão, a
classicação, a distribuição, a individualização e a totalização. Em capí-
tulos posteriores voltarei a isto.
Jordi Planella Ribera
126
4.7. o CorPo na teoria feminiSta
Falar de teoria do corpo nos convida a dedicar um capítulo à
teoria do corpo elaborada a partir do feminismo. Para Buñuel “[…]el
Movimiento Feminista ha desarrollado en diferentes países una reexión
sobre el cuerpo de la mujer objeto de represión, de escándalo, de explo-
tación, y sobre los mitos de impureza en la mujer desde el cristianismo
y el judaísmo” (1994, p. 104). A explicação do papel do Movimento Fe-
minista, primeiro na denúncia, e depois nas propostas de reconstrução
social do corpo, é clara: desde a Antiguidade até a liberação da mulher
na sociedade ocidental, o corpo da mulher era o principal espaço de
opressão. Se o corpo é um espaço de cultura, de socialização, de norma,
a materialização da cultura, a socialização e a norma passarão pelo en-
contro, pela modelagem e a construção de determinadas formas e fun-
ções do corpo. Se a visão cultural da mulher é de uma determinada for-
ma, o corpo da forma será construído seguindo estes mesmos padrões;
a cultura se materializa na natureza. A crítica às exigências corporais da
mulher se fundamenta, entre muitos outros aspectos, na ideia de que
“[…] las normas que se reeren al cuerpo de las mujeres son más estric-
tas y móviles que las referidas al cuerpo de los hombres, precisamente
por su denición cultural de cuerpo/objeto o cuerpo deseado” (Durán,
1988, p. 29).
No capítulo anterior comentei que, socialmente, com mais
insistência, tem sido exigido do corpo feminino manter-se dentro de
determinados padrões. É assim que, para Toro:
La relevancia del cuerpo femenino suele ser en todas las culturas
signicativamente superior a la del masculino, tanto a ojos de la
propia mujer como de quienes la rodean. En la práctica totalidad
de las culturas, la belleza física de la mujer recibe una consideración
más explícita que la del hombre (1996, p. 54).
Parece evidente que a própria sociedade, por meio da família,
a cultura, etc., construiu padrões que têm provocado que muitas jovens,
adolescentes e mulheres adultas não se sintam à vontade com seus cor-
pos. O fato de que muitas vezes a mulher tem sido concebida com uma
127
Corpo, cultura e educação
dupla função – procriadora e sócio sexual- é seguramente o que tem pro-
vocado a existência da excessiva exigência de manter o corpo com deter-
minadas medidas e formas. O nível de tal exigência chega a ser tão alto
que frequentemente se exige do corpo feminino, que tem engendrado e
amamentado os lhos, que siga tendo, ao mesmo tempo, um alto nível
de atração sexual. Esta demanda de corpos femininos esteticamente cor-
retos repercute de tal maneira na vida cotidiana das mulheres, que elas,
por meio dos estereótipos marcados pela sociedade, não se podem desfa-
zer de seus corpos. Para Gauli e López, esse fato chega a casos extremos
em determinados anúncios de publicidade onde se quer dar importância
à capacidade mental da mulher que aparece neles, mas acabam caindo
no estereótipo da ênfase na beleza e no corpo feminino (2000). Em
contraposição, esse fenômeno não se dá nos anúncios em que aparecem
homens. Na análise foucaultiana da biopolítica, o controle dos corpos
femininos é o máximo expoente das relações de poder, já que o corpo
se converteu em um objeto político. Os corpos femininos se encontram
muito mais controlados que os masculinos. Estes últimos, embora se
esperem deles determinados aspectos, escapam mais facilmente ao exer-
cício da biopolítica.
O livro Our Bodies, Ourselves, escrito em 1971 pelo e Boston
Womens Collective, marcou um início na reconstrução sociocultural do
corpo da mulher. Trata-se de um coletivo feminista que, antes da edição
do livro, tinha recolhido todas as informações possíveis sobre a saúde da
mulher. Sua origem foi uma conferência que teve lugar em Boston em
1969 e da qual surgiu um grupo dedicado à medicina com a nalidade
de compartilhar conhecimentos e experiências sobre o próprio corpo.
No entanto, a situação das corporeidades femininas tem dife-
rentes frentes abertas e uma das mais claras e, ao mesmo tempo, direta-
mente relacionada ao tema que apresento neste livro, é o das discursivi-
dades corporais. Em 1983, o coletivo feminino autônomo do periódico
independente da Antiga Alemanha Ocidental, Das Argument, encomen-
dou a Donna Haraway redigir um verbete para a versão alemã do Dic-
tionnaire Critique du Marxisme (Labica y Benussen, 1985). Haraway
escreveu o verbete gênero e o fez a partir do trabalho de Gayle Rubin e
Jordi Planella Ribera
128
trac in women: notes on the political economy of sex (1975). Tratava-se de
reconstruir o termo e de situá-lo em relação ao sexo; portanto, de traba-
lhar a dupla dimensão sexo/gênero ou natureza/cultura. Na concepção
do termo, a herança freudiana, assim como as teorias psicopatológicas
sexuais do século XIX e o desenvolvimento da bioquímica e a siologia,
marcarão o enquadramento para situá-lo. O aporte de Simone de Beau-
voir, ao armar que “a gente não nasce mulher”, tinha se cristalizado no
movimento feminista estadounidense dos anos 50 e 60, e possibilitava a
arrancada das discussões sobre a construção do gênero
9
. Essa construção
de sexo/gênero tem uma especial conotação no que Butler exemplica:
Consideremos el caso de la interpretación médica que hace pasar a
un niño o una niña de la categoría de bebé a la de niño o niña y la
niña se feminiza mediante esa denominación que la introduce en el
terreno del lenguaje y el parentesco a través de la interpelación de
género (Butler, 2002a, pp. 25-26).
Esse será um dos campos de trabalho e ativismo dos discursos fe-
ministas em relação ao corpo e, de forma concreta, ao corpo das mulheres.
4.8 antroPologia e SoCiologia do CorPo
Um dos autores que tem trabalhado com maior rigor para que
o corpo se convertesse em objeto de estudo a partir de diferentes disci-
plinas é Bryan Turner. Primeiro, o fez na Austrália (onde era reitor da
Faculty of Arts en Deakin e diretor do Centro de Investigación para el Estu-
dio del Cuerpo y la Sociedad) e atualmente no Reino Unido (na Faculty of
Social and Political Sciences de Cambridge) onde edita, -juntamente com
Mike Feathertone- a revista e Body & Society
10
. É a partir da publica-
ção de sua monograa e Body and Society (1984) que começa a criar
escola e ao seu redor se agrupam diferentes pesquisadores que dirigem,
também a partir de disciplinas diversas, outros olhares ao corpo
11
.
Nesse sentido serão chave os trabalhos desenvolvidos em torno do Gender Identity Research Project de la
UCLA (Los Angeles).
10
Esse é o nome atual da revista que substituiu à publicação inicial eory, Culture & Society.
11
Existe uma edição em espanhol publicada em 1989 por Fondo de Cultura Económica en México.
129
Corpo, cultura e educação
O discurso de Turner sobre o corpo passa a ser conhecido e
utilizado por outros pesquisadores que veem nele um tema emergente.
Bom exemplo disso são os trabalhos de Featherstone, Shilling e Falk.
Seu livro e Body and Society foi reeditado e revisado e está presen-
te em muitas bibliotecas universitárias do campo das Ciências Sociais,
mas também em Faculdades de Medicina. Turner bebe das fontes de
Foucault, Merleau-Ponty, Marx, Feuerbach e Freud, entre outros. Além
dessa obra, são publicações suas: e discours of diet, Regulating Bodies,
Avances recientes en Teoría del cuerpo e e government of the body: medi-
cal regiments and the rationalization of diet.
Um dos aportes mais signicativos para o tema que nos ocu-
pa é a defesa de Turner de que o corpo deveria ser considerado o tema
central da teoria social contemporânea. Justica-se dizendo que o pen-
samento feminista pôs em jogo o tema do corpo ao criticar o deter-
minismo existente do corpo sexuado, porque o corpo é o objetivo de
um amplo mercado de consumidores e porque a partir da medicina
se produziram importantes modicações que reformulam o conceito
mesmo de enfermidade e que relação ela apresenta com o corpo (Tur-
ner, 1989). Parte de seu projeto de fundamentação da sociologia do
corpo se ergue contra sua interpretação exclusivamente biologicista.
Sobre este tema dirá, ao iniciar El cuerpo y la sociedad: “El estudio del
cuerpo es de genuino interés sociológico, y es una desgracia que gran
parte del campo se encuentre ya atestado de intrusiones triviales o ir-
relevantes: el neodarwinismo, la sociobiología, el biologismo” (Turner,
1989, p. 30).
Ao longo de sua obra, Turner terá presente que escrever sobre o
corpo não está livre de contradições: temos corpos, mas ao mesmo tem-
po somos corpos; nossa corporeidade é uma condição necessária de nos-
sa identidade. Não podemos desconectar nossa pessoa de nossos corpos,
embora frequentemente mantenhamos com nosso corpo relações de
contrariedade. Essa contrariedade se manifesta quando “la corporeidad
(...) es amenazada por la enfermedad, pero también por la estigmatiza-
ción social; nos vemos forzados a realizar trabajos faciales y reparaciones
corporales” (Turner, 1989, p. 32).
Jordi Planella Ribera
130
Sua inuência será evidente nas discursividades corporais, es-
pecialmente com alguns de seus aportes mais contundentes: “tenemos
cuerpos, pero somos también, en un sentido especíco, cuerpos; nuestra
corporeidad es una cuestión necesaria de nuestra identicación social,
de modo que sería absurdo decir he llegado y he traído mi cuerpo con-
migo” (Turner, 1989, p. 32)
12
.
Uma segunda perspectiva, a partir da qual se tem pensado o
corpo como elemento central das pesquisas, é dirigida por David Le
Breton, na Universidad Marc Bloch de Strasbourg, por meio do grupo
Symbolique du corps. Le Breton é um dos autores mais prolícos no que
se refere à publicação de livros e pesquisas sobre o corpo. Entre seus tra-
balhos, os mais destacados são: Corps et sociétes. Essai de sociologie et an-
thropologie du corps (1985); Anthropologie du corps et modernité (1990);
La sociologie du corps (1992), L’adieu au corps (1999), Signes d’identité
(2002) y La Peau et la Trace. Sur las blessures de soi (2003).
Todos esses trabalhos de Le Breton avançam em duas dire-
ções claras:
a) A fundamentação (junto com os trabalhos de muitos outros autores)
de uma sociologia do corpo por meio da qual se tem gerado uma base
epistemológica necessária
13
.
b) A análise dos novos usos sociais nos quais o corpo vai tomando forma,
especialmente da modernidade em diante. Esses novos usos são muito
diversos e abrangem aspectos como as tatuagens, os piercings, o corpo e
a educação (a partir de uma dimensão simbólica), os implantes tecnoló-
gicos corporais (os novos usos sociais do corpo no campo da medicina,
por exemplo), o corpo e a tecnociência, os transplantes, o corpo em
situação de risco, o corpo silenciado, etc.
12
Me parece importante anotar o que o próprio Turner diz em relação aos autores que inuíram em sua
teoria do corpo: “Las inuencias teóricas de este estudio particular del cuerpo son numerosas, pero los enfoques
que se interesan por el signicado del cuerpo, por su construcción social y por su manifestación, han sido los más
formativos: Oliver W. Sacks en Awakenings (1976), Norbert Elias en e Civilizing Process (1978), Mikhail
Bakhtin en Rabelais and his World (1968), Susan Sontag en Illness as Metaphor (1978) y George Groddeck en
e Meaning of Illness (1977)” (1989, p. 30).
13
Outros autores que têm trabalhado na fundamentação da disciplina da sociologia do corpo são: Turner,
Berthelot ou Guibentif.
131
Corpo, cultura e educação
Entre essas últimas pesquisas do autor francês, a mais interes-
sante é a que estuda qual começa a ser o papel do corpo na ciberso-
ciedade, por meio do que denomina como o corpo surnumeraire. Um
exemplo dessa tendência se encontra no livro Adieux au corps (1999) e
no artigo La délivrance du corps. Internet ou le monde sans mal (2001).
Sua obra sobre o corpo propõe uma grande variedade de enfoques, prin-
cipalmente por meio da enfermidade e do desejo, por meio dos quais
o corpo poderia converter-se na parte central dos estudos sociológicos.
No entanto, um dos grandes aportes de Le Breton centra-se em estudar
a concepção do corpo como matéria inacabada. Para o autor:
En nuestras sociedades el cuerpo tiende a ser una materia prima
que debemos modelar según el ambiente del momento. Para
muchos contemporáneos se trata de un accesorio de la presencia,
un lugar de la puesta en escena de uno mismo. La voluntad de
transformar su cuerpo se ha convertido en un espacio común (Le
Breton, 2002, p. 7).
A partir dessa perspectiva, Le Breton dedicou-se nos últi-
mos trabalhos a estudar as formas de nalização do inacabado por
meio das tatuagens, os piercings e outros tipos de práticas de trans-
formacão corporais. Para ele, esse fenômeno tem relação direta com a
necessidade, especialmente dos jovens, de recuperar formas tribais de
ritualizar os passos por diferentes momentos da vida. A desaparição
ocial da marcação social tem comportado este regresso ao corpo
como espaço de inscrição subjetiva, de rearmação e de resistência
diante da existência efêmera.
4.9. o CorPo e a SoCiedade da informação
Nas novas direções para onde nos direcionam a sociedade da
informação, a tecnologia, a Internet e, em geral, o que tem se de-
nominado ciberespaço, o corpo desempenha um papel que pode ser
designado como controvertido
14
. Alguns dos teóricos do ciberespaço
14
Para Echeverría “uno de los grandes temas del siglo XXI es la incidencia de la nuevas tecnologías sobre el
cuerpo humano” (2003:13).
Jordi Planella Ribera
132
armam que o corpo toma, de acordo com a dimensão virtual, uma
nova concepção (Haraway 1995, Dyaz 1998, Dery 1998) que me-
diatiza justamente pela não presença corporal. Segundo Dery, “en la
cibercultura el cuerpo es una membrana permeable cuya integridad es
violada y su santidad amenazada por rodillas de aleación de titanio,
brazos micro-eléctricos, huesos y venas sintéticos, prótesis de senos y
de pene, implantes cocleares y caderas articiales” (1998, p. 254). Para
esses autores, o corpo é uma espécie de vestígio arqueológico, prova
da existência de uma antiga humanidade que busca passar a um novo
estágio, em que a mente se liberou dos limites corporais. Também para
Dyas “la tecnología invade nuestro cuerpo y lo mejora, o al menos lo
modica a nuestro gusto” (1998, p. 26) oportunizando possibilidades
de variar o que de forma natural nos foi dado. Essa modicação do
natural, que podemos designar como fusão da natureza e da cultura
(em termos de artifício), pode ser interpretada como “la verdadera re-
volución, donde tecnología y carne se funden en un todo armónico, o
donde la modicación de nuestro genoma puede librarnos de pesadas
lacras y enfermedades de transmisión genética” (1998, p. 26). A abor-
dagem é rearmada por Marchesini quando analisa o papel do corpo
no cinema e na literatura, e arma que:
El horror por el cuerpo, sobre el que se basa la narrativa y la
cinematografía splatter-horror, tiene varios orígenes: por una parte
existe una exaltación de la forma perfecta que contrariamente lleva
a un rechazo de las formas de envejecimiento, de alteración, de
discapacidad y por otra, las formas que exaltan contemporaneamente
la curiosidad por el cuerpo desmenbrado (Marchesini, 2002, p. 217).
Os avanços tecnológicos dirigem boa parte de suas pesquisas
para as conexões entre corpo e tecnologia e possibilitam a experimen-
tação de novas sensações corporais. Alguns dos experimentos giram em
torno das luvas digitais (VPL DataGlove) e dos trajes eletrônicos. Em
relação a esses artefatos, Bill Gates formula “En el caso del tacto, la idea
que tiene más cuerpo es la que se podría hacer un body y forrarlo con pe-
queños sensores y dispositivos de realimentación que pudiesen ponerse
en contacto con toda la supercie de la piel” (Gates, 1995, p. 130).
133
Corpo, cultura e educação
O conjunto de formas de pensar e de estudar o corpo e a pessoa
na cibersociedade pode ser organizado da seguinte maneira:
Autores que falam de transhumanismo e para os quais o corpo
será desmantelado e reprogramado para poder facilitar sua substi-
tuição por outras peças tecnológicas. Podemos encontrar a Mora-
vec, More e Chislenko como seus principais representantes.
Autores que falam de hiperhumanismo e que defendem que o
corpo será reforçado por meio das novas potencialidades percep-
tivas e operativas, e graças a novas recongurações que o tornam
mais controlável. Os autores mais signicativos são Dery, Ker-
ckhove e Stelarc.
Autores que propõem o termo pós-humanista para os quais
o corpo estará imerso em uma tempestade pós-fordista na qual
considera superada a pretensão de possessão e domínio das pes-
soas sobre seus corpos. Para esses autores, o corpo passa a estar
conjugado com o mundo. Os principais representantes desta li-
nha de pensamento são Haraway, Kelly e Deitch.
Torna-se evidente uma leitura dessa corrente em termos de re-
torno ao modelo antropológico dualista, que na era da Internet se ma-
terializa em uma antropologia dualista, que podemos denominar dualis-
mo virtual. Essa antropologia dualista virtual é rearmada nos trabalhos
do especialista em robótica, Moravec, quando formula que: “en el estado
actual de las cosas somos híbridos, mitad biológicos mitad culturales:
muchos aspectos naturales no corresponden a los elementos de nuestra
alma” (1992, p. 11). Para ele, -aferrando-se estritamente ao pensamento
cartesiano- o corpo arruína a tarefa de nosso espírito
15
. O neoplatonis-
mo trasladado ao espaço virtual é muito gráco se seguirmos a proposta
de John Barlow em sua Declaração de independência do ciberespao:
queremos crear una civilización de la mente en el ciberespacio” (Moli-
nuevo, 2003, pp. 106-107).
15
É importante destacar a semelhança entre a armação de Moravec e a sentença de Platão: “el cuerpo
arruina al espíritu” dirá o primeiro; “el cuerpo es una prisión para el alma” armará o segundo.
Jordi Planella Ribera
134
No entanto, tudo isso, que à primeira vista nos pode parecer
extranho e futurista, tem atualmente aplicações e realidades muito con-
cretas e denidas. Elas vão desde todas as opções reais dos usos que a
Internet oferece até a nova dimensão dos corpos diversos no ciberespa-
ço. Para Le Breton a perspectiva inovadora dos corpos no ciberespaço é
importante porque “la supresión del cuerpo favorece los contactos con
numerosos interlocutores” (2001, p. 24). Essa supressão virtual do cor-
po possibilita, já na atualidade, que algumas pessoas com deciências
possam navegar pela rede sem se chocar com barreiras arquitetônicas,
culturais e/ou sociais que lhes privem de serem considerados sujeitos de
pleno direito.
No espaço virtual se apagaram os rostos, o estado de saúde, a
idade, o sexo, a conguração física, etc. Sobre ese tema, Yehya aponta
que “también un individuo deforme podría aceptar la oportunidad de
abandonar su maltrecho cuerpo para que su mente pudiera ser traslada-
da a una base de datos” (2001, p. 18). Os internautas com diversidade
funcional, a princípio, se encontram em uma situação de igualdade pe-
rante os outros.
Por outra lado, o espaço virtual oferece uma nova dimensão: a
cibersexualidade. Velena propõe que o cibersexo é uma espécie de psi-
canálise alternativa, em que todos os usuários podem despir-se de suas
máscaras, de suas couraças, sem que ninguém dê risada de ninguém
(1995, p. 149). O medo do contágio por meio do corpo (o HIV como
principal temor) ajuda a desenvolver toda uma dimensão muito signi-
cativa da cibersexualidade.
4.10. Queer Theory
A Queer eory surge nos Estados Unidos durante os anos 80
e se posiciona como uma crítica à heteronormatividade
16
. Trata-se de
desconstruir as construções sociais dos padrões corporais dados e que
excluem uma parte dos sujeitos desse ideal heteronormativo. Como
aponta Ochoa “el compromiso de la queer theory es de entender a los
16
Trata-se de um termo inglês que em nenhum dos textos com os que tenho trabalhado foi traduzido. Trata-se,
135
Corpo, cultura e educação
procesos y actores sociales fuera de un marco normativo e imaginar el
sujeto teórico sin ninguna trayectoria reproductiva, moral o económi-
ca ja” (2003). Portanto, a proposta queer passa por repensar todos os
exercícios possíveis de construção/constituição de corpos padronizados
e normativizados. Ser corporalmente normativo passa a ser o objetivo
mais claro que a teoria queer quer desconstruir. Nesse sentido, comparti-
lhamos com López as possibilidades de aplicar o discurso queer a outros
campos sociais: “porque los procesos de normalización no solo afectaron
a los procesos de objetivación de la sexualidad, sino a otros procesos de
catalogación social que afectan a las categorías como son la raza, el géne-
ro o la clase social” (2003, p. 105).
A crescente produção de discursos queer responderia à tenta-
tiva de redenir ideias mais ou menos elaboradas pelos coletivos gay
e lésbico que não abordavam uma revisão aberta e global das corpo-
reidades. Mas ao mesmo tempo, há uma necessidade de persistência
do termo porque é preciso que seja pensado e revisado de forma cons-
tante. Para Butler “el término queer atrae a una generación más joven
que quiere resistirse a la política más institucionalizada y reformista,
generalmente caracterizada como gay y lesbiana” (2002ª, p. 321). A
mesma autora propõe o uso do queering para designar o ativismo de
construção/revisão/uso/liação de suas práticas, com a nalidade de
ressituar os discursos que produzem e não cair novamente em alguns
erros de exclusão de determinadas corporeidades
17
.
Um dos grupos ativistas queer propõe a seguinte declaração
de princípios:
Somos extranjeros. Somos extrangéneros. Resistimos a lo humano,
a ser persona, sujeto o individuo. Nuestro sexo es protésico,
cibernético, precario, múltiple. Cuerpos que importan. Cuerpos
segundo Ochoa de “una categoría local estadounidense (es lo que te llamaban en la escuela cuando se burlaban
de tí), que mediante la hegemonía teórica que permite la publicación y circulación de textos norteamericanos por
todo el mundo ha viajado mucho” (2003). Butler también se refere à origem do termo: “cuando el término se
utilizaba como un estigma paralizante, como la interpelación mundana de una sexualidad patologizada, el usuario
del término se transformaba en el emblema y el vehículo de la normalización y el hecho de que se pronunciara esa
palabra constituïa la regulación discursiva de los limites de la legitimidad sexual” (2002a, p. 313).
17
Para Butler se trata de “transformarse en un espacio discursivo cuyos usos no pueden delimitarse de antemano
(...) no sólo con el propósito de continuar democratizando la política queer, sino además para exponer, armar y
reelaborar la historicidad especíca del término” (2002a, p. 323).
Jordi Planella Ribera
136
que soportan. Cuerpos que sudan. Drogamos nuestros cuerpos,
los operamos, los hormonamos, los modicamos. Resistimos con
cuerpos transfonterizos, abyectos, sucios, raros. Resistimos al
cuerpo médico-policial (...) Mensaje en una botella: resistimos a
la criminalización de l@s trabajado@s del sexo. Combatimos la
matriz heterosexual, la lesbofobia, la homofobia y la transfobia
institucionales. Okupamos el espacio de la asignación de género y
sexo, y resistimos en los laboratorios. (Hartza, 2003).
É com reivindicações como as que acabamos de expor, que a
teoria queer considera a identidade sexual como uma narrativa por meio
da qual se constrói a subjetividade. Ela necessita ser lida à luz de todas as
variáveis que em um momento ou outro entrarão em jogo (gênero, sexu-
alidade, etnia, capacidades/deciências) para abrir-se a uma construção
não estagnada das identidades.
Podemos situar a queer theory como uma das mais radicais teo-
rias sobre o corpo e que propõe com mais clareza transgredir os padrões
monocorporais estabelecidos pelas diferentes políticas de cidadania que
seguem produzindo discursos para revisar as corporeidades.
4.11. Pedagogia e hermenêutiCa do CorPo
A última sessão que apresentamos para falar da teoria do corpo
é o que se tem produzido sob a nomenclatura que poderíamos designar
como pedagogia e hermenêutica do corpo. Os dois autores que acredi-
tamos serem os mais relevantes nesta perspectiva são Octavi Fullat e
Conrad Vilanou.
Boa parte da obra de Octavi Fullat tem girado em torno da
antropologia losóca da educação. Um dos temas sobre o qual o autor
mais tem reetido é a relação entre o natural e o cultural nos proces-
sos educativos da humanidade. É justamente no marco desse tema das
relações entre natureza e cultura que se enfrenta o papel do corpo na
educação. O interesse de Fullat pelo tema do corpo remonta a alguns
anos atrás, e seus primeiros trabalhos foram publicados em momen-
tos em que poucos pesquisadores reetiam além da eduação física do
137
Corpo, cultura e educação
corpo, sobre a educação corporal. A maioria dos trabalhos iniciais, que
analisavam diferentes olhares possíveis sobre o corpo, foi publicada em
La Vanguardia entre 1988 e 1989. Esses trabalhos reexivos, formula-
dos a partir de uma perspectiva mais global, foram retomados em uma
comunicação que o autor apresentou ao Symposion Internacional de Fi-
losofía de l’Educación no trabalho denominado El cuerpo educando em
que propunha algumas de suas principais ideias em torno da pedagogia
do corpo. Para Fullat, “el hombre es un cuerpo educando. No he escrito
educable” (1989, p. 159). Essa diferença entre educandidade e educabi-
lidade torna-se clara quando compara o corpo humano ao dos animais.
Para ele, o elefante e o golnho são educáveis, enquanto no homem, o
que é signicativo é a condição de educandidade. Continua dizendo
que “pasar de la posibilidad de ser esto o aquello, a ser esto o aquello, es
tarea que atañe a la educación. Los actos educandos van transformando
progresivamente el cuerpo educando en cuerpo parcialmente educado
(1989, p. 161).
Essas ideias estão presentes em boa parte dos trabalhos de
Fullat, mas onde tomam sentido mais amplo é na primeira parte de Le
parole del cuerpo. No início do livro, Fullat se pergunta O que é o homem?
e a resposta que nos dá é a seguinte:
“Lorenz risponde da biologo, Lersch da psicologo, Marcuse da
sociologo; Cassirer dal punto di vista dell’idealismo e Coreth
dell’ermeneutica. Personalmente ritengo più opportuno analizzare
l’uomo partendo dal suo mondo immediato, cioè dal corpo” (Fullat,
2002, p. 21).
O corpo humano, apesar de ser uma realidade evidente, nem
sempre é visível porque, com frequência, encontra-se coberto de véus. A
tarefa que leva a cabo ao longo dos 42 breves capítulos sobre o corpo é a
de separá-lo de sua aparência.
Jordi Planella Ribera
138
Processos de amadurecimento e educativos segundo Fullat
Processos de amadurecimento vs. processos educativos
Natureza físico-
química e biológica
Sociedade
histórica
Corpo-objeto
Educando humano
[Fullat, 1995:39]
A pedagogia do corpo que propõe Fullat passa por “educar la
conciencia corporal o cuerpo-propio, en el sentido de avivarla y ani-
marla, y no en el sentido de manufacturarla o confeccionarla” (1989,
p. 164). Encontramo-nos em um cruzamento de caminhos onde con-
vergem a pedagogia do corpo físico e a pedagogia do corpo simbólico. Tam-
pouco se trata de abandonar a pedagogia do físico (Körper), mas de dar
lugar à pedagogia do corpo simbólico (Leib), que até agora tinha cado
escondida. Para Fullat, o corpo humano é um corpo vivo “que no es
siempre un cuerpo-objeto, sino también cuerpo-propio” (2002, p. 26).
Na pedagogia do corpo a hermenêutica desempenhará um papel central.
Por meio dela se poderá interpretar o corpo a partir da construção social
que se tem realizado nos corpos dos educandos.
A hermenêutica representa também para Vilanou a mudança
para a reexão sobre o estatuto epistemológico das Ciências Humanas.
Esta interpetação do corpo tem a base na armação que faz o autor e
139
Corpo, cultura e educação
que se sustenta na ideia que “el cuerpo es el huésped silencioso de la cul-
tura por lo que posee un alfabeto que es posible conocer y descodicar”
(2001 a, p. 211). Seu projeto, em relação à perspectiva social e cultural
do corpo, passa por colocar em prática o modelo hermenêutico e inter-
pretar e reconstruir suas realidades.
O percurso do autor em relação à teoria do corpo começa
nos seus estudos sobre educação física e se consolida em seus traba-
lhos sobre a construção social e a hermenêutica do corpo. A reexão
em torno do mito mecânico e dos modelos corporais (já descritos
por Homero e Apolonio) o conduzirão a armar que “la imagen del
cuerpo humano se articuló a través de la analogía entre el cuerpo y
la máquina” (2002b, p. 361). Mas o corpo mecânico se converterá,
com o tempo, em um corpo a motor, que será assimilado à máquina
de vapor e que corresponde com a época na qual se consolida o es-
porte como prática corporal.
Essa evolução do corpo mecânico ao corpo máquina na-
liza, pelo menos em uma etapa prévia à atual, com o holocausto.
“La destrucción sistemática y planicada de tantos cuerpos —dirá
Vilanou— adquiría una lúgubre luz humana: todo se reducía a ma-
teria anónima y mutilada” (2001 a, p. 99). A reconstituição e a con-
sequente hermenêutica do corpo passam obrigatoriamente pela sua
interpretação do cyborg. Marcadamente inuenciado pelos trabalhos
de Haraway, propõe que o corpo no contexto virtual, no qual já es-
tamos vivendo, não provoca que, de maneira frequente, queiramos
esquecer nosso próprio corpo, pois ao chegar nesse ponto já se con-
verteu na sombra que nos persegue.
Jordi Planella Ribera
140
Pedagogia e hermenêutica do corpo segundo Vilanou
Hermenêutica
Corpo poliédrico
Tantos corpos como
olhares possíveis
Pósmodernidade
Corpo anatômico
e siológico
O próprio olhar forma
a nossa corporeidade.
A pedagogia do corpo de Vilanou nos situa em uma prática de
reconguração do corpo, e esta tarefa passa obrigatoriamente por “recon-
gurar un universo simbólico y relacional en torno al cuerpo humano
que, en lugar de ser dominado, segregado o colonizado, pueda despertar
la conciencia de una nueva realidad social y individual” (2001, pg. 104).
Já não existe um único modelo corporal, mas sim muitos corpos que
têm muitas formas diferentes e que seguem muitos modelos diferentes
de multiplas variáveis: o gênero, a idade, a língua, a procedência, etc.
Capítulo 5
Os outros corpos: a construção
social da diferença
143
O  :  
  
El cuerpo es un organismo material, pero también una metáfora; es el
tronco además de la cabeza y los miembros, pero es asimismo la persona
(como en cualquiera y en alguien) […] El cuerpo es la característica
más próxima de mi yo social, un rasgo necesario de mi situación social
y de mi identidad personal, y a la vez un aspecto de mi alienación
personal en el ambiente natural.
[Turner,1989, pp. 32-33].
Este planteamiento suscita el reejo condicionado de escribir el tópico
texto sobre la “construcción social” de las categorías de lo Natural y
lo Social. Esto parece sencillo y después de todo, no hay nada malo ni
obstruso en recordar que los seres humanos usan el lenguaje, entre otros
nes, para diseñar taxonomías que utilizan estas para imponerse unos
a otros la disciplina de agregar diversas porciones del mundo de manera
sistemática bajo un mismo nombre de clase y comportarse respecto de los
ejemplares de esas clases de modos habituales y regulares preestablecidos.
[Iranzo, 2002]
introdução
A ideia de que o corpo é uma construção social foi desenvolvida
por vários autores, entre os quais é necessário destacar as contribuições
de Turner (1984, 1989, 1994a, 1994b), Le Breton (1990, 1992, 1994),
Jordi Planella Ribera
144
Salinas (1994) Buñuel (1992, 1994), Bolufer (1999), (2002), fuss (1990),
Foucault (1991) e Detrez (2002). Suas obras me serviram como referen-
cial teórico na tarefa de reconstrução e análise do discurso pedagógico
contemporâneo sobre o corpo. Apesar da existência de um conjunto de
trabalhos que seguem a mesma linha analítica que este livro, praticamente
não há publicações que incidem sobre a construção de uma pedagogia
corporal contemporânea. Neste quarto capítulo analisarei como se desen-
volveu a Teoria Construcionista e qual é o seu papel na análise do corpo.
Partirei das obras de Berger e Luckmann (1988), Gergen (1985), Burr
(1990) e Ibáñez (1990), que nos permitem entrar diretamente na teoria
do construcionismo social, mas também seguirei os autores citados acima,
que conectam a construção social com a construção social do corpo.
A teoria do Construcionismo Social parte do modelo proposto
por Berger e Luckmann em 1966, em e social construction of reality: A
treatise in the sociology of knowledge, em que eles expõem que o que preten-
dem demonstrar “es fundamentalmente, que la realidad se construye social-
mente, y que la tarea de la sociología del conocimiento consiste en analizar
los procesos por los cuáles esta tiene lugar” (1988, p. 11). O trabalho de
Berger e Luckmann tornou-se uma leitura de referência para os estudos que
analisam como certas realidades sociais foram construídas. A importância da
leitura deste livro é rearmada no trabalho de Burr, ao armar que:
La deuda más importante del construccionismo social en relación a
la sociología, es el libro de Berger y Luckmann (...) dónde se aplica
un punto de vista antiesencialista a la vida social y se arma que los
seres humanos crean y después sustentan todos los fenómenos sociales
colectivamente: mediante las prácticas sociales (1996, p. 21).
Os autores partem da sociologia do conhecimento como mé-
todo para conhecer a realidade e para decifrar os seus processos de cons-
trução. A necessidade de desenvolver esta sociologia do conhecimento é
dado por las diferencias que podemos observar entre diversas sociedades,
tocando a aquello que en ellas se da por supuesto que es conocimiento
(Berger e Luckmann, 1988, p. 13). O que conhecemos, o que sabemos,
tem um caráter universal e é válido para todas as sociedades e culturas?
ou, inversamente, isso depende de cada contexto sociocultural?. Para os
145
Corpo, cultura e educação
socioconstrucionistas, a resposta é clara: é necessário alocar o conheci-
mento em cada contexto sociocultural.
5.1. doS CorPoS biológiCoS aoS CorPoS SoCiaiS
Nesta seção me disponho a revisar algumas das teorias e dos
autores que sugerem a necessária vinculação, de forma compartilhada,
dos modelos biológicos e culturais. Para eles, a realidade não apenas é so-
cialmente construída, mas também o componente naturalista (que nos é
dado naturalmente) é muito signicativo. Vamos analisar como o corpo
e sua concepção tem se movido de posições exclusivamente biológicas
(especialmente por meio do discurso médico) para posições integrado-
ras entre o biológico e o social ou cultural (especialmente por meio dos
discursos das Ciências Sociais).
5.1.1. a norma e a natureza
Na introdução de uma de suas obras, Maria Micaela Marzano
se coloca a seguinte pergunta: “¿Es únicamente el fruto de una construc-
ción social, cultural y médica o contrariamente dispone de una natura-
leza intrínseca y objetiva; y aún y especialmente, me pregunto cuál es la
aportación correcta que cada uno puede instaurarse en relación con el
propio cuerpo?” (2001, p. 19).
A autora obtém uma resposta mais ou menos denida ao longo
do livro: o corpo é uma mistura equilibrada entre o natural e o cultural.
Na perspectiva que tento dar a este trabalho, prero pensar e acreditar
que os corpos são o resultado da ação, a construção social sobre a matéria
primária, que é o “corpo(Körper) que é dado para nós de forma natural
e biológica. Esta ação social e cultural sobre os corpos naturais é, na mi-
nha perspectiva, a forma mais acertada, pois permite denir o processo de
construção, bem como a vivência do próprio corpo. Neste sentido, Dostie
- na mesma linha que Marzano - arma que “el cuerpo anatómico vivido
es el resultado de un proceso de individualización dónde se articulan los polos
de una doble unicidad: la unicidad biológica y la unicidad histórica” (1988,
Jordi Planella Ribera
146
p. 29). Assim, o biológico entraria em jogo como elemento primordial
e constitutivo, e a historicidade deste corpo biológico o impregnaria e o
constituiria de personalidade por meio do que muitos autores designaram
como sua corporeidade. Da proposta de Marzano, por um lado, e a de
Dostie, por outro, se depreende o seguinte esquema:
Fundamentos do corpo a partir de Marzano e Dostie
Unidade biológica Unidade histórica
Corpo anatômico vivido
Algumas das propostas de Marzano reivindicam as idiossincra-
sias do corpo biológico, defendendo a proposta contrária - embora mode-
radamente - que os corpos são apenas uma construção social. O biológico
é o que já temos e deve ser o nosso ponto de partida para poder trabalhar
e reforçar nossa identidade. Alguns autores denem a dimensão biológica
do corpo como um “recipiente material, como el marco biológico nece-
sario” (Salinas, 1994, p. 87), mas também acrescentam que, a partir do
momento em que nos referimos a fenômenos que ocorrem na sociedade,
a essência do corpo (sua parte biológica) passa a um segundo conceito.
Também Iranzo se posiciona na mesma linha, embora seja verdade que
a sua posição é nitidamente mais radical, uma vez que chega a propor o
seguinte em relação à dicotomia Natureza/Sociedade:
mi conclusión es que la reexión sobre la dicotomía Naturaleza/
Sociedad merece menos tiempo del que ya le he dedicado. Me parece más
que suciente para que cualquiera que aún no lo haya hecho advierta
que la “Naturaleza”, pese a la autonomía que conserva, es un rehén de
nuestro ordenamiento socio técnico (2002).
147
Corpo, cultura e educação
Para Fullat, o tema da natureza e da cultura, ou do corpo bio-
lógico e do corpo social, tem sido um dos principais elementos de pre-
ocupação e reexão. Ele argumenta que a posição mais precisa é a que
se baseia na ideia de que “no habría educación humana sin un cerebro
adecuado. La masa cerebral es una materia viva organizada zoológicamen-
te” (1996, vol.1, p. 23). E esta dimensão natural desempenha um papel
fundamental, uma vez que “el educando es un pedazo de naturaleza muy
individual y concreto. Únicamente logrará civilizarse, formar parte de
una sociedad, en la medida en que se desindividualice socializándose
(1988, p. 35). À luz das reexões de Fullat, a condição humana como
um animal educandum (ou zoon politikon) passa por “impregnar” sobre
a Physis do sujeito (a natureza) os elementos que a cultura vem crian-
do e desenvolvendo (o que poderíamos denominar como norma). Para
Fullat, o esquema derivado deste processo interativo é o seguinte:
O zoon politikon como articulação entre natureza e cultura
Natureza
Civilização
Physis
(processos
maturativos y
código
genético
)
Zoon politikon
(animal educandum)
Polis
(processos
educativos)
[Adaptado de Fullat, 1995:23]
A leitura do homem a partir do natural foi, em última análise,
o foco dos modelos biomédicos prevalecentes, por exemplo, na interpre-
tação da deciência. Quando consideramos que uma pessoa tem uma
deciência? Quando tem uma lesão que causa paralisia? Mas a paralisia
Jordi Planella Ribera
148
causa deciência, ou um determinado funcionamento e organização da
sociedade fazem com que a pessoa que à margem dela? Esses modelos
têm tido uma forte tradição no campo da educação, em particular no
que diz respeito à educação especial e a pedagogia terapêutica, baseada
na ideia de que o que se deveria fazer era “modicar” a “biologia” do
corpo a partir de uma ação médico-reabilitadora precisa
1
.
5.2. a ConStrução SoCial do CorPo
Na perspectiva em que se concentra este livro, me interessa
analisar os fundamentos da construção social do corpo. Seguindo De-
trez, podemos armar que “hablar de construcción social del cuerpo rompe
a la vez con la experiencia ontológica a la vez individual y comunitaria que
contribuye a colocar al cuerpo como expresión natural de la persona” (2002,
p. 17). Essa expressão natural do homem, ou matéria-prima, torna-se
maleável, manipulável, inexpugnável; uma espécie de massa que pode-
mos modelar e que acaba por dobrar-se aos nossos desejos e às normas
sociais. Neste sentido, o corpo é:
Un soporte ideal para las inscripciones que ofrece la supercie de su piel
a todas las marcas, permitiéndole distinguirse del reino animal. Presta
espontáneamente el soporte a los tatuajes y a las escaricaciones con la
nalidad de transformarse visiblemente en cuerpo social (Borel, 1992, p. 17).
É necessário que o estado biológico se tranforme para afastar
o homem de sua “suspeitosa” condição animal. A transformação (por
meio da vestimenta, das várias técnicas de manipulação, das inscrições
e das perfurações, da ginástica, etc.) é uma exigência social para que o
homem abandone seu estado selvagem radical. O estado selvagem vai se
tornando uma preocupação cientíca nos últimos anos do século XVIII
e durante o século XIX. A descoberta de Víctor, a criança de Aveyron,
Esse modelo biomédico da educação especial tem sido duramente criticado por sociólogos, antropólogos e
professores universitários que lecionam disciplinas relacionadas à deciência (e que se encontram marcadas
no campo disciplinar que se conhece como Disability Studies). Nesse sentido, Oliver fundamenta a mudança
de olhar no fato que “recientemente, una serie de sociólogos que trabajan en el campo de la sociología médica y
las enfermedades crónicas han mostrado interés por la creciente importancia de la teoría de la opresión social de
la discapacidad” (1998, p. 35).
149
Corpo, cultura e educação
destacou as relações entre o natural e o cultural nos humanos e o ques-
tionamento da ordem quando elas eram transgredidas. Malson, na in-
trodução do livro Les enfants sauvages: mythe et réalité, anuncia que é
necessário, a partir da ideia de que “el hombre no tiene naturaleza, pero
tiene algo mejor, que es una historia” (1988, p. 5). A natureza liga o ho-
mem ao seu estado natural ou selvagem, como acontece com as crianças
que foram chamadas “selvagens
2
. As crianças, que no momento de seu
nascimento são os seres mais indefesos, e que precisam da ajuda do cul-
tural para enfrentar com êxito sua sobrevivência no mundo. Trata-se, na
realidade, do eterno debate entre hereditariedade e ambiente, natureza
e cultura; ou, se preferir, da controvérsia entre a inscrição genômica e a
inscrição cutânea. Mas o que é certo é que “en su presencia carnal como
en su funcionamiento cotidiano, el cuerpo no se resume en un genotipo que
agotaría las explicaciones mostrando a la vez que cada uno dispone del mis-
mo número de cromosomas deniendo la especie humana” (Détrez, 2002,
p. 60). Além do genótipo existe a personalidade, psicólogos sociais ar-
mam, e a partir das duas dimensões se dão as interações que ocorrem no
mundo social. Essa ação de criar, dar forma, construir denitivamente o
corpo salta aos olhos —dirá Devillard— “lo que separa el cuerpo obje-
tivo biomédico y el representado, más propiamente antropológico, de la
experiencia individual (corporal, material, simbólica) que se construye
dentro de (y por) las relaciones sociales cotidianas (2002, p. 607).
5.2.1. aS metáforaS do CorPo e Sua ConStrução
Até agora, revisei a dupla aliação dos corpos na fronteira,
corpos localizados entre o natural e o cultural. Na discussão sobre qual
é o componente que realmente faz do corpo o que ele é, Buñuel diz
—de forma taxativa— que “como premisa fundamental, es de destacar
el consenso intelectual con respecto al cuerpo como hecho social que parece
existir en la actualidad” (1992, p. 55). Os apontamentos de Marzano
São muitos os trabalhos que ao longo dos anos foram elaborados e coletados sobre as crianças selvagens.
Alguns dos mais representativos são: Jean-Marc Gaspard Itard (1801) De l’éducation d’un homme sauvage ou
des premiers développements physiques et moraux du jeune sauvage de l’Aveyron. París: Goujon; André Demaison
(1953) Le livre des enfants sauvages. París: André Bonne; Lucien Malson (1988) As crianças selvagems. Mito e
realidade. Porto: Livraria civilizaçao.
Jordi Planella Ribera
150
são raros nas Ciências Sociais e a maioria deles aponta para a ideia da
construção social do corpo. Neste sentido, cabe destacar o livro de
Détrez (2002), La construction sociale du corps. Esta concepção social
será possível no momento em que a biologia e a medicina perderem
a exclusividade de “olhar” e desenvolver conhecimentos normativos
sobre o corpo. Isso implicará, como já discutido no capítulo anterior,
uma importante ruptura epistemológica.
Dado que o meu objeto de estudo é a construção social do
corpo, penso ser signicativo analisar os padrões do corpo que ocor-
rem como resultado do processo de construção social. Para estudar esses
modelos de corpos, agrupei as diferentes concepções e performances do
corpo em diferentes grupos. A leitura do corpo pode ser feita por meio
de diferentes metáforas
3
. As metáforas do corpo também têm sido um
dos temas de estudo de Brill. Para esse sociólogo Francês, os corpos têm
direferentes olhares em relação ao consumo:
A la vez objeto y fantasma, exhibido y secreto, eterno y precario, unitario
y troceado. Los anatomistas lo abrieron y lo desmenbraron, poco a poco
hasta analizarlo —etimológicamente disolverlo— hasta los limites de
la abstracción; son los lósofos los que no lo han visto como una ilusión
familiar y proponen erigirlo como centro cósmico; mientras que los
poetas celebran en él la compañía del alma (Bril, 1994, p. 7)
Por meio das metáforas, desenvolvemos as ideias mais signi-
cativas que se encontram por trás de cada concepção corporal. A metá-
fora, tal como escreve Eco, implica, por sua vez
tratar también del símbolo, del ideograma, del modelo, del arquetipo,
del sueño, del deseo, del delirio, del rito, del mito, de la magia, de la
creatividad, del paradigma, del icono; y también, como es obvio, del
lenguaje, del signo, del signicado, del sentido(1990, p. 168).
Etimologicamente, a metáfora signica “transporte”, “transfe-
rência”. É a transferência de um nome a uma coisa que designa outra.
São muitas as metáforas possíveis. Escolhi estas porque me parece que podem ser as mais representativas
em relação ao tema de estudo do livro. O conjunto de metáforas escolhidas são: o corpo mercadoria, o corpo
pornograa, o corpo linguagem, o corpo dominação, os corpos institucionais, os corpos pragmáticos, os
corpos como modelos discursivos, a corpolia, a corpofobia e o corpo resistência.
151
Corpo, cultura e educação
5.2.1.1. o CorPo merCadoria
A metáfora do corpo entendida como uma mercadoria está di-
retamente ligada à sociedade de consumo e como ela pretende que os
corpos entrem na lógica mercantilista. As possibilidades que a sociedade
oferece ao corpo para consumir (ou para que se consuma) são muitas,
em função de cada contexto e das variações da moda do momento. Um
dos trabalhos que tratou diretamente do corpo na sociedade de con-
sumo foi a investigação de Featherstone “e Body in the Consumer
Society”. Esse autor propõe que o corpo exterior (o que externamente
podemos observar do corpo) faz referência à aparência, mas também ao
movimento do corpo dentro de um espaço determinado. A cultura do
consumo conduz o corpo a um estado de mercadoria e se dá, sobretudo,
porque “con la cultura del consumo, la publicidad, la prensa popular, la
televisión y las imágenes animadas, proporcionan una proliferación de imá-
genes del cuerpo estilizadas” (Featherstone, 1982, p. 26).
Consequentemente, a concepção dos corpos como mercadoria
de consumo implica uma mudança substancial no objeto de interveção
de cada sujeito: a retórica do corpo substituiu a tão reclamada e apre-
ciada retórica da alma. O corpo em ação funciona segundo as leis da
economía política del signo: o indivíduo deve tomar-se a si mesmo como
um objeto, como o mais belo dos objetos (Baudrillard, 1974, p. 211). É
necessário investir tempo, dinheiro e uma atenção especial ao corpo para
que esteja pronto e siga os padrões corporais que vêm marcados. Esse
culto ao corpo se traduz em práticas tão diversas quanto o body-buil-
ding, a aeróbica, os regimes alimentícios, o yoga, a comida vegetariana
(até chegar ao veganismo radical), a cirurgia estética, etc. Tudo isso nos
permite designar o século XX como o século do corporeismo, especial-
mente depois dos anos sessenta, durante os quais o corpo se liberta dos
espartilhos físicos e morais impostos até o momento
4
.
Para Borel, o que ocorre é que “la anatomía —por fragmentos—
se fetichiza; es indispensable cuidar y hacer sufrir algunas partes de uno mis-
O primeiro a usar a expressão “corporeismo foi Maisonneuve em 1976 em um trabalho publicado na Revue
française de sociologie, vol. XVII,4, intitulado “Le corps et le corporéisme aujourd’hui”. O termo continua
em plena utilização. Este foi o título de uma exposição que ocorreu no museu de Lausanne no ano 2000; os
trabalhos foram compilados no livro coordenado por Ewing (2000).
Jordi Planella Ribera
152
mo” (1992, p. 210). O corpo deixou de ser uma ferramenta e se tornou
um m em si mesmo, no sentido de que acabamos fazendo exercícios
apenas pelo prazer de fazê-lo. O corpo se transformou no mais belo ob-
jeto de consumo, armará Baudrillard, para referir-se, justamente, a esta
perspectiva mercantilista.
5.2.1.2. o CorPo Pornografia
É evidente que uma das metáforas corporais, muito ligada à
ideia do corpo mercadoria, é a concepção do corpo como pornograa.
A primeira diculdade se apresenta, tal como propões Fullat, ao “denir
correctamente este adjetivo calicativo (...) no sabemos dónde acaba lo eró-
tico y empieza lo pornográco” (2002, p. 97). O termo grego porneía nos
permite aproximarmos com mais detalhe de seu sentido literal, já que
a porné, na Grécia, era a prostituta e a amante, e, portanto, o pornos era
o homem libertino que se relacionava com a porné. Mas na atualidade,
o corpo pornograa se move sigilosamente por outros cenários e terri-
tórios, como os sex-shop e as milhares de páginas web dedicadas a esta
temática, que têm o corpo como elemento central. Esse corpo continua
fazendo parte das marginalidades que Bourdieu denia como capital
cultural, apesar de existirem cada vez mais discursos e interpretações que
o situam em importantes eixos da cultura
5
.
Da mesma forma que o corpo mercadoria, a metáfora do corpo
pornograa nos aproxima da ideia global de cosicação. O corpo porno-
graa deixou para trás seu status de subjetividade e se encontra marcado
por sua condição de objetivação, sendo realmente um objeto de consu-
mo para aqueles que “o adquirem”. Com toda essa primeira aproxima-
ção com o tema, nem todos compartilham essa visão negativa da me-
Alguns dos autores que trabalharam a estética do cinema pornográco são L. Williams (1997) Hard Core:
Power, Pleasure and the “Frenzy of the Visible. Berkeley: University of California y J. Stevenson (2000) Flesh:
Cinema’s Sexual Mythmakers and Taboo Breakers. Manchester: Critical Vision. Em relação a este mesmo
tema, Suárez propõe que as mudanças de olhar implicam que “la corporalidad es más bien una corpo/realidad:
el cuerpo y sus vicisitudes denen una realidad tanto individual comoo colectiva. En consecuencia, los afanes
liberadores de la reciente generación de exporimentadores de la imagen, su fascinación continuada por cuerpos
y sexualidades que exceden la norma, van mucho más allá de la reivindicación sexual. Responden, en última
instancia, al intento de ampliar el reportorio de ideas con las que nos pensamos y con las que investigamos el
mundo, al deseo de pluralizar las realidades e identidades que habitamos” (2003, p. 143).
153
Corpo, cultura e educação
táfora que pode desprender da nossa primeira aproximação. O discurso
queer faria parte dos que propõem uma abertura ao tema, enquanto que
os discursos feministas criticaram duramente as novas hermenêuticas da
pornograa
6
. Mas se por um lado existe uma nova perspectiva na inter-
pretação da pornograa, esta continua sendo, de acordo com Montagut,
una valoración opuesta al erotismo (...) La pornografía emula el ojo sobre
órganos: fragmenta el cuerpo” (1997, p. 3). Para essa mesma investigado-
ra, é relevante a comparação entre erotismo e pornograa:
Pornograa vs. erotismo.
A pornograa O erotismo
É aberrante e é fronteiriça com a animalidade. É culto.
Não há surpresa e é lapidária e demonstrativa. Imaginativo.
Tem uma função corporal. Tem uma função cerebral.
É vulgar, repetitiva e misticante. É pedagógico e documental.
Pertence à subcultura. É culto.
O que mostra é feio e sempre em primeiros planos.
É simples.
É belo e mostra segundos e terceiros planos. É
elaborado.
Está relacionada ao prazer. Está relacionado ao amor e à fecundidade.
Tem uma nalidade: excitar. Não tem um m determinado.
Fonte: [Adaptado de Montagut, 1997].
É relevante, pela possibilidade que oferece de construir outros
olhares, o uso e a criação de pornograa entre os coletivos homossexuais.
De fato, o cenário da pronograa foi, durante muito tempo, um dos
poucos em que era possível a expressão do desejo homossexual feito com
relativa liberdade (Suárez, 2003). Entre muitas outras abordagens, cabe
destacar a abertura que foi possível a partir dos discursos dos ativistas
e da estética pornográca gay. A abertura no olhar aos corpos e a suas
possibilidades se foi criando e recriando, agora cada vez menos ltradas,
por modelos corponormativos.
Em relação aos discursos feministas que querem negar a pornograa como narrativa, podemos consultar
Dworkin (1989) Pornography: Men Possessing Women. Nova York: Dutton; y McKinnon y Dworkin
(1988) Pornography and Civil Rights: A New Day for Women’s Equality. Minneapolis: Organizing Against
Pornography. A leitura do tema passa pela visão do corpo da mulher coisicado e instrumentalizado, sendo
objeto do olhar de um só espectador, que geralmente é um homem.
Jordi Planella Ribera
154
5.2.1.3. o CorPo linguagem
As relações entre o corpo e a linguagem são tão antigas quanto
a própria história da humanidade
7
. Este é um tema que Ortega y Gasset
já abordou, quando falava sobre a alteridade, porque “el cuerpo del otro
es un abundantísimo semáforo que nos envía constantemente las más va-
riadas señales e indicios barruntos de lo que pasa en el dentro que es el otro
hombre” (1981, pp. 97-99). A ideia do corpo-linguagem é fundamental
para entender as relações humanas. E o primeiro dos cinco Axiomas de
la Comunicación propostos pela Escola de Palo Alto nos diz “que no
podemos no comunicar”
8
. A expressão faz referência direta à função e ao
papel do corpo nos processos de comunicação.
Uma das partes do corpo que tem uma importância signicati-
va mais relevante é a pele, que é um meio de comunicação como os ou-
tros. A pele não se limita a ser nosso envoltório, mas tem muitas outras
possibilidades de uso funcional. Um adulto pode ter aproximadamente
2000 cm2 de superfície de pele e 1.800.000 receptores sensitivos. Isto
lhe dá imensas possibilidades de interagir com seu entorno. Um exem-
plo da interação do corpo com o entorno como elemento comunicativo
é o caso de Hellen Keller, uma menina surda e cega de nascimento que
era capaz de identicar todo tipo de sintonias por meio das vibrações
que sentia com as plantas dos pés descalços. Entre outras possibilidades,
encontramos as de internalizar e externalizar mensagens. Nas palavras de
Leleu, “entre la piel que toca y la piel que recibe, se establece un verdadero
diálogo: la piel escucha lo que la mano le dice y le responde” (1996, p. 103).
O tema do corpo como linguagem ou da linguagem do corpo
Este tema é tratado com delalhe no livro de Adolf Perinnat (1993) Comunicación animal, comunicación
humana. Madrid: Siglo XXI. Sobre o corpo como linguagem, Perinnat diz que “las formas comunicativas
pueden ser movimientos que adoptan una determinada conguración: estática (posturas) o dinámica (sucesión de
esquemas posturales (...) Las llamadas expresiones faciales de los primates y humanos son un ejemplo excelente de
formas (informativas/comunicativas) en el sentido pleno de la palabra” (1993, p. 15).
Em relação a esta ideia os autores armam: “En primer lugar, hay una propiedad de la conducta que no podría
ser más básica por lo cual suele pasársela por alto: no hay nada que sea lo contrario de conducta. En otras palabras,
no hay no-conducta, o para expresarlo de otro modo aún más simple, es imposible no comportarse. Ahora bien, si
se acepta que toda conducta en una situación de interacción tiene un valor de mensaje, es decir, de comunicación,
se deduce que por mucho que uno lo intente, no puede dejar de comunicar. Actividad o inactividad, palabras o
silencio, tienen siempre valor de mensaje: inuyen sobre los demás, quienes, a su vez, no pueden dejar de responder
a tales comunicaciones y, por ende también comunican” (Watzlawick y al, 1981, p. 50).
155
Corpo, cultura e educação
também tem sido um elemento essencial na obra de Alenxander Lowen,
o que sistematizou em seu livro e Language of the Body. Para Lowen
(1998) existe uma relação direta entre o corpo e a socialização do sujeito.
O pai da bioenergética inicia o livro com uma citação de Darwin
9
, em
que nos convida a reetir quando arma que
los movimientos expresivos de la cara y del cuerpo (...) constituyen el
primer medio de comunicación entre madre e hijo (...) Esta expresión
da vivacidad y energía a nuestras palabras. Revela el pensamiento y
las intenciones de los demás con mayor delidad que las palabras, que
pueden ser falsas (Lowen, 1998, p. 59 ).
A partir das relações entre o corpo e a mente (psicosomática),
se estabelecem diferentes estruturas da personalidade que têm uma tra-
dução direta na vivência do corpo (na corporeidade), e como o sujeito
encarna seu corpo. Trata-se de descobrir a perturbação que o sujeito
tenha sofrido a partir da imposição das vestimentas da cultura por meio
dos processos educativos. O corpo se converte em uma transparência do
caráter do sujeito. Também no trabalho de Davis o tema da linguagem
do corpo desempenha um papel fundamental quando diz que: “una de
las teorías más asombrosas que han propuesto los especialistas en comunica-
ción es la de que algunas veces el cuerpo comunica por sí mismo, no sólo por
la forma en que se mueve o por las posturas que adopta” (Davis, 1998, p.
52). A metáfora da textualidade corporal desempenha um papel fun-
damental nas construções sociais do corpo, especialmente a partir da
hermenêutica da textualidade corporal que nos convida a pensar o corpo
como um território onde é possível o exercício da própria escrita.
5.2.1.4. o CorPo dominação
O corpo dominação, ou, dito de outra forma, a dominação do
corpo, foi o tema de reexão que esteve presente em boa parte das obras
de Michel Foucault. Sua expressão “corpos dóceis” invoca a tendência
dos Estados e as instituições de manter em condição de controle ou
domínio os corpos dos cidadãos; em La volonté de savoir, nos diz que
Trata-se do livro e Expression of Emotion in Man and Animals (1872).
Jordi Planella Ribera
156
las disciplinas del cuerpo y las regulaciones de la población constituyen los
dos polos en torno a los cuáles se ha desarrollado la organización del poder
sobre la vida” (1976, p. 183). O saber e o poder proclamam a vida (em
sua dimensão biológica) e a trasformam (ou constroem, seguindo a ter-
minologia e o enfoque que dei ao meu discurso) segundo o que quere-
mos conseguir. Na maioria das obras de Foucault, o lósofo se dedica
a estudar a origem das instituições e como, por meio destas, se exerce o
controle dos corpos. Tanto em Histoire de la sexualité como em Surveiller
et punir, ele enfrenta este objetivo de dissecação das instituições e de suas
ações sobre os corpos dos cidadãos.
Mas a leitura do domínio do corpo pode ocorrer mais além
do estruturalismo. Brohm (1985) insiste na ideia de que o corpo que
vivemos atualmente é a expressão das exigências do capitalismo. O ser
humano continuaria sendo o apêndice da máquina. Ela faz parte de um
processo de sublimação repressiva que, ainda que pareça que produz
a libertação do corpo, na realidade não modica as condições funda-
mentais dos indivíduos. Tudo isso sucede em um momento em que “el
poder controla directamente las almas” (Castro, 2002, p. 8). A cultura
do corpo se converte assim em uma forma de controle sobre a vida dos
indivíduos. Uma das formas de controle e domínio dos corpos mais
ecaz é a educação. O exemplo possivelmente mais claro talvez seja o do
nacional-socialismo alemão, em que Hitler aspirava “el endurecimiento
corporal de su juventud, el renacimiento de la nación, realizado mediante
la crianza expresa de un ser humano nuevo. Con eslóganes como Tu cuerpo
pertenece a la nación o Tienes la obligación de ser sano, las Juven-
tudes Hitlerianas proclamaron la obligación del fortalecimiento corporal
(Knopp, 2001, p. 37).
5.2.1.5. CorPoS inStituCionaiS
O corpo se concebe, em múltiplas ocasiões, como imagem de
uma instituição. No capítulo segundo me referi, ao estudar o corpo me-
dieval, às relações entre as diferentes partes do corpo e os membros do
157
Corpo, cultura e educação
Estado
10
. Este paralelismo foi levado muito além e atualmente é fácil
escutar metáforas corporais aplicadas a diferentes prossões ou estamen-
tos sociais. Por meio de uma certa hierarquia de níveis e da divisão das
tarefas sociais ao realizar a metáfora, se aplica em diferentes graus a cada
um deles. Dessa forma, tem lugar uma transferência de signicados do
somático ao social (ou mais concretamente, institucional).
A inferência do corpo como instituição ou como coletividade
é uma das acepções que propõe Seco no Diccionario del español actual.
Os termos que oferece o linguista -ligados ao signicado do corpo de
coletividade- podem ser agrupados de diferentes formas:
As metáforas do corpo institucional
Categoria Exemplos
Coletividade
- Corpo de cidadãos exigentes
- Corpo eleitoral
Conjunto de pessoas que pertencem a uma
prossão
- Corpo diplomático
- Corpo de professores do estado
- Corpo médico
Exército - Os três corpos do exército: ar, mar e terra
Baile - Corpo de baile
Segurança - Corpo de segurança
Fonte: [Adaptado de Seco, M. (1999), Diccionario del español actual. Madrid: Aguilar, Vol. I].
A organização social é a que toma a “forma”, as característi-
cas e a sensibilidade corporal, dividindo suas tarefas, as hierarquias, etc.
como se tratassem dos diferentes órgãos corporais que possibilitam o
fncionamento do corpo humano. A metáfora do corpo como instituição
possivelmente seja das metáforas mais claras e usadas, mas ao mesmo
tempo parece desligada de sua origem “corporal”. A partir da perspectiva
socio-biológica, criamos uma metáfora que representa um espaço de em
desintegração anatomopolítica.
10
Outras metaforarizações do corpo institucional poderiam ser o corpo de Cristo, uma metáfora por meio
da qual se identicam aos seguidores de Cristo. A igreja inteira participa no momento de comungar com o
corpo de Cristo”. Podemos dizer, no caso que comentei, da expressão corpo místico. Igualmente no campo
da língua se usa a expressão corpus lingüístico ou ainda corpus de conhecimentos.
Jordi Planella Ribera
158
5.2.1.6. CorPoS PragmátiCoS
O corpo pode ser também interpretado e/ou concebido como
ferramenta de trabalho e como produção de força motriz. Esta metáfora
tem seu fundamento nos modelos capitalistas de produção. Brohm pro-
põe, ao fazer referência à economia política do corpo que “en la perspec-
tiva del materialismo histórico, el cuerpo es fundamentalmente un medio de
producción, una herramienta, un conjunto de técnicas del cuerpo” (2001,
p. 56). O corpo é o primeiro instrumento do homem, havia anunciado
Marx em O Capital.
O corpo é o que acaba produzindo a ação. Apesar de os sis-
temas de produção terem deixado de dar importância ao corpo como
fonte principal de produção de energia, o que é evidente é sua necessária
exigência para continuar produzindo. Só é necessário levar em conta
determinadas tarefas muito pouco centradas no uso da força (por exem-
plo, o mundo da docência) e, em contraposição, como em determinadas
situações nas quais o sujeito não se encontra coporalmente em “plena
forma” tem muitas diculdades para levar a cabo sua “produção”, seu
trabalho. Insisti, no capítulo três, sobre a importância das técnicas do
corpo, que de forma detalhada foi estudada nas techniques du corps de
Marcel Mauss.
5.2.1.7. CorPoS diSCurSivoS
Existem determinadas narrativas que falam do corpo e que,
por meio dele, o convertem em eixo central de seu discurso. Sem o cor-
po, não tem sentido sua escritura. Desde a antiguidade essas narrativas
existem, muitas vezes ligadas a questões e vivências religiosas. Desde
narrativas que falam de milagres (exemplos deles são as “curas” de cor-
pos nos santuários de Lourdes –França- ou Fátima –Portugal) até as
histórias das relíquias de santos cujos corpos, com o passar do tempo,
não se decompõem. Além das relações da metáfora do corpo como ele-
mento discursivo, é necessário situar as histórias narradas por pessoas
que têm alguma relação “especial” com seu corpo. São relevantes as
histórias narradas por pessoas com deciência física. Entre muitas es-
159
Corpo, cultura e educação
colhi três narrações corporais da diversidade funcional (deciência). A
primeira é o livro escrito por Alexandre Jollien, Elogio de la debilidad.
O autor narra sua vida, até os 25 anos, e expõe, por meio de um diá-
logo imaginário com Sócrates, algumas das percepções que tem de seu
corpo. A segunda obra é o texto de Robert Murphy, um antropólogo
americano com paraplegia, que expõe também sua vivência. O livro é
entitulado e Body Silent, um título que nos sugere a relação existente
entre a necessidade de narrar por meio do discurso escrito aquilo que
meu corpo não pode comunicar, e a vivência interior do corpo como
silêncio. Ao nalizar o livro, Murphy arma que: “e paralytic is, quit
literally, a prisioner of the esh, but most humans are convicts of sorts
(1982, p. 179)
11
. A terceira narração que nos aproxima à discursivi-
dade e à corporeidade é o trabalho de Marta Allué, DisCapacidades
(2003). Allué é uma antropóloga especializada em rituais funerários
que, em 1993, sofreu um acidente, fruto do qual teve queimada uma
parte importante de seu corpo. Desde então ela tem trabalhado na
linha da antropologia da deciência, em que o corpo é um dos eixos
centrais
12
. Também é relevante um trabalho recentemente editado em
que Rubén Gallego narra sua vida em orfanatos e internatos da URSS,
depois de ter sofrido uma paralisia devida a complicações no parto. Ele
narra o seguinte em relação ao seu corpo:
lo primero es bajar de la cama. Hay un modo de hacerlo; se me ha
ocurrido a mí. Sencillamente me deslizo hasta el borde de la cama,
me doy la vuelta hasta quedar sobre la espalda y me dejo caer. Tras
la caída llega el golpe. Y el dolor (2003, p. 13).
E nalmente, me parece de rigor citar o livro de Ramón Sam-
pedro, Cartas desde el inerno. Nele, o autor escreve seu mal-estar, e
11
Outros livros relevantes de Murphy, que mostram uma trajetória antropológica distinta do tema da
diversidade funcional, são: (1971) e Dialectics of Social Life: Alarms and Excursions in Anthropological eory.
Nueva York: Basic Books; (1979). An Overture to Social Anthropology. Englewood Clis: Prentice-Hall.
12
Alguns de seus trabalhos são: (1996) Perder la piel (em que trabalha narrativamente sua experiência do
acidente, a recuperação das queimaduras, a reconstrução de sua própria história); (2001) Temporalmente
válidos: una etnografía sobre el entorno de la discapacidad (trata-se da sua tese de doutorado, em que estuda
25 histórias de vida de pessoas com diversidade funcional); (2003) “El sexo también existe” (um capítulo de
livro dedicado às sexualidades não normativas e a seu controle social), La piel curtida (2008) y El paciente
inquieto. Los servcios de atención médica y la ciudadanía (2013).
Jordi Planella Ribera
160
suas sensações corporais negativas, por ver-se obrigado a permanecer
imóvel em uma cama devido a um acidente fatal que sofreu em 1968.
Passados trinta anos, em 1998, nalmente decide tirar a própria vida
com a assistência de alguém, já que sua pouca autonomia corporal não
lhe permitia. Sua história gerou muita polêmica e abriu um signicativo
debate sobre a eutanásia.
A leitura do corpo como elemento discursivo tem sido um dos
temas que trabalhei em diferentes ocasiões. O silêncio da cultura e da
sociedade leva algumas a usar o corpo como base de seu discurso. Em
um primeiro trabalho sobre a inscrição e os corpos, intitulamos uma das
partes: corpos escritos, corpos tatuados. Ali armávamos que “inscribir
el cuerpo es darle vida, hacerlo pasar de un estado meramente anatómico
y callado, a un estado social y comunicante” (Planella, 2001a, p. 83). A
conexão entre o corpo e o discurso pode possuir esta dupla vertente que
expus: pessoas que necessitam escrever as vivências de seu corpo e pesso-
as que necessitam escrever em seu corpo para se fazer sentir.
5.2.1.8. CorPofilia
O corpofília é o amor, de forma extrema, ao corpo. Poderíamos
quase falar de uma religião do corpo, que seria “el signo más claro de
contestación contemporánea de los valores burgueses tradicionales” (Brohm,
2001, p. 234). A partir da perspectiva do que tem sido chamado de
religião do corpo, este acaba se tornando o último refúgio do sujeito.
Falar de religião do corpo envolve, em um sentido, fazer referência a po-
sições que podem ser designadas como neopaganistas. O corpo torna-se
um fetiche, um verdadeiro objeto de culto (em uma situação de quase
auto-adoração). O corpo torna-se um objeto de idolatria e é então que
se pode falar de “corpolatría. O corpo é idolatrado (ou se corpolatra)
tornando-se, de forma exagerada, o centro da vida. Assim, o corpo idea-
lizado torna-se um corpo oposto ao corpo concebido como um túmulo,
o corpo estático e inerte. As conexões entre a perspectiva da corpofília
têm muita relação com o corpo mercadoria. Certamente trata- se de sua
expressão máxima como um elemento de consumo.
161
Corpo, cultura e educação
Práticas esportivas com base no trabalho duro para alcançar
uma determinada musculatura, conhecidas como body-building, seriam
um bom exemplo deste corpo como um elemento central de certos dis-
cursos. Agora é necessário esclarecer que os praticantes dessa disciplina
cultuam o músculo, mais que o corpo, no qual ainda têm muito mais
focado seu objeto de adoração. Não se trata, pelo menos nas práticas
esportivas realizadas nos EUA ou nas praias de Copacabana -Rio de
Janeiro-, um esporte que se desenvolve na intimidade, mas um esporte
de rua, um esporte para ser notado e para se exibir. Os corpos no tem-
plo-academia seguirão uma liturgia especial, que deve levar ao êxtase do
processo “adorador” e transformador de seu corpo.
5.2.1.9. CorPofobia
Corpofobia é uma expressão carregada de valores e contrava-
lores
13
. O corpo se converte, metaforicamente falando, em espaço de
olhar, de juízo, (sobretudo preconceito), de decisão e de ressituação de
determinados “sujeitos corporais”, que por múltiplas razões nos situ-
am em um território que não é corponormativo. Dessa forma, os sen-
timentos homofóbicos se fundamentam em sensações de asco, repulsa
e negação que partem das sensações produzidas a partir do imaginário
social, no qual tocar, beijar, cheirar um corpo de mesmo sexo produz
fobia
14
. Essas reações de asco, parafraseando Miller, são fenômenos
culturais e linguisticamente ricos, tratando-se de sentimentos ligados
a ideais que têm lugar em determinados contextos sociais e culturais
(Miller, 1998).
Além dos exemplos propostos - construção/atração/repulsa
- e relacionada aos sexos, a corpofobia pode ocorrer em relação aos
olhares dos outros corpos. São muitos os exemplos que o conrmam.
13
Butler usa o conceito somatofóbia (2003) fazendo referência às práticas discursivas de construção de
corporeidades: “el crítico podría sospechar también que el constructivista sufre de cierta somatofobia y querría
asegurarse que el teórico abstracto admita que mínimamente hay partes, actividades, capacidades sexualmente
diferenciadas, diferencias hormonales y cromosómicas que pueden admitirse sin hacer referencia a la contrucción
(2002a, pp. 30-31).
14
Sobre este aspecto Vendrell propõe que “los varones heterosexuales desarrollan un sentido de asco hacia las
bocas masculinas, y de paralela atracción hacia las femeninas y un fortísimo asco por los penes, y quizá no tanto
por las vaginas” (2003, p. 40).
Jordi Planella Ribera
162
Um deles nos fala sobre as reações que ocorrem em indivíduos que
observam algumas pessoas com deciência. Estas reações, também
construídas a partir de uma fundamentação que prejudica os sujeitos
portadores” de deciência sem conhecê-los, podem ser causadas por
aspectos de forma (formas de corpos com deciência que são, do ponto
de vista estatístico, não-padrão) e os da presença (corpos que mantêm
condutas não normativas, algumas delas ligadas a aspectos sexuais e
que podem ocorrer em espaços que não são de estrita privacidade)
15
.
Algo semelhante acontece com os corpos envelhecidos, com a pele
enrugada dos idosos. O que esperamos dos olhares que os capturam
e interrogam? O sentimento corpofóbico aparece novamente. A não
aceitação dos corpos dos outros vem por várias razões, entre as quais
podemos encontrar a memória da nossa própria fragilidade. Negan-
do-os e ressituando-os em territórios não-discursivos, sentimos que os
eliminamos do nosso imaginário.
5.2.1.10. o CorPo reSiStênCia
Mas o corpo não é apenas um espaço de investimento do po-
der, transmutação social dos novos movimentos e modas, expressão, si-
lêncio, localização fronteiriça. O corpo pode também desempenhar um
papel relevante nas ações de “resistência” dos sujeitos. Foucault utilizará
o termo “resistência” repetidamente em toda a sua obra, e acompanha-
do de outros conceitos carregados de signicados semelhantes. Segundo
Revel, “la resistencia se da necesariamente dónde existe el poder, porqué ella
es inseparable de las relaciones de poder” (2002, p. 53). A resistência não é
nem anterior nem posterior ao poder; é absolutamente contemporânea
ao exercício do poder.
A resistência se exercita fazendo frente ao porder, aos discur-
sos preconcebidos, às modas passageiras, etc. Um exemplo do corpo
como espaço e elemento de resistência se encontra na vida e obra de
15
Essa construção imaginária da impossibilidade de pensar o sujeito com deciência como sujeito sexuado,
segundo Williams, se deve a “que la mayoría de las personas raramente necesitan pensar acerca de su propia
sexualidad de una forma objetiva, asumen que son normales. Por lo tanto, cualquiera que sea diferente de ellos
debe ser anormal” (1992, p. 97).
163
Corpo, cultura e educação
Orlan. Orlan é uma artista francesa que faz parte do movimento bo-
dy-art, mas tomado em sua interpretação mais extrema. Ela não parte
do corpo como elemento no qual desenhar e/ou expressar suas ideias,
mas vai além e transforma seu próprio corpo em sala de cirurgia
16
. Tal
como arma Dery
aparte de la sala de operaciones de Orlan, no hay otro lugar donde
la política del cuerpo, del gusto vanguardista por la provocación
y las perversiones de una cultura de imágenes y obsesionada por las
apariencias se reúnan de manera tan llamativa y perturbadora (1998,
pp. 264-265).
O trabalho de Orlan faz parte desta metáfora corporal que bus-
ca resistir por meio da provocação, já que ela “quiere luchar contra lo
congénito, contra el ADN” (Dery, 1988, p. 266).
A resistência por meio do corpo é também chave em deter-
minados discursos pedagógicos. É o caso da pedagogia crítica, que se
vê reetida sobretudo nos trabalhos de McLaren. Este autor parte da
ideia de que “una pedagogía crítica debe ir en contra de la tendencia de
algunos postestructuralistas burgueses suculentos a disolver la voluntad,
y de su armación de que en el discurso nosotros somos siempre sujetos
producidos y nalizados” (1997, p. 96). O corpo é um espaço de luta
contra a imposição de sujeitos nalizados e produzidos externamente.
Um exemplo das práticas ativistas de resistência corporal temos no
texto do grupo Hartza
17
:
16
Desde 1990, é operada em múltiplas ocasiões com a intenção que cada operação faça parte da obra mestra
absoluta: La reencarnación de santa Orlan, como ela mesma arma em alguns de seus escritos e entrevistas.
Cada operação é uma porformance com a paciente, o cirurgião, as enfermeiras (estas vestidas, não com roupa
branca ou verda, mas com vestidos de alta costura) e a sala de cirurgia decorada com crucixos e cartazes
dos patrocinadores da operação. Orlan resiste à manipulação de seu corpo unicamente com anestesia local.
As operações são lmadas, e em outras ocasiões retransmitidas ao vivo. Em uma operação que ocorreu em
Nova Iorque, lia um livro de psicanálise e se comunicava por telefone com espectadores que observavam a
evolução de sua operação. Esses trabalhos fazem parte de um projeto maior concebido como a “desguração
cosmética”, que tinha uma duração de 10 anos. Finalizou com uma operação onde lhe foi implantado um
nariz maior do que seu rosto podia chegar a suportar.
17
Hartza é um coletivo transexual que trabalha para a não discriminação social de seus membros. Uma
forma de fazê-lo é por meio da desconstrução das identidades, tal como nos mostrou o texto citado. Me
rero ao nosso recente livro: PIÉ, A. y PLANELLA, J. (Coord.) (2015). Políticas, prácticas y pedagogías
TraNs. Barcelona: Ediuoc.
Jordi Planella Ribera
164
¿DNI?
Documento: resistiendo al archivo, al registro.
Nacional: resistiendo al estado nación.
Identidad: resistiendo a la identidad estable, natural.
Resistimos a lo humano, a ser persona, sujeto o individuo. Nuestro sexo es
protésico, cibernético, precario, múltiple. Cuerpos que importan. Cuerpos
que soportan. Cuerpos que sudan (...) Resistimos con cuerpos transfronterizos,
abyectos, sucios, raros. Resistimos al cuerpo médicopolicial. Resistimos al poder
globalizado. Resistimos al consumo rosa. Okupamos los espacios de asignación
de género y sexo, resistimos en los laboratorios: un desalojo heterosexual,
otra ocupación maribollo. Resistimos con multitudes y diásporas queer, con
proliferación de identidades: ciberbollos, osos, camioneras, drag, king-kong,
punkifemmes, transgéneros, intersexuales, maricones … (Hartza, 2003)
A resistência e a luta dos sujeitos a partir de seus corpos pas-
sam por denir-se a eles mesmos como sujeitos pensantes e autôno-
mos, e por decidir o que aceitam e o que não aceitam dos discursos
imperantes
18
.
5.3. a ConStrução doS CorPoS Freak
Da mesma forma que os animais exóticos fascinam aos ho-
mens, os sujeitos corporalmente diferentes despertavam e excitavam a
imaginação da população. O fenômeno que produzia esta excitação e
que estimulava a imaginaão é denominado, desde a antiguidade, mons-
tro ou monstruosidade. A criação, estudo e sistematização deste tema tem
tido lugar desde a antiguidade, e se mantém, de formas mais ou menos
variadas, até nossos dias. Esta produção cultural da monstruosidade en-
globa-se, segundo Cortine, em um fenômeno mais amplo que dene
como “el desencantamiento de lo extraño” (2002, p. 9).
Tal como mostra Garland-omson “algunas pinturas rupes-
tres de la edad de piedra representan el nacimiento de monstruos, mientras
que los monumentos funerarios prehistóricos testimonían los sacricios ritu-
18
A bissexualidade entendida a partir da Queer eory pode ser lida, politicamente falando, como uma
prática desestabilizadora das ontologias sexuais. Tal como nos convida a pensar López: “la bisexualidad se
convertiría en un tercero en discordia que serviría como recordatorio de la existencia de formas de conceptuar la
sexualidad” (2003, p. 111).
165
Corpo, cultura e educação
ales complejos en los cuáles el cuerpo era el objeto central” (2002, p. 38).
Também na Namibia foram descobertas tábuas de argila que descreviam
setenta tipos diferentes de malformacões congênitas que eram acompa-
nhadas do correspondente signicado profético. Muitos dos lósofos
gregos, romanos e cristãos têm procurado explicações para compreender
o fenômeno dos nascimentos de sujeitos que podiam ser considerados,
corporalmente falando, como extraordinários. Nesse sentido, é relevan-
te o que Aristóteles propõe em relação ao nascimento dos lhos com
deformidades: “sobre el abandono y la crianza de los hijos, la ley debería
prohibir que se criase a alguien con deformidades
19
. Para Aristóteles, um
lho e um escravo eram propriedade do pai e do amo, respectivamente,
que podiam fazer com eles o que pensassem que era mais justo. Com a
propriedade de alguém, continua dizendo Aristóteles, “no puede haber
injusticia”.
Foucault não cará à margem dos discursos sobre o monstru-
oso e seus trabalhos sobre o tema estão reunidos, em uma edição pós-
tuma, no livro Les anormaux, que foi traduzido ao castelhano como La
vida de los hombres infames
20
. No prólogo do livro, Fernando Savater dirá
do projeto de Foucault –ao falar da gura do monstro- que “no se trata
de un simple ejercicio histórico ni del intento de completar con precisión las
raíces de esa ontología de la realidad (...) Son escritos a los que subyace
una indudable vocación de combate” (1990, p. 11). Os anormais são uma
indenida e confusa família de sujeitos e personagens que obsecam as
pessoas consideradas “normais”, e que necessariamente se relacionam
com um conjunto de instituições destinadas a “controlá-los” e retorná-
-los ao status de normalidade
21
. Em um dos textos do livro, ele arma
19
Política, livro 7o, cap. XVI, ver. 1335.
20
Boa parte da fundamentação do trabalho de Foucault centra-se na obra de Ernest Martin, um arqueólogo
italiano que em 1836 trouxe até París uma estranha múmia que lhe serviu para iniciar suas investigações
sobre os monstros. Tratava-se de um homem “especial” (qualicado como monstruoso depois de consultá-lo
com Geoory Saint-Hilaire) ao qual lhe faltava uma parte do cérebro. Seu livro Histoire des monstres (1880)
foi um dos trabalhos chave nas investigações e o estudo dos monstros dos últimos 125 anos. Existe uma
reedição de 2002.
21
Uma crítica à conceitualização dos anormais pode ser lida em Veiga-Neto (1991, p. 165): “estoy usando la
palabra anormales para designar a aquellos grupos cada vez más variados y numéricos que la Modernidad viene,
incansable e incesantemente, inventando y multiplicando: los sindrómicos, decientes, monstruos y psicópatas (en
todas sus variadas tipologías), los sordos, los ciegos, los deformes, los rebeldes, los poco inteligentes, los extraños, los
GLS (gay , lesbianas y simpatizantes), los otros, los miserables, en síntesis, el resto”.
Jordi Planella Ribera
166
que “el individuo anormal del que se ocupan desde nales del siglo XIX
tantas instituciones, discursos y saberes, proviene a la vez de la excepción
jurídico-natural del monstruo, de la multitud de los incorregibles sometidos
a los aparatos de corrección” (1990, p. 89). Os trabalhos de Foucault, jun-
tamente com os de outros autores, possibilitam-nos analisar e estudar o
que se encontra por trás da concepção social dos “outros corpos”, con-
siderados demasiado diferentes para serem vistos como “normais
22
. O
verdadeiramente signicativo é chegar a conhecer a forma como se leva a
cabo a divisão entre normal e anormal, com que critérios se constrói esta
divisão e o que se pretende com seu exercício. Nesta tarefa de conhecer,
não se pode subestimar a contribuição de Cohen quando arma que “el
cuerpo del monstruo es un cuerpo cultural” (2000, p. 26). O monstro não
pode existir por si mesmo, só pode ser lido e entendido por meio das
relações culturais nas quais se move e participa.
5.3.1. a ConCeitualização do monStro
A ciência teratológica é a encarregada do estudo e classicação
dos monstros. A palavra monstro traslada-nos, em um plano etimológi-
co, aos conceitos grego e latino de terata e monstra, respectivamente. Tal
como armei em um trabalho anterior, “ya desde entonces, todo lo que tenga
relación con la monstruosidad denotará un cierto regusto de negativismo, algo
demoníaco, el estado de caos por excelencia” (Planella, 2004, p. 87). A terato-
logia provém do conceito grego teratos, que signica monstro, e em latim
a palavra que se usava para designar as guras monstruosas era monstrum,
que fazia referência à advertência do mais além de uma irrupção sobrena-
tural na ordem natural. Etimologicamente falando, podemos dizer que
monstrum signica “aquele que rebela”, “aquele que adverte”, “o que nos
mostra”. A partir dessa perspectiva, o monstro se mostra e nos mostra um
suposto estado de desordem. Nas palavras de Courtine, “el monstruo se em-
parentaba con la bestia; escapando a sus reglas, encarna el intercambio de la
creación; viviendo en los connes del mundo, proliferaba con razas extrañas
(2002, p. 10). Dessa forma situa-se, ao longo da história da humanidade,
nas margens da concepção do humano.
22
Skliar (2002), Allué (2003.
167
Corpo, cultura e educação
Em um dos estudos mais citados sobre a monstruosidade, Ge-
orges Canguilhem arma que “la existencia de los monstruos cuestiona la
vida en cuanto al poder que tiene de mostrarnos el orden” (1966, p. 43).
A ordem imperante na sociedade é o que permite que nada escape do
espaço que lhe foi designado, sem que se rompa o estado de equilíbrio
social. No momento em que o espaço da ordem natural — se seguimos
a etimologia do termo latino — é questionado, o que até o momento era
considerado “normal” encontra-se em perigo, e as nas fronteiras que
o mantêm separado do mundo dos anormais (para seguir a Foucault)
poderia ser derrubado. Para alguns autores, a normalidade seria a pon-
tuação zero da monstruosidade ou, dito de outra forma, a normalidade
teria um nível zero de monstruosidade
23
.
Com esta ação de situar-se para além e de questionar a ordem,
a monstruosidade termina por converter-se no verdadeiro contravalor
da vida (que neste caso não seria a morte), já que a monstruosidade é
a ameaça do inacabamento da criação natural do ser humano. Cangui-
lhem arma que é a “distorsión en la formación de la forma, es la limitaci-
ón en su interior, la negación de lo vivo a través de su no viabilidad” (1966,
p. 67). Mas ao mesmo tempo, e apesar desta ameaça do inacabamento
na criação da vida, o monstruoso relaciona-se com o maravilhoso e o
fascinante. Frente às manifestações monstruosas, os espectadores que o
observam têm um sentimento de fascinação misturado com o de ansie-
dade e lhes provoca reações de aceitação e de rejeição. De forma conjun-
ta provoca, segundo Borel, que
las metamorfosis convierten el conocimiento en imposible, y
únicamente engendra incertidumbres intelectuales y dudas. Y por otra
parte, y este es su más grave peligro, remiten a la problemática de
la normalidad biológica y de pasada, al de la fragilidad del orden
humano (1992, p. 27).
Os monstros, escreve Foucault, “son como el ruido de fondo, el
murmureo ininterrumpido de la naturaleza” (1996, p. 169). O monstro
nasce de um imaginário coletivo a partir de uma diferença, a maioria
23
Gabriel Tarde (1897) L’opposition universelle. París, p. 25 (citado por Canguilhem, 1966).
Jordi Planella Ribera
168
das vezes corporal, que se mostra evidente. Este fato é o que faz com
que as transformações corporais sejam vistas por boa parte da sociedade
como algo inquietante. O monstro tem sido objeto de fascinacão, de
admiração, mas ao mesmo tempo de ódio e rejeição, dependendo de
cada momento histórico e de cada contexto geográco. A fascinação
seria, para Gilbert Lascault, devida ao fato de que “designa lo que noso-
tros no queremos reconocer en nosotros mismos” (1973, p. 13). O monstro
nos reenvia a imagem de nós mesmos, projetada para frente (o que em
um futuro poderíamos chegar a ser) e desvela as partes escuras e recôn-
ditas dos seres humanos que a ordem da cultura mantém precisamente
ordenadas”. A chegada da gura monstruosa recorda-nos que a outra
parte de nós é formada por situações de alteração e desordem e não só
de ordem e unicidade corporal.
A diferença e a construção da diferença corporal são tão an-
tigas quanto a própria história da humanidade. A construção de uma
frágil linha que separe com clareza o designado como normal do de-
signado como patológico tem sido tarefa que tem acompanhado a evo-
lução da humanidade
24
. Essa tem sido a temática de um dos ciclos de
conferências de Humanidades Médicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de Barcelona, e que levava por título La normalidad y la
patología. O coordenador do curso, Cristóbal Pera, dizia em uma de suas
intervenções: “mientras lo normal se asocia con la estadístico, lo patológico
está más cercano a la biología, y entre ambos hay una correlación compleja
e nalizava armando que “por encima de los datos estadísticos están
las vivencias que nos pueden transmitir los pacientes, porque son ellos
quienes experimentan los síntomas de la enfermedad y quiénes saben
cuándo sus órganos no están sanos
25
.
A reexão e as tentativas de sistematização fundamentada
cienticamente sobre os termos normalidade e patologia é um dos te-
mas fundamentais da psicopatologia. A alteridade do outro, daquele
24
Em ocasiões (a partir de um ponto de vista do uso social da língua) o mais comum é usar o conceito
anormal para designar aquelas pessoas que se crê que não são normais. Sobre esta temática, é especialmente
relevante no artigo da revista L’interrogant dedicado ao tema Norma, normalidad y patología (1999, p. 2).
25
Pera (2001) Lo normal y lo patológico: una relectura crítica del libro de Georges Canguilhem, Conferência
realizada na Facultad de Medicina. Universitat de Barcelona, (6 fev. 2001).
169
Corpo, cultura e educação
que é diferente, daquele que é considerado “anormal” (corporal ou psi-
quicamente) é um dos temas chave das relações sociais. Para García, “el
otro como problema es momento de un proceso. En efecto, el otro se fabrica.
Esculpimos al otro rasgo a rasgo, en un proceso social y cotidiano: sobre
la base de la locura construimos día a día al loco” (1997, p. 21). Neste
mesmo sentido reete o psiquiatra francês Zarian, ao salientar que o
termo louco toma um sentido diferente em função de se é atribuído a
nós mesmos ou aos outros. Este duplo sentido estrutura-se a partir do
seguinte binômio:
Estoy loco indica el exceso, la pasión, y no es peyorativo. Es una
evaluación cuantitativa: estar loco de amor, de alegría (...) Muy en
cambio, decir está loco es una caracterización cualitativa y estigmatiza
la diferencia, la singularidad, la alteridad. En el fondo la locura siempre
viene denida por otro, nunca por uno mismo (...) La psiquiatría es la
que dene la locura (Zarian, 1990, p. 26).
A construção da normalidade encontra-se, seguindo a proposta
de Canguilhem (1966), mais na ordem losóca que na médica. Esta
normatizacão losóca da vida traduz-se em determinadas regras ou pa-
drões de conduta estabelecidos e aceitos pela maioria dos indivíduos que
vivem em sociedade. Apesar disso,
las reglas o normas son siempre peculiares de un determinado grupo,
comunidad o discurso. De ello se puede deducir fácilmente que la
norma no es algo dado, primario o natural de la especie humana, sino
una invención, una creación, una producción (Estrella, 1999).
Um dos exemplos da construção do monstro é o que nos trans-
mitiu a mitologia grega. Medusa (Μέδουσα em grego antigo) é uma
personagem mitológica considerada “terrível”, muito representativa do
que signica a diferença corporal ou a monstruosidade. Era um dos três
monstros, das três górgonas que habitavam o reino dos mortos. Tinha
por cabelos serpentes que se entrelaçavam e eram as que produziam a
sensação maior de medo e rejeição, que podiam chegar a “provocar esca-
lofríos de terror a los enemigos más fuertes” tal como arma Ovidio em
La Metamorfosis. Seu olhar era tão penetrante que podia transformar em
Jordi Planella Ribera
170
pedra os que a olhavam. O mesmo Freud escreveu um pequeno texto
falando da cabeça de Medusa
26
. Nele, manifesta que o que é realmente in-
suportável é o nexo entre a atração e o horror. A concretização da reação
frente à Medusa fundamenta-se na ideia que: Si los cabellos de la cabeza
de Medusa son a menudo gurados por el arte como serpientes, es porque a
su vez provienen del complejo de castración (Freud, 1985, pp. 49-50).
Outras interpretações sobre o efeito de Medusa preferem apre-
sentá-la coberta com uma máscara. A máscara, sempre mostrada de forma
frontal, se encontra na fronteira entre o humano e o bestial, a masculinidade
e a feminidade, a beleza e a feiúra. Neste sentido Vernant nos dirá que:
El rostro de Gorgona es el Otro, el doble de vosotros mismos, el
Extranjero, en situación de reciprocidad con vuestra gura como si se
tratara de una imagen en el espejo, pero una imagen que sería a la vez
menos y más que vosotros (...) representaría el horror terroríco de una
alteridad radical, con la cual vosotros mismos os vais a identicar, al
convertiros en piedra (Vernant, 1985, p. 116).
A monstruosidade, a diferença corporal, a alteridade em de-
nitivo, confronta-nos com os limites do que consideramos humano.
Os olhos do outro (da alteridade) são um espelho para nós mesmos
27
.
A contribuição foucaultiana, especialmente no capítulo intitulado “Os
anormais”, permite classicar os sujeitos “anormais” em três grandes ca-
tegorias, diferenciadas por um conjunto de variáveis. A classicação que
propõe pode ser compilada na tabela seguinte:
As categorias de monstro em Foucault
Categoria Características
El monstruo humano
Esta vieja noción encuentra su marco de referencia en la ley. Se trata
de una noción jurídica, pero entendida en sentido amplio ya que no
concierne únicamente a las leyes de la sociedad, sino que se reere
también a las leyes de la naturaleza. El campo de aparición es un ámbito
jurídico-biológico. (1990, p. 83) Lo que constituye a un monstruo
humano en un monstruo no es simplemente la excepción en relación a
la forma de la especie, es la conmoción que provoca en las regularidades
jurídicas. El monstruo humano combina a la vez lo imposible y lo
prohibido (1990, p. 84).
26
Trata-se de um texto de 1922 intitulado “La tête de Méduse”, Resultats, Idées et Problèmes II. París, PUF, 1985.
27
Antkowiak trabalhou as reações frente à alteridade da pessoa com deciência em seu artigo “Quelques
réexions sur le handicap” (1996).
171
Corpo, cultura e educação
El invididuo a corregir
Es este un personaje más reciente que el monstruo y se encuentra más
cerca de las técnicas de adiestramiento, con sus exigencias propias, que
de los imperativos de la ley y de las formas canónicas de la naturaleza.
Los nuevos procedimientos de adiestramiento del cuerpo, del
comportamiento, de las aptitudes, suscitan el problema de aquellos que
escapan a esta normatividad que ya no se corresponde con la soberanía
de la ley (1990, p. 85). Se produce así la formación técnico-institucional
de la ceguera, la sordomudez, de los imbéciles, de los retrasados, de los
nerviosos, de los desequilibrados (1990, p. 86).
El onanista
Esquemáticamente se puede decir que el control tradicional de las
relaciones prohibidas (adulterios, incesto, sodomía, bestialidad) se vio
reduplicado por el control de la “carne” centrado en los movimientos
elementales de la concupiscencia (1990, p. 87). La preocupación por la
sexualidad del niño y por todas las anomalías ligadas a ella, ha sido uno
de los procedimientos para construir este nuevo dispositivo (1990, p. 89).
Fonte: [Adaptado de Foucault, 1990].
Foucault terminará por dizer que as três guras, a do mons-
tro, a do incorrigível e a do onanista não se confundirão, mas que se
inscreverão em sistemas autônomos de referência cientíca. O monstro
se manterá na ciência da teratologia e da embriologia; o incorrigível na
psicosiologia das sensações, da motricidade e das aptidões; e o onanista
em uma determinada teoria da sexualidade (1990, pp. 89-90).
5.3.2. o ConheCimento CientífiCo e oS monStroS
À medida que os séculos avançam, a fascinacão social pela dife-
rença corporal vai tomando forma por meio de outros olhares, práticas
e interpretações da monstruosidade. Entre outras, o trabalho do anato-
mista Ambroise Parei, publicado em 1575 sob o título Des monstres et
prodiges- agrupará os conhecimentos sobre a ciência teratológica existente
desde a Antiguidade até o Renacimiento. O livro desse cirurgião esteve
vigente até quase nais do século XIX. Paré já tinha escrito anterior-
mente outro livro intitulado Deux livres de chirurgie (1573), e dentro
dele havia dedicado um capítulo a Des monstres marins. Mais adiante
chegaram os capítulos dedicados a outras tipologias de monstros, entre
os quais as deformidades dos seres humanos. O autor coloca no mesmo
grupo o prodigioso e o errôneo, o maravilhoso e o discurso médico que
se faz sobre o corpo considerado anormal. Sua grande contribuição foi a
Jordi Planella Ribera
172
inauguração que faz do olhar cientíco ao tema dos monstros
28
.
Despois do livro de Paré, e sobretudo durante o século XVIII, o
estudo da monstruosidade a partir da medicina é retomado de forma siste-
matizada. A obra de Patrick Tort (1998) L’ordre et las monstres. Le début sur
l’origine des déviations anatomiques au XVIIIe siècle reúne e analisa boa par-
te das memórias médicas que foram redigidas ao longo do século XVIII
e que estudavam a “biologia dos monstros”. Tort estuda mais de duzen-
tas referências publicadas na Histoire et Mémoires de l’Acadèmie Royale des
Sciences e que vão de 1699 a 1776. O trabalho localiza-se, de um ponto de
vista metodológico, no campo disciplinar da história das ciências.
No modelo explicativo da formação do monstro, um autor
como Du Verney defenderá a tese de que o monstro foi pré-formado.
Esta pré-formação baseia-se na ideia de que o monstro, como elemento da
natureza, foi criado por Deus e, portanto, é essa convicção a que responde
à vontade última. A teologia sica que desenvolve Du Verney apoia-se no
que denominou “étiologie métaphysique da monstruosité”. Na conclusão
de sua memória, datada em 1706, arma (seguindo com a ideia da etio-
logia metafísica) que “la inteligencia de la cual hablo ha querido producir
dos cuerpos humanos juntos, que pudieran estar de pie, sentarse, aproximarse
o acercarse los troncos del cuerpo el uno del otro hasta un determinado punto
(Tort, 1988, p. 30). Ele insiste (em relação à vontade do Criador) quanto
ao fato de criar essas criaturas: “la inspección de este monstruo pone de ma-
niesto la riqueza de la mecánica del Creador; al menos en comparación con
las producciones más reguladas” (Tort, 1988, p. 30).
28
Os trabalhos de Paré não fazem com que as interpretações teológicas e mitológicas da diferença corporal
desapareçam. As interpretações da diferença (como poderia ser a chegada de um lho com deciência) mais
além da medicina continuam sendo vigentes em sociedades onde a mitologia representa um papel relevante
em sua estrutura social, mas também em sociedades europeias e americanas, onde fundamentalmente somos
regidos por explicações cientícas destes tipos de fenômenos. Sobre isto, pode-se revisar a reexão de Tort,
onde arma que os avanços questionam a mesma religião, ainda que a teologia, nos séculos XVII y XVIII,
sirva ainda de fundamentação cientíca para muitas explicações. (1998, p. 22). Por outro lado, muitos dos
trabalhos de Kor-Sausse focaram-se em falar da mitologia existente por trás da interpretação da deciência
O mais relevante é D’Oedipe à Frankenstein. Figues du handicap. Ali arma que “la discapacidad, todavía y
aún, suscita un rechazo (...) La anormalidad del niño nos recuerda lo que tenemos tendencia a olvidar, y que el
progreso y la medicina buscan ocultar, a saber que el proceso de transmisión conlleva una parte de misterio” (2001,
pp. 7-9). Me rero a meu recente livro (2014). Solidaridades orgánicas. De cuerpos y trasplantes. Barcelona:
SEHEN onde, entre diferentes temáticas, abordo a questão dos imaginários e as crenças milagrosas no
campo dos transplantes de órgãos.
173
Corpo, cultura e educação
A segunda explicação da produção dos monstros é a que pro-
põe Lémery e que se baseia na formação mecânica dos mesmos. A me-
mória que apresenta em Acadèmie des Sciences se dedica a expor todo
seu pensamento a partir do estudo de um caso centrado em um feto
bicéfalo
29
. Com a teoria da mecanização na produção dos monstros,
nega-se que a organização anatômica ocorra justo no momento em que
se produz algum tipo de choque. A organização se dá porque existe um
tipo de mecanismo que dá coerência interna à nova criatura. Sobre o
processo de mecanização, Tort propõe que “la desviación fortuita puede
no ser puramente desorganizativa o destructiva de lo vivo, pero que acciden-
talmente las funciones de la vida pueden reordenarse a partir de la explosión
y la confusión” (Tort, 1998, p. 36).
Até a publicação de Winslow de seu trabalho editado sob o
título Remarques sur les monstres (...), avec des observations sur las marques
de naissance (1733), a classicação dos monstros sustentava-se em um
sistema binário. Por um lado, existiam os monstros que tinham sua cau-
sa no excesso (mais membros no corpo do que é habitual) ou por defeito
(atroa ou deformidade de determinadas partes do corpo). Nesta ten-
tativa de classicação não se leva em conta só aquelas criaturas que até
então seguiam os padrões habituais do que era conhecido como “mons-
tro”, mas sim é incorporado tudo o que é relacionado às deformidades
corporais e outras alterações que podem ocorrer também nos animais.
Nesta nova classicação da monstruosidade, ca incorporada a divisão
entre monstros simples e complexos. Os sujeitos simples eram aqueles
que “lo eran simplemente por conformación extraordinaria o por defecto
(Tort, 1998, p. 43). Por outro lado, os sujeitos considerados monstros
complexos eram aqueles “dobles, triples, etc. ya sea de forma total, o en
porciones, como por ejemplo algún órgano considerable, víscera, etc.” (Tort,
1998, p. 43). Ele nalmente incorpora um novo ramo à tipologia, que
designará com o nome de monstros dotados de uma pequena parte agre-
gada. Winslow é o cientista que realiza o estudo mais sistemático e de
cada tipologia apresenta diferentes casos com suas características e os
comentários correspondentes. No quadro seguinte podem ser aprecia-
29
“Sur un foetus monstrueux” , M. Lémey (1724), Mémoires de l’Académie.
Jordi Planella Ribera
174
das de forma esquematizada as três categorias teratológicas e alguns dos
exemplos que Winslow utilizou:
As categorias de monstros segundo Winslow
CLASSE CARACTERÍSTICAS
Primeira:
Monstros por defeito
Exemplo 1: em 1688 é feita uma autópsia, no Hotel Royal des
Invalides, do cadáver de um soldado de 72 anos que tinha todas as
partes do corpo situadas ao lado contrário do que deveriam estar.
Exemplo 2: em 1709 estuda-se um feto em Littre que apresenta um
conjunto importante de anomalias. Entre outras tinha uma abertura
externa do intestino por baixo do pubis e ausência de cólon e reto.
Exemplo 3: um estrangeiro que só tinha o dedo indicador em cada
mão. Não existia vestígio algum dos outros dedos, e as extremidades
do osso do metacarpio estavam rapidamente recobertas pela pele.
Apesar de ter só dois dedos escrevia, desenhava e realizava trabalhos
de miniaturas.
Segunda:
Monstros por excesso
Exemplo 4: em 1733, no Hôpital Général, visita a uma menina que
tinha dois corpos. Winslow tinha sido requerido por um religioso
com o m de elucidar se tinham de dar-lhe a extrema unção a uma
parte da menina ou às duas. A menina tinha um segundo corpo na
parte das extremidades que era mais pequeno que o primeiro. Este
segundo corpo não tinha nem cabeça nem braços.
Exemplo 5: em 1723 observa-se um caso de um monstro duplo
unido pelo umbigo. As duas partes foram batizadas, mas recebeu
unicamente um nome. Ao morrer ao cabo de poucos dias, Winslow
pôde comprovar que tinha um único estômago.
Terceira:
Monstros por agregação
Exemplo 6: se trata de uma mulher que tinha uma matriz dupla.
Nesta categoria Winslow não recolhe mais que apenas um exemplo.
Fonte: [Elaborado a partir de Tort, 1998].
Com os trabalhos de Du Verney, Lémery e Winslow inaugura-
-se de forma sistemática a entrada dos fenômenos monstruosos no mun-
do da ciência. Com essa entrada no campo dos discursos cientícos, boa
parte das crenças que se fundamentavam em superstições e explicações
teológicas começam a dar lugar a explicações médicas que tentam deci-
frar o porquê de tais fenômenos. As explicações e o estudo destes corpos
serão os alicerces da moderna ação preventiva das deciências.
O século XIX contribuirá com a teratologia com novas ondas
de saberes, sobretudo os que surgirão da embriologia. Trata-se ainda
e fundamentalmente do que podemos designar como monstruosidade
175
Corpo, cultura e educação
biológica. Os trabalhos de Etienne
30
e Isidor Georoy Saint-Hilaire
31
centram suas contribuições, precisamente, na formação dos monstros
a partir da perspectiva embrionária. A teoria da epigênese ajudará a
procurar estas novas explicações da produção biológica dos monstros.
A partir de sua perspectiva, a monstruosidade seria explicada pela -
xação do desenvolvimento de um órgão em um estágio pelo qual os
outros já teriam passado.
5.3.3. o monStro Como das unheimliche
Em um trabalho com data original de 1919, Freud propõe o
tema da diferença e da reação que temos frente a essa diferença. Das
Unheimliche (o sinistro) é o ponto de partida de um grupo de psica-
nalistas franceses
32
que estudam a construção da deciência e a reação
diferente da sociedade às pessoas com deciência. O texto tem múltiplas
leituras, contudo, no tema que nos ocupa, nos serve para fazer uma lei-
tura a partir da psicanálise sobre o porquê de as pessoas reagirem como
reagem diante dos “outros corpos”.
Freud explica uma experiência que teve enquanto viajava de
trem - em um carro-leito – quando, inesperadamente, uma porta foi
aberta e ele viu um senhor com gorro de dormir e pijama. Ele reagiu
com a intenção de dizer-lhe algo, mas se deu conta que era ele mesmo
e não se tinha reconhecido na imagem reetida diante de si. Essa ação
- de ver-se a si mesmo e não se sentir reconhecido - é uma das fontes
de produção da condição de “extranjería inquietante”. O mesmo ocor-
re nas famílias que têm um lho com deciência, quando os pais não
se sentem reconhecidos, ou também “un accidente o la enfermedad que
obligan a vivir con un cuerpo modicado, alterado, discapacitado. El cuerpo
habitual se ha convertido en extranjero; el cuerpo se convierte en una fuente
de inquietud, si se quiere de terror” (Kor-Sausse, 2001, p. 21).
30
E. Georoy Saint-Hilaire (1825) Considérations générales sur la monstruosité, et description d’un genre
nouveau observé dans l’espèce humaine et nommé Aspalasome. París: Panckoucke.
31
I. Georoy Saint-Hilaire (1837) Histoire générale et parteiculière des anomalies de l’organisation chex
l’homme et les animaux, au traité de tératologie. París: Baillière. 4 vol.
32
Alguns dos autores mais representativos são: Henry-Jacques Stiker, Simone Kor-Sausse, Myriam
Roudevitch, Oliver R. Grimm y Jean-Luc Antkowiak.
Jordi Planella Ribera
176
O estudo de Freud, muito fundamentado etimologicamente,
inicia-se comparando os termos heimlich y unheimlich. No início do livro,
Freud diz que “la palabra alemana unheimlich es claramente un antónimo
de heimlich, heimisch (del país), vertraud (familiar), y de ello podemos
concluir que una cosa es horripilante justamente por la razón que no es
conocida ni familiar” (2001, p. 33). Da armação de Freud podemos de-
duzir que o que é estranho a nós facilmente pode ser convertido em in-
quietante, apesar de que nem tudo chega a sê-lo. A aproximação que faz
dos conceitos se sustenta em uma investigação lológica em dicionários
de diferentes idiomas. O agrupamento que faz dos termos é o seguinte:
A denição de Unheimliche em diferentes línguas segundo Freud
Idioma Referência de signicado
Latim
intempesta nocte o locus suspectos: pode ser lido com o tema alemão como um lugar
unheimlich.
Grego telos: estrangeiro, de ascendência estrangeira.
Inglês
unconfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly. Quando se faz referência a uma
casa: haunted; quando se refere a uma pessoas humana: a repulsive fellow.
Francês inquiétant, sinistre, lugubre, mal à son aise.
Espanhol sospechoso, de mal aguero, lúgubre, siniestro.
Fonte: [Adaptado de Freud, 2002, p. 35].
Paralelamente, ele estuda o termo em italiano e português, mas
chega à conclusão de que ele só é usado em perífrases. Em árabe e hebreu,
eles coincidem com demoníaco, com o que produz calafrios. O mais rele-
vante deste estudo de Freud é que “el pequeño concepto heimlich presenta a
otro que coincide con su opuesto unheimlich” (2001, p. 47). O termo não
é unívoco, mas pode ser interpretado nas duas direções possíveis, aspec-
to que orienta a concepção da diferença como algo relativo e construído
socialmente. Faz referência ao familiar e ao confortável, mas, ao mesmo
tempo, ao que esconde e dissimula. O mesmo Freud manifesta, em rela-
ção aos dois termos e à posição do que apresenta conotações sociais mais
negativas, que unheimliche é conceituado como tudo aquilo que, tendo
que ser secreto e mantido à sombra, tenha vindo à tona e se tornado evi-
177
Corpo, cultura e educação
dente (2001, p. 49). É assim que unheimliche tem a ver com o mostrar
(ou se mostrar) ou o revelar (se revelar) da diferença posta em sociedade.
A sensação de Unheimliche é vivida plenamente pelo antro-
pólogo com paralisia Robert Murphy. Para este autor, trata-se de uma
sensação limite. Encontrar-se no limite da extranjería do corpo baseia-se
na ideia de que:
A largo plazo los discapacitados no están enfermos ni sanos, ni muertos
ni plenamente vivos, ni dentro de la sociedad ni tampoco del todo en
su exterior. Son seres humanos pero sus cuerpos están deformados y
funcionan de forma defectuosa, lo que hace planear una gran duda
sobre su total humanidad. No son enfermos, ya que la enfermedad es
una transmisión hacia la propia muerte o hacia la propia curación (....)
El inválido no es ni carne ni pescado; vive en un aislamiento parcial en
tanto que individuo indenido y ambiguo (Murphy, 1990, p. 157).
A diferença corporal, entendida como unheimliche, se dá como
elemento de defesa frente à estranheza, frente à chegada ou a presença
do estrangeiro a nós mesmos, o que com frequência acontece por meio
da diferença corporal do outro.
5.3.4. o eStigma CorPoral
No tema que nos ocupa, o trabalho de Erving Gomann
(1998) Estigma é de especial relevância. Tem relevância pelo tema que
trata, mas também porque este livro se tornou um ponto de referência e
peregrinação intelectual para o estudo da diferença, da deciência e da
construção da diferença em determinados contextos sociais e históricos.
Estigma, de origem latina (stigmata), provém da palavra grega stigzein,
que se usa para “referirse a signos corporales con los cuales se intentaba
exhibir algo malo o poco habitual en el status moral de quien lo presentaba
(Gomann, 1998, p. 11). Estes signos consistiam em cortes ou queima-
duras no corpo, advertindo – ao resto da comunidade - a presença de
um criminoso, um escravo ou um traidor.
A sociedade estabelece os critérios para categorizar os sujeitos
e, o que ocorre habitualmente, quando nos encontramos frente a um es-
Jordi Planella Ribera
178
tranho, é que usamos sua aparência corporal para localizá-lo em alguma
das categorias preexistentes já conhecidas por nós. Esta categorização do
sujeito faz com que deixemos de subtantivá-lo e passemos a adjetivá-lo.
O que o caracteriza não é seu atributo de sujeito (substantivo), mas sim
seu adjetivo estigmatizador (deciente, disforme, etc.). Tal como rea-
rma Gomann “un atributo de esa naturaleza es un estigma, en especial
cuando él produce en los demás, a modo de efecto, un descrédito amplio
(1998, p. 12). O estigma caracteriza-se por ter um tipo especial de rela-
ção entre o atributo real e o estereótipo com que socialmente se lida. Os
estigmas que se produzem por meio dos mecanismos de relação social
dos sujeitos podem ser agrupados nas três categorias seguintes:
Tipologias de estigma segundo Gomann
Tipologia Características
Deformidades físicas ou
abominações do corpo
As três categorias acabam tendo muitos pontos em comum. Um
indivíduo que poderia facilmente ser aceito em uma interação
social corriqueira tem um traço que acaba por se impor pela
força à nossa atenção e que nos conduz a nos distanciarmos dele
quando o encontramos. (Gomann 1998:15)
Defeitos do caráter da pessoa
Estigmas tribais da raça, nação e
religião
Fonte: [Adaptado de Gomann, 1998].
Uma das produções sociais vinculada com os sujeitos estigma-
tizados é o que se conheceu como código negro, que regia as relações com
os escravos nas colônias. Impôs-se a partir de 1685, e a prática mais
habitual era gravar ou tatuar na pele de um escravo que tinha tentado
fugir das posses de seu amo, uma or de lis na pele. A prática da estigma-
tização corporal é mais antiga. Encontramo-la já nas marcas que faziam
aos prisioneiros da guerra entre Atenas y Samos (440 a. C), nas marcas
na testa dos vagabundos prossionais na França (século XIV), e na ins-
crição das letras GAL nos corpos daqueles que eram enviados às galeras
para remar. A prática foi recuperada por Napoleão em 1810 (vinte anos
antes as práticas de marcação corporal vinculadas aos sujeitos estigmati-
zados haviam sido abolidas) com a nalidade de marcar e tornar visíveis
-aos olhos dos cidadãos- aqueles que tinham sido condenados a traba-
lhos forçados. As tentativas de tornar visíveis os sujeitos com caracterís-
179
Corpo, cultura e educação
ticas diferentes mantiveram-se até boa parte do século XX. Apenas faz-se
necessário recordar as tatuagens dos prisioneiros nos campos da morte
na Alemanha nazista, ou as propostas de alguns governos de direita de
impor na testa uma marca visível às pessoas portadoras do vírus HIV.
5.3.5. a exibição da diferença humana
Desde o século XVIII os doentes mentais e as pessoas com
deciência haviam sido objeto de isolamento em instituições fechadas e
separadas da comunidade de forma generalizada. Foucault estudou com
detalhe os processos de reclusão, separação e classicação da diferença e
chegou à conclusão que “la locura, cuya voz el Renacimiento ha liberado,
y cuya violencia domina, va a ser reducida al silencio por la época clásica,
mediante un extraño golpe de fuerza” (1991, Vol.1, p. 75)
33
. A separação
e a reclusão dos sujeitos considerados diferentes farão com que o papel
que até então ocupavam nas comunidades rurais ou urbanas que vazio.
O desaparecimento das pessoas e seus corpos “anormais” do centro das
comunidades tornou mais necessária a atividade de mostrá-los.
A alteridade é a que possibilita a construção de identidades
sociais, culturais ou corporais, já que “la alteridad es una necesidad, y
ella induce al estereotipo. Proceso dialéctico y separación del anormal que
va acompañada de una gran visibilidad como monstruo” (Bancel et al.,
2002, p. 9). O fato de exibir a diferença servia para recuperar a presença
dos seres com corporeidades diferentes da maioria dos cidadãos. Nesse
mecanismo da construção por meio da exibição da diferença, o que se
conhece como “zoológicos humanos” representa um papel fundamental.
Trata-se de práticas que se iniciaram no século XIX e que duraram até
aproximadamente 1930, e que foram herdadas das cortes medievais, em
que os bufões interpretavam o papel de exibidores de sua própria dife-
rença. Na reexão à qual Bogdan nos convida, se manifesta o apogeu
deste tipo de prática e o mecanismo social da construção do monstro,
já que eles:
33
A prática de isolar a pessoas diferentes da sociedade é designada por Castel como a primeira imposição de ordem
psiquiátrica: “aislar del mundo exterior, romper ese foco de inuencias no controladas del cual extraería la enfermedad
con qué mantener su propio desorden. Es la justicación del famoso aislamiento terapéutico” (1980, p. 96).
Jordi Planella Ribera
180
Han conocido su hora de gloria. Los espectáculos de monstruos fueron
durante un período dado una actividad lucrativa, popular en todos los
países y perfectamente aceptada: se mostraban de forma ocial y organi-
zada por personas con reputación, con características físicas o mentales
extrañas, o con comportamientos fuera de la común; tenía lugar en
los circos, la ferias, las estas al aire libre y otros lugares de diversión
(Bogdan, 1994).
Para Bancel, esse tipo de práticas “representan un giro esencial en
la construcción del imaginario sobre el Otro fundado sobre una perspectiva
racista, validado por la ciencia antropológica y que encuentra a través de
esta espectacularización una mediatización sin precedentes” (2002, p. 6). A
prática de exibir a diferença corporal, aqueles sujeitos designados como
monstros, teve um papel essencial na construção da diferença e no sur-
gimento do Unheimliche, do estranho que nos recorda constantemente
de nossa parte de imperfeição. A nalidade dessa prática tinha dois ob-
jetivos muito bem denidos:
a) fazer pedagogia da diferença, por meio da exibição dos seres com
características diferentes das da maioria. Tratava-se de mostrar aos
outros como eram e como viviam os seres considerados anormais.
Conectada a essa ideia de mostrar a monstruosidade, estava a ideia
de moralizar determinadas práticas sexuais, consequencia das quais
poderia ser o nascimento de um lho “não humano”, de um lho
monstruoso.
b) lucrar os proprietários dos espetáculos, pois o fato de a diferença ser
uma forte atração para a população converteu essa prática em um
verdadeiro fenômeno econômico, em que os ingressos vendidos para
as exibições dos “monstros” eram mais que signicativos.
A ideia foi emprestada dos zoológicos de animais impulsio-
nados pelos naturalistas do século XVIII
34
, onde se exibiam aquelas es-
pécies mais estranhas e desconhecidas da Europa ou América. Em vez
34
Originariamente, esse espaço estava à disposição dos estudiosos que quisessem analisar e investigar sobre os
animais curiosos que estavam no zoológico. Também do público, para que pudessem ser educados enquanto
observavam os diferentes animais ali fechados.
181
Corpo, cultura e educação
de mostrar animais, mostravam-se pessoas que eram diferentes. Não se
tratava somente de mostrar seres que tinham algum tipo de deformidade
ou de deciência, e uma das primeiras exibições das quais se tem conhe-
cimento é a de Joice Heth
35
.
Um dos primeiros promotores da exibição da diferença huma-
na foi o norte-americano Barnum. Não era suciente mostrar animais,
mas deviam também ser mostradas as pessoas que eram substancialmen-
te diferentes da maioria. As primeiras práticas de exibição de pessoas
diferentes começaram depois do descobrimento da América em 1492.
Este fenômeno ocorreu, sobretudo, na Europa:
Después de Vespuccio o Cortés, o con los indios Tupi presentados al
rey de Francia en 1550, se conoció de forma puntual este fenómeno.
En el siglo XIX, Londres es la capital de estas exhibiciones exóticas, de
la Vénus hottonte (1810) a los Indios (1817), de los Lapones (1822)
a los Esquimales (1824), de los Guyaneses (1839) a los Bushmen
(1847), de los Cafres (1853) a la ola vague des Zoulous y de Ashan-
tis ... pero el fenómeno es todavía parcial y no constituye todavía
un género propio. Era entonces una forma lúdica de la fuerza, de la
extranjería, de lo curioso o de la crueldad que era puesta en escena.
(Bancel et al., 2002, p. 8).
Esse fenômeno se tornará uma prática minoritária no contexto
do velho continente. O que será realmente inovador será expor – de
forma teatral e cientíca, em espaços pensados especialmente para isso,
de forma xa ou itinerante – pessoas que sejam “diferentes” e “inquie-
tantes”. Essa mudança tomará como elementos privilegiados durante a
primeira parte do século XIX:
as deformações físicas
os desvios corporais ou mentais
as características morfológicas inabituais ou exóticas
as marcas dos suplícios,
35
Trata-se de uma mulher afroamericana exibida por Barnum por todo o noroeste americano. Era apresentada
como uma pessoa de 161 anos de idade, que havia sido a parteira de George Washington.
Jordi Planella Ribera
182
E darão à diferença não mais um sentido de curiosidade, mas
a partir desse momento a diferença será “monstruada”, será vista em
um plano negativo. Essas pessoas haviam sido encerradas em diferentes
instituições, tal como mostra detalhadamente Foucault na Histoire de la
Follie. A diferença era mantida entre os muros dos asilos nos arredores
das cidades. O que inquietava era separado do resto da sociedade para
que pudesse passar como efeito dessa diferença.
Mas a efervescência máxima desse fenômeno não ocorrerá na Eu-
ropa. Será nos EUA, sobretudo com a intervenção de Barnum e a criação
do que se conhece como freaks (monstros), e que consiste na representação,
de forma sistematizada e prossionalizada, das corporeidades diferentes. As-
sim, em 1884, Barnum cria o Gran Congreso de las Naciones, uma espécie
de agrupação de “nações da diferença”. Sua primeira aquisição foi a mulher
afroamericana Joice Heth, que começou a exibir pelas tabernas, albergues,
museus, estações e salas de concertos durante sete meses, até que Joice mor-
reu. Algumas das publicidades que faziam da exibição de Joice diziam “en
efecto se trata de un esqueleto cubierto de piel, y su apariencia general se parece
mucho a una momia de los tiempos faraónicos
36
. Consciente de sua contri-
buição a este fenômeno, Barnum escreveu algumas de suas experiências nas
obras My Diary or Route Book. Greatest Show on Earth (1883), e Life of
PT Barnum. Written by himself (1855) y en Struggles and Triumphs (1972).
Essa prática, agora já com o formato que Barnum lhe deu, terá uma duração
aproximada de um século: 1840-1940. A crise econômica dos anos trinta, a
medicalização da deciência e das malformações e as mudanças de gosto da
população farão com que desapareça.
5.3.6. a monStruoSidade na Pedagogia
O estudo da produção dos “monstros” a partir da pedagogia foi
o tema central do livro coordenado por Da Silva (2000), Pedagogia dos
Monstros. Os prazeres da confusão de fronteiras, em que se analisa, a partir de
diferentes perspectivas, qual é a forma de produção de fronteiras rígidas,
e como, mais além destas, se “monstrua” aos sujeitos que as habitam. A
introdução do livro nos diz o seguinte sobre a reinvenção do sujeito:
36
Citado por Benjamin Reiss (2002, p. 25).
183
Corpo, cultura e educação
Señoras y señores, lamentamos informar que el sujeto de la educación ya
no es más el mismo (...) El sujeto racional, crítico, consciente, emanci-
pado u liberado de la teoría educativa crítica entró en profunda crisis
(Da Silva, 2002, p. 3).
A existência de monstros, cyborgs e outros elementos complica
o privilégio que tradicionamente têm sustentado os “sujetos”. Para Da
Silva, a presença do monstro não demonstra que ele exista, mas sim que
quem não existe é o sujeito. A pedagogia dos monstros não está dirigida
à formação de monstros nem a usar aos monstros com uma nalidade
formativa. Tal como propõe o autor,
la pedagogía de los monstruos recorre a los monstruos para mostrar que
el proceso de formación de la subjetividad es mucho más complicado de
lo que nos hacen creer los presupuestos sobre el sujeto que constituyen en
núcleo de las teorías pedagógicas (2000, p. 5).
Anteriomente, a publicação de Philippe Meirieu Frankenstein
educador nos conduzia a este território de fronteiras e de produção social
da diferença. Meirieu põe a obra de Mary Shelley, Frankenstein, lado a
lado com o modelo pedagógico que fundamenta sua práxis na constru-
ção mecanicista do outro. Para Meirieu, “fabricar un hombre es una cosa
que nos inquieta lo suciente para que la novela de Mary Shelley tenga el
éxito que tiene” (1998, p. 18). A inquietude, entre muitas outras expli-
cações possíveis, tem suas raízes na exposição freudiana do Umheimli-
che. As bases da monstruosidade na pedagogia podem ter a chave em
perguntas como as que o próprio Merieu se faz: “¿permito al Otro que
sea, frente a mi, incluso contra mí, un jeto?” (2001, p. 10). Muitas vezes o
monstro, em pedagogia, é fruto da não aceitação do outro, e no caso que
nos ocupa, da negociação da corporeidade de outro e inclusive de todo
o processo de hiper-corporalização do outro.
A criação do monstro a partir do território da fronteira é, por
sua vez, clara e confusa. Clara porque mantém a diferença na outra mar-
gem da fronteira, mas também confusa porque a ida e volta do corpo
monstruado” a um e outro lado da fronteira pode chegar a ser constan-
te. Nesse sentido, Pellarolo propõe a fronteira “como cruce, como encuen-
Jordi Planella Ribera
184
tro y desencuentro, la frontera como territorio desterritorializado, como fusi-
ón y síntesis, como transculturalización y rechazo (...) La frontera como pura
posibilidad, pero también la discriminación, la marginación, la tortura y
muchas veces la muerte” (2000, p. 30). A ideia do monstro nos remete
denitivamente à confusão de fronteiras, margens e possibilidades reais.
Tal como arma Soares
lo aterrador del monstruo no es que se sitúa fuera de lo humano, sino
que se encuentra en su límite, para lo cual no creamos simplemente
una oposición, sino que lo signicativo es mantener la distancia (...)
Estos expertos ejemplican como nuestra cultura cría y exorciza a los
monstruos que amenazan las estabilidades de las identidades sociales y
culturales (2000, p. 156).
É justamente o exercício contrário à criação dos monstros que
deveria ser chamado de pedagogia. A pedagogia tem a oportunidade
de ir mais além do artifício dos corpos, da produção de monstros nas
pessoas diferentes.
CaPítulo 6
Higienização e controle
pedagógico dos corpos educandos
187
H  
   
Assim como ocorre com muitas outras instituções e agências contempo-
râneas, as práticas de saúde pública e os discursos de promoção da saúde
privilegiam um certo tipo de sujeito, um sujeito que é autorregulado,
consciente de sua saúde, de classe-media, racional, civilizado. Privile-
giam também um corpo que é contido/coibido, que está sob o controle
da vontade. As estratégias governamentais de saúde pública e de promo-
ção da saúde, patrocinadas pelo Estado e por outras agências, têm como
nalidade a promoção desses sujeitos e desses corpos.
[Lupton, 2000, p. 27]
El ejercicio es la técnica por la cual se imponen a los cuerpos tareas a la
vez repetitivas y diferentes, poro siempre graduadas (...) El cuerpo sin-
gular se convierte en un elemento que se puede colocar, mover, articular
sobre otros.
[Foucault, 1976a, p. 37]
La discipline est non seulement une nécessité, mais l’un des buts mêmes
de toute éducation. Le maître n’a pas à s’excuser d’être autoritaire. Il
l’est pour le bien de l’enfant. Il l’est parce que dans la société il faut
que les gestes de chacun puissent, lorsque c’est nécessaire, se soumettre à
la volonté du groupe, de même que dans le corps chaque segment doit
se prêter au mouvement de l’ensemble. Sans discipline tout travail est
desordonné, toute action sociale est anarchique.
[Loisel, 1955, p. 126]
Jordi Planella Ribera
188
introdução
Neste capítulo, me concentrarei em analisar e interpretar os
modelos corporais que aparecem nos discursos pedagógicos com o ob-
jetivo principal de controlar e higienizar os corpos dos educandos. Das
muitas possibilidades existentes, me concentrei nestas duas práticas de
governo e docilização corporal, apesar de existirem outras que buscam
silenciar (muitas vezes denominado educar) aos corpos dos sujeitos pe-
dagógicos. Nessa hermenêutica do controle corporal, tomam partido de
forma destacada as políticas educativo-corporais dos estados totalitários.
Nesse sentido, aponto algumas das características das pedagogias na Ale-
manha nacional-socialista, na França ocupada e na Espanha franquista.
Podemos armar que se trata de modelos pedagógicos que pre-
tendem formar corpos ortodoxos de acordo com uma ideia ampla de
sociedade e do Estado
1
. O corpo, nos estados totalitários, não foi cha-
mado a ser livre e autônomo, mas sim a ser mais uma peça da grande en-
grenagem política. A ideia de massa ilustra com clareza esta armação, a
qual me leva a entender o corpo como corpo-massa, corpo-global, e não
como corpo-indivíduo. Esses discursos são narrativas que foram forjadas
com um conjunto de ideias prévias, desenvolvidas em grande medida
ao longo do século XIX e reforçadas pelas teorias da higiene racial. A
concepção dos corpos higienizados, por exemplo, servirá de suporte à
empresa do III Reich para normatizar tudo o que se refere aos corpos e
para recuperar os sujeitos que se afastam desses ideais normativos.
6.1. a ConStituição de uma Pedagogia doS CorPoS higiêniCoS
Parto da ideia de que o século XX propõe uma hermenêutica
dos corpos muito variada e que rompe com as concepções anteriores.
A primeira interpretação que estudo entende o corpo como elemento
biológico, e a intervenção pedagógica sobre os corpos com a nalidade
última de transformá-los em corpos mais saudáveis. A fórmula que pos-
A ideia de corpos ortodoxos e corpos heterodoxos é chave para entender esta tipologia de práticas
pedagógico-corporais. Assim, assistiremos à presença de ambos modelos corporais, ainda que o segundo será
reticado, castigado, reeducado ou eliminado quando é concebido como um perigo para poder manter a
ordem sicial e moral dos estados.
189
Corpo, cultura e educação
sibilitará esta mudança na percepção dos corpos será a combinação do
olhar médico e do olhar pedagógico. Dessa maneira, ca evidente que,
sem uma base corporal “saudável”, a implementação de uma pedagogia
que potencialize as aprendizagens intelectuais será estéril. É necessário
incidir sobre os corpos dos educandos (e de suas famílias) para que as
políticas educativas tenham os resultados pedagógicos previstos. O nal
do século XIX e o início do século XX propiciaram esta combinação de
políticas educativas e sanitárias, com o objetivo de higienizar os corpos
dos futuros cidadãos. A combinação de políticas educativas e sanitárias
se converterá, ao mesmo tempo, em um importante sistema de controle
social por meio – sobretudo – do exercício do controle corporal dos
corpos dos cidadãos.
6.1.1. a fundamentação CientífiCa de uma eduCação de
raiz biológiCa
No século XIX, a pedagogia dará uma volta signicativa, que
a colocará mais além dos discursos losócos existentes até o momento.
Compartilho com Vilanou que, no século passado, “la pedagogía —
ciencia losóca por excelencia desde su constitución cientíca y uni-
versitaria a comienzos del siglo XIX— conseguía un nuevo estatuto: el
de la biología” (1995, pp. 181-182)
2
. Torna-se notório que esse novo
olhar biológico sobre a educação e a construção de um determinado mo-
delo corporal marcou a percepção e o imaginário social sobre os corpos.
A biologia oferece à pedagogia novas concepções teóricas, especialmente
as que estejam relacionadas com o lugar que o corpo do educando deve
ocupar na relação educativa. O objetivo deixa de ser o estudo biológico
dos sujeitos da educação
3
. Tratava-se de promover a saúde e a higiene
dos corpos dos educandos, que por sua vez se materializava em sua pró-
pria docilidade. Um exemplo do que expus se encontra na pedagogia
2
Em outro trabalho mais recente, este autor armará que “A consecuencia de la teoría de la evolución
(Darwin, Spencer), la pedagogía se hizo patrimonio de siólogos y médicos” (Vilanou, 2003, p. 228).
A pedagogia do silêncio corporal se fundamenta na observação dos corpos dos meninos e das meninas e
na classicação depois de serem devidamente medidos. É necessário dar-lhes uma ordem a seguir, e corrigir
os corpos infantis que se separam dele. A nalidade consistirá em que os corpos dos educandos se tornem
aptos, produtivos e ajustados aos modelos sociais imperantes. (Lopes, 2000).
Jordi Planella Ribera
190
proposta por Paluzíe, em que especica claramente o que se espera das
crianças quando comem à mesa:
Lavarse las manos cuando los demás lo hayan vericado. Ser el último
en sentarse, o tomar el lugar que le señalen. No ser el primero o el último
en desdoblar la servilleta. No tomar de ningún plato antes que sus supe-
riores. Antes y después de beber limpiarse los labios con la servilleta. No
olfatear ni hacer excesos de gusto o desagrado. Tomar con los dedos vian-
das grasientas, escupir al plato hueso u otra cosa, estornudar o sonarse
en la mesa. También lo es de tomar cualquier cosa con los dedos, ya que
para esto sirven los tenedores y cuchillos (Paluzíe, 1914, pp. 23-27).
É com essa nalidade que o último terço do século XIX foi
um frutífero período de publicações em torno da criança, seus cuida-
dos, e da atenção médica, biológica e siológica. O modelo pedagógico
racionalista, que considerava as mentes dos educandos como acorporais
e assexuais, dará lugar a um modelo que incorpora – ainda que não de
forma denitiva – o corpo da criança em seus discursos e práxis
4
. Esse
passo cria as condições necessárias para incorporar, de forma signica-
tiva, os corpos nos discursos pedagógicos; este movimento acompanha
uma mudança de paradigma no campo da educação. A pedagogia se
estruturará com base em uma fundamentação cientíca que será possível
graças à incorporação dos discursos médico e biológico.
As ideias evolucionistas de Darwin inuem diretamente nesta
fundamentação cientíca da educação. A ruptura com o imobilismo e
a circulação de uma perspectiva evolucionista da realidade deslocará as
ideias aristotélicas que seguiam regendo os fundamentos teóricos da prá-
xis educativa. No ano de 1844, em uma carta que escreve ao seu amigo
Hooker, Darwin lhe adiantará o seguinte em relação à teoria evolucio-
nista: “a medida que la luz va viniendo, estoy casi convencido (todo lo
contrario de la opinión de cuando comencé), de que las especies no son
inmutables” (Montero, 1984, p. 85) e que, portanto, abre a possibili-
dade de pensar em uma pedagogia na qual a variação e a transformação
corporal sejam também possíveis. Estamos falando, pois, de um período
Este modelo pedagógico racionalista se encontrava regido por uma pedagogia cartesiana, que reduzia o
homem a pensamento. A partir deste fundamento, se estrutura tudo o que sucede na relação pedagógica e
na ressituação do corpo no território silenciado.
191
Corpo, cultura e educação
no qual a biologia se liga à política e também à educação
5
. A publicação
da Scientic Education, de omas H. Huxley, em 1869, retoma o re-
direcionamento da pedagogia em direção ao caminho que, ao nal do
século XVIII, Kant havia iniciado em Versuch einer Pädagogik
6
.
A contribuição kantiana a este giro paradigmático da educação
reúne, nas palavras de Ortega y Gasset, os segredos decisivos da época
moderna, que servirão para dar um giro àquelas ideias que até o momen-
to existiam (Ortega y Gasset, 1972, p. 65). Kant diferenciará a educação
física da educação moral, dizendo que a educação física é aquela que “el
hombre tiene en común con los animales, o sea los cuidados” (1983,
p. 45). Seguindo essa linha de pensamento pedagógico, será necessário
observar na criança o movimento involuntário e os órgãos dos sentidos,
para possibilitar uma boa educação física. Esta perspectiva kantiana se
desenvolverá contrária à pedagogia de Rousseau, que aconselha educar
segundo os princípios de liberdade natural. Kant reclama o protago-
nismo de uma disciplina crítico-epistemológica que deve atuar como
propedêutica do erro (Vilanou, 1998). A pedagogia kantiana é possível
graças à incorporação da ideia de disciplina nas práxis pedagógicas. Sem
disciplina, o homem não poderá chegar a ser o que está chamado a ser:
anula a animalidade e desenvolve sua humanidade
7
.
Quando Kant se refere à educação física, não exclui a educação
da alma:
A la cultura del alma también se la puede llamar física (...) La natura-
leza del cuerpo y la del alma están de acuerdo en que se ha de impedir
perturbar su recíproca educación (...) Por consiguiente puede llamarse
física la educación del alma como a la del cuerpo (Kant, 1984, p. 61).
As contribuições kantianas encaminhadas a esse cienticismo
pedagógico serão reunidas por seu discípulo Herbart, ainda que afas-
É necessário recordar que, poucos anos antes de Darwin, Gobinau havia publicado seu Essai sur l’inégalité des
races humaines, o que servirá, juntamente com o pensamento de Darwin e outros autores, para fundamentar
as ideias que denirão a corrente positivista.
É conhecido que o livro de Kant foi publicado em 1803 a partir dos apontamentos que seu aluno, Friedrich
eodor Rink, havia tomado durante os cursos sobre Pedagogia que o lósofo de Könisberg proferiu na
Universidad de Halle em 1779.
 Esta concepção foi estudada com detalhe por García Amilburu (1997).
Jordi Planella Ribera
192
tadas da mudança que a pedagogia terá no nal do século XIX
8
. Esta
inuência de Kant em Herbart-qualicada por Vilanou como a segunda
herança kantiana e designada como paradigma herbatiano da educação
(1998) – o levará a entender a pedagogia como uma teoria da educação
para a instrução que atende a moralização dos educandos
9
. Ambos os
autores apontam três etapas diferenciadas do processo educativo/instru-
tivo, e que concretizo no seguinte esquema:
Pedagogia kantiana vs pedagogia herbatiana
Kant Herbart
Cuidados Prévios Governo das crianças
Disciplina Regulação por parte da criança
Instrução Instrução
A inscrição do sujeito na cultura passa necessariamente por
começar a apagar o que a criança tenha de animalidade ao nascer. A
primeira articulação que o sujeito traz à vida, e que o conecta com sua
condição animal, é justamente o corpo. Este deverá ser transformado
por meio da instituição, com a nalidade de que o sujeito aprenda a
controlar as formas e os usos corporais
10
. Dentro do controle da cor-
poreidade, Herbart incluirá o que denomina disposições naturais, o que
supõem, entre outros aspectos, que as naturezas doentias se sentem de-
pendentes. É por esse motivo que Herbart insiste que, na formação do
caráter, o cuidado do corpo e da sua saúde tem um papel fundamental.
Em relação aos aspectos relevantes da pedagogia herbatiana ligada à educação, devemos ter presente sua
concepção da educação a partir do que denominou “cuidados prévios”: ao nascer, a crianças necessita do
apoio de outro para poder sobreviver.
Herbart situa como ponto central de sua pedagogia o caráter moral considerado segundo suas condições
psicológicas; é por isso que funda a pedagogia na ética e a denomina losoa prática. Tal como Kant, para
Herbat a disciplina tem um papel relevante na educação da infância. Nas palavras de Wickert “la disciplina
es el efecto inmediato sobre el espíritu de la infancia con el propósito de educarla. Su n es la fuerza de
carácter de la moralidad” (1930, p. 164).
10
Kant o arma da seguinte forma: “únicamente por la educación el hombre puede llegar a ser hombre.
No es, sino lo que la educación le hace ser. Se ha de observar que el hombre no es educado más que por
hombres, que igualmente están educados (...) El que no es ilustrado es necio, quien no es disciplinado es
salvaje. La falta de disciplina es un mal mayor que la falta de cultura. Es probable que la educación vaya
mejorándose constantemente, y que cada generación dé un paso hacia la perfección de la humanidad; pues
tras la educación está el gran secreto de la perfección de la naturaleza humana” (1983, p. 31-32).
193
Corpo, cultura e educação
Este conjunto de contribuições ajudará a pedagogia a deixar para
trás a especulação losóca (muito preocupada em formular interrogan-
tes) e a centrar-se nos fundamentos cientícos que possibilitam encontrar
respostas a muitas das perguntas inicialmente colocadas. Agora, a edu-
cação se encontra nas mãos dos médicos e biólogos, e este domínio do
campo educativo por parte do corpo biomédico dura praticamente um
século
11
. São muitos os exemplos de médicos que, durante esse longo pe-
ríodo que citamos, se dedicam a reetir sobre a educação da criança a
partir desta perspectiva siológica. Tanto Maria Montessori como Januz
Korczak (ambos já no século XX) produziram um corpus de saberes mé-
dico-pedagógicos que sustenta boa parte desta nova perspectiva.
Maria Montessori, depois de atuar como ajudante na clínica
psiquiátrica da Facultad de Medicina de la Universidad de Roma, se
dedicou ao estudo do que então se designava como infância anormal.
O trabalho que realiza com Clodomiro Bongli e Sante de Sanctis,
com crianças com deciência, lhe fornece um conjunto de conheci-
mentos chaves para seu pensamento. Seus trabalhos foram fortemente
inuenciados pela obra de Cesare Lambroso, e lhe permitiram cons-
truir um modelo pedagógico no qual a antropologia física se encon-
trava plenamente presente
12
. Por sua vez, Korczak é um dos autores
mais relevantes em relação ao olhar médico-pedagógico à criança. Li-
cenciado em medicina, a partir de uma estadia em Zurich, entra em
11
É de costume notar, em relação ao destacamento da pedagogia no paradigma bioméico, que esta durará
até o ano de 1958, quando a UNESCO toma a decisão de mudar a expressão Pedagogía Terapéutica pela
de Educación Especial. Este giro implicará extrair das prácticas pedagógicas sua fundamentação médica e
biológica, já que agora o objetivo não será curar (que é o estatuto que epistemologicamente lhe confere sua
condição de terapêutica), senão educar para aumentar sua autonomia e sua qualidade de vida. Devemos
recordar que em boa parte das Faculdades de Pedagogia do Estado espanhol, seguiu-se oferecendo a
especialidade de Pedagogía Terapéutica, que durou até a reforma dos planos de estudos em 1995. Nestes
momentos econtramos, ainda, países que seguem oferecendo especialidades pedagógicas baseadas nesta
perspectiva, tal como se desprende das titulações de Ortopedagogía (Bélgica) e de Defectologia (Rúsia e
Bósnia-Herzegovina). Igualmente, é relevante a terminologia usada durante os anos 60 e 70 e que designava
uma das especialidades da pedagogia como Pedagogia Corretiva. Este é o título do livro de Bonboir, Pedagogía
correctiva, em que propõe que “la deciencia pedagógica a la que se referirán los esfuerzos de la pedagogía
correctiva, se caracteriza por una diferencia negativa que separa el producto o la conducta resultante del
aprendizaje del producto o de la conducta admitidos como normas” (1971, p. 16). A partir desta perspectiva,
também se construíam os corpos designados como normais e os corpos constituidos como anormais, sobre os
quais a pedagogia corretiva deveria intervir.
12
Em 1909, publicou Il metodo della pedagogia scientica applicato all’auto-educazione infantile nelle
Case dei Bambini. Com essa obra se constata a sistematização do pensamento educativo por meio de sua
cienticidade. Sobre essa perspectiva de Montessori, pode-se consultar o livro de Cervellati (1968).
Jordi Planella Ribera
194
contato com a pedagogia de Pestalozzi e aplica suas ideias no orfanato
que dirigia em Varsóvia. Este giro da medicina em direção à pedago-
gia, ou, dito de outra forma, das contribuições médicas ao campo da
pedagogia, nem sempre foi visto com bons olhos por parte de seus
contemporâneos polacos
13
.
Anteriormente às contribuições dos médicos-pedagogos do sé-
culo XX, na Alemanha, Ziller y Stoy, seguidores ambos dos trabalhos
iniciados por Herbart (1776-1841), fundaram em 1868 uma associa-
ção para a promoção da pedagogia cientíca: Verein für Wissenschaftli-
che Pädagogik. Esta associação, juntamente com os trabalhos de Alexan-
der Bain (Education as a Science 1878), de Herbert Spencer (Education
1861) e de Alexandre Daguet (Traité de pédagogie 1865), permitem que
a pedagogia se constitua como uma ciência “possível” da educação
14
.
Em 1883, em um curso sobre pedagogia na Universidad de la Sorbona,
Henri Marion dirá que a arte da educação pode estabelecer-se segundo
um sistema de regras cientícas deduzidas das leis da psicologia, da me-
dicina e da biologia.
Essas ideias, que darão forma ao que cou conhecido como o
movimento pedagógico experimental do entreguerras, ganham sentido
e se desenvolvem porque na Europa do início do século a marca deixada
pelo positivismo losóco e pedagógico era considerável. Esse movi-
mento, representado por Comte, Spencer, Stuart Mill e Ardigó, havia
apostado claramente na dimensão natural e social da educação e na im-
portância do método cientíco, bem como na necessidade de conhecer e
valorizar os condicionamentos ambientais. E havia tornado suas as teses
evolucionistas, agora incorporadas à explicação dos fenômenos sociais e
educativos (DDAA, 1987, p. 12).
Além dos autores aos quais me referi, devem-se destacar as con-
tribuições feitas pelo pedagogo Alexander Bain. Para ele, a siologia é a
base da educação, e devemos partir da observação biológica da criança
para poder edicar, posteriormente, a arquitetônica da práxis educativa.
13
Tal como arma Marco “corría la voz de que Korczak traicionaba a la medicina en favor del orfanato
creyendo unos que así reducía su función social al campo de la educación. Muchos se sorprendieron del
abandono ocial de su brillante carrera como médico” (1991, p. 122).
14
Bain ja havia publicado Mind and Body (1872).
195
Corpo, cultura e educação
As funções corporais passam a ser as condições autênticas para que exista
a possibilidade de educação (Bain, 1915).
A educação segundoBain (1915)
psicológicas
Condição
siológica do
educando
Considerações
didáticas
Não se pode desenvolver um processo educativo satisfatório
se o corpo não apresenta as condições mínimas necessárias. As funções
corporais passam a ser as verdadeiras possibilitadoras de toda educação.
Poucos anos mais tarde, Jean Demoor e Tobie Jonckheere publicam La
Science de l’éducation (1920), em que armam a ideia já proposta no
século XIX, que a pedagogia deve deixar de mover-se no terreno da es-
peculação e deve seguir o modelo epistemológico da biologia. Com essa
nalidade, sua obra trata de temas como a vida celular, a fecundação e a
herança, a variação biológica, a evolução, o sistema nervoso, o cansaço
escolar, etc... O sistema nervoso será um dos elementos estruturantes
da ciência da educação, que já havia sido exposto em um livro anterior
publicado por Demoor sob o título Bases physio-psychologiques de l’édu-
cation (1905), em que trata dessa perspectiva siológica da educação.
Também Ruiz Amado, em um trabalho intitulado “Ciencias auxiliares
de la educación física” (1912), propõe que “el cuerpo sano es, hasta cierto
punto, el requisito previo de la mente sana; y por eso la educación física
es la primera que se practica en el niño”. Para Ruiz Amado, são muitas
as ciências auxiliares da pedagogia que têm incidência direta sobre os
corpos dos educandos. Assim, a anatomia, a siologia, a puericultura,
a educação física, a mecânica do movimento, a higiene, a dietética pe-
dagógica, etc. tornarão mais fácil esta tarefa de educar corporalmente
os alunos. O educador não só necessita conhecer o funcionamento do
Jordi Planella Ribera
196
organismo do aluno, mas também deve extrair desta ciência e de outras
auxiliares, o conhecimento das condições exigidas para conservar a saú-
de física do escolar. É por isso, seguindo Ruiz Amado, que:
Se cuenta entre las ciencias auxiliares de la Pedagogía la Higiene (...)
La higiene (cuyo nombre viene de hygieia, la salud, o hygieinos, salu-
dable) es la ciencia que estudia los factores que contribuyen a la salud
corporal de los individuos y las colectividades y tiene por objeto obtener
las condiciones saludables y alejar aquellas que pudieran perjudicar a la
salubridad (Ruíz Amado 1912).
6.1.2. higiene e Pedagogia
Por tudo o que acabo de expor, parece evidente que a higiene
terá um papel chave na pedagogia da primeira metade do século XX.
Será com os avanços das ciências biomédicas e com a aplicação destas
aos problemas de ordem social, que a medicina intervirá na ordenação
da sociedade, que busca, entre outros objetivos, a homogeneização de
grandes grupos humanos para obter corpos saudáveis, higiênicos e obe-
dientes. O movimento higienista nasce, em atenção a:
La salud —tanto física como psicosocial— de los niños constituía una
urgencia ineludible que debía ser atendida inmediata y perentoriamen-
te. Las enfermedades y las chacras sociales menudeaban por todas partes,
por la que se impuso la mejora de las condiciones de vida de los niños
que –de acuerdo con las concepciones del momento- dependían tanto
de la herencia biológica como del medio en el cual vivían (Vilanou,
1995, p. 181).
Pedagogia e medicina, então, iniciam uma sinergia que as leva-
rá a reformar as práticas educativas, que deviam ir muito mais além do
cenário da escola, para adentrar-se em territórios como a vida cotidiana
das famílias. Esta relação deve levar a conceber o educador como “el
medio de elevar la salud del alumno”, arma Seurin (1975).
Com a conuência de um conjunto de práticas e disciplinas
como a prevenção sanitária, a pediatria, a puericultura, os hospitais in-
fantis, as maternidades, as casas de higiene infantil, etc. se iniciará a tra-
197
Corpo, cultura e educação
tar a situação médico-social das famílias e dos lhos
15
. O objetivo que
se perseguia era duplo: primeiro, erradicar e/ou diminuir os altos níveis
existentes de mortalidade infantil e, segundo, controlar as práticas cor-
porais que ocorriam no seio das famílias
16
. A família, no século XIX, era
o foco das diferentes faces da lantropia: o paternalismo nas empresas, a
economia moralizante ou a higienização na medicina. Práticas que con-
vergem, no século XX, no denominado setor social. Deste setor, a família
será o epicentro. Por um lado, é o foco das empresas higienizadoras, que
desestabilizam a autoridade patriarcal para poder injetar as normas que as-
seguram a conservação, qualidade e disponibilidade social dos indivíduos.
Por outro lado, é um ponto de apoio à moralização das relações por meio
da economia, da educação e da sexualização (Donzelot, 1990). Já não se
tratava unicamente de aumentar a saúde física das crianças e de suas famí-
lias; o objetivo passava também por tentar “moralizar” seus corpos. Esta
foi a abordagem da Sociedad Española de Higiene, defendida no dia de sua
inauguração no discurso que proferiu S.M. Alfonso XII:
Se trata de mejorar la sociedad, procurando en lo posible acrecentar la
superioridad de nuestra raza con la que podríamos contar con soldados
y trabajadores más útiles e inteligentes consiguiendo con ello contribuir
al desarrollo y engrandecimiento de nuestra industria y agricultura (ci-
tado por Saiz, 1981).
Uma moralização que ajudava a discernir aquelas práticas cor-
porais corretas daquelas que não podiam ser levadas a cabo
17
. O corpo
15
Sobre o tema da intervenção médico-social nas famílias, se podem consultar os trabalhos de Donzelot
(1990), Cohen (1988) e Rogeu (1985). A medicina social nasce porque se crê, no início do século XIX, que
a miséria está associada à doença. Rogeu cita o trabalho de Behring (1893) como justicativa da construção
desta medicina que luta contra os problemas sociais.
16
Referente à intervenção sobre os corpos que apresentam um estado de desordem social, é signicativa a
reexão que faz Carballeda ao propor que “lo que motiva las intervenciones es ese desorden de los cuerpos;
cuerpos abandonados, mutilados, muertos, que están a la vista de la ciudad. No son cuerpos que tienen el
heroïsmo de la batalla, muchos de ellos provienen de la vergüenza del patíbulo o de la indigencia. No se
trata de lo que queda luego de un campo de guerra o tal vez sí; cuerpos producto de una nueva forma de la
guerra que se entromete en la ligrana de la paz; cuerpos que hoy llamaríamos de exclusión y en denitiva
se trata de no verlos y ocultarlos” (2000). Também tem papel importante o movimento de defesa e proteção
da infância, que, ao longo do século XX, terá seu máximo esplendor na redução dos casos de maltrat que
conduz as crianças à sua morte.
17
Entre outras se fazia referência a situações de massicação nos domicílios e de como isso podia afetar a
saúde, mas especialmente a moral das crianças. A promiscuidade e os abusos sexuais por parte dos adultos
eram outro dos objetivos a erradicar.
Jordi Planella Ribera
198
das crianças de famílias pobres é uma das preocupações da pedagogia
cientíca, porque a inuência das crianças em seu desenvolvimento fí-
sico se torna evidente. Esta tentativa de proteger as crianças surge já
no século XIX “tras considerar la elevada mortalidad infantil existente,
que afectaba principalmente a la población sobre la que gravitaban los
factores sociales más negativos” (García Caballero, 1995, p. 3). Tanto a
pedagogia médica como a pediatria social tem por objetivo a incidência
nas crianças, vistas já como sujeitos integrais, e que é necessário educar
de forma conjunta sua dimensão moral e corporal
18
. A medicina social
passa a ser denida por Guerin, em 1848, como o conjunto de relações
entre a medicina e a sociedade. Desta medicina social surge uma nova
especialidade médica, denominada Pediatria Social.
Um exemplo das práticas de higienização é a luta contra o ra-
quitismo, que foi uma das doenças objeto de estudo e intervenção da
ciência médico-pedagógica. Para Stöltzner, “el raquitismo es una enfer-
medad extraordinariamente extendida. Se presenta con mayor frecuen-
cia en los pueblos cultos de raza blanca y, sobre todo, al norte de la zona
templada; en los barrios pobres de las grandes ciudades, esta enfermedad
llega a afectar hasta el 90% de todos los niños” (Stöltzner, 1909, p. 660).
Com o olhar biologista da pedagogia, uma nova realidade se
apresenta, trazendo contribuições signicativas para o campo da educa-
ção. A tarefa dos médicos-pedagogos que trabalham no campo da edu-
cação possibilita um conjunto de contribuições, e permitem diminuir a
mortalidade infantil, melhorar a saúde e a força física e possibilitar um
melhor rendimento escolar e intelectual (Vilanou, 1995, p. 185). Po-
rém, apesar da intervenção deste coletivo, são os professores e educado-
res que conduzem os objetivos dos médicos na vida cotidiana da escola
para conseguir um bom estado de saúde e higienização da população
infantil. A entrada de médicos-pedagogos retoma algumas das práticas
que descrevi em relação aos estudos antropométricos. Para Olóriz, “si el
estudio paidológico de un grupo escolar, indispensable para una acer-
tada selección, ha de ser completo, deberá someterse cada niño a triple
18
Para Masse, a Pediatría Social “estudia al niño sano y enfermo en relaciónn al grupo humano del cual
forma parte y con el medio en el cual se desarrolla”, Mande, Masse y Manicaux (1978, p. 3 e 6).
199
Corpo, cultura e educação
examen, pedagógico, psicológico y físico” (1911). Entre os prossionais
que deverão examinar a criança, o médico fornecerá os dados relaciona-
dos ao corpo da criança, dados de caráter anatômico que constituem a
verdadeira base somática do expediente escolar.
Um bom exemplo da higienização da pedagogia encontramos
no livro de Francisca Gay y Luis Cousin, Comment j’élève mon enfant,
consequência direta desta necessidade manifesta
19
. A ciência da pueri-
cultura, fortemente impulsionada já no nal do século XIX, terá, no pe-
ríodo que estudamos, uma grande acolhida
20
. A higiene e o movimento
higienista não carão à margem dos discursos médicos e pedagógicos
consolidados em diferentes países europeus. Para esses dois autores, a
higiene infantil consiste no correto desenvolvimento das seis ações se-
guintes: asseio, arejamento, exercícios físicos, cuidado dos acidentes e
sintomas de doenças, sono e vestimenta. Sua proposta deve servir, tal
como dizem detalhadamente, para preservar “contra las causas de esta-
dos mórbidos en general, especialmente contra las enfermedades de las
vías respiratorias que tanto llenan las pequeñas tumbas” (Gay y Cousin,
1929, p. 97)
21
.
Na apresentação de um livro publicado em 1934 no Estado
espanhol, Ascarza diz que “la salud es el amor bien que en este mundo
podemos disfrutar (...) En esta vida la salud es lo primero, lo más impor-
tante, lo que más nos interesa conservar” (Ascarza, 1934, p. 7). O autor
tenta transmitir aos leitores (fundamentalmente estudantes de ensino
primário) a importância de conhecer e cuidar de seu corpo. Apesar de fa-
zê-lo a partir de uma perspectiva excessivamente mecanicista, ele expõe,
19
Traduzido em língua castelhana em 1929.
20
Depois de 1860, começa se ter presente a higiene dos edifícios escolares: aquecimento, iluminação,
ventilação, preocupação contra as doenças infecciosas, etc.
21
Trata-se de um livro que terá um alto nível de divulgação na França e Espanha. No prólogo do livro
podemos ler “Abundan ciertamente en la literatura de divulgación médico-pedagógica las pequeñas obras
y libritos destinados a poner al alcance del público profano los principales conocimientos sobre cuestiones
de tanta trascendencia como puericultura, higiene, educación de los niños, etc., pero ya no es tan fácil
descubrir entre las mismas el manual o compendio cuyo contenido abarque todas aquellas cuestiones (...)
No se crea con lo dicho que los autores de la obra intenten convertir a (la lectora) en un médico o pedagogo,
sino tan sólo iniciarla en los conocimientos indispensables que faciliten la misión del primero cuando las
circunstancias, más frecuentes de los que a primera vista parece, reclamen su presencia, o hagan más ecaces
los preceptos del segundo, con lo cual tantos daños y fatales consecuencias pudieran evitarse”, Ribó “Cuatro
palabras del traductor”, en Gay y Cousin (1929, pp. VII-VIII).
Jordi Planella Ribera
200
de forma metafórica, que nosso corpo, tal como ocorre com o relógio de
corda, necessita de cuidados. Uma forma de fazê-lo é comendo, dormin-
do, respirando, passeando, etc. Junto com esses fatores mais amplos, e
em relação às posturas corporais aceitas e potencializadas desde a escola,
começa a nascer um movimento que busca “higienizar” os corpos a par-
tir de suas formas. Tal como Peyranne propõe:
El siglo XX es el del nacimiento de la ergonomía. El mobiliario llamado
ergonómico ha sido concebido de forma especíca para ser adaptado a
la talla y a la vez a las tareas de los estudiantes. Por la posibilidad que
ofrece de situar la espalda en las diferentes actividades, debería permitir
disminuir los dolores de espalda raquíticos en la escuela(Peyranne,
1999, p. 408).
Trata-se de possibilitar a adaptação dos copos dos educandos
ao mobiliário que os acolhe nos espaços educativos e, para fazê-lo, é ne-
cessário pensar as formas corporais e a ação direta ou indireta sobre seus
corpos. O que foi proposto seria impulsionar um verdadeiro projeto que
dispunha de formas de prevenção e correção de possíveis deformidades
corporais
22
. Por meio do controle e da prevenção dos corpos, a biologia
passará a fazer parte dos fundamentos que sustentam os discursos peda-
gógicos, e que permite esta mudança das “ciências do espírito” para as
ciências biomédicas, que têm um novo objeto sobre o qual intervir, e
que não é outro senão o próprio corpo dos educandos.
6.2. a Pedagogia totalitária do CorPo
Poucas vezes se fez uma leitura do tema da Shoah a partir do
que havia ocorrido com os corpos dos deportados encarcerados nos cam-
pos de concentração. Em um trabalho anterior intitulado “L’anihilació
de la corporalitat de l’altre” (Planella, 2000a), reeti sobre a constituição
22
Este tema foi amplamente estudado na tese de doutorado de Nieto (2002) a partir das formas de correção
da escoliose. Para a autora, trata-se de um problema no qual “tienen gran importancia los asientos de los
niños. Se describen diversos asientos y bancos de escuela realizados por los principales ortopedas de la época.
Redard, Roth, Lorenz, Schulthess, Wackenroder, Schreiber y Klein, etc. (...) Esta profusión de modelos
surge ante el interés despertado por la postura sentada como generadora de escoliosis y de la imaginación
de los hombres de ciencia de esta época puesta al servicio de la Humanidad, para prevenir esta alteración
(2002, p. 284).
201
Corpo, cultura e educação
de uma estética do horror e sobre como os corpos que não encaixavam
neste “cânone” estético haviam sido eliminados. De alguma forma deixei
entrever que, em parte, a mudança no olhar e na perspectiva que a so-
ciedade ocidental havia sofrido sobre o tema do corpo está ligada ao que
ocorreu entre 1938 e 1945 nos campos de concentração, mas também
em outras instituições da Alemanha nacional-socialista.
Penso que a questão da corporeidade não é casual em um tipo
de poder político como o que se desenvolverá em um país que se procla-
ma herdeiro, pedagogicamente falando, da Paidea grega. Concretamen-
te, da educação espartana que “concentró su interés en el endurecimien-
to del cuerpo (...) El paidonomos alguien que se dedicaba a la formación
del carácter viril de los jóvenes cuerpos transformados en propiedad del
Estado” (Fullat, 2002, p. 49). Uma Paideia na qual o culto ao corpo e ao
trato negativo dos corpos deformados representavam um papel central
na vida política e cotidiana dos cidadãos.
Meu objetivo nesta seção é expor o contexto da subida ao
poder do partido nacional-socialista, ainda que também nos reramos
às políticas pedagógico-corporais na Espanha franquista, Itália fascista
e na França ocupada. A partir dessas políticas, esses países constroem
uma determinada estética corporal e uma presença concreta dos corpos
dos cidadãos. O mais relevante desse capítulo é justamente o estudo
de como, por meio das práticas pedagógicas, se formaram os modelos
corporais, e de como, por meio das mesmas práticas pedagógicas, se
monstruavam” e demonizavam aqueles corpos que eram diferentes, até
provocar sua morte.
Esse terceiro ismo, centrado no olhar exclusivamente político
da pedagogia do corpo, representará a anulação das perspectivas da edu-
cação de um corpo em liberdade proposta pelo naturalismo, e retomará
os fundamentos evolucionistas da ciência das raças desenvolvidas por
parte da pedagogia biologista. O que se tornará relevante serão os corpos
dos cidadãos —agora propriedade do Estado— e sua volta à condição
de corpos sãos, mas sobretudo corpos racialmente puros e nobres. A “pe-
dagogia do corpo totalitário” estará ligada, diretamente, às concepções
político-sociais dos Estados totalitários.
Jordi Planella Ribera
202
6.2.1. oS totalitariSmoS
Nas palavras de Friedrich e Brzezinski (1956), o termo totalita-
rismo serve para denir os modelos políticos que apresentam as seguintes
características:
uma ideologia ocial, ou seja, um corpo ocial de doutrina que
cobre todos os aspectos da vida humana
um sistema de partido único dirigido por um ditador
um sistema de controle policiesco
a concentração de todos os meios de propaganda
a concentração de todos os meios militares
o controle central e a direção de toda a economia.
Apesar de o primeiro ponto exposto por Brzezinski e Friedrich
parecer chave nos inícios do fascismo e do nacional-socialismo, não se
contava com um corpo doutrinário que permitisse ordenar todas as suas
ações. Hitler subirá ao poder sem haver apresentado um programa po-
lítico; seu livro Mein Kampf já reunia perfeitamente o que pensava para
governar o país (ainda que a obra não seja propriamente uma doutrina
política, mas uma biograa apaixonada e uma chamada à ação ao povo
alemão). O franquismo, por sua vez, se fundamentará nos princípios do
Catolicismo e do Movimento Nacional, que regerão e ordenarão a vida
política e social do Estado espanhol sob a ditadura de Franco
23
.
A causa principal do surgimento dos movimentos totalitaristas
é uma reação aos modelos políticos e sociais existentes. Ainda que nem
todos reagissem contra o mesmo nem da mesma forma. Assim, enquanto
o fascismo e o nacional-socialismo são fruto da reação dos vencidos contra
23
Em 1939, na lei de 20 de setembro de 1939, sobre o Ensino Secundário, se arma que “El Catolicismo es
la médula de la Historia de España. Por eso es imprescindible una sólida instrucción religiosa que comprenda
desde el Catecismo, el Evangelio y la Moral, hasta la liturgia, la Historia de la Iglesia y una adecuada
Apologética (...) La revalorización del español, la denitiva extirpación del pesimismo anti-hispánico y
extranjerizante, hijo de la apostasía y de la odiosa y mendaz leyenda negra, se ha de conseguir mediante
la enseñanza de la Historia universal (acompañada de la Geografía), principalmente en sus relaciones
con España. Se trata así de poner de maniesto la pureza moral de la nacionalidad española; la categoría
superior, universalista, de nuestro espíritu imperial, de la Hispanidad, según concepto felicísimo de Ramiro
de Maetzu, defensora de la verdadera civilización, que es la Cristiandad”.
203
Corpo, cultura e educação
a humilhação nacional pela derrota e da reação frente às situações de misé-
ria, crise, fome e desemprego, o franquismo nasce como reação a uma Re-
pública que questiona muitas das ideias fundamentais de um importante
grupo de cidadãos espanhóis de pensamento político de direita
24
.
O objetivo dos totalitarismos foi chegar a criar um corpo-na-
ção único, no qual seus cidadãos se sentissem parte integral das ideias
do Estado. Um exemplo dessa unidade é a proposta fascista do fascio,
que se colocava precisamente como símbolo de unidade, força e justiça.
Para conseguir essa unidade, deveria colocar-se em marcha uma grande
maquinaria, que incluía a propaganda estatal, o controle policialesco, o
controle médico e o controle pedagógico. A partir dessa ótica, a ideia de
ordem e controle emerge como símbolos que possibilitarão a consecu-
ção desta nova ordem político-social proposta pelos estados totalitários.
Em um sentido metafórico, podemos dizer que se trata de uma poesia da
disciplina e da ordem.
Essa ordem e essa disciplina serão envoltas por uma verdadei-
ra estética (muitas vezes traduzida em uma excessiva parafernália) que
converte a vida política e as guras dos líderes totalitários em líderes
carismáticos, que fazem de sua política uma mitologia. A encenação, a
ritualização e a simbolização farão do fascismo, do nacional-socialismo
e do franquismo três modelos políticos que, de uma forma ou outra,
invocam as mitologias e as crenças religiosas como base de seu existir
25
.
Em toda a cenograa totalitária, o poder carismático dos líderes tem
um papel central, passando a ser verdadeiros catalizadores da “energia
nacional” e de seus cidadãos. Tratava-se de colocar em jogo mitos que
chegassem a excitar as multidões e as aproximassem das ideias que os
líderes lançam e realimentam dia após dia.
24
Para Touchard (1990, p. 499), trata-se de movimentos “de desesperanza y de rebeldía contra el liberalismo
y los viejos mitos de la máquina y del progreso: el libre juego de los intereses económicos no produce más
que catástrofes, la salvación sólo puede venir de una nueva forma de socialismo, del nacionalsocialismo ...”.
25
Esse apontamento se traduzirá de forma diferente no nacional-socialismo (em que serão invocados todos
os mitos do romanticismo alemão e se colocarão em jogo grandes representações dos potenciais do Estado
nas marchas e desles militares), no fascismo (em que Mussolini buscará o retorno à grandeza do Império
romano) e no franquismo (em que Franco recorrerá à ideia de representatividade de Deus na terra por parte
do lider político).
Jordi Planella Ribera
204
6.2.2. biologia e nação na Pedagogia PolítiCa daS raçaS
Apesar da subida ao poder de Hitler não ocorrer até 1933, uns
anos antes já havia começado a desenvolver-se o que se pode considerar
a política da ciência das raças, que transcende o território estritamente
alemão. Seguindo a Poliakow, podemos armar que:
La primera manifestación del racismo moderno y pseudo-cientíco, creo
que debe remontarse al 24 de abril de 1684, día en el cual Le Journal
des savants publicó una nota de François Bernier titulada Nouvelle
division de la terre, par las diérentes races d’hommes qui l’habitent
(1989, p. 53)
26
.
O texto de Bernier confrontava a raça branca com todas as
outras e armava a sua superioridade, qualicando as demais como sel-
vagens. Da breve nota publicada em Le Journal des savants, se passou à
sistematização da antropologia do século das luzes, no qual Kant escreve
em 1785 o trabalho intulado Determinación de un concepto de raza hu-
mana. Será necessário esperar o nal do século XIX para que se comece
a usar o conceito para explicar muitos dos fenômenos sociais. É nessa
época que Gobineau converte o conceito de raça em um conceito chave
da história mundial, que se expande pelos diferentes países ocidentais de
forma simultânea. Ele propôs o surgimento do que denominou “raça de
príncipes” (os arianos), que podiam correr o perigo de ser perseguidos
pelas classes inferiores
27
. O conceito de raça permitiu organizar as per-
sonalidades inatas e armá-las como membros de um grupo destinado a
dominar as outras raças.
A antropologia da segunda metade do século XIX reunirá as
ideias de Gobinau e de seus antecessores e as reformula na projeção das
ideias que fundamentam a política racial alemã. A antropologia alemã se
institucionaliza a partir de 1860 em torno de alguns problemas técnicos
sobre grupos humanos, que se concentram em medir, de forma padro-
26
O tema pode ser ampliado por meio do trabalho de Poliakow (1971). Essa atribuição não é compartilhada
por todos os autores. Outras perspectivas situam François Hotman (século XVI) como precursor das
doutrinas raciais, sobretudo pela publicação de sua obra Franco-Gallia.
27
Gobinau publicou, em 1853, Essai sur l’inégalité des races humaines. O texto de Gobinau passou a ser uma
espécie de livro de texto para as teorias raciais. Recordemos que Gobinau sucita a teoria da decadência racial.
205
Corpo, cultura e educação
nizada, os corpos, e a comparar os povos e as raças (Bauer y Wagner,
1861). Alguns dos grupos étnicos, objeto de estudo e intervenção, são as
comunidades judia e cigana.
Em relação a esta última, no nal do século XIX, surge um
conglomerado de decretos sobre a Zigeunerfrage (a questão cigana) nos
diferentes Länder; decretos que se agrupam na recomendação de Bis-
marck de 1886 de expulsar do país as comunidades ciganas. Também
será um elemento chave a criação do Serviço de Informação da Polícia
de Seguridade em relação aos grupos étnicos minoritários, que os chará
para poder mantê-los controlados. Nesse mesmo período se cria a Zigeu-
nerzentrale (Prefeitura Central dos Ciganos), que possui todos os dados
dos ciganos, que puderam char de forma sistematizada, e ao alcance
dos membros de seguridade que quisessem consultá-los. Paralelamente
à criação de organismos ociais que ordenam e controlam as populações
alemãs, uma parte da sociedade civil desenvolve também suas teorias
raciais. Um exemplo é a publicação, em 1880, do livro do escritor antis-
semita Eugen Düring Die Judenfrage als Frage der Racenschädlichkeit für
Existenz, Sitte un Cultur del Völker
28
.
Já no primeiro trimestre do século XX, a ciência das raças co-
meça a desenvolver-se, e o Estado acaba fazendo uso de diferentes pro-
ssionais —entre eles antropólogos como Eva Justin— com a nalidade
de determinar quais eram os critérios para classicar ou “diagnosticar”
as diferentes “raças”. Os trabalhos antropológicos do nal do século
XIX conduzirão à criação da Sociedade Alemã de Antropologia, que
organizará diferentes comissões, entre as quais encontramos a Comissão
de Estudos dos Crânios Humanos. A Sociedade, dirigida por Rudolf
Virchow, da Universidade de Berlin, se dedicará a realizar investigações
empíricas e descritivas sobre medidas anatômicas, pigmentações, cor dos
olhos e dos cabelos, etc. As investigações da Sociedade têm um duplo
objetivo: a análise das características das diferentes raças e o estudo das
enfermidades hereditárias.
28
La cuestión judía como problema de la nocividad racial para la existencia moral y la cultura de los pueblos. Tal
como arma Düring “este cambio en la situación que proviene del hecho que los Judíos, gracias a su especial
condición, hacen mal uso de las libertades y saben convertirlas en lo contrario de lo que respondería a una
legislación igualitaria y liberal”, citado por (Heuss, 1999, p. 20).
Jordi Planella Ribera
206
Posteriormente aos trabalhos da Sociedade, a criação do Centro
de Investigações de Higiene Racial será chave no trabalho de classicação,
estudo e ordenação (em espaços especialmente habilitados) daqueles su-
jeitos que se afastam do padrão de “raça ariana”. Tal como arma Heuss:
La idea de raza biológicamente denida y relativamente estable, y la
de una medición exacta de los seres humanos se convirtieron en ideas
dominantes del siglo XIX y principios del siglo XX. La antropología
física no se limitó a contraponer blancos o caucásicos a negros o
africanos. También dentro de Europa se inventarió una multiplicidad
de diferencias raciales. La idea de la determinación biológica de los
seres humanos, del individuo tanto como de los grupos, debía desterrar
el fantasma del comunismo, que había formulado teóricamente las
contradicciones sociales existentes en Europa y las había denido como
contradicciones de clase (Heuss, 1999, p. 18).
Com a subida do partido nacional-socialista ao poder, as ideias
desenvolvidas pela ciência antropológica, primeiro com nalidades es-
tritamente cientícas, posteriormente utilizadas como elementos de or-
denação política e social. Tal como armamos no subcapítulo anterior,
antes da chegada ao poder de Hitler em alguns Lands alemães, já se ha-
viam realizado tentativas de controlar a população que se fundamentava
na classicação racial. Agora, a estruturação das ideias cientícas com
as possibilidades de controle do poder político fará com que as ideias
raciais sejam levadas às suas últimas consequências.
O objetivo fundamental do governo nacional-socialista é dar a
conhecer à população a “construção” de sujeitos diferentes, perigosos e/
ou com corporeidades afastadas dos padrões arianos (corpos brancos e
bem constituídos). A construção de sujeitos “diferentes” não se fará so-
mente a partir de suas condutas, mas, sobretudo a partir de seus corpos.
A anatomia, a biologia e a medicina são as encarregadas de fundamentar
a construção e a classicação das corporeidades negativas. Dessa forma,
as instituições alemãs contribuem para difundir imagens negativas de
determinados grupos sociais, justicadas em seu futuro extermínio.
Em 1936, o Centro de Higiene Racial passa a ser uma seção
da Direção Geral de Sanidade. Essa modicação possibilita que tal ins-
tituição se transforme no nexo entre a ciência das raças e a seguridade
207
Corpo, cultura e educação
do Estado. Também participou ativamente a Comunidade Alemã de
Investigação, que, no momento da criação dos campos de extermínio, -
nanciou parte dos experimentos de Mengele no campo de concentração
de Auschwitz. As ideias que essas instituições armarão serão postas em
prática sem demasiada oposição, nem no nível interno nem no externo.
Uma vez realizada a tarefa de inventariar os sujeitos que se afas-
tam dos modelos corporais estabelecidos, têm lugar duas atuações diferen-
ciadas. Um primeiro tipo foi catalogado com o nome de D4, uma inter-
venção que consistia em certicar a saúde em um estado pré-matrimonial.
A segunda intervenção, que se desprende da primeira, buscará esterilizar
ou obrigar a abortar aqueles homens ou mulheres que apresentavam pro-
babilidades de transmitir alguma enfermidade hereditária, trazendo ao
mundo o que denominaram sujeitos improdutivos. A nalidade dessas prá-
ticas iniciais era a de criar uma Volksgemeinschaft (comunidade do povo),
na qual unicamente teriam lugar os sujeitos pertencentes à categoria de
raça superior. Criar essa Volksgemeinschaft implicava excluir a todos os ele-
mentos estranhos para construir um povo ideal, e era necessário ter muito
bem denidos os sujeitos estranhos. (Heuss, 1999, p. 24). Nessa discri-
minação, surgiram algumas diculdades que necessitavam uma solução
cientíca. É o caso da mestiçagem, por exemplo, de pessoas que perten-
cem a grupos étnicos ciganos. Com essa nalidade, estipularam o seguinte
quadro de classicação segundo o nível de consanguinidade:
Classicação das combinações raciais em relação ao povo cigano
Z Cigano puro
ZM
Mestiço ou pessoa com mistura cigana, com igual proporção de sangue
cigano e alemão.
ZM +, ZM (+) Pessoa misturada com maior proporção de sangue cigano.
ZM em 1º grau Um dos progenitores é cigano puro; o outro pe de sangue alemão.
ZM em 2º grau Um dos progenitores é ZM em 1º grau; o outro é de sangue alemão.
ZM -, ZM (-) Pessoa misturada com maior proporção de sangue alemão.
NZ Pessoa não cigana.
[Adaptado de Heuss, 1999:32]
Jordi Planella Ribera
208
A partir dessa perspectiva, pelo menos no contexto nacional-
-socialista alemão, se constroem de forma claramente diferenciada os
corpos racializados, que deviam conduzir a uma regeneração (retoman-
do a proposta feita por Gobinau) da “raça” alemã.
6.2.3. Pedagogia totalitária doS CorPoS
Nos Estados totalitários, a pedagogia se torna uma das prin-
cipais armas para desenvolver o projeto político, tanto para criar ci-
dadãos de acordo com o regime como para demonizar aqueles que,
politicamente ou “racialmente” se afastam dele. Na arte nacional-so-
cialista, reete-se com clareza a concepção e a imagem dos corpos por
parte do Estado. Embora as vanguardas tenham inuído no olhar na-
tural dos corpos, a arte totalitária retoma os modelos artísticos mais
academicistas. Para Pérez, essa representatividade corporal retorna a
“la imaginería clásica de Grecia y Roma, o el academicismo neoclásico,
(que) las sirven como plataforma expositiva del predominio de su raza
(2000, p. 41). Esse modelo de soldado fascista, nazi ou franquista, é
um protótipo de soldado seriado, que se converte em parte da engre-
nagem mecânica da guerra ou do Estado. Tudo estava detalhadamente
estudado e a representatividade livre dos corpos não tinha lugar, pois
desse modo se corria o risco de perder a credibilidade dos mitos corpo-
rais que vinham forjando.
As políticas educativas totalitárias defendem concepções dife-
rentes da questão corporal. O corpo pertence ao Estado e não ao sujei-
to, e, portanto, é o Estado que determina o que se espera dos corpos de
seus cidadãos. Os corpos são corpos predeterminados que conguram
a totalidade da engrenagem social e não é possível que os cidadãos
rompam o equilíbrio dessa “engrenagem corporal”. Não existe a possi-
bilidade de construir o corpo próprio, não se pode ir além do que está
planejado, programado e pensado. Não há lugar para uma performa-
tividade corporal, os currículos corporais vêm fechados pelo Estado.
Os corpos dos educandos são chamados a fazer parte do corpo-massa
do resto da sociedade. Um corpo-massa que, nas palavras de Vilanou,
se traduz em um corpo que ca “desprovisto de su aura, de la singula-
209
Corpo, cultura e educação
ridad, originalidad y autenticidad que las otorgaba antiguamente una
entidad propia” (2002b, p. 43), e se converte, consequentemente, em
um corpo formado estatalmente.
6.2.3.1. em direção a uma Pedagogia do totalitariSmo
Antes de concretizar os elementos chave que estruturam a
questão corporal como aspecto relevante de toda pedagogia totalitária, é
necessário decifrar os eixos gerais que constituem as bases da pedagogia
totalitária. Uma das primeiras ações que os Estados totalitários levam
a cabo para poder instaurar sua pedagogia é “limpar” os currículos das
ideias que podem ser consideradas impuras (e, portanto, afetar negati-
vamente a formação dos futuros cidadãos) e expulsar as pedagogias e as
correspondentes metodologias antes que as suas próprias reagissem aos
movimentos reformistas na Espanha, Itália, França e Alemanha. Essa
limpeza ideológico-pedagógica cará mais evidente no Estado Espanhol,
onde a depuração do magistério, —antes e durante a guerra— havendo
defendido a pedagogia da Escola Nova, se verá substituído, em uma por-
centagem muito elevada, por professores seguidores da pedagogia católi-
ca. Tal como arma Medina, “el ministerio de Sainz Rodríguez suprime
el laicismo, la coeducación, la enseñanza en lenguas nacionales, estab-
lece una rígida censura en los libros de texto y comienza la depuración
de los enseñantes comprometidos con el gobierno de la II República
(Medina, 1977, p. 117). Também na Aleamanha, as ideias pedagógicas
que iluminaram a República de Weimar passaram a ser anuladas com a
vontade expressa de que não transferissem so novo Estado nascente. As
ideias que defenderam Kühnel, Natorp e Seidel, a partir das quais era
necessário desenvolver no educando a autonomia, sobre a base da ativi-
dade corporal, intelectual e moral para potencializar sua independência
pessoal, passam a ser demonizadas, já que somente o fato de pensar na
“independência pessoal” põe em perigo a tão buscada unidade do Esta-
do
29
. Esse giro nas ideias pedagógicas se rearma no seguinte texto, ex-
traído do Boletim de educação da Província de Gerona do ano de 1940:
29
Esta pedagogia cava denida perfeitamente no artigo 148 da Constituição de Weimar, (Citado por
Wickert (1930, p. 221).
Jordi Planella Ribera
210
En oposición a la Pedagogía roussionana, heterodoxa y extranjerizada
que se venía explicando en la mayor parte de las normales de España,
es preciso enseñar una Pedagogía Católica e inspirada en la tradición
española; lo cual puede conseguirse:
-Recomendando como libros de consulta y de texto las obras de los
grandes pedagogos españoles católicos: Raimundo Lulio, Vives, San
Ignacio de Loyola, San José de Calasanz, Ponce de León, Manjón, Ruiz
Amado, Runo Blanco, etc.
-Dando un ciclo de conferencias sobre la Encíclica “Divina illius
Magistri”, la Carta Magna de la educación de Pio XI.
Los maestros en ejercicio deben saturarse de los grandes ideales de
Religión y Patria que han sido el alma del Glorioso Movimiento
Nacional (Boletín de educación de la Provincia de Gerona, 1940).
Revela-se dessa forma que, no Estado totalitário, a pedagogia
se encontra totalmente submetida às ideias políticas que regem a ordem
social. O magistério devia manter-se el ao Estado e lhe era exigida total
submissão e gigantescas doses de servilismo. A delização do magistério
era absolutamente imprescindível para poder levar adiante o projeto de
transformação social. Em consequência, a pedagogia nos Estados totali-
tários tem o poder de transformar a sociedade e, dessa forma, se posiciona
discursivamente como “pedagogia de salvação”. O mesmo Franco ar-
mava, referindo-se a essa ideia, que:
Tenedlo muy en cuenta maestros. Esos materiales de construcción de la
Patria, que son esos niños cuya educación se os encomienda, esos que son
los hombres del mañana, han de ser guiados por la senda de la verdad y
del bien. Este es el mandato de Dios, ese es el mandato del frente, de las
trincheras, de la sangre vertida y de las vidas inmoladas, de los mártires
y de los héroes que pusieron muy arriba el santo nombre de España
30
.
30
Boletín de educación de la Província de Gerona, XV, março-agosto de 1939. E nessa mesma circular de
Franco dirigida aos professores, o Caudillo os anima em sua tarefa de “cultivar los ideales nacionales (...)
y la misión extraordinaria y sagrada de forjar la grandeza de Espana”. Para poder conseguir este grau de
docilidade, o Estado rebaixa o nível de exigência dos estudantes que frequentam as escolas normais. Agora,
o que se terá mais em conta não serão seus conhecimentos cientícos sobre a criança e sua educação, mas o
que se tenha podido doutrinar e moralizar nas ideias do Regime aos futuros professores, salvadores de almas
e regeneradores dos Estados totalitários.
211
Corpo, cultura e educação
A pedagogia totalitária se propõe a salvar os bons cidadãos dos
inimigos do Estado, que em função de cada um dos regimes, variará,
ainda que tenham em comum que “o outro” (o inimigo perigoso) foi
construído por meio de uma justicação política e cientíca
31
. É assim
que a pedagogia há de proteger dos judeus e dos vermelhos, dos ciganos
e dos homossexuais, dos loucos e dos decientes, e de todos aqueles su-
jeitos que, segundo os estados totalitários, colocam em perigo seu con-
ceito de homem racialmente puro.
Um dos outros elementos que têm um papel central em toda
a pedagogia totalitária é o controle e a censura dos livros didáticos. O
fanatismo e as ideias que dela se desenvolvem podem chegar com muita
facilidade ao resto da população por meio dos livros didáticos. Neste,
cará tudo claramente exposto, desde a história ocial da Espanha até
as formas com as quais as crianças devem ser educadas em termos de
urbanidade, passando pelo estudo de uma anatomia que, no caso do
Estado espanhol, se desenhará assexuada
32
. A tarefa de censura era le-
vada a cabo pelo censor, que, por meio da impressão do Nihil Obstat e
do imprímase, permitia que as ideias dos livros didáticos chegassem às
escolas do Regime.
Apesar disso, e dos aspectos que analisamos e que congu-
ram as pedagogias dos Estados totalitários, armamos que a pedagogia
totalitária tem como objetivo geral a formação unitária da população,
convertendo-se no que designamos como corpo-massa. A questão do
corpo passa a ocupar um dos espaços centrais das pedagogias totalitá-
rias. Tal como expõe Knopp, tratava-se de que os meninos e as meni-
nas pudessem:
31
Para Medina, trata-se de uma “superstición pedagógica, en la capacidad mítica de la educación como
instrumento fundamental para congurar una sociedad” (1977, p. 118).
32
No caso da Enciclopedia Escolar publicada pela Editorial Luis Vices de Zaragoza em 1949, nas páginas
dedicadas à Fisiologia e Higiene não consta nenhuma referência ao aparato reprodutor nem à sexualidade
das crianças. Em seu lugar, encontramos detalhadas referências ao esqueleto humano, ao aparato digestivo, à
circulação sanguínea, ao sistema nervoso ou à voz. Em contrapartida, o livro expõe com todo detalhe o que
se espera da urbanidade no comportamento das crianças. Assim se expõe em relação aos fundamentos e a
importância da urbanidade que: “La urbanidad es hija de la religión, hermana de la moralidad y compañera
de la virtud. Los buenos modales no son privados de ninguna clase social, ni de una nación, ni de una edad
de la vida” (1949, p. 478).
Jordi Planella Ribera
212
Creer, obedecer, luchar, como soldados políticos. Atraídos por la amplia
oferta de deportes y ocio, por la expectativa de hacer grandes carreras,
entraban en los internados elitistas, donde juraban delidad incondi-
cional. Como víctimas de su educación, en la guerra de su padrino los
alumnos de Hitler se encontraban frecuentemente entre los más fanáti-
cos (Knopp, 2001, p. 12)
33
.
6.2.4. a eduCação CorPoral noS eStadoS totalitárioS
Hitler arma, em Mein Kampf, que o Estado nacional não
deve dirigir de forma prioritária seu trabalho de educação permanente
a inculcar conhecimentos, mas sim cultivar corpos repletos de saúde.
Unicamente, em segundo lugar se encontra a formação das faculdades
intelectuais (Hitler, 1934). Essa ideia de formar, sobretudo os corpos
dos educandos, decorre das ideias desenvolvidas pela Paideia grega, es-
pecialmente a espartana, na qual se estimulava e valorizava aqueles cor-
pos fortes e esbeltos
34
. Não se trata, como ocorre com outros modelos
pedagógicos, de educar por meio do corpo. O que se busca é educar os
corpos para poder exercer sobre eles o controle necessário. A partir des-
ta perspectiva se privilegiará a educação física dos sujeitos pedagógicos,
com o objetivo de fortalecer seus corpos e convertê-los em seres fortes
e superiores, em detrimento dos sujeitos débeis (considerados por eles
como inferiores).
Nessa pedagogia totalitária, a disciplina militar dos corpos se
converte em um importante eixo formativo. Nos três totalitarismos —na-
cional-socialismo, fascismo e franquismo— que estudamos nesta seção,
coincide essa mesma perspectiva. No caso da juventude alemã, se aliará
ao Jungvolk, e se organiza por meio das Juventudes Hitlerianas, que já
em 1936 criaram acampamentos de instrução acelerada, e que segundo
33
Também para Betancor e Vilanou “los estados-nación beben de las fuentes de este militarismo que a la
larga incidirá en la implantación de la gimnástica como práctica escolar. Una de las tentaciones más comunes
de las dictaduras de cualquier tiempo y lugar ha sido seguir con los ojos cerrados un modelo de educación
física entendido precisamente como preparación pre-militar” (1995).
34
Nesse sentido, a ginástica se converteu em um dos caminhos para o alcance do ideal de homem grego.
Para Wickert, esta “originariamente fue solo un medio de educación dórico; pero poco a poco fue de
inujo decisivo en el desarrollo total y la organización más compleja de la vida griega. En oposición a los
cuerpos bárbaros caídos en la sombra la gimnástica dió a los cuerpos griegos aquella noble proporción de los
miembros que aún hoy admiramos en las estatuas griegas, aceraba las voluntades y aumentaba el impulso a
realizar hechos famosos” (1930, p. 7).
213
Corpo, cultura e educação
Knopp, “en vísperas del aniversario de Hitler, los novicios entraron en
las salas góticas de la antigua fortaleza para realizar su promesa solemne.
Toda la Alemania joven está unida por el voto de delidad, resonaron las
palabras del líder de la Juventud en las bóvedas oscuras” (2001, p. 29).
A promessa pedia liberar o corpo à nação e à obrigatoriedade de manter
o corpo o mais saudável possível. A preparação e o fortalecimento dos
corpos encontra nos acampamentos, nas marchas, na luta e no exercício
disciplinado as verdadeiras possibilidades de cultivar-se. Essa militarização
do corpo terá uma clara diferenciação entre os corpos dos meninos e das
meninas. Armava Redondo, no ano de 1931, que “la coeducación o em-
parejamiento escolar es un crimen ministerial contra las mujeres decentes
(...) Un delito contra salud del pueblo
35
. Portanto, o trabalho formativo
ocorrerá de forma diferenciada (em espaços físicos habilitados para cada
sexo) e o que se pedirá a cada um deles também serão coisas diferentes.
Essa dupla perspectiva resulta no seguinte quadro:
A formação corporal feminina e masculina nas pedagogias totalitárias
MENINAS
Corpos saudáveis, vigorosos e disciplinados.
É necessário que estejam preparadas para assumir o papel maternal.
MENINOS
Formação pré-militar.
Disciplina corporal e força física, potencializando sua resistência
física.
Juntamente com a disciplina militar dos corpos das crianças,
encontramos sua uniformização. A mesma palavra nos orienta sobre seu
sentido: uniformizar faz referência a unicar, a conseguir que um corpo
não sobressaia ao outro.
36
. Com todo o mundo vestido da mesma forma,
esta diferença cava anulada, desde que por dentro os corpos conse-
guissem o mínimo que o Estado lhes exigia. Possuir um uniforme para
exibir a nova corporeidade é o que desejam muitas das crianças. Este é o
testemunho de Hans Jürgen Habenicht quando diz que:
35
Redondo (1931) faz referência a um trabalho publicado na revista Libertad, nº 17, 5 de outubro, (Citado
por Payne (1985, p. 41)).
36
Na Alemanha, com a instauração da obrigatoriedade do serviço juvenil em 25 de março de 1939, cerca
de oito milhões de crianças e adolescentes alemães vestiam o uniforme das Hitlerjugend antes de começar a
Segunda Guerra Mundial.
Jordi Planella Ribera
214
Realmente anhelaba que llegara ese día y estuve orgulloso cuando llegó.
Mi hermano mayor ya estaba en las Juventudes Hitlerianas. También yo
quería pertenecer a esa comunidad, que se asociaba a los conceptos de ca-
maradería, de patria y honor. Con uniforme sentíamos que nos tomaban
más en serio, y ahora yo también pertenecía al grupo de los mayores
37
.
Em outro contexto veremos como a educação física pré-militar
será, tal como consta em um decreto do Ministério de educação Nacional,
um dos pontos centrais da pedagogia. Concretamente, arma-se que “tan
importante como la escuela es la educación física, pre-militar y política
que reciben los jóvenes a través del Frente de Juventudes de la FET y de
las JONS”
38
. Os meninos e meninas espanholas eram inscritos na Frente
de Juventudes, pelo decreto de 6 de dezembro de 1940. O parentesco do
modelo franquista com o modelo nacional-socialista se torna evidente. A
formação política e pré-militar fora da escola, tanto na Alemanha quanto
na Espanha, servirá para polir a formação integral dos novos cidadãos.
A pedagogia do corpo se constitui em uma dicotomia ontológica
que cria corpos ortodoxos e corpos heterodoxos. A pedagogia da raça mar-
ca a admiração e o orgulho de possuir corpos puros. Desta forma, se ne-
gativam enormemente os corpos infantis que pertencem a famílias de ori-
gem judia ou famílias ciganas. A pedagogia corporal racial se sustenta em
supostas teorias cientícas que fundamentam a diferença e a superioridade
da denominada “raça ariana”. Os corpus entartet e corpus naked se trans-
formam de forma articial com a nalidade de ressaltar sua inferioridade
e sua debilidade
39
. O corpo naked é degradado, ultrajado, enfraquecido e
castigado nos campos de concentração. Esta reexão é a que faz Karol Ko-
nieczny em uma carta que dirige a Janina Jaworska quando propõe que:
Me gustaría imprimir, como una absoluta necesidad, los dibujos del
desle de prisioneros desnudos. Así es realmente la vida en el campo. El
primer aliento de un ser humano depende del brutal desprendimiento
de ropas del cuerpo, que ocurre en la primera hora de llegar al campo, y
termina en una pila de cuerpos desnudos cerca del crematorio
40
.
37
Citado por Knopp (2001, p. 34).
38
Decreto do MEN de 15 de outubro de 1941.
39
O corpo naked faz referência ao corpo nu, clara evidência da negativização dos corpos dos deportados ao
campo de concentração.
40
Citado por Pérez (2000, p. 77).
215
Corpo, cultura e educação
A pedagogia totalitária do corpo propõe um retorno à nature-
za, mas o objetivo que busca e a forma de fazê-lo é absolutamente dife-
rente do retorno proposto pelo naturalismo. No caso da Alemanha, será
o movimento conhecido como Wandervögel (os pássaros errantes) que
cativou enormemente a boa parte da juventude (Giesecke, 1981)
41
. Mas
não somente serão os Wandervögel os que aproximam os jovens alemães
à natureza. A educação e o fortalecimento do corpo pede este exercício
em espaços naturais, em vida de acampamentos, submetendo o corpo a
práticas extremas de frio e calor.
A separação dos sexos será um dos elementos chave para exer-
cer com êxito a proposta de pedagogia corporal totalitária. Tanto no fran-
quismo como no nacional-socialismo esta perspectiva se faz presente de
forma muito clara. No primeiro, será uma dos pontos de crítica da escola
republicana. As escolas se separam e cam constituídas por escolas femi-
ninas e masculinas. Esta divisão se mantém em todo tipo de atividades
sociais e políticas, tanto nas Hitlerjugend como na Frente de Juventudes.
Ali lhes cará muito claro o que o Estado espera dos meninos e das me-
ninas. Estas últimas deverão ser formadas, além do Espírito Nacional e
do fortalecimento físico, como especialistas conhecedoras das tarefas do
lar. Mas o que as fará ser “maiores” será o projeto que o partido nacional-
-socialista lhes reserva: “La mujer tiene su campo de batalla. Con cada
niño que ella da a luz para la nación, lucha en esa batalla
42
.
O último aspecto que marca a educação corporal nos estados
totalitários é a concepção da educação sexual. Tanto durante o franquis-
mo como durante o nacional-socialismo, as concepções em torno da
educação sexual sofrem um importante retrocesso, se as comparamos
com as correntes pedagógicas existentes antes da imposição dos novos
regimes nestes mesmos países. No caso do Estado espanhol, e devido ao
fato de que o Catolicismo será a doutrina que marcará as diretrizes da
pedagogia, a educação sexual entra em um de seus períodos mais cin-
zentos. Se durante a República a questão corporal havia estado presente,
41
Citado por Knopp (2001).
42
São as palavras pronunciadas por Hitler em um discurso do partido em Nuremberg e guardado como
arquivo sonoro na Deutscher Rundfunk. Knopp (2001, p. 144). Knoop arma que na audição se pode
captar os fortes aplausos do público espectador, especialmente do feminino.
Jordi Planella Ribera
216
possibilitando que as crianças pudessem sentir de forma aberta sua cor-
poreidade, durante o franquismo, a escola buscará aplacar e conter as
corporeidades dos educandos, em especial a manifestação de sua sexua-
lidade. Nesse sentido, há um retorno às crenças católicas que fazem uma
interpretação particular do corpo na vida dos cristãos, mais habitual do
século XIX. O século XIX foi caracterizado por uma pedagogia corporal
do tipo “vitoriana”, e que em palavras de Yetano (1988, p. 149) “el estu-
dio de la doctrina tradicional católica sobre el sexo es fundamental (...)
La sexualidad en tanto que gozo o placer positivo, no existía. Existía solo
en función de, subordinada a, la procreación de los hijos, y sólo era ad-
mitida de esta manera”. Falava-se de uma sexualidade negativa, tal como
se interpretava o corpo e sua concepção na tradição cristã e na qual se
entendia como uma renúncia permanente (Brown, 1993). Não se trata
tanto de fazer referência à educação sexual, mas à tomada de consciência
sobre a existência do pecado carnal, que não era denominada “sexuali-
dade”, mas fornicação. Um exemplo dessa abordagem pedagógica, que
defende a pureza dos corpos das crianças, é o que propõe Gambón em
seu livro educación cristiana de las jóvenes, no qual propõe que:
La honestidad me exige que esté siempre en disposición de tratar con
cualquiera que hubiese de verme. Por consiguiente, estando en cama,
me mantendré decentemente cubierta; al vestirme lo haré siempre con
sumo recato, y aun estando a solas, tanto al vestirme como al desnudarme,
jamás permaneceré de modo que quede desnudo todo el cuerpo” (p. 32).
A concepção da educação sexual para o Estado nacional-so-
cialista terá um importante papel. Apontei, nesta mesma seção, o pa-
pel que se esperava das mulheres alemãs em relação à manutenção, por
meio da procriação, da raça ariana. Para Knopp, “la Bund Deutscher
Mädel seguía sin ruptura las viejas tradiciones burguesas. La divisa
era autodisciplina sexual. Las chicas debían ser como el fresco, claro,
limpio aire alemán” (2001, p. 142). Mas apesar da necessidade que o
Estado sentia de regenerar a raça ariana, não estava disposto a fazê-lo
a qualquer preço: as gravidezes na adolescência eram castigadas e as
meninas expulsas da Bund Deutscher Mädel. Esse aspecto também não
era contraditório à ideia de tentar manter ao máximo o ideal de be-
217
Corpo, cultura e educação
leza que a mulher alemã havia alcançado. A beleza corporal feminina
era imposta até níveis insuspeitáveis, tal como arma Irmgard Rogge:
“Éramos las mejores personas del mundo, éramos las personas más
ecientes del mundo, éramos las personas más hermosas del mundo. Y
los judíos eran exactamente lo contrario
43
.
6.3. a Pedagogia Corretiva
Nascida no intervalo da evolução das ciências biomédicas, o
que podemos denominar como pedagogia corretiva associa-se perfeita-
mente com este modelo de governo dos corpos dos sujeitos que analisei
ao longo do presente capítulo
44
. Se analisarmos o que propõe Bourdieu:
“la institución se inscribe en la carne de los individuos produciendo y re-
produciendo posiciones y disposiciones de los cuerpos” (1980, p. 117),
teremos que aceitar que será por meio da inscrição das instituições nas
carnes dos sujeitos que se executará a pedagogia corretiva.
Existem diferentes formas de designar estas práxis, ainda que
o marco conceitual no qual me movo me parece mais apropriado ao
de pedagogia corretiva
45
. Um dos momentos chave de aparição do mo-
vimento é a França de Pétain, período no qual o país se encontrava
submetido à ocupação nacional-socialista. Essa contribuição à produção
de discursos do controle e a correção corporal se levou a cabo por meio
da colaboração de numerosos médicos, biólogos, pedagogos, monitores
de atividades esportivas, que buscavam os fundamentos para produzir
corpos “corretos”, distantes dos “defeitos” corporais. Tal como aponta
Brohm, trata-se de uma “mezcla híbrida de gimnasia sueca, de anatomía
43
Citado por Knopp (2001, p. 156).
44
É muito gráca a imagem que Foucault usa para fechar seu livro Surveiller et punir, fechada em 1749 e
denominada “Ortopedia o el arte de prevenir y de corregir en los niños las deformidades corporales” (N.
Andry), (Foucault 1976). Também é outra das imagens que aparece no mesmo livro denominada Machine
à vapeur pour la correction célérifere des petites lles et des petits garçons, onde se diz que: “se avisa a los
Padres y Madres, Tíos y Tías, Tutores, Tutoras, Maestros y Maestras de Internados y a todas las personas
en general que tengan Niños perezosos, golosos, rebeldes, revoltosos, insolentes, pendencieros, acusones,
charlatanes, irreligiosos, o cualquier otro tipo de defecto, que el señor Croquemitaine y la señora Briquabrac
acaban de instalar una máquina semejante a la representada en el grabado, y que reciben todos los días en sus
establecimientos, desde las doce de la mañana hasta las dos de la tarde, a todos los Niños malos que necesitan
ser castigados” (citado por Foucault, 1976).
45
Outras formas de designá-lo são: ginática ortopédica ou reeducação funcional.
Jordi Planella Ribera
218
funcional y de higiene” (2001, p. 32) que devia facilitar a regeneração
da raça. O modelo se fundamenta na reconstrução sociocorporal da so-
ciedade. O esquema que resulta dele é o seguinte:
Corpo e sociedade na nova ordenação social
Corpo Sociedade
Pode apresentar diferentes desvios
corporais que devem ser corrigidos
Normalização e ordem social
O que está desviado corporalmente também o
está socialmente
Com a correção recuperamos a ordem socia
Faz-se evidente, à luz deste modelo, que a pedagogia corretiva
está próxima a uma arquitetura do corpo, e não a uma visão humanística e
integral do sujeito. Se seguirmos a proposta de Brohm, é necessário situar
o período de apogeu da pedagogia corretiva entre 1940 e 1948. Para esse
autor, “el pétainisme pedagógico en Francia a estado literalmente obse-
sionado por el enderezamiento de la raza, la forticación del cuerpo y las
aplicaciones higienista o eugenistas del eslogan de Georges Hébert: estar
fuerte para ser útil” (2001, p. 154). A ocupação francesa ocorre em 1940,
com a entrada do exército alemão em Paris, dessa forma, se desenvolve
a ideia das novas corporeidades. Tanto Pétain quanto Marechal buscam
a constituição do Ordre Nouveau, que aponta ao mesmo tempo como
corporal e social (sociocorporal). Tratava-se, em denitivo, de colocar em
jogo três elementos chave: Pátria, Família e Trabalho, sempre com o corpo
como elemento estruturador dessas três instituições.
Dessa forma, a “corporeidade francesa” se aproxima da visão
dos corpos arianos. Corpos esbeltos, fortes, com capacidades de resistên-
cia, trabalho e produção para seu país. Tal como manifesta De Sambucy:
Todo niño francés debe saber nadar; la enseñanza de la respiración na-
sal consciente formará parte del programa escolar así como la natación,
la actitud y el orden [...] La administración tendrá derecho, después de
un examen delante de una comisión competente de antropólogos y téc-
219
Corpo, cultura e educação
nicos, de prohibir el seguimiento de los estudios intelectuales superiores
a aquellos sujetos ya deformados y tocados por alguna forma de tuber-
culosis o de debilidad equivalente. Esta ley busca disminuir el número
de sujetos incapaces de seguir sus estudios en buen estado de salud y
destinados a aumentar los hospitalizados en los sanatorios del Estado
(De Sambucy, 1946, p. 20).
O modelo regeneracionista não passava unicamente por essa
negação do acesso aos espaços de cultura aos sujeitos com corpos débeis.
As mulheres participam da seleção dos sujeitos para produzir crianças
saudáveis e corporalmente adequadas. As mulheres têm papel chave na
produção de sujeitos saudáveis.
Essas duas “ciências”, apresentadas com clareza na obra de De
Sambucy, serão o marco cientíco da pedagogia corretiva. Por meio da
antropometría puricadora (sinônimo claro da pedagoga corretiva), se
propõe a apontar as anomalias corporais e deformações físicas, para re-
cuperá-la e reconduzi-la ao estado de normalidade corporal. Para execu-
tar o modelo da antropometria puricadora, é necessário recuperar e/
ou copiar algumas das práticas desenvolvidas pelos alemães durante o
III Reich. O primeiro estado dessa tarefa será, para De Sambucy, a exe-
cução de um programa biométrico. Reunindo a tradição e os trabalhos
iniciados por Tissié, a primeira parte do século XX ativa o modelo de
regeneração corporal.
6.4. a ConStrução de CorPoS heteronormativoS a Partir
da hegemonia PedagógiCa
Torna-se evidente que a instauração das pedagogias que bus-
cam o controle das corporeidades terá a questão sexual como uma de
suas bandeiras. É possível deixar que os corpos descubram por eles
mesmos sua dimensão cultural, seu gênero? O que pode ocorrer se
os padrões/modelos sociocorporais se romperem por existir a possi-
bilidade de personicar os corpos com liberdade? Tal como apontam
Guasch e Viñuales:
Jordi Planella Ribera
220
La búsqueda de diferencias naturales entre los seres humanos ha legiti-
mado la desigualdad social. Sucedió con los negros y con los criminales.
Sucedió con los homosexuales y las lesbianas. Sucedió (sucede aún) res-
pecto a varones y mujeres. Y, sin embargo, los negros no son distintos de
los blancos (las razas no existen) (2003, p. 15).
Essa investigação de diferenças que marcam com clareza os
corpos masculinos e os corpos femininos se mostra presente neste mode-
lo pedagógico. Claramente aos corpos masculinos e aos femininos lhes
corresponde o destino corporal que está pensado e designado para eles:
o encontro heterossexual.
Se a pedagogia normatiza as sexualidades, é lógico pensar em
mantê-las escondidas, dissipadas, até o momento que aorem (depois
que já sem possibilidade de dissimulá-las). Compartilho com Vendrell
a crítica aos discursos pedagógicos que pretendem negar a sexualidade
das crianças. A negação da sexualidade —assexualidade— passaria en-
tão por acreditar que “los niños han sido y siguen siendo considerados
como seres básicamente asexuales” (Vendrell, 2003, p. 27). Apesar da
descoberta freudiana que dene as crianças como seres sexuados, muitas
pedagogias continuaram existindo à revelia dessas ideias, basicamente
por uma questão relacionada à concepção dos corpos dos sujeitos edu-
candos. Conceber a infância como “sujeitos sexuados” implica partir da
ideia de que têm autonomia corporal, e que, portanto, podem exercer,
na medida de suas possibilidades e de sua idade, algum tipo de prática
sexual. Isto entra em conito, por exemplo, com a pedagogia do fran-
quismo, que se fundamenta no catolicismo como doutrina pedagógica.
Se estas pedagogias se propõem a produzir bons cristãos e cidadãos vir-
tuosos, será necessário ajustar os corpos dos educandos aos tempos e es-
paços, controlá-los e protegê-los, domá-los e dominá-los (Lopes, 1997,
p. 98). Desta forma, a pedagogia tem o corpo como objeto pedagógico
e dirigirá boa parte de suas práticas a tentar dissimular, precisamente, a
corporeidade, aquela parte do sujeito (que de fato é a que o constitui)
que corre o risco de ter vida própria.
Com essa nalidade foi implantado um amplo conjunto de
técnicas e discursos que proclamaram o possível e o proibido, não sem
221
Corpo, cultura e educação
anormalizar e castigar a aqueles que, por um motivo ou outro, decidem
escutar seus sentimentos e as indicações de seus próprios corpos
46
. Esses
discursos serão escritos por religiosos, que muitas vezes falam puramente
a partir da teoria da sexualidade, mas que terão um êxito considerá-
vel (pelo menos no que se refere a guardar as aparências) na tentativa
de produzir uma literatura edicante para as mentes e espíritos jovens.
Neles se construirá com total clareza o que faz parte de cada sexo (se
entende masculino e feminino) e o que será considerado diretamen-
te como “desviado” ou “aberrante”, formando parte de uma amálgama
de patologias que pouco a pouco serão “cienticadas”. Será necessário
produzir masculinidades e feminilidades, católicas ambas, que possam
erigir-se em exemplos a seguir para aqueles que apresentem corpos que
não são heteronormativos.
Essa instrução se torna evidente na puberdade, quando os cor-
pos começam a se transformar e já não é possível esconder as formas, as
sensações e alguns desejos. Passar de ser menino/a a ser homem/mulher
se transforma em um perigo e em um objetivo claro da pedagogia. En-
tre outros aspectos, a proximidade corporal entre o homem e a mulher
(quando são um casal) deve ser devidamente marcada, formada e ensi-
nada. Tal como se aponta em um dos livros para edicar as mentes e os
espíritos: “el peligro está en la proximidad y en las libertades a que se
presta (...) ¡Horror, horror! No son ya un peligro de pecado, son ocasio-
nes próximas de pecado, son lascivos, no por la manera de bailarlos, sino
en sí mismos” (Esteve, 1943, pp. 40-42). O perigo, como se pode supor,
iminente e real, necessita estar presente a partir da pedagogia, pois ela
pode corrigir e prevenir os possíveis erros dos jovens. É assim que a pe-
dagogia, neste contexto em que a situamos, se transforma em produtora
e criadora de corpos heteronormativos, deixando de lado ou endireitan-
do aqueles que, por diferentes razões, se afastam do ideal corporal.
46
A obra de Ruiz Amado La educación de la castidad havia iniciado uma onda de discursos antissexuais pré-
franquistas. Precisamente esta obra tinha sido publicada como contraponto da pedagogia da Escola Nova,
que propunha liberdade de movimentos e uma educação sexual aberta para as crianças.
CaPítulo 7
A pedagogia da subjetividade
corporal
225
A   

Sospecho que trazar el mapa artístico del cuerpo humano es imposible
en esta época de monstruosa metástasis informativa y de nuevas tec-
nologías mecánico-biológicas, en la que no conocemos los límites de la
corporalidad, dónde están nuestras identidades, cuáles son las fronteras
del arte, ni quiénes son los creadores o las obras verdaderamente signi-
cativas.
[Ramírez, 2003, p. 18-19]
Le chorégraphe, comme le danseur, est dépositaire d’un sa-
voir. Il l’a en lui, incorporé. C’est son corps, son esprit qui son sources
d’enseignement.
[Olivier Marmin, 1997]
introdução
Falar de pedagogia da subjetividade corporal implica colocar o
sujeito pedagógico no centro da ação curricular. Diferente dos modelos
pedagógicos estudados no capítulo anterior, a pedagogia da subjetivida-
de corporal não se estrutura a partir da instauração de currículos corpo-
rais fechados. Agora falamos e nos situamos em e a partir da performati-
vidade corporal. A formação do sujeito e da sua corporeidade não é um
imperativo pedagógico, pois trata muito mais de que o sujeito projete a
ideação da sua corporeidade. Se os totalitarismos têm como objetivo a
projeção sobre os corpos dos cidadãos, de suas ideologias com a nalida-
Jordi Planella Ribera
226
de de produzir corpos dóceis e normativos, essa outra pedagogia busca
potenciar autonomia corporal do sujeito. Trata-se de passar a ser o ator
da sua própria corporeidade, desenhando-a com a nalidade de encar-
nar o corpo com liberdade.
Não nos interessam os corpos anatomizados, mas a sua feno-
menologia, a subjetividade da sua encarnação. Trata-se de partir do con-
ceito de incorporação (interiorização da vida social por meio do corpo)
para que se possa basear na fenomenologia corporal. Este corpo pode
aprender, além da consciência e da língua, por meio dos sentidos e da
afetividade
1
. A pedagogia da subjetividade corporal parte da ideia de que
se pode aprender por meio do corpo e da interação de nosso corpo com
outros corpos.
7.1. diSCurSividade CorPoral na Pedagogia naturaliSta
O naturalismo permite-nos realizar uma nova hermenêutica da
pedagogia corporal. O lósofo de Genebra Jean-Jacques Rousseau é o
seu primeiro expoente na era moderna e o seu pensamento pedagógico
impregnou boa parte da pedagogia que chegou até nossos dias – por
meio de diferentes correntes e tradições - porém é a inuência da pe-
dagogia de Rousseau nos pedagogos da Nova Escola que nos interessa
destacar. O retorno à natureza - à mãe Terra - será a armação mais
signicativa dessa corrente. A pedagogia que experimenta por meio das
sensações corporais, a pedagogia vivenciada (e não incutida a partir do
intelecto ou do poder) e as atividades educativas desenvolvidas ao ar
livre (a pedagogia plenairista) serão as formas de traduzir a pedagogia
romântica na educação integral das crianças.
Essas ideias, mais centradas nos modelos teóricos do momen-
to, baseiam-se nas correntes artísticas de Vanguarda; aspecto que foi
necessário somar à libertação dos corpos e dos cânones acadêmicos ri-
Tal como Faure aponta “la thématique de l’incorporation (et de l’intériorisation) dans les sciences sociales
s’est énoncée avec la problématique du rapport individu et société. De Mauss (avec les techniques du corps),
Durkheim, Bateson et Mead, à des chercheurs contemporains tlos que Elias et surtout Bourdieu, le langage
de l’incorporation s’est imposé à une large parteie de la sociologie s’intéressant plus parteiculièrement, aux
processus de socialisation” (Faure, 2000, p. 75).
227
Corpo, cultura e educação
gorosos por parte do Romantismo, que permitiu a representação dos
sentimentos e a expressão corporal
2
. As vanguardas ofereceram outro
olhar ao corpo que se faz evidente nos trabalhos de artistas como Monet,
Cézanne y Seurat. Para os impressionistas e pós-impressionistas, o corpo
passou a ser visto como um receptor da luz, tal como se desprende das
obras de Cézanne. Os trabalhos de Picasso deram um impulso denitivo
para destruir a harmonia corporal, tratando algumas partes do corpo de
forma individual ou unicando os corpos em função do que querem
representar. A partir daquele momento, o cânone de perfeição corporal
se viu obrigado a conviver com os conceitos de deformidade, desinte-
gração e monstruosidade corporal. Essas novas perspectivas, somadas
à liberação dos corpos por meio da nudez nos trabalhos do grupo Die
Brücke possibilitam esse retorno até o natural, tanto na arte quanto na
pedagogia. Também se convertem em um elemento chave os trabalhos
de Duchamp, sobretudo com as armações que faz sobre a representa-
ção dos corpos nus.
7.1.1. o naturaliSmo romântiCo na Pedagogia de rouSSeau
Os precedentes da pedagogia naturalista, que encontraram um
grande impulso durante o primeiro terço do século XX, com o início
do movimento da Nova Escola, devem ser buscados na pedagogia rous-
seauniana. Em Emílio, mas também em outras de suas obras, Rousseau
busca reformar a humanidade. Tal como armam Gonzàlez-Agàpito e
Marquès, “[…] si Rousseau analiza la situación y las contradicciones
del hombre es con el objetivo que el hombre reencuentre su auténtica
naturaleza, que se abre como ser normal en dos ámbitos: el político o
colectivo y el pedagógico o personal” (1989, p. XXVI). A proposta da
pedagogia de Rousseau é o retorno à natureza, porém a uma natureza
que não se caracteriza pela reivindicação da condição de animalidade
do homem, tal como apontava Ortega y Gasset quando interpretava
Tal como aponta Ramírez “la tradición académica creía en la existencia de un cuerpo humano perfecto, sujeto,
incluso, a unas medidas proporcionales que derivaban de los estereotipos heredados del mundo clásico. La
justicación intelectual remota estaría en el canon, aquel libro sobre el tamaño y proporciones de los cuerpos
escrito por Policleto, desgraciadamente perdido, y cuya demostración arqueológica buscaron los tratadistas del
Renacimiento, estudiando concienzudamente un puñado de estatuas grecorromanas” (2003, p. 21).
Jordi Planella Ribera
228
sua pedagogia com uma volta até a existência primitiva
3
. Sua proposta
se dirige, tal como alguns autores indicaram, a repensar a pedagogia do
Antigo Regime, excessivamente distanciada dos postulados naturalistas
4
.
Esse retorno à natureza terá um papel chave na pedagogia do
corpo. O corpo está situado em um ponto de vista da educação natural.
Rousseau arma em Emílio que, “[…] los primeros maestros de lo-
sofía son los pies, las manos, los ojos. Sustituir todo esto por libros no
es enseñarles a razonar, es enseñarles a utilizar la razón de los otros; es
enseñarles a creer mucho y a no saber nunca nada” (Rousseau, p. 135).
O retorno à natureza supõe uma atitude contrária às pedagogias que im-
peravam no momento. Wickert também aponta essa intenção contrária
da pedagogia armando que “la época precedente se había sometido al
señorío de la inteligencia” (1930, p. 92). A pedagogia impulsionada pelo
lósofo de Genebra buscava um retorno à experimentação corporal, que
supera a excessiva fundamentação racionalista com a qual a escola se
regia. Rousseau entendia que a educação deve promover o desenvolvi-
mento espontâneo da sensibilidade, para que o ser humano possa expe-
rimentar por ele mesmo e não por meio das experiências dos outros. É
nesse sentido que Goethe (1911) arma que o Emilio é “el evangelio de
la naturaleza”.
Natural e natureza derivam, etimologicamente falando, do
verbo latino nasci, natus, que pode ser traduzido por nascer e nascido
respectivamente. Compartilho com Quintana a ideia de que o natural
é “[…] lo aparecido ahí, pues la naturaleza es lo que ha surgido en el
mundo, espontáneamente” (1995, p. 62). A ideia de entender a natureza
como o surgir espontaneamente é a chave para poder compreender os
fundamentos do naturalismo pedagógico. Para Quintana, essa percep-
ção do natural se traduz em duas perspectivas naturalistas diferenciadas,
que correspondem a duas pedagogias naturalistas diferentes. As duas
pedagogias de orientação naturalista correspondem, ainda que com di-
ferentes nomenclaturas, ao naturalismo pedagógico cientíco e ao natu-
Ortega y Gasset (1959). O lósofo madrilenho apontava a ideia de que Rousseau reivindicava a condição
de Robinson do educando.
 Rousseau faz referência ao modelo de educação de príncipes instaurado no Antigo Regime em Le contrat
social.
229
Corpo, cultura e educação
ralismo pedagógico romântico. No quadro seguinte se relacionam esses
dois modelos:
Os diferentes naturalismos
Naturalismo cientíco:
- Oposto ao sobrenaturalismo e
ao humanismo.
- A realidade tem que ser
comprovada empiricamente.
- Se incluem o positivismo
francês (Compte, Renan, etc.) o
evolucionismo inglês (Darwin e
Spencer) e o materialismo alemão
(Vogt, Haeckel).
Naturalismo pedagógico cientíco:
- As únicas ciências que se consideram auxiliares da pedagogia são as
ciências naturais (biologia, siologia, sociologia, psicologia).
- A educação tem uma nalidade prática, que pode se resumir na
ideia de preparar para a vida.
- Os principais autores dessa corrente de pensamento são: Spencer,
Compayré, Gabelli, Meumann.
- Spencer outorga uma grande importância aos cuidados de saúde
corporal e aos aspectos físicos do corpo. Em sua pedagogia, chega a
admitir o castigo corporal.
Naturalismo romântico:
- Não se opõe ao sobrenaturalismo
(admite a existência de Deus),
ainda que o pensamento
pareça especulativo (de certa
forma contraposto também ao
humanismo).
- Se cona plenamente no que
é natural e se descona dos
articiais.
Naturalismo pedagógico romântico:
- Há grande conança no papel da natureza para educar as crianças.
- Se descona da intervenção humana sobre as crianças.
- Desenvolvimento da ideia de educação negativa, fundamentada no
laisez-faire (deixar fazer, deixar ir, deixar passar”)
- A natureza é a grande educadora, e se nega o protagonismo do
educador.
- A instrução intelectual tem papel pouco relevante frente à
experimentação corporal dos aprendizes.
[Realizado a partir de Quintana, 1995:65-68]
Do naturalismo pedagógico romântico surgiram diferentes
correntes pedagógicas que, com a nalidade de realizar práticas educa-
tivas na natureza, propuseram outra leitura do corpo da criança. Essa
leitura naturalista romântica do corpo e sua educação voltará a surgir
com os fundamentos ecologistas e a pedagogia ambiental do m do
século XX.
7.1.2. oS CorPoS na Pedagogia a plein air: o CaSo da eSCola
do mar de barCelona
O que determinou a pedagogia plenairista (seguindo a expres-
são francesa plein air –ar livre) vai perfeitamente ao encontro dos pres-
Jordi Planella Ribera
230
supostos de base da pedagogia naturalista. De fato, podemos armar
que as práticas pedagógicas plenairistes são uma das aplicações possíveis
da corrente pedagógica naturalista. Retomando parte das ideias do na-
turalismo pedagógico iniciadas por Pestalozzi, Basedow ou Rousseau se
propõem a potencializar atividades em plena natureza, nas quais o corpo
é o principal protagonista da ação educativa. Para esses autores, não se
trata exclusivamente de realizar exercícios físicos, mas também de poder
experimentar e viver diretamente a natureza.
Esse retorno à natureza tem lugar, nas palavras de Pereyra,
cuando ha predominado el formalismo o el excesivo intelectualismo
(1982, p. 154). Uma das experiências mais relevantes que exemplica
essa prática de realizar as atividades ao ar livre é a colônia para crianças
organizada por Walter Bion em 1876. Bion era um pastor protestante
que, ao mudar-se de uma zona montanhosa para a cidade de Zurique
observou como a saúde física de seus lhos se deteriorava. Experimentou
devolvê-los no verão à zona montanhosa de onde vieram e observou a
mudança que produziu na saúde deles. Depois da primeira experiência
com seus lhos, organizou um grupo de mães e lhos em uma estadia
de umas semanas, realizando atividades na montanha. Essa experiência
do pastor Bion se estendeu a outros países e cidades, até que chegou ao
estado espanhol em 1882. É assim que se recebeu o que em outras lín-
guas designaram como Freienkolonien, Country Hollidays o Colonies de
Vacances. Nesse mesmo ano se faz referência a essas práticas educativas
na natureza em um artigo publicado no Boletín de la Institución Libre
de Enseñanza: Colonias escolares de vacaciones
5
.
Com as atividades ao ar livre, era muito mais fácil aumentar
a qualidade de vida das crianças, diminuir as doenças e alcançar um
melhor rendimento dos alunos nas escolas
6
. Esse era fundamentalmen-
te o objetivo das colônias, tendo muito presente, porém, não oferecer
Ontañón y Costa armaram, com relação às colônias: “se da este nombre a la residencia en los mejores
puntos de montaña, durante las vacaciones de estío, de los niños débiles o convalecientes que asisten a las
escuelas urbanas y pertenecen a familias poco acomodadas”, “Colonias escolares de vacaciones”, BILE, 6,
249-251.
Nas palavras de Vilanou “Lay, el padre de la pedagogía experimental, demostró que los niños, después de
tres semanas de colonias, ganaban un aumento medio de 1,280Kg de peso, a la vez que su perímetro torácico
se engrandecía un centímetro durante la inspiración” (1994, p. 186).
231
Corpo, cultura e educação
muitas atividades intelectuais, mas sim muitas corporais. No entanto, a
pedagogia plenairista não se limitava às colônias que se podiam organi-
zar durante os períodos de férias escolares, e alguns projetos traduziam
a ideia de educação naturalista nas escolas. As experiências procedentes
das public-schools de omas Arnold, a escola de Yasnaïa Poliana e el
Cempuis de Robin eram um signicativo ponto de partida para essa ten-
dência de educar as crianças, não somente nos aspectos intelectuais, mas
em uma visão holística ou integral. Nesse sentido, para Robin trata-se
de poder oferecer um:
Equilibrio entre la acción y el reposo, alternancia de los diversos
métodos de actividad y de los distintos órdenes de ejercicios: pro-
porción, distribución estudiada, según las edades, de las horas de
trabajo intelectual, ejercicio físico y sueño. Aire y luz a mares para la
joven planta humana; vida en el campo si es posible. La clase a cielo
abierto, en el jardín y en el bosque cuando el tiempo lo permita.
Gimnasia natural, ejercicios al aire libre, juegos organizados, paseos,
excursiones, sesiones de baño en el mar (1981, p.45-46).
Entre muitas das possíveis referências a essas experiências, en-
tramos no papel que o corpo das crianças teve na Escola do Mar de
Barcelona. A Escola do Mar de Barcelona é a concretização de um dos
projetos de educação para a saúde. Consolidaram suas ideias durante
o primeiro terço do século XX na cidade de Barcelona, inaugurada em
1921. É necessário localizar a Escola do Mar no contexto da pedagogia
da Escola Nova, como propõe Saladrigas:
El concepto Escuela que perduraba respondía a un criterio cerrado,
hermético, absolutamente anacrónico. Por un lado existía la escue-
la nacional y la privada, ambas exclusivamente instructivistas, que
aplicaban métodos y procedimientos que se convertían en inope-
rantes por falta de evolución. Por otra parte la Escuela Moderna de
Ferrer y Guardia (...) y las escuelas de las congregaciones religiosas,
que funcionaban con criterios muy peculiares (...) pero todas pen-
sadas y orientadas de cara a las familias de la más alta burguesía.
(Saladrigas, 1988, p. 159)
O objetivo da Escola do Mar era oferecer a possibilidade às
famílias com poucos recursos econômicos (especialmente aquelas que
Jordi Planella Ribera
232
viviam no bairro de Barceloneta de Barcelona) para que seus lhos pu-
dessem desfrutar de atividades educativas em contato com a natureza. A
losoa educativa que marcou a sua trajetória partiu da ideia de que as
crianças deviam estar abrigadas somente naqueles momentos que fossem
imprescindíveis (quando chovia, fazia muito frio, etc.). Portanto, o espa-
ço por excelência onde se realizavam as atividades da Escola do Mar era
a praia, entre a areia e a água. Para captar o sentido relevante da presença
dos corpos das crianças nesse contexto, é importante considerar um dos
textos que salientaram os dias da sua inauguração na imprensa de Barce-
lona. Fazendo referência aos horários e atividades próprias da Escola do
Mar, se armava que:
El horario es distinto, según las estaciones; en la actualidad es el
siguiente: a las ocho de la mañana, ingreso en la escuela, seguido de
preparación para el desayuno, que terminará a las nueve; hasta las
diez, clase en la playa; una hora de expansión y gimnasia, y otra de
clase; al mediodía, preparación higiénica para la comida, que termi-
nará a la una y media; media hora de descanso absoluto en la playa
y media hora más de expansión con juegos; de dos y media a tres
y cuarto, clase en las aulas; otro rato de expansión, media hora de
clase, y de cuatro y media a cinco, merienda y salida de la escuela
7
.
A experiência da Escola do Mar em relação aos corpos dos
educandos permitiu uma mudança de perspectiva em torno da ideia de
disciplina dos corpos
8
. As crianças assistidas pela escola necessitavam re-
cuperar-se dos estados de enfermidade, e o mais signicativo é que mu-
daram, entre outros aspectos, a relação que mantinham com o próprio
corpo. O horário anteriormente mencionado nos conrma: múltiplos
espaços livres a dispor para a criança, além de muitas atividades destina-
das a educar e trabalhar o corpo
9
. Não se trata, como acontecia em mui-
 Artigo da imprensa (sem data) reproduzido por Saladrigas (1988, p. 169).
Em relação a outros tipos de práticas pedagógicas corporais, é relevante a crítica de Galí ao modelo médico-
pedagógico Jeroni Estrany: “cayó en esta aberración pedagógica e inventó su mesa y su asiento para los
niños (...) Por eso en las escuelas del distrito VI las aulas eran pequeñas y los chicos se sentaban en bancos
tripersonals que podían ser emplazados cómodamente en la distancia focal; es decir, se consagraba con este
sistema, la pedagogía de la inactividad del chico enfrente del maestro que explica” (1978, pp. 115-116).
 Nesse sentido são signicativas as imagens da Escola do Mar e as práticas corporais que ali se realizavam
que aparecem Saladrigas (1988). Entre outros, encontramos fotograas das crianças jogando na areia,
tomando banho de mar, etc.
233
Corpo, cultura e educação
tas escolas contemporâneas à Escola do Mar, de ter os corpos dispostos
ordenamente, mas tratava-se de oferecer múltiplas possibilidades para
que as crianças encarnassem seus corpos. Essas múltiplas possibilidades
recuperaram a saúde física das crianças (que, ao entrarem na escola, es-
tava muito debilitada), porém, também zeram com que expressassem
por meio do corpo suas demandas e necessidades.
A prática de educar ao ar livre, com altos e baixos, defensores e
opositores, tem evoluído até os nossos dias, porém tratou-se, sobretudo,
de uma prática que possibilitou a muitas crianças desfrutarem de ativi-
dades educativas saudáveis que, encerradas nas escolas das grandes cida-
des ou nas habitações fúnebres de suas casas, não poderiam vivenciar.
7.1.3. a reCuPeração PedagógiCa do CorPo na eSCola nova
Falar de recuperação pedagógica do corpo me obriga a fazer re-
ferência aos projetos pedagógicos da Escola Nova
10
. Entendo por Escola
Nova a expressão que o sociólogo francês Edmond Demoulins designou
sobre as teorias e correntes existentes depois do século XIX (Cousinet,
1950, p. 77) e que, entre outros, contribuem para um ensino funda-
mentado nos métodos ativos e uma atenção especial aos aspectos físicos
da pessoa. Também Adolf Ferrière, fazendo referência à Escuela Activa
deniu o movimento dizendo que se trata de uma:
Reacción contra lo que subsiste de medieval en los sistemas actu-
ales de enseñanza: contra su formalismo, contra su práctica habitual
de desenvolverse en el margen de la vida, contra su incomprensión
profunda de lo que constituye el hondo y esencia de la naturaleza
infantil. La Escuela activa no es antiintelectual sino antiintelectua-
lista: combate esa inclinación que concede a la inteligencia un lugar
preponderante (1982, p. 10).
Para mim, o relevante da Escola Nova é sua oposição à tra-
dição cristã e ao cartesianismo, em especial às concepcções que essas
duas perspectivas têm do corpo. O corpo era visto a partir dessas po-
10
Utilizei a expressão “recuperación pedagógica del cuerpo” embora poderia ter designado a essa prática e
a esse modelo pedagógico de outras formas. Um exemplo dessa utilização que faz iebault quando fala de
cuerpo reintegrado (1977, p. 199).
Jordi Planella Ribera
234
sições como algo vulgar, satânico ou bestial, e seu principal objetivo
buscava dirigir, disciplinar e submeter os corpos educandos para asse-
gurar a saúde das crianças.
A Escola Nova como alternativa para a pedagogia
corporal cristã e cartesiana
Escola Nova
Opõe-se a visão
cristã e cartesiana de
corpo
Entende o cuerpo
como:
- vulgar
- satânico
- bestial
Sua pedagogia busca:
- disciplinar
- submeter
- enfeitar os corpos
Os corpos se trans-
formavam em corpos
normais..
Também a Institución Libre de Enseñanza coloca essa neces-
sidade de não só instruir, mas de educar as crianças, revelando nelas
interesses diferentes
11
(Destaca-se que, para Francisco Giner, os jogos, a
partir do ponto de vista físico, psicológico e pedagógico, são um tema
focal.) Portanto:
Para conseguirlo, quisiera la Institución que en el cultivo del cuerpo
y alma nada les fuese ajeno. Si le importa forjar el pensamiento como
órgano de la investigación racional y de la ciencia, no le interesan
menos la salud y la higiene, el decoro personal y el vigor físico, la
corrección y nobleza del hábito y maneras, la amplitud, elevación y
delicadeza del sentir; la depuración de los gustos estéticos, la humana
tolerancia, la ingenua alegría, el valor sereno, la conciencia del deber,
dispuestos a vivir como piensan, prontos a apoderarse del ideal en
donde quiera, manantiales de poesía (Seage y al., 1977, p. 35).
11
Também há que se destacar que, para Francisco Giner, os jogos, a partir do ponto de vista físico, psicológico
e pedagógico, são um tema focal.
235
Corpo, cultura e educação
Os métodos ativos nos indicam que a aprendizagem por parte
do aluno também será ativa e que este abandonará sua posição de es-
pectador ou de receptor passivo das aprendizagens. A presença corporal
ativa do sujeito pedagógico será necessária para possibilitar as aprendi-
zagens, pois elas se darão por meio de todos os sentidos. Essa mudança
na concepção pedagógica fará com que comece a emergir uma pedago-
gia antropológica que não concebe o educando como uma separação
irrecuperável entre corpo e mente, e sim a partir de uma perspectiva
holística e integral. É assim que, desde a Escola Nova, se privilegiaram
pedagogias que mostram que corpo e alma estão estreitamente ligados.
Para construir a personalidade das crianças, há que se ter presente sua
dimensão biomecânica, siológica, motora, psicológica, afetiva e social.
Incorporar essas múltiplas dimensões traduz-se da seguinte forma:
oferecer liberdade de movimentos às crianças nos espaços e con-
textos educativos;
encarar o desenvolvimento infantil de maneira que tenha pre-
sente a perspectiva psicológica, social, afetiva e motora;
partir da idea de atividades verdadeiras, o que passa por facilitar
as aprendizagens por meio da experimentação pessoal do edu-
cando;
re-introdução e potencialização daquelas matérias escolares que
haviam sido consideradas marginais, precisamente por colocar
em jogo a dimensão corporal: educação física, plástica e música;
facilitar a tomada de consciência do corpo por parte da crian-
ça, que leva implícita a condição sine quanon de negar a noção
cristã, e de certa forma também cartesiana, de pecado carnal ou
corporal. Em seu lugar, potencializar e fazer vivenciar o corpo
como possibilidade de experimentar o prazer.
Essa visão integral da criança por meio da pedagogia que men-
ciono tem um antecedente claro na experiência de Cempuis e a pedago-
gia integral de Paul Robin. Para esse autor francês, trata-se de colocar em
Jordi Planella Ribera
236
jogo as três educações necessárias, com igualdade de condições e oportu-
nidades: educação física, educação intelectual e educação moral
12
.
No entanto, o estabelecimento de uma educação integral deve
passar necessariamente pela recuperação do deslocamento das pedago-
gias corporais, e é, por isso, que Cempuis ca impregnado deste cará-
ter pedagógico corporal. O proseguimento dos exercícios pedagógicos
corporais se desenvolve sob a inuência da antropometria, medindo
exaustivamente a evolução dos corpos das crianças. Juntamente com
essa recuperação das pedagogias corporais como parte integrante das
aprendizagens escolares, mencionar Cempuis é relevante por oferecer
uma educação mista em que as diferenças sexuais não deveriam reger
processos de aprendizagem excludentes e/ou diferenciados.
A experiência de pedagogia integral iniciada por Robin marca
o ponto de partida de novas práticas que têm o corpo como elemento
central do educando. Nesse sentido, os esportes serão uma ferramenta
chave para o desenvolvimento das práxis educativas. Também a pedago-
gia de Dewey se sustenta em um modelo antropológico naturalista que
nega qualquer tipo de dualismo corpo-alma. Como arma González:
suponen las dicotomías alma-cuerpo, psíquico-físico, teoría-prác-
tica, Dewey se opone con energía a los dualismos que desde los
griegos han impregnado no sólo el pensamiento, sino también la
misma vida social (con la división en clases sociales y la asignación
de una diferente función social en cada una de ellas). Según Dewey,
hay que superar la articialidad que empírico-racional, naturalismo-
-humanismo, etc. (2001, p. 25).
A partir dessa perspectiva, Dewey critica essa obssessão da pe-
dagogia tradicional para aplacar, submeter e ter controlados os corpos
dos educandos, que não faz outra coisa senão dicultar a transmissão de
saberes intelectuais por parte dos professores: “[...] en parte, la actividad
corporal lega a ser una intrusa. No teniendo nada que hacer, según se
piensa, con la actividad mental, se convierte en una distracción, en un
mal contra el que hay que luchar” (1995, p. 125). É evidente, à luz do
conjunto referencial que analisamos, que a sistematização pedagógica
12
O tema é tratado com profundidade por Dommanget (1970)
237
Corpo, cultura e educação
da Escola Nova, e de sua inuência em pedagogias posteriores, busca o
reposicionamento do papel do corpo na educação e sistematização de
uma pedagogia de caráter integral, além das ontologias dicotômicas que
entendem o sujeito pedagógico como a soma de corpo e alma.
7.1.4. a PSiComotriCidade e o CorPo daS CriançaS na
eduCação
A psicomotricidade também é fruto dessa mudança hermenêu-
tica que ocorreu na pedagogia, reposicionando o corpo em um espaço
central da práxis pedagógica. Optei por situar a psicomotricidade no
naturalismo, apesar de ser consciente de que dependendo da perspectiva
hermenêutica que tomamos de referência, também poderia estar no bio-
logicismo. A mesma expressão psicomotricidade nos situa na tradição
das pedagogias holísticas ou integrais. O corpo e a mente conguram
a mesma essência etimológica da expressão psicomotricidade, que tem
como perspectiva a educação holística da criança. A mesma denomina-
ção da disciplina nos dá pistas claras do modelo antropológico que a sus-
tenta: aquele psicológico (a mente) não se encontra separado ou isolado
do corpo, embora existam claras conexões entre a mente e o corpo. Esse
é o objetivo base da psicomotricidade: resolver o problema da mente e
do corpo nas práticas educativas buscando encontrar uma solução ao
mesmo tempo psicológica e cientíca. Assim como arma Arnáiz “[…]
desde principios de siglo XX hasta hoy, los psicomotricistas (sobretodo
franceses, ya que no debemos olvidar que el ámbito de la psicomotri-
cidad nació en Francia) han primado el aspecto de la corporeidad que
engloba el cuerpo somático, el cuerpo mecánico y el cuerpo energético
(1987, p. 11). No contexto do nascimento da psicomotricidade, dá-se
uma nova concepção sobre a ideia de corpo a partir do que se denomi-
nará corpo sutil (Le Camus, 1980; 1984). Essa concepção tenta superar
o paradigma anterior, que interpretava o corpo como uma estrutura ana-
tomosiológica, especialmente aprimorada a partir do paradigma biolo-
gicista da educação.
Portanto, a psicomotricidade nasce como resultado da tentati-
va de superar os modelos terapêuticos e educativos fundamentados em
Jordi Planella Ribera
238
una perspectiva anatômica e clínica. Antes, tanto a losofía quanto a
medicina tinham estado preocupadas em dar uma resposta à perspectiva
antropológica dualista impulsionada de novo por Descartes. As soluções
buscadas por estas disciplinas optam por soluções que põem em foco
uma ou outra dimensão deste dualismo; bem no corpo, bem na mente.
Foi a partir dos trabalhos feitos por Maine e pelos neuropsiquiatras do
início do século XX que começaram a se estabelecer as bases para o nas-
cimento dessa nova disciplina.
A neurologia será uma das primeras ciências que aborda o
estudo para a fundamentação da psicomotricidade. É o que Gibello
denominou encruzilhada da psicomotricidade (1970), já que alguns
dos setores existentes na neurologia deixaram de lado as explicações
anatomosiológicas. A neurosiologia foi outra forma de abordar a
noção de psicomotricidade, sobretudo com os trabalhos de Sherrin-
gton quando em 1906 fala da ação integradora do sistema nervoso.
Este feito traz uma nova perspectiva, uma vez que evidencia a conexão
entre o corpo do indivíduo e as interações com os outros e com o meio
ambiente que o rodeia.
Finalmente, a neuropsiquiatria infantil também abordou a
psicomotricidade. São relevantes os trabalhos de Dupré descrevendo,
em 1907, a síndrome de debilidade motora e, em 1909, relacionando-a
com a ideia de debilidade mental e expondo pela primeira vez o que
se denomina psicomotricidad infantil (Arnáiz, 1987, p.14)
13
. Contudo,
Dupré não será o único neuropsiquiatra infantil que se sente atraído
pela temática das relações corpo-mente. Entre outros, e especialmente
pela sua importância no estudo que nos ocupa, Henry Wallon merece
um comentário detalhado.
Assim, de maneira paralela às abordagens de Dupré, Wallon,
a partir de uma perspectiva psicobiológica, começou, já antes da pri-
meira Guerra Mundial, a trabalhar sobre as relações entre debilidade
mental e transtornos no desenvolvimento motor. Em sua tese de dou-
13
Trata-se do trabalho feito conjuntamente com Merklen e apresentado no 19º Congreso de Alenistas
y Neorólogos franceses realizado em Nantes nesse mesmo ano e intitulado “La débilité motrice dans ses
rapports avec débilité mentale” (1909, pp. 405-424)
239
Corpo, cultura e educação
torado intitulada El niño turbulento (1925) fez algumas abordagens
chave, especialmente com relação a determinar os estados e os trans-
tornos do desenvolvimento psicomotor e mental de crianças. Desta-
cam-se Maigre e Destrooper:
Es esencial en la obra de H. Wallon donde encuentra el punto de
partida de esta noción fundamental de unidad funcional, de unidad
biológica de la persona humana. El psiquismo y la motricidad cons-
tituyen dos campos distintos yuxtapuestos (Maigre y Destroopor,
1975, p. 11).
Wallon foi, portanto, o autor que permitiu sistematizar algu-
mas das ideias abordadas sobre o tema, até então. Toda sua obra girou
em torno da ideia de mostrar com que importância o movimento con-
tribui com o desenvolvimento da criança, até chegar a armar que o mo-
vimento é a expressão da vida psíquica da criança e congura toda sua
personalidade. Um dos aspectos que a evidencia é que a criança, antes da
linguagem verbal, põe em jogo toda uma linguagem gestual (tonicidade,
gesto, movimento, etc.). Seus trabalhos levaram-no a denir algumas
síndromes de insuciência psicomotora e a ser o primeiro a relacionar os
transtornos psicomotores aos transtornos de comportamento.
Fora dessas abordagens, desenvolvidas dentro do contexto
francófono, foram realmente signicativos os trabalhos de María Mon-
tessori. O método da doutora Montessori se baseava na atividade da
criança a partir de seus interesses, mas também com relação à atividade
sensorio-motora. Entre outros aspectos, insistia no que ela denominava
lição de silêncio, a partir da qual a criança aprendia a controlar e inibir
suas ações.
O último autor estudado desse periodo e que realiza destacadas
abordagens à fundamentação da ciência da psicomotricidade foi Jean
Piaget. Como arma Ángel (1997, p. 8) “Piaget evidencia que la activi-
dad motriz se encuentra en relación con la actividad psíquica global del
niño (...) La imitación permite el paso de la sensoriomotricidad al pensa-
miento representativo”. Nesse sentido, os trabalhos do espistemólogo de
Genebra visam romper com a concepção anteriormente apontada e que
Jordi Planella Ribera
240
havía sido dominante até aquele momento. Como lembram Maigre e
Destroopor, “Piaget es un lógico y se interesa tanto por la unidad del ser
como por la explicación de los fenómenos implicados en la organización
de las funciones cognitivas en el niño” (1975, p. 12). Seus trabalhos se
concretizaram na elaboração dos diferentes estados de desenvolvimento:
período sensorio-motor, inteligência representativa pré-operatória, ope-
rações concretas e operações formais.
7.2 a eduCação do CorPo a Partir da PerSPeCtiva
CulturaliSta
O último dos movimentos que quero abordar neste capítulo é
a construção do discurso pedagógico corporal a partir do culturalismo
14
.
Este novo olhar pedagógico sobre os corpos se baseia nas abordagens dos
trabalhos de Freud e de Cassirer, e se nutre de muitas outras pedagogias
que remontam até os dias de hoje. A origem deste movimento é anterior a
Freud: “en realidad, el culturalismo pedagógico tiene su origen en la obra de
Dilthey que había incorporado una crítica de la razón histórica” (Vilanou,
2003, p. 231). Contudo, apesar desta origem diltheyana, foi justamente
a abordagem de Freud sobre o descobrimento da sexualidade infantil que
possibilitou uma nova interpretação dos corpos a partir da pedagogia. Esse
fato, juntamente com a posibilidade de oferecer aos corpos um olhar sim-
bólico que facilitou o pensamento losóco de Cassirer, permitu pensar que
el ser humano puede caracterizarse por el hecho de ser capax symbolorum
porque, siempre y por todas partes, se encuentra situado en un trayecto her-
menéutico” (Duch, 1997). O simbolismo do corpo foi o catalizador de uma
pedagogia performativa, aberta a todas as dimensões da pessoa.
A arte também marcou consideravelmente a percepção e a con-
cepção do corpo. É desta maneira que o surrealismo rompeu com as formas
dos corpos, porque à sua luz já não há formas estáveis pré-establecidas, e a
14
É necessário ligar o culturalismo pedagógico à concepção da educação como Bildung. Nas palavras de
Vilanou: “Para las ciencias del espíritu el concepto de “formación” (Bildung) ocupa un lugar central al
presentarse como la guía de los procesos educativos que giran alrededor de los ideales de la pedagogía de la
cultura (Kulturpädagogik) que desea transmitir valores” (2003, p. 232). É, pois, a partir desta perspectiva que
existem vínculos claros entre a Bildung e a Paideia; tanto em uma como na outra, considero os aspectos da
educação corporal pontos relevantes do pensamento pedagógico).
241
Corpo, cultura e educação
partir da arte se pôde transformá-los e modicá-los como desejado. A obra
de Salvador Dalí abordará essa perspectiva de ruptura, reconhecida pelas
reexões teóricas de Bataille em seu livro o Erotismo, em que defende que o
desejo pelo erotismo é o desejo que triunfa da proibição
15
. Os trabalhos da
escola inglesa, representados por Lucian Freud e Francis Bacon deram, no
entanto, outra perspectiva à dimensão simbólica dos corpos. Se para Bacon
o corpo não pode ser representado já que não tem forma, para Lucian Freud
trata-se de representar o corpo tal como é, sem nenhuma pré-determinação
estética. O fato de escolher personagens “no estéticamente bellos” já é uma
aposta clara pelo exercício deconstrutivo dos estereótipos corporais
16
. Essa
deconstrução dos estereótipos corporais possibilitou a transformação até a
dimensão simbólica do corpo, lida a partir de uma perspectiva culturalista.
7.2.1. PSiCanáliSe e eduCação: libertação do CorPo do
eduCando
Armei, no capítulo dedicado à teoria do corpo, que os traba-
lhos de Sigmund Freud permitiram dar um importante passo nas rela-
ções corpo-mente, que chegaram no seu apogeu com a formulação da
teoria do inconsciente. A inuência de Charcot permitiu a Freud fami-
liarizar-se com os estudos sobre histeria (hoje conhecida como transtor-
no de conversão somática) e as relações existentes entre enfermidades
orgânicas e enfermidades psíquicas. O termo psicossomático põe de lado,
precisamente, esta relação direta entre o psicológico e o corporal. O
panorama social, em relação às questões sexuais abordadas por Freud, é
descrito por Foucault (1984) a partir dos quatro eixos seguintes:
a pedagogização do sexo da criança
a esterilização do corpo das mulheres
a regulação dos nascimentos
a psiquiatrização das perversões
15
Para Chadwick, El gran masturbador de Dalí (1929) “revela el rol de Gala como estimuladora del deseo
erótico que inicia el proceso de desilusión, y la conexión entre realidad interior y exterior, ya que está
emergiendo directamente de la mente de Dalí”.
16
Como aponta Pérez, “la carne en los cuerpos de Lucian Freud pesa, se derrama sobre la pierna o el sofá,
sin que exista ninguna pincelada correctora que lo impida” (2000, p. 97).
Jordi Planella Ribera
242
É justamente essa realidade, especialmente em Viena no nal
do século XIX, que a comunidade artística e intelectual tenta mudar por
meio de suas múltiplas abordagens. Nas palavras de Tubert, “La cultura
liberal tradicional se había centrado en el hombre racional, capaz de
crear una sociedad mejor mediante el dominio de la naturaleza y el auto-
control moral” (1996, p. 210)
17
Esse homem racional, com a chegada do
século XX, deu lugar a um homem que buscou desentranhar o desejo,
a paixão, a proibição e o sofrimento. Freud teve um papel central nesse
cenário de redescobrimento do papel do homem novo. A psicanálise
permitiu-lhe desmascarar e liberar dos véus que não permitem encarnar
seu corpo plenamente, porque a formação do eu está conectada à ideia
de que o indivíduo cria seu próprio corpo. É nesse sentido que, para
Freud, o eu é, sobretudo e principalmente, um eu corporal. Porém, o
mais relevante da abordagem de Freud sobre o tema do corpo é, nas
palavras de Le Breton, o que “opera una ruptura epistemológica que
sustrae la corporeidad humana a la lengua de madera de los positivismos
del sigloXIX” (1992, p. 17). É dessa forma que Freud introduziu um as-
pecto relacional como centro da corporeidade, criando uma verdadeira
estrutura simbólica.
7.2.1.1. aS abordagenS de uma Pedagogia do CorPo
Segundo Wilhelm reiCh
Além da abordagem de Freud, uma das grandes abordagens
da pedagogia do corpo -que podemos considerar, no entanto, mais re-
levante para esta seção- é a obra do seu discípulo Wilhelm Reich. Em
1923, Reich começou a manifestar suas discrepâncias com Freud, e isso
o levou a romper com seu mestre dez anos mais tarde. De sua obra, é
necessário destacar o livro La función del orgasmo (1927), que reescreveu
em 1942, fazendo variações sugestivas. De acordo com a teoria de Reich,
o orgasmo é a energia que move o indivíduo e, no momento em que
o sujeito não tem a possibilidade de experimentar um orgasmo plena-
17
Há que se ter em conta, também, que os trabalhos de Nietzsche, especialmente seu texto breve “contra
los despreciadores del cuerpo”, inuenciaram os jovens artistas e intelectuais vienenses, o que lhes permitiu
dividir um marco de pensamento comum na tarefa de revisar e reconstruir uma sociedade tradicional.
243
Corpo, cultura e educação
mente satisfatório, aparece o conito neurótico. Reich coloca em nível
corporal a aparição de males psíquicos do sujeito. A partir do ponto de
vista que estou fundamentando este livro, o que realmente interessante
é que, para Reich,
18
La sexualidad era el centro a cuyo alrededor giraba no únicamente la
vida interior del individuo sino toda su vida social. Y es congruente-
mente con esto que, años después, Reich arma que los elementos propios
en la ideología neurótica obsesiva y en general de la inhibición de la
potencia orgásmica están en la moral sexual defendida e impuesta por
la burguesía” (Munné, 1982, p. 78).
Essa imposição das ideias sociais, que determinam os modelos
corporais e os usos que os indivíduos podem fazer deles, é estruturada na
obra de Reich, que as sintetizou na tabela seguinte:
As capas da corporeidade segundo Reich
CAPAS CORPORAIS CARACTERÍSTICAS
Primeira máscara do
autodomínio
Caracterizado pela amabilidade compulsiva e não sincera, assim como
por um alto nível de sociabilidade articial.
Inconsciente freudiano
Caracterizada pelo sadismo, a avareza, a luxúria, a inveja e as perversões.
É o produto de uma cultura negadora dos corpos dos sujeitos e de suas
possibilidades reais, especialmente com relação à vertente sexual.
Sociabilidade e sexualidade
naturais
Se trata da capacidade de amar<A[amar|estimar]> e de desenvolver o
prazer natural. Representa o núcleo biológico da estrutura humana,
inconsciente. Se encontra nos desacuerdos com muitos aspectos da
educação e dos regimes autoritários.
O método de Reich, aplicado sobretudo à questão terapêu-
tica, argumentava que mudar o corpo era quase como mudar a Wel-
tanschauung do indivíduo (Robinson, 1971). Mudar a cosmovisão do
indivíduo passa por conceber o própio corpo a partir de outra dimen-
são, além das estruturas sociais que o construíram de uma forma de-
terminada (precisamente dando-lhe a forma que aquela sociedade ou
aquele estado lhe desejava dar). Trata-se de uma pedagogia que busca
18
Reich o fundamenta da seguinte forma: “la moral sexual burguesa, cuya esencia consiste en considerar
la vida sexual no como algo natural sino en estricta dependencia con el orden social actual, y al ahogar la
sexualidad, al coger una actitud timorata y represiva frente a ella, se encuentra embutida en nuestra piel -en
nuestra piel de comunista- mucho más profundamente de lo que creemos” (Munné, 1980, p. 101).
Jordi Planella Ribera
244
apaziguar o dualismo entre o corpo e a alma, entre a vertente somática
e psíquica, e centra-se no sujeito holístico
19
. Para Reich, quebraram-se
as fronteiras entre corpo/psique e busca-se a unidade do ser a partir da
consciência corporal, partindo da unidade ou totalidade do ser. Nesse
sentido, armou que:
La praxis demostrará (...) que nuestra tarea, que es la de dar a los
jóvenes los indispensables conocimientos políticos, se nos hará más fácil
cuanto más consigamos vencer sus inhibiciones sexuales y sus prejuicios
morales. En esta cuestión solamente podemos alcanzar el éxito si opone-
mos a la ideología burguesa, hipócrita y negativa, una ideología que se
pronuncie a favor de la sexualidad (Reich, 1980, p. 102-103).
Reich volta a insistir no desbloqueio mental e social relaciona-
do aos corpos e aos seus usos, e em como uma pedagogia de orientação
burguesa os constrói com padrões claramente predenidos. Reich parte
da ideia de que toda rigidez muscular tem sua origem em um momento
concreto. Na rigidez muscular, podemos ler a história e o signicado da
produção do corpo rígido. Nesta interpretação, que segue fundamenta-
da na psicossomática, Reich vê um espaço de possibilidades, de educa-
ção e reeducação corporal.
Nesse sentido, a pedagogia corporal de Reich se propõe a li-
berar o que ele denomina energias vegetativas, por meio das quais será
possível libertar o sujeito. Seu interesse não é o corpo como objeto de
intervenção/manipulação/libertação, mas sim nos efeitos e relações das
intervenções entre o corpo e a mente. Não se trata de um modelo ginás-
tico ou da aplicação sistemática de exercícios que utilizam a massagem
corporal; não é suciente o relaxamento dos ombros
20
. Em um sentido
mais amplo, há que ler a obra de Reich como uma verdadeira revolução
corporal, no sentido que ajudou a pensar os corpos a partir de novas
perspectivas. Como propõe Brohm, “con Wilhem Reich como maestro
pensador, una verdadera religión del cuerpo ha nacido y quiere resucitar,
desembastillar al cuerpo que la sociedad moderna ha construido” (2001,
p. XVII). Reich é especialmente signicativo por conectar os aspectos
19
É interessante a visão particular que Albertini (1994) oferece dos trabalhos pedagógicos de Reich.
20
Esta temática foi estudada por Wagner (1994).
245
Corpo, cultura e educação
corporais aos sociais. O que afeta e congura as neuroses dos sujeitos
encontra-se diretamente relacionado à construção dos modelos corpo-
rais e como estes afetam o sujeito, com relação aos níveis de repressão
corporal
21
.
7.2.2. a eduCação do CorPo SimbóliCo
É possível pensar na dimensão simbólica do corpo a partir dos
trabalhos de Cassirer, e, concretamente, a partir de seu Philosophie der
Symbolischen Formen (1929) e de outros autores que, situados em posi-
ções pedagógicas discursivas ou por meio de outras disciplinas, acredi-
taram na possibilidade de romper com o monopólio de uma pedagogia
em que o corpo sofria uma posição de sequestro
22
. Cassirer coloca a
dimensão simbólica como uma das competências antropológicas funda-
mentais, sem as quais seria errôneo conceber e interpretar o homem e
suas possibilidades. Entre muitas das abordagens que conguram uma
certa arquitetura da dimensão simbólica do corpo, é relevante o que
Vilella propõe em Do corpo equívoco:
Ahora, en cuanto forma simbólica, el cuerpo se asume como objeto epis-
temológico privilegiado de la modernidad, ya que a través de la descons-
trucción del signicado asimilado al cuerpo es posible analizar como se
constituye un modo especíco de relación real. (Vilela, 1998, p. 10)
23
Falar da dimensão simbólica do corpo e de sua pedagogia é
possível, entre muitos outros aspectos, porque cada vez se analiza menos
(pelo menos como única aliação) a partir de posições objetivas (o corpo
entendido como cuerpo-objeto), passando, por sua vez, a ser interpreta-
do como parte integrante dos processos de subjetivação, que dão lugar a
21
Entendo por repressão corporal não apenas aqueles aspectos que fazem referência à repressão sexual dos
sujeitos, mas toda aquela que tenha a ver com as corpo-normatividades. Entre outros, situo a estigmatização
dos sujeitos por terem se tatuado, perfurado, operado, mudado, denitivamente, seu corpo.
22
Será precisamente sua capacidade de caracterizar-se como capax symbolorum que propõe Duch que sua
corporeidade necessariamente terá que ter a vertente simbólica e não somente física (1997).
23
Para a autora portuguesa, a dimensão simbólica (e signicativa do corpo) é possível graças às diferentes
expressões de racionalidade que oferecem a arte, a ciência, a teoria do conhecimento, a pedagogia ou a ética.
O conhecimento passa a implicar diretamente no do corpo, pois nos grilhões de sua conguração o corpo se
constitui como o conhecimento da realidade.
Jordi Planella Ribera
246
diversas produções de subjetividade (Probyn, 1992). Esta dimensão sim-
bólica do corpo é traduzida por Bárcena et al. como linguagem poética,
e o corpo passa então a ser entendido como “el lugar que da lugar a los
acontecimientos de la existencia” (2002, p. 12).
Estou falando, denitivament, da mesma estrutura à qual me
referi em mais de uma ocasião nos primeiros capítulos do presente livro.
Trata-se da constituição e da relação dos conceitos que na língua alemã
servem para designar justamente essas duas dimensões ou perspectivas do
corpo: Körper e Leib
24
. A diferença entre os dois conceitos de um mesmo
termo não foi realizada na língua castelhana e não é necessária, a não ser
que se concretize com o apoio de outra palavra para dar-lhe um signica-
do mais especíco e anado. O termo que me interessa ressaltar é o con-
ceito de corpo como Leib, que, nas palavras de Marzano, se trata “de un
cuerpo-sujeto-intencional” (2002, p. 1). É, pois, a partir desta perspectiva,
que se abre a possibilidade que o corpo possa ser visto como algo mais do
que propriamente o físico (Körper) e seja visto como a parte constituti-
vamente subjetiva da pessoa. Nas palavras de Merleau-Ponty, trata-se de
conrmar que “yo no estoy delante de mi cuerpo, estoy en mi cuerpo, más
aun, soy mi cuerpo” (1945, p. 175). O novo olhar para o corpo se traduz
como corporeidade e situará o sujeito em uma posição relacional, pois
sua corporeidade não surgirá, senão por meio da entrada em contato (da
socialização) com os outros corpos que são diferentes a ele.
A pedagogia do corpo simbólico bebeu das fontes dos movi-
mentos pedagógicos do pré-guerra, especialmente das abordagens do mo-
vimento da Escola Nova e da pedagogia naturalista, pois estas pedagogias
não se colocavam como objetivo (implícito ou explícito) a coisicação
do educando, sem o melhoramento e estimulação da sua expressividade
corporal. São pedagogias interessadas na dimensão Leib do corpo, e não
se centram exclusivamente em sua dimensão Körper. Essa reivindicação
do corpo simbólico se realiza, apesar da insistência por parte de algumas
pedagogias de dessignicar as dimensões signicativas dos corpos
25
.
24
A diferença entre Körper e Leib é uma precisão terminológica e conceitual compartilhada por boa parte
dos fenomenólogos. Entre outros, é relevante a abordagem feita por Stein: “el cuerpo (Leib) está caraterizado
y distinguido de la carne (Körper) pura y materialmente que lo constiuye” (1992, p. 57).
25
Como Mèlich arma: “en muchas ocasionas la corporeidad no irrumpe en lo cotidiano, sino que se oculta
247
Corpo, cultura e educação
Se revisarmos os trabalhos de Fullat, em relação ao tema do
corpo, perceberemos como o autor insiste nesta dimensão simbólica.
Para o autor, “el cuerpo humano puede ser -más allá de su positividad
física- por un lado, cuerpo estesiológico -cuerpo de sensaciones- y, por el
otro lado, cuerpo volitivo -que se mueve según decisión. Aparece una
nueva gura, la de ‘cuerpo-propio-mi cuerpo’ en cuanto experimentado
por la conciencia personal, no coincidente con el cuerpo estudiado e
intervenido por los tecnocientícos de la educación” (1989, pp. 162-
163). O corpo-próprio, o meu, a corporeidade é esta parte simbólica
que transcende além do meu corpo físico.
7.2.3. O retorno neorromântiCo à natureza e Sua
Pedagogia
No período que vai do nal da Primeira Guerra Mundial até
nal dos anos sessenta, muitos autores armam que os corpos dos cida-
dãos estiveram sumidos em uma vivência cinza, na qual a globalidade,
a liberdade e a utilização lúdica do corpo havia desaparecido comple-
tamente dos discursos pedagógicos e das práticas sociais. Em seu lugar
haviam ressurgido antigas concepções do corpo que já mencionei em di-
ferentes partes do capítulo anterior e que se caracterizavam por conceber
o corpo dos cidadãos a partir de uma perspectiva de controle
26
.
7.2.3.1. revolução Sexual e Pedagogia
A resposta perante o excessivo controle dos corpos nas práti-
cas de educação corporal (com a consequente tradução de um excesso
de competitividade nos exercícios de educação física) será a de um re-
torno a sua concepção romântica. Em maio de 68 ocorreu, a partir de
uma perspectiva simbólica, um ponto de inexão na hermenêutica do
en lo corporal, en lo objetual. Ello es particularmente maniesto en algunas relaciones pedagógicas. La
corporeidad es la unidad antropológica que hace posible que yo me construya vitalmente en uno entorno
vivencial (Umwelt) y en un tiempo propio (Kairós)” (1994, p. 84).
26
De fato, podemos armar que haviam ressurgido práticas pedagógicas corporais que partiam de uma
concepção de corpo como corpo-objeto, entre as quais podemos encontrar a ginástica medicalizada que
buscava construir um corpo normativizado.
Jordi Planella Ribera
248
corpo das décadas do pós-guerra na Europa
27
. Mas, para ser mais exato,
maio de 68 foi, na verdade, um exercício de contraculturalidade, como
o manifesto na conceitualização que faz eodore Roszak, já que esse
movimento representou uma alternativa cultural que colocava uma nova
Weltanschauung em que os corpos começavam a assumir um novo pa-
pel na sociedade (Roszak, 1977)
28
. Essa contraculturalidade corporal se
fundamenta na idea que “mayo de 68 había valorizado la ruptura con las
conductas misóginas especialmente devotas de la pureza sexual y de la
moral del sacricio (...) pero más que la liberación sexual y moral, sería
necesario liberar el cuerpo de la sede del patrimonio genético, incluyen-
do las rupturas de género y de especie” (Bernuzzi, 2000, p. 56).
De fato, maio de 68 representou um alto nível de autogestão
do corpo dos cidadãos, que estava conectado como o incremento de
liberdade (Martínez, 2003). Esse incremento da liberdade pretendia,
entre outras propostas, ressexualizar o corpo, possibilitando que o ho-
mem recuperasse sua dimensão erótica polimorfa e que o corpo passas-
se a ser um instrumento de prazer e não só de trabalho. Nesse sentido,
a nova pedagogia que surgiu por meio do movimento reivindicativo
de maio de 68, retomando as ideias propostas por Marcuse, se conver-
teu em uma pedagogia erótica, estética, bela, sensível e sensual
29
. Será
27
É interessante o que disse Siguán (1978, p. 213) com relação aos protesots de junho de 1967 em Berlín
e maio de 1968 em París, onde expôs que alguns jornais armavam que os estudantes levavam no bolso
o livro de de Marcuse La tolerancia represiva, que em castelhano foi publicado na forma do artigo em
Convivium, 1968, 27, 105-123, e publicado originariamente em inglês como capítulo de livro entitulado
“Represive tolerance”, dentro de DDAA (1965) A critique of pure tolerance. Boston: Beacon. Para Marcuse,
similarmente à Reich, a repressão se centra grandemente na questão sexual. Existe uma sobre-repressão da
sexualidade, que nas palavras de Munné “desexualiza casi todas las partes del cuerpo y limita la sexualidad
a la actividad genital reproductora, lo que representa subordinar los instintos a la procreación. Y aunque
esto reduce el potencial del placer humano, permite desviar la energía libidinosa sobrante hacia actividades
socialmente útiles; esto es, el resto del cuerpo pasa a ser utilizado socialmente o mejor dicho explotado
económicamente como instrumento de trabajo” (1982, p. 120).
28
Neste mesmo sentido é signicativo o que disse Mayoral y al. “aunque se hable de los postulados surgidos
en el 68, estos no dejaron de tener inuencia en el pensamiento, las actitudes y los estilos de vida. Al
mismo tiempo, en la misma década, favorecida por los cambios culturales y por la progresiva incorporación
de la mujer al mercado remunerado, se produjo la eclosión del feminismo, de gran inuencia en el tema
que nos atañe, anivel macrosociológico y, sobre todo, en los círculos de interacción y en los entornos
microsociológicos” (2003, p. 175).
29
Collelldemont disse o seguinte com relação à presença da dimensão estética na pedagogia: “Cuando
la estética fundamenta la pedagogía, el arte, los símbolos y los imaginarios se convierten en la parte más
signicativa del proceso formativo de la persona. El referente estético es, en este sentido, uno de los elementos
clave para la fundamentación losóca de la actividad educativa” (2002, p. 15).
249
Corpo, cultura e educação
por meio da libertação dos corpos que se poderá libertar a sociedade,
sobretudo se a pedagogia não se limita a reproduzir esse modelo de
repressão corporal.
Uma das concretizações das ideias do movimento de maio de 68
ocorreu no movimento político dos verdes alemães e em sua pedagogia
30
.
Para Quintana se trata de um movimento que pode ser caracterizado pela
sua “crítica del sistema social y económico (... ) de inspiración marxista, en
la línea de los críticos de la escuela de Frankfurt. Ha hallado gran acogida
en la juventud intelectual y viene a ser una propuesta alternativa propia de
la generación del 68, cuya máxima fuerza se hizo sentir entre mediados de
los años 70 y comienzos de los 80” (1995, p. 72). A pedagogia dos verdes,
como todo movimento de libertação de maio de 68, busca um modelo
pedagógico que não reprima o corpo, mas que possibilite ao máximo sua
libertação. Juntamente com esta perspectiva começa a se desenvolver o
movimento de libertação da mulher, encabeçado pelo movimento femi-
nista. Esta libertação tinha sentido porque, como propõe, Sarraceno “la
represión de toda la sociedad se descarga, como siempre, sobre la mujer, la
cual, a su vez, transere sobre los niños la agresividad recibida del resto de
la sociedad” (Sarraceno, 1977, p. 102).
A constituição de uma pedagogia neorromântica dos corpos
dos sujeitos pedagógicos permanece vertebrada, entre outro elmentos,
por uma série de variáveis que ajudariam a rearmar o papel dos cor-
pos. É a partir desta perspectiva que podemos falar da reivindicação dos
corpos, da explosão do corporal, da revolução hedonista e da multipli-
cação dos modelos corporais. A reivindicação corporal de maio de 68
representa um avanço signicativo na constituição dos novos modelos
de corpos dos adolescentes, das mulheres, das pessoas com deciência e
dos corpos englobados na cultura queer.
Todas estas questões se veem incrementadas por outros movi-
mentos sociais que põem o corpo em jogo. Merece uma menção especial o
movimento de resistência corporal conhecido como “negritude” e liderado
30
No caso da Alemanha, o movimento começou um ano antes, com os protestos dos universitários berlineses
pela morte de um estudante durante os enfrentamentos com a polícia pelo protesto da visita do Sha da Persia
à Alemanha. Para Colom e Mèlich, os estudantes alemãs “partían del hecho que la sociedad impedía la
satisfacción de los deseos de la mayoría de las personas tanto a nivel social como colectivo” (1994, p. 30).
Jordi Planella Ribera
250
pelos Panteras Negras. Tratava-se de reivindicar uma identidade corporal
ligada à questão racial que mais tarde passaria a estar situada na ordem das
reivindicações sociosexuais ou mais exatamente sociohomossexuais.
A explosão da corporeidade neste período é concebida por al-
guns autores como o big bang corporal. Esta explosão corporal passa por
romper com os modelos corporais-sexuais establecidos pelas sociedades
e que se constrói de forma maniqueísta e excludente. Desta maneira
querem colocar outras corporeidades que não se prestam ao jogo de
corpos dicotomizados e que se encaixam na lógica de corpos bons e
corpos maus, ou corpos brancos e corpos negros, ou, no entanto, corpos
heterossexuais e corpos homossexuais.
7.3. Pedagogia do CorPo em movimento
Temos visto diferentes perspectivas que nos permitem recons-
truir alguns itinerários corporais no campo pedagógico. Há um aspecto
que me parece especialmente relevante neste capítulo em torno da subje-
tividade corporal e sua pedagogia. Trata-se da dança e de sua pedagogia,
que nos permitem fazer uma releitura ampla e sugestiva do tema que
nos ocupa neste capítulo. Este tema nos dá uma especial perspectiva que
nos permite reetir e entender a subjetividade corporal dando um passo
além. Por outro lado, o fato de existir uma ampla bibliograa dedicada
ao tema orienta sua relevância em um capítulo que faz referência à sim-
bologia corporal
31
.
Se no capítulo anterior falava de pedagogias que “silenciam” os
corpos, que não os permitem “mover-se” com liberdade, mas que tem
que fazê-lo ordenadamente, seguindo os ritmos e itinerários corporais
desenhados previamente, agora podemos falar de corpos que encontram
seu sentido a partir do movimento: de um movimento livre, aberto, sem
ter sido marcado nem previamente desenhado. Como Sibony aponta
el cuerpo danzando, es la presencia que se busca, justo en el cuerpo,
pero gracias al cuerpo. El cuerpo es el instrumento, pero es también el
31
Alguns dos trabalhos dedicados a esta temática são: Green (2001), Esteban (2003), Faure (2000), Marmin
(1997), Léonardi (2000), Shapiro (2001), Commeignes (2000) y Sibony (1995).
251
Corpo, cultura e educação
espacio vivo de un nexo con el ser que le depasa” (1995, p. 114). Com a
possibilidade de instaurar no corpo o movimento, a conexão subjetiva e
o espaço vivo (e portanto não estático), nos podemos referir novamente
à educação por meio do corpo. Nos falta questionar: qual é a nalidade
que busca a pedagogia da dança? Ter os corpos educados? Educados de
forma normativa? ou talvez educar por meio da presença consciente e
ativa do sujeito em seu corpo?
O corpo em movimento nos permite olhares que do contrá-
rio cariam perdidos, inativos, estéreis. Olhares que permitem reler o
corpo e sua educação em um novo tom, que nos reenvia à construção
de diferentes imaginários corporais. Falar de imaginário é nos colo-
car em um território daquilo provável, daquilo impensável, daquilo
nunca visto (Jean, 1991). É assim que os imaginários sociais, ligados
à percepção dos corpos, podem se entender a partir de múltiplas
perspectivas, não necessariamente positivas. Dizia mais acima que
as pedagogias analisadas capítulo anteior nos falam de corpos nor-
mativos, e previamente denidos. Como se imagina a sociedade dos
corpos, e como entram no imaginário dos corpos não normativos, é
uma questão a ter presente. A dança se converte em um movimento
contrário à normativização, pois “permite al sujeto liberarse de las
imágenes preconcebidas sobre los usos del cuerpo, para encontrar
sus própias imágenes” (Comomeignes, 2000, pp. 43-44)
32
.
Os corpos
em movimento experimentam os imaginários, além do que se podia
imaginar previamente ao se iniciar os processos formativos ligados à
dança e ao corpo. Essa experimentação do imaginário consiste, se-
guindo Comomeignes: “en aprender como usar los saberes del cuer-
po y del movimiento (sobre le cuerpo en movimiento) para liberarse
e inventar otros” (2000, p. 47). Deste processo se pode extrair o
seguinte esquema:
32
Faço referência, sobretudo, à dança contemporânea e não tanto à dança clássica. Seguindo o que propõe
Louppe, a dança contemporânea supõe uma ruptura epistemológica com as imágens comuns e tradicionais
do corpo dançando (1997, p. 13).
Jordi Planella Ribera
252
Tensões entre forma exterior e sensações interiores da corporeidade
Forma corporal externa
(imaginação corporal)
Sujeito que dança
t
e
n
S
ã
o
Sensação interior
(imaginação do sujeito)
Essa tensão que possibilita a educação simbólica do corpo a
partir dos imaginários não é nada mais que a confrontação, ou se prefe-
rir a dialética, entre o corpo visível e o corpo invisível (externo e inter-
no). O movimento por meio da dança permite múltiplas possibilidades,
como Luis (bailarino) nos narra em relação à suas atuações:
Expongo cosas que no puedo verbalizar, o sea, expongo un lenguaje, yo
hago unos signos (...) Creo unos collages, unas mezclas, unos mundos
donde yo nado, donde yo lo que quiero es que el público se lleve
preguntas, de alguna manera, porque yo no tengo... o sea, yo no tengo la
verdad (Esteban, 2003, p. 54).
Questões abertas para seguir permitindo estes imaginários dis-
poníveis nas percepções do corpo formam parte da dimensão simbólica
do corpo por meio da pedagogia da dança. Esse corpo que dança se
converte em corpo que emociona e que nos interroga de novo:
El cuerpo que baila es el cuerpo que vive, que se transforma en cada
momento para sus múltiples usos. Ese cuerpo atraviesa de un registro a
otro a veces con suma facilidad. En otras ocasionas necesita desnudarse,
despojarse de sí mismo para dejarse habitar por otros estados, entregarse
a otra porcepción de su ser y del mundo. El bailarín transita entre sus
cuerpos, entra en una especie de trance (Margarit, 2000, p. 112).
253
Corpo, cultura e educação
Uma das formas de trabalhar os imaginários corporais é por
meio do que se designou como procesos de incorporación. O verbo incor-
porar faz referência a uma ação que tem o corpo como elemento central.
Mas, ao que faz referência exatamente este processo? Para Faure, a incor-
poração é “la forma sensorio-motriz y cognitiva de los movimientos y de
las posturas de los lugares principales y de los valores estéticos surgidos
de la historia de la danza” (2000, p. 74). Esta referência à história das
formas aprendidas faz referência direta ao que foi exposto no capítulo
dedicado à teoria do corpo (cap. 3), quando falei das técnicas do corpo
propostas por Mauss e outro conjunto de autores que, a partir da socio-
logia, trabalham o tema com certa profundidade (Bourdieu, Le Breton,
Turner, etc.). Mas, além da teorização sobre a experiência de incorporar,
é relevante pensar no processo em si. Se nos centramos no que López
arma: “lo que no me pasa por el cuerpo, no lo aprendo”, podemos en-
tender parte do que pode signicar a incorporação
33
.
Portanto, na dança, mas também de forma extrapolável em
qualquer práxis pedagógica, encarnar a palavra, o imaginário por meio
do corpo, será necessário para poder converter-se em sujeito, além das
limitações que a objetivação e/ou codicação nos podem oferecer.
33
Citado por Pellarolo (2000b, p. 169)
CaPítulo 8
A presença do corpo nos discursos
pedagógicos contemporâneos
257
A     
 
Pero aunque esto sea evidente, la institución educativa ha tenido un
clamoroso éxito en ignorar el cuerpo tanto en la teorización de la prác-
tica educativa como en la práctica de las teorías educativas. El cuerpo
puede ser codicado como un símbolo virtual en los jeroglícos de la
esperanza o constituido en los signos refractados del intercambio físico
(...) El cuerpo es el punto central —el point d’appui— en la reiniciaci-
ón dialéctica del signicado y el deseo.
[McLaren, 1997, p. 84-85]
Tradicionalmente la escuela necesitó cuerpos educados para poder llevar
adelante sus objetivos curriculares. Pero no sólo se trataba de que el
niño tuviera unos hábitos adquiridos que le permitieran estar tranqui-
lamente sentado en su pupitre. La escuela sabía que para mantener esa
regulación se necesitaba un trabajo permanente y eso se trataba, por una
parte, con los mismos aprendizajes y por otra, con el control disciplinar.
[Tizio, 2006]
introdução
Após estudar a construção discursiva do corpo em diferentes
pedagogias propostas ao longo do século XX, é necessário estudar a pro-
dução de discursos pedagógicos sobre o corpo que acontece na atualida-
de. Partindo da hipótese de que os últimos anos do século XX serviram
para transformar os olhares existentes sobre o corpo, a pedagogia iniciou
um novo período e incluiu o corpo como objeto de estudo. As Ciências
Sociais produziram essa mudança já no terceiro terço do século XX; no
Jordi Planella Ribera
258
campo da pedagogia, foi necessário esperar um pouco mais para assistir
a essa transformação hermenêutica. No entanto, nesse sentido obser-
vam-se diferenças signicativas entre a produção de trabalhos realizados
nos Estados Unidos e na França e os feitos na Espanha. Assim, enquanto
nos dois primeiros contextos o corpo e a pedagogia há anos se encon-
traram – discursivamente falando, em nosso contexto – é atualmente
que acontece essa aproximação, que nós situamos nos primeiros anos do
século XX.
8.1. o iníCio de uma nova hermenêutiCa CorPoral
É difícil resumir quais são os primeiros autores de nosso país
que se interessam por estudar o corpo a partir da pedagogia. É fato que
um dos pesquisadores chave tem sido Octavi Fullat, autor mais avança-
do que o resto dos teóricos da educação no tema que nos ocupa. Seus
trabalhos abrem uma linha hermenêutica das posições, perspectivas e
negações que a pedagogia tem usado em relação aos corpos dos edu-
candos. Devemos situar, em relação à pedagogia espanhola, os traba-
lhos de Fullat como sendo o ponto de partida da mudança pedagógico
para a corporeidade. Posteriormente, existem diferentes trabalhos que se
aproximam do corpo também a partir de muitas perspectivas diversas,
e que nos permitem reconstruir uma primeira geograa do território
da pedagogia corporal. É na passagem do século XX para o século XXI
que situamos a mudança da pedagogia para o corpo, pois é nesses mo-
mentos que se produz o número mais relevante de trabalhos. Autores
como Vilanou (2001a, 2002b), Gervilla (2000), Mèlich (1994b), Bár-
cena e Mèlich (2000), Minkévich (2000), Cullen (1997), Pedraz e Bro-
zas (1997), Schaidler, Larrosa (1999), Bárcena, Tizio, Larrosa e Asensio
(2003) e Ferrer (2002) publicaram um importante conjunto de estudos
em língua espanhola que começa a mostrar o que há por trás do que
denominamos pedagogia do corpo.
Contudo, não quero concentrar-me somente naqueles discur-
sos produzidos unicamente por autores que publicam seus trabalhos em
espanhol, mas entendo que a abertura a outros trabalhos, países, contex-
tos e olhares poderá ajudar a ampliar os horizontes. Nesse sentido, estu-
259
Corpo, cultura e educação
dei também os discursos produzidos por Shapiro (1997), McClelland,
Dahlberg e Plihal (2002), Green (2001), McLaren (1997), Lopes (1997,
2000a, 2000b), Rabak (2000), e Gore (2000). Me concentrarei em abor-
dar os discursos desses autores para oferecer um leque das temáticas que
atualmente têm como objeto as relações entre o corpo e a pedagogia.
8.1.1. a nova diSCurSividade
Tenho insistido, em diferentes parágrafos do livro, que meu
objetivo não era estudar os discursos sobre o corpo que têm sido for-
mulados em relação à educação física. Apesar desse esclarecimento, que
epistemologicamente me situa em coordenadas bastante diferentes, te-
nho retomado alguns trabalhos elaborados a partir dessa disciplina que
me permitem interpretar o corpo além da sua dimensão física
1
. Na aná-
lise feita ca evidente a relevância do corpo nos discursos das Ciências
Sociais. A pedagogia, entendida também como ciência social, cava à
margem (se analisarmos quantitativamente, ainda continua) da produ-
ção de discursos sobre os corpos. Podemos formular muitas questões
sobre este silêncio, mas, tal como alguns pesquisadores sugerem, a ne-
gação do discurso corporal responde ao privilégio de uma pedagogia da
dimensão intelectual, em detrimento de uma pedagogia que considera a
corporeidade (Fullat 1989, Vilanou 2002, Britzman 2002).
Uma das hipóteses para essa mudança nos objetos de estudo
posiciona alguns dos pesquisadores em disciplinas além da pedagogia.
Esse é o caso do próprio Fullat e de Mèlich (dedicados à losoa da
educação, mas com formação inicial no campo da losoa) e Vilanou
(situado no campo da pedagogia, mas também com formação em lo-
soa e em teologia, e interessado pela dimensão estética da pedagogia).
Outro grupo signicativo de autores se posiciona em hermenêuticas
foucaultinas da educação e, nessas, (assim como acontece ao longo da
obra do lósofo francês) o corpo é um elemento chave. Seria o caso dos
trabalhos de Lopes (1997, 2000a, 2000b), Rabak (2000), Gore (2000),
Bárcena, Tizio (2003). Desenha-se, pois, uma transferência das Ciências
 Entre os quais encontramos a Cullen (1997), Pedraz e Brozas (1997), Furlán (2002) e Minkévich (1999).
Jordi Planella Ribera
260
Sociais, principalmente da losóca (mas alimentada por muitas outras
disciplinas), da temática corporal para a pedagogia
2
.
8.1.2. Pedagogia do SilênCio doS CorPoS
Um dos temas que aparece repetidamente nos discursos é a
contradição/contraposição entre mente e corpo na educação, ou aquilo
que pode ser denominado como fundamentos do dualismo pedagógico.
Boa parte dos trabalhos estudados enfrenta essa perspectiva, embora seja
certo que os trabalhos de Fullat (1989) e Varela (1991) são os mais
relevantes. Essa última autora, posicionada na sociologia da educação,
arma, em relação ao dualismo pedagógico, que:
Los análisis del sistema educativo han tendido, en general, a privilegiar
la importancia de los factores ideológicos, los procesos de inculcación
simbólica, olvidando o relegando con demasiada frecuencia que en la
escuela se despliega y aplica una física —o si se preere una microfísica
— del poder que incardina los cuerpos (Varela, 1991, p. 229).
Também Bárcena et al. (2003) partem dessa constatação:
Parece que tanto los discursos pedagógicos que se construyen, como las
palabras que se transmiten en las instituciones de formación, se dirigen
a la inmaterialidad de una “mente”, o a un “espíritu” que hay que
formar, pasando por encima cuerpos, aunque lo que primero se vea sean
esos cuerpos en pleno crecimiento y permanente transformación (Bárce-
na y al., 2003, p. 3).
Os corpos se convertem, assim, no objeto negativo da pedago-
gia. Potencializa-se uma pedagogia do silêncio dos corpos, e a palavra passa
a ser dada às mentes, oferecendo-lhes um espaço/status de privilégio nos
discursos e práxis pedagógicas
3
. A pedagogia do silêncio corporal é, de
fato, o que se pode inferir da pesquisa sobre a maioria das publicações e
 Entre outros, também é importante a inuência da antropologia (principalmente com os trabalhos de Le
Breton) e da sociologia (com os trabalhos de Turner).
Bárcena diz em relação ao silêncio corporal: “La primera demanda que suele dirigirse al aprendiz, en
determinadas épocas de su escolarización, tiene que ver con el silencio y la quietud, como si un silencio
no elegido y la pasividad de los cuerpos sin gestos fuesen síntomas de un mayor interés por el estudio y el
aprendizaje” (2003, pp. 3-4).
261
Corpo, cultura e educação
trabalhos relativos ao corpo: o corpo na discursividade pedagógica passa
a ser silêncio, tal qual o é em suas práxis. No entanto, esse silêncio cor-
poral nem sempre se estrutura de modo semelhante. Quando as crianças
são pequenas, aprendem, principalmente por meio do corpo, os outros
corpos e as diferenças existentes entre seu eu corporal e os outros eu(s)
corporais
4
. Dessa aprendizagem inicial (que trabalhamos com maior
profundidade no capítulo anterior), se passa a uma situação de esvaeci-
mento nas formas de aprendizagem. É assim que se desloca a aprendi-
zagem de posições corporais para uma aprendizagem, principalmente,
mental ou intelectual.
Essa é uma crítica que Dewey já lançava em Democracia e edu-
cação, ao armar que os professores nas escolas têm especial interesse em
manter os
corpos dos educandos “controlados”, com a nalidade de po-
tencializar o que para a escola é mais importante: a aprendizagem inte-
lectua
5
. E se Dewey o formulava a inícios do XX, em inícios do século
XXI esta temática continua sendo objeto de reivindicação. Também se
repete a demanda de incluir o corpo na teoria da educação em um dos
manuais da matéria publicado recentemente:
La Teoría de la educación se encuentra escorada hacia una concepción
meramente intelectualizada del hombre; los campos del sentimiento, la
afectividad y lo que denominamos globalmente psicomotricidad han
sido cultivados por añadidura (...) El cuerpo, en tanto que analizado
por lósofos, médicos, anatomistas, siólogos, artistas suele contemplarse
prioritariamente como objeto del mundo exterior, la parte de cosa que
todos tenemos; así ocurre también en educación, cuando el conocimien-
to y la experiencia adquirida sobre nuestro cuerpo debiera ser un área
importante de la formación básica y componente de especialización de
los profesionales de este campo (García y García, 2001, pp. 164-165).
Bárcena e Mèlich dirão que “En el contexto de esa diferenciación los humanos aprendemos a dominar
nuestro cuerpo y nos volvemos agentes competentes: aprendemos a ejercer un control sobre nuestro cuerpo
y además aprendemos a darnos cuenta de que los demás nos ven y porciben el control que ejercemos sobre
nuestros cuerpos” (2000).
5
Varela dirá em relação a ese tema que “hay que señalar también que, al menos desde la crisis de mediados
de los setenta, los centros educativos de élite comienzan desde muy pronto a iniciar a sus alumnos en una
fuerte disciplina académica vertida sobretodo a la adquisición de destrezas intelectuales” (1991, p. 247).
Jordi Planella Ribera
262
A reivindicação de não relegar o corpo a um estado de silêncio,
de complemento secundário ou terciário, de negação constante de sua
discursividade e linguisticidade, é o elemento chave da reivindicação de
uma pedagogia do corpo. Basta observar os currículos dos diferentes
níveis formativos (incluindo pela temática que nos ocupa, os estudos
de pedagogia, magistério e educação social) e, sem muita diculdade
concluiremos o mesmo: o que interessa é a parte intelectual dos sujeitos.
Essa perspectiva é apoiada pelo recente trabalho de McClelland et al
(2002), em que armam que uma revisão rápida das teorias da aprendi-
zagem nos situará na ordem do intelectual. As mentes (ou se quisermos
os cérebros) são o privilégio de toda pedagogia e, nessa arquitetura da
educação, os corpos têm um papel de subordinados ao intelecto
6
. O in-
telecto se fundamenta, principalmente, na razão, enquanto que o corpo
o faz nas emoções. É por meio do corpo que os estudantes respondem
com tensão, irritação e outras formas que incomodam, provocam e per-
turbam o trabalho intelectual. O corpo é, a partir da perspectiva desses
mesmos autores, o que provoca as distrações dos educandos, e também
será por meio de seu corpo que ocuparão esse tempo de distração
7
.
Esse rompimento é um dos elementos chave para repensar a
discursividade pedagógica, mas é, ao mesmo tempo, um ponto de par-
tida do novo paradigma ou, se quisermos, da mudança hermenêutica
pedagógica que McLaren aponta da seguinte forma no contexto dos
Estados Unidos:
La hegemonía cultural/moral de los principales enfoques del currícu-
lum, de la pedagogía y de la epistemología se están agrietando —y en
algunos casos resquebrajando— por el efecto de las nuevas estrategias
posmodernas deconstructivas desarrolladas por la cultura depredadora
(McLaren, 1997, p. 79).
Esse começo tem possibilitado incluir o corpo nos discursos
pedagógicos, rompendo a hegemonia da intelectualidade escolar
8
. Uma
Para Vick (1996), é clara essa subordinação no período estudado (1850-1950), em que o corpo e a vivência
corporal não podem aportar aprendizados positivistas aos sujeitos pedagógicos.
Tal como apontam, nas descrições dos estudantes as atividades corporais são indicadas como situações de
aprendizagens problemáticas (McClelland, 2002).
Desta forma, McLaren armará que “el problema de las escuelas no radica en que ignoren los cuerpos, sus
263
Corpo, cultura e educação
hegemonia que “ha intentado congelar este juego de la diérence no sólo
con la defensa del principio de unidad, sino también con la formulación
de teorías cerradas que han procurado cosicar la educación —y por
ende lo corporal— a n de impedir la diseminación del signicado de la
pedagogía” (Vilanou, 2002, p. 373).
Assistimos, pois, a um exercício hermenêutico que abre a pos-
sibilidade de romper com uma situação na qual a aprendizagem inte-
lectual se encontrava instalada na mais alta torre de marm, enquanto
a vivência corporal e suas possibilidades pedagógicas eram consideradas
problemáticas (em termos platônicos, a prisão) que dicultam, incomo-
dam, pervertem, etc., que não permitem um bom processo de acesso ao
mundo das ideias”.
8.1.3. CorPo, Poder e eduCação
Outro tema que repetidamente aparece nos discursos pedagó-
gicos sobre os corpos é o do exercício do poder sobre os corpos. Essa é uma
temática relevante para aqueles autores que partem de uma epistemo-
logia foucaultiana e que buscam descobrir os pontos a partir dos quais
a pedagogia se instaura como formadora de corpos modelados norma-
tivamente. Portanto, trata-se de estudar os discursos que se referem ao
corpo, à pedagogia e ao poder. Para isso devemos recorrer à discursivida-
de foucaultina proposta em Surveiller et punir (1976a), em que o autor
arma, no capítulo denominado “Los cuerpos dóciles”, que: “El cuerpo
humano entra en un mecanismo de poder que lo explora, lo desarticula
y lo recompone” (1976a, p. 141), e acrescenta que “la disciplina fabrica
así cuerpos sometidos y ejercitados, cuerpos dóciles” (1976a, p. 142). Se
no capítulo anterior apontamos o privilégio de uma educação intelectu-
al e moral dos sujeitos, será necessária a existência de uma demonstração
de controle, submissão e docilização corporal se quiser que seja mantido
o “privilégio” mental. Como se pode, de outra maneira, educar as men-
tes se os corpos se movem, dizem, falam, incomodam, atuam e ainda,
placeres, ni el sufrimiento de la carne (aunque se admite que ello es parte del problema), sino en que infra-
valoren el lenguaje y la representación como factores constitutivos en la formación del cuerpo/sujeto como
el creador de signicado, la historia, la raza y el género” (1997, p. 91).
Jordi Planella Ribera
264
se encontram sexualizados? Foucault nos coloca exemplos de práticas
pedagógicas antigas, mas, de certa forma, ainda vigentes:
Consideremos el ejemplo de la clase. En los colegios de los jesuitas, se
encontraba todavía una organización binaria y masiva a la vez: las cla-
ses, que podían contar hasta doscientos o trescientos alumnos, y estaban
divididas en grupos de diez (1976a, p. 149).
Cada momento histórico tem desenvolvido formas para exer-
cer esta hegemonia de controle corporal, embora frequentemente tra-
ta-se de repetições que seguidamente buscam o mesmo objetivo: a pro-
dução de corpos normalizados. Essa produção de corpos normais, que
inclusive podemos denominar normativos, é parte da cultura somática
que cada sociedade privilegia e que a exerce justamente a partir de po-
sições de poder, principalmente por meio do que o próprio Foucault
designou como a biopolítica. Todo esse exercício de escolarização das
corporeidades não está livre de problemáticas, porque frequentemente
partiu do que interessava ao educador para concretizar seus objetivos e
não do projeto (pessoal, corporal, etc.) dos educandos. Esta problema-
ticidade passa por instaurar “una cierta ritualización mecánica de los
movimientos, territorialización de los gestos, modelización de las sio-
nomías, tallado de los semblantes, concreción y cálculo de los deseos y
exclusión de los desdenes” (Pedraz, 1997, p. 9).
Entre os diferentes autores que têm trabalhado esta temática,
os aportes de Gore (2000) nos oferecem a perspectiva mais clara e preci-
sa da disciplina dos corpos. Gore inicia seu capítulo com a seguinte cita-
ção de Morey: “Si nos reconocemos en el discurso de Foucault es porque
lo que hoy nos resulta intolerable ya no es tanto aquello que no nos
permite ser lo que somos, sino aquello que nos hace ser lo que somos
9
.
Não permitir-nos ser o que somos ou obrigar-nos a ser o que somos,
uma diferença sutil que aponta a linha crítica da instauração e o controle
dos corpos normativos que Dore tentou abranger. Para a autora, trata-se
do fato de que a escola tem o corpo como objeto de boa parte das suas
intervenções, mas este se posiciona a partir de sua passividade, dado que:
A citação de Morey é de (1992) “On Michel Foucault’s philosophical style: Towards a critique of the
normal” , T.J. Armstrong (ed.) Michel Foucault Philosopher. Nueva York: Harvester Wheatsheaf, 117-128.
265
Corpo, cultura e educação
La práctica pedagógica, a través de las situaciones y las épocas, se halla
relacionada con las relaciones de poder existentes en las instituciones y
en los procesos educativos, que se mantuvieron incólumes en la mayoría
de currículums y en otras reformas” (2000, p. 228).
Gore foca sua pesquisa no estudo de oito práticas de controle
e docilização corporal, que estão relacionadas sistematizadamente na se-
guinte tabela:
O controle corporal na pedagogia
Técnicas de poder pedagógico Características do controle corporal
Vigilância
Partindo da estrutura panóptica, a vigilância dos corpos dos
sujeitos educandos será um tema chave. Os exemplos com os quais
trabalha Gore situam a vigilância em duas direções: o docente
controla os educandos e por meio de mecanismos de poder
cedido os educandos se controlam a si mesmos. Um dos exemplos
é o seguinte: “la profesora se acerca a la pizarra, donde traza un
rectángulo pequeño en la esquina inferior derecha y escribe en su
interior B1, para indicar que Bill ha cometido una falta” (2000,
p. 232).
Normalização
O tema da normalização é uma constante na pedagogia dos corpos.
Comparar os sujeitos nos permite dividi-los entre os que são e os
que não são normais e a partir disso aplicar os dispositivos que
os normalizarão. Para Gore, a educação como controle “consiste
en enseñar normas, de comportamiento, de actitudes, de
conocimiento” (2000, p. 234).
Exclusão
De fato, trata-se de um conceito (e uma prática) relacionado ao
anterior. A exclusão é anterior (ou também o resultado negativo)
à práxis normalizadora. A pedagogia acaba marcando os limites
claros entre um grupo e os outros. Aqueles que estejam valorizados
negativamente se encontrarão colocados ao lado dos excluídos.
Citando a Tyler, Gore parte da ideia de que as práticas de exclusão
são onipresentes na pedagogia, desde a escola de educação
infantil (onde já podem ser detectados alguns comportamentos
e disposições que se constroem como melhores e outros como
piores). 3. A exclusão dos educandos pode ser produzida por
muitas vias: simbólica, física, emocional, etc.4 Gore acaba com
uma sentença que não pode deixar de nos preocupar: “resulta casi
inconcebible una pedagogía que no establezca límites, que no
normalice y patologice” (2000, p .236).
Classicação
A classicação é uma das ferramentas e um dos dispositivos
pedagógicos por excelência. Organizamos os sujeitos por idades,
mas também (dependendo das instituições) por sexo e por níveis de
funcionamento. Dessa forma, pensamos que podemos administrar
com mais facilidade os corpos dos educandos.
Jordi Planella Ribera
266
Distribuição
A distribuição dos corpos no espaço possibilita a práxis do poder
disciplinar. Da mesma maneira, Gore propõe que as formas de
distribuição podem ser muito variadas: “desde docentes que
asignan aulas, mueven físicamente los cuerpos o exigen a los
alumnos que formen grupos, hasta alumnas que se mueven por sí
solas o les piden a otras que lo hagan” (2000, p. 239).
Individualização
A individualização é uma forma de marcar e controlar os corpos
dos sujeitos. Outorgamos ao outro o poder de ser de forma
individual. A individualização nos situa na prática que Foucault
designa como tecnologias do eu.
Totalização
A totalização nos situa em uma posição contrária à individualização.
Fazer parte de um coletivo, de um grupo maior como elemento
para o exercício do poder é uma tática que em pedagogia se usa
com frequência.
Regulação
A regulação, tal como Gore propõe, se fundamenta em “controlar
mediante la norma, someter a restricciones, invocar una regla,
incluir sanción, recompensa y castigo” (2000, p. 241). Embora as
técnicas anteriores já compartilham um sistema regular, existem
algumas situações que podem ser por si mesmas já “reguladoras”.
[Adaptado de Gore, 2000]
A proposta de Gore ao longo de sua pesquisa não é fazer de-
saparecer o poder, mas estudar seus mecanismos para poder compreen-
dê-lo melhor. Já Foucault formula a ausência de poder como utopia ou
abstração. O problema, pelo menos a partir de uma perspectiva pedagó-
gica, é que os exercícios do poder frequentemente se mantém em nível
invisível e oculto. No entanto, só o fato de conhecer os mecanismos do
poder pedagógico nos pode fazer entender se todos são necessários e
quais podem ser eliminados ou trocados. Trata-se, em suma, de “permi-
tir documentar aquello que nos hace ser lo que somos en las escuelas (...) para
cambiar lo que somos” (2000, p. 246).
A aplicação do poder nos corpos dos educandos não deixa de
fazer parte de um projeto mais amplo, que poderia ser denido como a
criação de um inventário pedagógico do universo possível, de gestos e
desejos permitidos, nos contextos escolares primeiro, mas depois tam-
bém nos espaços sociais.
267
Corpo, cultura e educação
8.1.4. Pedagogia do CorPo na fronteira
Apontei no capítulo cinco, ao falar das metáforas do corpo, a
temática do corpo na fronteira. A partir da análise de diferentes discursos,
proponho-me, agora, a situar o corpo, a fronteira e a pedagogia em um
mesmo plano de referência. Retornamos ao que Pellarolo dizia em relação
à fronteira: “pensé en la frontera como cruce, como encuentro y desencuentro,
la frontera como territorio desterritorializado, como fusión y síntesis, como
transculturación y rechazo” (2000a, p. 31). A fronteira se converte no es-
paço possível e impossível ao mesmo tempo, horizonte utópico de muitas
pedagogias e corporeidades. Na análise da corporeidade e da pedagogia,
são postas em jogo múltiplas variáveis: etnia, gênero, estéticas e formas
corporais, classes e um longo etecétera que pode ir sendo reconstruído à
medida que nos adentramos neste oscilante território
10
.
Alguns dos discursos se referem à pedagogia do corpo e à frontei-
ra, precisamente como exercício de desconstrução de normalidades dadas
e/ou fechadas previamente. Falar de corpo e fronteira implica situar-nos no
próprio território onde tem lugar a caracterização, a classicação, a nor-
malização e a anormalização, a construção do outro corporal como sujeito
perigoso, estranho e afastado da ideia majoritária de corpos normais. É nes-
se sentido que Fernández (2002), em um trabalho intitulado Educação do
corpo, conhecimento, fronteiras nos propõe partir da ideia que:
Grupos enteros que desaparecen, destruidos por no pertenecer a la mi-
tología de la raza que nos agrede, por ser reconocidos como extranjeros,
no familiares, anti-sujetos que deben ser exterminados, muchas veces
clasicados no como distintos, sino como negativos (Fernández, 2002,
p. 163).
A fronteira torna possível essa desaparição, construção ou re-
conceitualização dos sujeitos que tenho descrito, mas, também, a fron-
teira possibilita romper com as ontologias corporais que se formam
nas suas próprias entranhas. Se desenha, desta forma, um tema que
tem sido uma constante ao longo do meu trabalho: o corpo construído
10
Pellarolo apoia parte de sua reexão no trabalho de Gloria Anzaldúa Borderlands/ La Frontera, em que pro-
põe a imagem da nova mestiza, inscreve a identidade na metáfora corporal (citado por Pellarolo, 2000, p. 31).
Jordi Planella Ribera
268
a partir da perspectiva de normalidade/anormalidade. A fronteira é a
que permite situar estas duas construções dicotômicas: A fronteira e a
normalidade/anormalidade
NORMALIDADE
Corpos Aceitos
Subjetivação
Inclusão (dentro)
fronteira
ANORMALIDADE
Corpos Repudiados
Coisicação
Exclusão (fora)
Os corpos podem ser
incluídos/excluídos
por meio da fronteira,
mas principalmente por
meio da simbologia de
fronteira. Trata-se de
estar dentro ou fora do
território..
Essa dupla possibilidade de brincar com os corpos a torna forte
e vulnerável ao mesmo tempo, mas é principalmente a capacidade de
excluir, mais que a de incluir, a que preocupa a pedagogia. Essa é a ree-
xão que fazem Dustchatzky e Corea sobre os menores e as instituições:
la exclusión pone el acento en un estado: estar fuera del orden social (...)
La exclusión produce un desexistente, un desaparecido de los escenarios pú-
blicos y del intercambio” (2000, p. 12). O exercício de excluir os corpos
(desincorporação, podemos denominá-lo) pode acabar, em determinados
contextos e em determinadas situações, produzindo corpos sem sujeitos.
Se nos aproximamos às práticas pedagógicas do campo da deciência, é
mais fácil de compreender. Os sujeitos com deciência acabam se con-
vertendo somente em corpos (e, portanto, se encontram em situação de
total coisicação) que têm deciências, queimadas, má deambulação, um
estranho falar, condutas pouco agradáveis à vista dos “bons cidadãos”,
que não caminham, que babam ou que não sabem distinguir o público
do privado quando decidem acalmar seus desejos sexuais. Para Skliar,
essa ação sobre os sujeitos com deciência produz “un cuerpo sin sujeto,
y también un cuerpo sin sexualidad, sin género, sin edad, sin clases sociales,
sin religión, sin ciudadanía, sin generaciones, etc.” (2002, p. 123). É desse
modo que pode atuar a fronteira, situando os corpos sem subjetivar às
margens da sociedade. A partir dessa perspectiva, é importante que a pe-
dagogia revise com detalhe os mecanismos de produção/construção dos
territórios fronteiriços. Uma das formas de fazê-lo é incluir nos discursos
pedagógicos sua presença. Tal como arma Pellarolo: “al hacer referencia
a cuerpos generalmente silenciados de los discursos hegemónicos, se ha-
269
Corpo, cultura e educação
bló de patologías o discapacidades: la ceguera, la sordera, la paraplejia
(2000b, pp. 169-170).
Diferente da construção de fronteiras excludentes/inclusivas,
tal como acontece na reorganização sociopolítica (e no repensar o mapa
geopolítico mundial), encontramos que as fronteiras têm desaparecido,
têm caído. Os novos discursos pedagógicos apontam a necessidade de
que, a partir da pedagogia se procure a dissolução das fronteiras que situ-
am os corpos em diferentes territórios corporais, entendendo que alguns
desses territórios levam por nome exclusão, isolamento, não aceitação,
marginalização, menosprezo, etc. Como aponta Vilanou:
El otro ha dejado de ser el objeto de deseo de una vulgar fantasía colo-
nial (...) De hecho, la postmodernidad surge en un contexto postcolonial
de modo que la cuestión ya no es blanco o negro, sino blanco y negro. Se
pasa de la lógica de la exclusión a la de la integración (2002, p. 374).
Portanto, caiu a fronteira que propõe situar alguns de um
lado (designados por uma cor, uma maneira de fazer, uma sexualidade,
uma crença, etc.) e os outros na outra margem (designados por crenças
contrárias às desses primeiros). Busca-se romper com a compartimen-
tação da paisagem para oferecer uma estética pedagógica mais livre
e igualitária, sem cair na uniformização das corporeidades. Mas isso
somente é possível a partir da própria corporeidade, e para fazê-lo é
necessário “partir de la aceptación de los otros cuerpos (que han dejado
de ser raros y exóticos), podremos construir un mundo que dé respuestas a
la exigencia de una sociedad que camina hacia un irreversible mestizaje
(Vilanou, 2002, p. 374).
8.2. SubJetividade CorPoral e Pedagogia Queer
Uma das constatações que pude fazer na análise de textos é
a grande diferença de temas de interesse e de pontos de vista entre a
discursividade pedagógica espanhola e a dos Estados Unidos, Canadá e
Austrália. Um ponto chave que marca esta diferença é a exploração da
pedagogia a partir da Queer eory. A necessidade e as formas como a
Jordi Planella Ribera
270
pedagogia constrói as normatividades corporais, naquilo que se refere à
sexualidade, tem levado a pedagogos/as, mestres e educadores/as a re-
pensar o que fazem, como o fazem e o que produzem nas suas práxis em
relação às temáticas sexuais. É verdade que a publicação do trabalho de
Butler (1989), Gender Trouble, serviu de ponto de partida para reetir e
pensar de outra forma a pedagogia do gênero e da sexualidade
11
. O livro
foi uma verdadeira revolução na teoria do gênero e da sexualidade, che-
gando a superar suas intenções iniciais. Nesse sentido, temos assistido
a uma situação um tanto peculiar: enquanto os livros de Butler foram
traduzidos à medida que eram editados em inglês, todo o discurso peda-
gógico queer que surge inuenciado pela sua obra tem cado à margem
de ser traduzido ao espanhol, por enquanto. Porém, não se trata unica-
mente da inuência do trabalho de Butler, mas de que a Queer eory
pode ser considerada a resposta a dois fatos especícos, pelo menos no
que se refere ao desenvolvimento nos Estados Unidos. Por outro lado, é
uma resposta à crescente tendência neo-conservadorista norte-america-
na, que foi liderada pela Sentença do Tribunal Supremo (1986) de con-
denar as práticas sodomitas
12
. E, por outro, é o resultado da organização
social frente à crescente expansão da epidemia de Aids
13
:
Inuências sociais na pedagogia queer
Neoconservadorismo nos
Estados Unidos discursos
homofóbicos apoiados por
sentenças dos tribunais.
Epidemia de aids: ACT UP
e Queer Nation.
Queer eory
11
Publicado em español como El género en disputa (2001).
12
Esta sentença é conhecida como caso Browers contra Hardwick, em que se condenou toda prática sodo-
mita homossexual entre adultos.
13
Em 1990 foi criada a organização Queer Nation em Nova York, ligada à organização ACT UP (Aids
Coaliation To Unleash Power) dedicada à prevenção e à luta contra AIDS.
271
Corpo, cultura e educação
É possível que seja necessário formular algumas perguntas an-
tes de continuar tratando do porquê do esquecimento, consciente ou
inconsciente, dessas temáticas. Algumas dessas questões são: Quem tem
se dedicado à produção de teoria nos campos sexuais não normativos?
Os pesquisadores da teoria LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros) são ativistas desses movimentos ou simples-
mente pesquisadores interessados em temas fronteiriços e transgressores
ou contestatários?
Uma possível resposta encontra-se no fato de que as estrutu-
ras universitárias, pelo menos nos aspectos relacionados à pedagogia,
são espaços hiper-regulados, e de forma invisível existem alguns espaços
de censura na produção de conhecimento e na seleção dos temas de
interesse para as pesquisas. A essa causa, mais centrada em aspectos ins-
titucionais, pode se acrescentar a que propõe Bourcier: “algunos profeso-
res, próximos a los intelectuales mediáticos, permanecen sordos y ciegos a los
puntos de vista de estudiantes, de minorías, de sus subalternos, ejerciendo un
poder de inercia en el cual la persona ignora las capacidades” (2002, s/p).
Mas escutar os outros e planejar novos objetos de estudo, outros temas
de interesse, novas epistemologias, e fazê-lo com a intenção de desestabi-
lizar determinadas construções binárias da realidade, implica o perigo da
academia considerar o pesquisador, o pedagogo e/ou o professor como
pensador naïf, em contraposição à adultez daqueles que se centram em
temas mais formais.
8.2.1. a queStão Queer na Pedagogia
Existem múltiplas conexões entre a teoria queer e a pedagogia
criadas por pessoas que fazem parte de grupos GLBT ou que se sentem
atraídos pelos seus discursos e formas de entender as relações sociais.
Fundamentalmente trata-se de pessoas que procuram posições além da
heteronormatividade e a normalidade como elementos de estabilidade
pedagógica.
Se revisarmos a produção sobre a temática queer na Espanha,
perceberemos que praticamente não existem trabalhos, menos ainda se
Jordi Planella Ribera
272
os procuramos ligados diretamente a aspectos pedagógicos da teoria. É
seguramente uma exceção à publicação do capítulo de Britzman, “La
pedagogía transgresora y sus extrañas técnicas”, como parte da obra coor-
denada por Mérida Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios
queer (2002). Na apresentação do volume, Mérida resume a proposta
de Britzman armando que: “el aula puede transformarse en un espacio
que favorezca el cambio social si la práctica docente conjuga una revi-
sión de la estructura autoritaria que suele denir sus estrategias y, sobre
todo, con el cuestionamiento cotidiano de la heterosexualidad normati-
va a través del modelo de aprendizaje trasgresor” (2002, p. 25). Embora
tenha existido um acentuado interesse pelos discursos feministas e por
tratar de fazer uma releitura de determinadas práxis pedagógicas a partir
desses discursos, não tem acontecido o mesmo com a teoria queer, apesar
de que esta última tem começado a interessar enormemente a diferentes
disciplinas (ou mais exatamente a sujeitos pesquisadores de diferentes
disciplinas) ligadas às Ciências Sociais desde nais dos anos noventa.
O ponto de partida desse encontro entre o queer e a pedagogia
poderia situar-se em uma reexão que Spivak faz: “debemos pensar sobre
la forma en que la educación institucional o conjunto de discursos y prácticas
se encuentra relacionada con la autodeterminación de las poblaciones subal-
ternas del mundo, así como de su subordinación(Spivak, 1992, p. 790).
Essa reexão se vê apoiada pelos interrogantes que formula Britzman:
“¿Es posible que el proyecto educativo se convierta algún día en un pun-
to de encuentro para las revueltas deconstructivas? ¿Podría la pedagogía
suscitar reacciones éticas que fueran capaces de rechazar las condiciones
normalizantes del origen y del fundamentalismo, aquellas que rechazan
la sumisión?” (Britzman, 2002, p. 197).
Dessa forma, os trabalhos sobre a teoria queer começam a en-
trar com uma certa facilidade no terreno pedagógico, especialmente no
contexto geográco de Austrália, Canadá e Estados Unidos. Trabalhos
como os de Britzman (1995, 2002), Gough e Gough (2002), McKeehen
(2002), Grace (2001), Koploson (2002), Pinar (1998), Curran (2002),
Woog (1995), Weems (1999) e Unks (1995) são claros exemplos desse
novo pensamento hermenêutico e epistemológico. Uma parte dos traba-
273
Corpo, cultura e educação
lhos se elaboram a partir da teoria da educação e a teoria do curriculum,
e alguns se publicam em revistas e monograas da correspondente área
de conhecimento. Este é o caso de Britzman, que publica seu primeiro
trabalho sobre pedagogia queer em 1995 em Educational eory, no qual
se abre espaço para assentar as bases desta nova perspectiva pedagógica.
Britzman fala abertamente de sua inuência na construção de seu mode-
lo pedagógico. Ela passa por receber ideias de Freud, Foucault e Butler:
Inuências teóricas da pedagogia queer
Pedagogia
Queer
Freud
Foucaut
Butler
Esses três discursos, juntamente com toda a teoria, e a expe-
riência dos movimentos e discursos GLBT, possibilitam partir de uma
nova epistemologia que não obriga a pensar em critérios binômicos
14
.
A epistemologia queer desestabiliza as identidades sexuais, deixando de
lado a homossociabilidade e a homossexualidade (Sedgwick, 1998) e ofe-
recendo alternativas para pensar, estruturar e normatizar as práxis pe-
dagógicas. A partir da pedagogia queer, se trabalha para romper com os
cânones universalistas, dualistas e heteronormativos.
14
Sobre o tema da epistemologia queer, é interessante o trabalho de Sedgwick (1998), em que oferece uma
nova perspectiva que ajudará os pesquisadores que se posicionam na teoria queer a produzir conhecimentos.
Inicia o livro dizendo que: “Epistemología del armario propone que muchos de los nudos principales del
pensamiento y el saber de la cultura occidental del siglo veinte están estructurados —de hecho fracturados—
por una crisis crónica, hoy endémica, de denición de la homo/heterosexualidad, sobre todo masculina y
que data de nales del siglo pasado” (Sedgwick, 1998, p. 11); trata-se, então, de uma verdadeira declaração
de princípios epistemológicos desestabilizadores de uma realidade concreta.
Jordi Planella Ribera
274
8.2.2. deSConStruir PedagogiCamente a anormalidade
CorPoral
Falar de pedagogia queer traz inerente a referência ao termo
normal/anormal ou normalidade/anormalidade. Por meio de um exer-
cício sutil, aqueles sujeitos que não se encaixam na denição de normal
são enviados à nova categoria de anormais. Não podemos encontrar uni-
camente sujeitos com determinadas tendências sexuais, mas cada vez
mais encontraremos um conjunto importante de sujeitos que escapam
à denição de normais, devido a múltiplos fatores
15
. A anormalidade/
normalidade a partir de uma posição binária se poderia desenhar na
proposta de Warner (1993, p. 25-26):
Construção binária das identidades sexuais
Construção binária da normalidade/anormalidade sexual
Heterossexual Homossexual
Casado Não casado
Monogâmico Promíscuo
Em casal Em grupo
Privado Público
Não pornograa Pornograa
Sexo unicamente por meio do corpo Sexo com objetos
Com a mesma geração Relações intergeneracionais
Relação de casal Relações casuais
Procriadores Não procriadores
[Adaptado de Warner, 1993]
Dessa binarização da realidade (passada pelo ltro dos imagi-
nários) facilmente se desprende que a categoria heterossexual se comple-
15
Este processo pode ser incrementado por meio das práticas de cultura “psi” nas instituições educativas, e
o aumento de uma determinada tendência a patologizar aqueles sujeitos que apresentam tendências, con-
ductas, maneiras de ser diferentes às da maioria. O que acontece com a recuperação de categorias como
crianças ou adolescentes caracteriais” para designar às crianças e/ou adolescentes que apresentam determi-
nadas conductas não consideradas normativas? Esta problemática situa no mesmo sujeito a fonte e origem
de sua “disfunção”.
275
Corpo, cultura e educação
menta com os adjetivos bom, normal e natural, enquanto a categoria
homossexual se complementa com os adjetivos mau, anormal y desnatu-
rado. Aos primeiros correspondem benefícios e um status reconhecido, e
para os segundos cam os estigmas, os papéis desvalorizados e os inten-
tos de regulação social.
Nessa linha de construção social da problemática, Curran su-
gere que é importante contestar a evidência natural das categorias iden-
titárias e poder desnaturalizar os relatos binários existentes em chave
homem/mulher e homo/hetero ( 2002, p. 51). O trabalho de campo de
Curran sobre a forma como os professores concebem e transmitem as
corporeidades ligadas aos temas queer permite oferecer ampla perspec-
tiva em torno do tema que nos ocupa. Ao longo de sua tese doutoral, o
autor estuda também a situação dos jovens queer nas instituições educa-
tivas secundárias de Melbourne e chega à conclusão que:
• constituem um grupo de risco com uma série de necessidades espe-
ciais,
• a homossexualidade é percebida como uma ameaça para os compa-
nheiros,
• as atuações queer dos professores podem servir de exemplo aos estu-
dantes queer
(Curran, 2002, p. 7)
Embora o trabalho de Curran seja ilustrativo do que é produzi-
do sob a denominação de pedagogia queer, não é a única linha de pensa-
mento existente, já que o objetivo da pedagogia queer não se limita nem
se centra exclusivamente nos temas ligados à vivência das identidades
GLBT. O que procura a pedagogia queer é a desestabilização do binômio
normal/anormal. Britzman o arma com clareza:
Todas estas prácticas despiertan nuestra curiosidad sobre el modo en que
la normalidad se convierte en un elemento enormemente imperceptible
en el aula, y sobre cómo la propia pedagogía puede intervenir para hacer
perceptibles los límites y los obstáculos de la normalidad (Britzman,
2002, p. 199).
Jordi Planella Ribera
276
A partir da posição construtivista, a pedagogia queer não ad-
mite a denição de pessoas ou situações normais às quais o resto deve-
riam poder aspirar a imitar. Nesse sentido, os trabalhos de Britzman se
desenvolveram em torno do conceito de normalidade e das teorias e
práxis que podem desconstruí-lo. A partir da teoria queer, a psicanálise
e diferentes pedagogias propõem uma pedagogia transgressora. Deseja-se
romper com a ideia de outro como sujeito suspeitoso, perigoso, teme-
roso, infeccioso, preocupante e em constante situação de ameaça para o
resto da população. Na pedagogia queer não existe um manual de ins-
truções pedagógicas. É necessário fundamentar toda essa tarefa na mesma
hermenêutica, na interpretação da discursividade. Uma discursividade
que, por meio da linguagem, constrói e desconstrói a linha que separa a
normalidade da anormalidade.
A pedagogia e a normatividade
PEDAGOGIA
Normatividade A-Normatividade
Heteronormatividade
Reeducação dos corpos não normativos
A posição binária entre o normal e o anormal necessita ser
desconstruída, embora não por meio da recondução dos sujeitos situa-
dos na categoria anormal, mas sim por meio do que propõe Wiegman:
explorar un nuevo imaginário político en el que puedan forjarse diversas
alianzas —entre las personas que no se reproducen, entre los excéntricos del
género, los bisexuales, los gays y las lesbianas, los no monógamos—, alianzas
que pueden empezar e innovar las formas de disciplina social e intelectual
de la academia (2002, p. 177).
A-Normatividade
277
Corpo, cultura e educação
A partir da posição construtivista, a pedagogia queer não ad-
mite a denição de pessoas ou situações normais às quais o resto deve-
riam poder aspirar a imitar. Nesse sentido, os trabalhos de Britzman se
desenvolveram em torno do conceito de normalidade e das teorias e
práxis que podem desconstruí-lo. A partir da teoria queer, a psicanálise
e diferentes pedagogias propõem uma pedagogia transgressora. Deseja-se
romper com a ideia de outro como sujeito suspeitoso, perigoso, teme-
roso, infeccioso, preocupante e em constante situação de ameaça para o
resto da população. Na pedagogia queer não existe um manual de ins-
truções pedagógicas. É necessário fundamentar toda essa tarefa na mesma
hermenêutica, na interpretação da discursividade. Uma discursividade
que, por meio da linguagem, constrói e desconstrói a linha que separa a
normalidade da anormalidade.
A pedagogia e a normatividade
PEDAGOGIA
Normatividade
A-Normatividade
Heteronormatividade
Reeducação dos corpos não normativos
A posição binária entre o normal e o anormal necessita ser
desconstruída, embora não por meio da recondução dos sujeitos situa-
dos na categoria anormal, mas sim por meio do que propõe Wiegman:
explorar un nuevo imaginário político en el que puedan forjarse diversas
alianzas —entre las personas que no se reproducen, entre los excéntricos del
género, los bisexuales, los gays y las lesbianas, los no monógamos—, alianzas
que pueden empezar e innovar las formas de disciplina social e intelectual
de la academia (2002, p. 177).
A-Normatividade
8.2.3. o CorPo: elemento Central da Pedagogia Queer
Observamos as diferentes características e os elementos que
conguram a essência, os discursos e as práxis da pedagogia queer. Nela,
o corpo converteu-se em um tema central e entendemos que é necessário
perguntar-nos: o que tem levado uma pedagogia desse tipo a fundamen-
tar seu discurso na corporeidade? Uma primeira resposta encontramos
na reexão de Llamas:
Tales procesos de subjetividad, de control de la propia vida, de determi-
nación del propio destino, no pueden sino partir del cuerpo (...) Siendo
sólo cuerpos, estamos (paradójicamente) en una posición privilegiada
para conocernos, desarrollarnos, realizarnos e innovarnos, sin renunciar
al placer ni a ninguno de los criterios de subjetividad metafísica. Sólo
siendo cuerpos seremos algo más (Llamas, 1994, p. 153).
O corpo, tal como decifrei, tem sido objeto de submissão, im-
posição, docilização, anulação, negação, vexação, ignorância, politiza-
ção, pedagogização, etc. Parece lógico, pois, a partir de uma pedagogia
que entenda essa posição do corpo na subjetivação, que tenha presente a
experiência corporal dos sujeitos. Os corpos dos sujeitos anormalizados
podem converter-se facilmente em “carne de canhão” e “isca” para o res-
to da sociedade. Sem a existência do corpo negado não há possibilidade
de corpo aceito e corpo vivido. É nesse sentido que se apontam diferen-
tes discursos pedagógicos.
a) Uma primeira linha de discurso parte dos pedagogos/as,
professores, educadores/as que viveram em seus próprios corpos situa-
ções de opressão. Sua própria experiência é a primeira fonte de conhe-
cimento que lhes permitirá arrancar a produção de discurso queer. Um
grupo signicativo faz parte de coletivos GLBT, tal como se entende de
Jennings (1994) quando arma que aproximadamente 10% do profes-
sorado estudado (Boston) são gays ou lésbicas, e o trabalho de Khayatt
(1992), sobre a presença invisível dos professores homossexuais nas salas
dos centros educativos dos Estados Unidos.
16
Mas não se trata somente
16
Essa perspectiva do silêncio por parte dos educadores homossexuais por múltiplas razões tem sido ex-
perimentada por nós em diferentes instituições educativas: Universidade, Centros Residenciais de Ação
Educativa, Institutos de Ensino Médio, Centros de Educação de Tempo Livre, etc.
Jordi Planella Ribera
278
de educadores ligados a posições GLBT, mas sim de pessoas que podem
ter sofrido opressões pela cor da sua pele, pelo fato de ser mulher, por
falar outra língua, por pensar diferente, por ter uma deciência, etc.
Uma parte dos pedagogos queer são pessoas “diferentes” que
exercem abertamente essa diferença. Um exemplo esclarecedor do que
armam é a narração de Sedgwick (professora de literatura inglesa na
City University of New York) em relação à sua experiência de diagnós-
tico de câncer de mama:
En la época en que recibí el diagnóstico, los acontecimientos más inme-
diatos de mi vida eran, en primer lugar, una clase de doctorado sobre
teoría queer, cuya docencia incluía materiales relacionados con el sida
(Sedgwick, 2002, p. 45).
A autora parte de sua própria experiência de sofrimento em seu
corpo (além de fazer parte de grupos GLBT). O mesmo acontece com
boa parte dos estudantes de educação social com os quais temos dialo-
gado ao longo da redação do livro. O trabalho para romper pedagogica-
mente as construções binárias se vive de forma diferente, porque alguns
sujeitos são educadores sociais que trabalham para eliminar situações
que oprimem os sujeitos mas, por sua vez, sofrem alguma situação de
opressão/exclusão, por não ser heteronormativos, ter uma deciência,
provir de uma comunidade de origem diferente à acolhida, etc. Pensar
como vivemos essas situações em nossos corpos pode ajudar-nos a extra-
polá-las aos discursos pedagógicos, convertendo-se em uma verdadeira
fonte de produção de conhecimento pedagógico.
b) Uma segunda linha parte da hipótese de que os sujeitos
anormalizados têm passado a ser sujeitos hipercorporalizados (ou se
quisermos hipercorpos). O corpo tem tomado uma relevância desen-
freada e o sujeito tem sido coisicado e agora é, principalmente, um
corpo. Como nos faz ver Héna: “El suplicio libertino hace avanzar y
lleva al extremo la lógica de la reducción anatómico/quirúrgica del cuerpo,
postulada por la ciencia” (Héna, 1980, p. 29). É por meio dos dife-
rentes saberes (entre os quais se encontra a pedagogia) que o sujeito
passa a ser somente um corpo, cando anulada a sua personalidade, a
279
Corpo, cultura e educação
sua história e a sua identidade. É por isso que, se o outro foi reduzido a
um corpo físico, devemos formular uma pedagogia que recupere toda
sua dimensão simbólica.
c) A terceira linha entende o corpo como espaço/território de
resistência subjetiva. O corpo apresenta essa dupla perspectiva: espaço
de imposição do poder e espaço de resistência. A partir dos coleti-
vos GLBT até muitos outros grupos que propõem a recuperação dos
corpos como espaços de inscrição subjetiva se reclama a necessidade
de falar de resistência. McLaren trabalhou o tema da resistência do
corpo a partir da pedagogia, e parte da ideia de que “es importante
comprender la resistencia a las modalidades dominantes de subjetividad,
de producción y del deseo, especialmente si dicha resistencia está conectada
somáticamente con la formación de la voluntad y con la construcción del
signicado” (1997, p. 96). A opção passa por entendermos os corpos
não como simples produto, mas sim como produtores de subjetivida-
de, e essa ação passa necessariamente por repensar e revisar o espaço de
nossos corpos nos espaços sociais. O corpo passa a ser entendido como
espaço de luta (nos marcamos corporalmente para sermos diferentes
do resto), de conito (os outros nem sempre apreciam nossos corpos, e
esses lhes provocam múltiplas reações) e de contradições (não estamos
constituídos por corpos monolíticos, e sim que podem ser interpreta-
dos a partir de múltiplas perspectivas). Para McLaren, a tarefa da pe-
dagogia em relação à resistência corporal é a de “aumentar nuestra au-
toconciencia, de apartar la distorsión, de descubrir formas de subjetividad
que sean consecuentes con el cuerpo/sujeto capitalista y que asistan al sujeto
en su rehacer histórico” (1997, p. 97). Os corpos que resistem buscam
encontrar signicados além das políticas de normalização corporal, e o
fazem rompendo as estruturas e os discursos binários
17
.
Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Grace (2001) sobre
teoria queer, os corpos e a educação de adultos. Grace propõe uma pe-
17
Para McLaren “la pedagogía del cuerpo/sujeto posmoderno puede ayudar a los educadores a comprender
mejor cómo el cuerpo/sujeto resistente intenta signicar más allá de la normativa y de los sistemas de signi-
cación disponibles, retando y rompiendo los discursoos que crean el espacio de subjetividad (...) Para de-
fenderse del miedo a la incerteza, del horror de la ambigüedad, y de la amenaza de la diferencia, los cuerpos/
sujeto necesitan construir un lenguaje que rechace sus propios límites, que sea capaz de localizar los fallos y
las suras de la hegemonía cultural que prevalece” (1997, p. 101-102).
Jordi Planella Ribera
280
dagogia que não exclui os adultos de uma formação em temas queer,
nem tampouco exclui a possibilidade de que os adultos que assistem a
instituições educativas tenham identidades queer. Trata-se de repensar
a biograa do sujeito, encarnando as possibilidades que a narratividade
oferece aos sujeitos adultos. Essa nova perspectiva de entender a peda-
gogia queer a partir da educação de adultos possibilita o aprendizado
corporal na dimensão do Learning for Life. Podemos aprender a viver
em nosso corpo ao longo da vida, por meio de todas as mudanças que
experimentamos, mas também podemos aprender ao longo da vida coi-
sas sobre todos os outros corpos, que também mudam e se transformam
ao longo do tempo.
8.2.4. exPeriênCiaS, ProPoStaS e trabalho em torno do
CorPo a Partir da Pedagogia Queer
Se em nosso contexto ainda é difícil formular temas ligados à
pedagogia queer, em contextos como os dos Estados Unidos, da Austrá-
lia e do Canadá, começaram- se a desenvolver programas especícos em
torno da pedagogia queer e os corpos dos sujeitos considerados GLBT.
Eles costumam ter um objetivo comum: trabalhar pedagogicamente para
resistir à produção normativa de identidades e saberes. A maior parte dos
programas não tem lugar nos Estados Unidos, dado que as posições
políticas neoconservadoristas dicultam que discursos desenvolvidos
em contextos acadêmicos e trabalhos dos movimentos ativistas possam
levantar às instituições educativas
18
. Em compensação, não tem aconte-
cido o mesmo na Austrália nem no Canadá, onde tem sido possível essa
transferência de saberes para a práxis que melhorará a construção social
dos corpos queer.
Existem múltiplas formas de agrupar a aplicação das ideias
queer em contextos educativos. Nós as agrupamos em diferentes cate-
18
Somente é necessário ter presente a tentativa para normativizar as condutas no campus universitário nor-
teamericano que temos lido na imprensa a mediados de julho de 2003. Nesta tentativa, fundamentada no
processo de neoconservadorização dos espaços pedagógicos, onde se categorizam os olhares entre estudantes
como obscenos y perigosos, onde se quer proibir as manifestações livres de opinião em espaços abertos (se
reservaram pequenos ghettos de poucos metros quadrados em todo um campus para que os estudiantes,
mas en formato “teatralizado”, que não de forma livre, opinem) se faz muito dicil incluir pedagogias que
contemplen a questão queer.
281
Corpo, cultura e educação
gorias em função do objetivo perseguido. As agrupações que realizamos
são as seguintes:
• Prevenção da AIDS: a origem do movimento na luta anti-aids tem
marcado uma linha muito clara que seguramente é a mais ativa
e histórica nas práticas pedagógicas queer
19
. De fato, essa é uma
linha que vai muito além do que se pode designar como peda-
gogia queer porque os trabalhos preventivos sobre a AIDS estão
presentes em todo tipo de instituições educativas. Os trabalhos
pedagógicos sobre AIDS não têm como único objetivo retirar
prevenção, e sim também desconstruir a construção binária in-
fectado/a. Igualmente se trabalha para não ligar (cienticamente
é evidente, mas não acontece assim nos imaginários sociais) a
AIDS às práticas sexuais queer.
• Educação anti-homofóbica: abrange um grupo importante de pers-
pectivas, objetivos e interesses da pedagogia queer, que de fato se
extrapolam e podem encontrar-se imersos em muitos dos progra-
mas educativos. Uma das linhas de trabalho formula a introdução
nos currículos (revisando o que se diz nos livros de texto sobre os
coletivos GLBT e incorporando discursos positivos nas diferentes
matérias) de temas queer. A inclusão no curriculum de temáticas
homossexuais está apoiada por muitos autores e por múltiplas ex-
periências. As propostas de Curren (1998), a partir do estudo das
atitudes homofóbicas em escolas católicas, servem para contradizer
as múltiplas oposições por parte do professorado a trabalhar esses
temas na escola
20
.
• Igualdade de oportunidades: conhecendo a situação dos jovens queer
em muitas aulas se faz necessário formular a igualdade de oportu-
19
Um exemplo é o trabalho que se realiza desde Victorian AIDS Council Support Group, por meio do
apoio e a formação de jovens menores de 18 anos. Alguns de seus trabalhos se estruturam a partir de grupos
culturais especícos, como sería o caso de: “Greek & Gay”, “Italian & Gay”, “Arab & Gay” e “Gay Asian
Proud”. Suas estratégias de trabalho pedagógico incluem grupos de ajuda mútua, serviços de consulta, etc.
20
Esta resistência por parte do professorado pode estar apoiada ou profesorado puede estar apoyada o agavia-
da por algumas leis e políticas educativas que não permitem trabalhar aspectos sobre homossexualidade nas
classes. Se produz, em algumas instituições educativas, o que podemos denominar o paradoxo do silêncio:
sabemos que existem estudantes que terão identidades GLBT, mas não fazemos nada para educálos aberta-
mente. Além de silenciar uma realidade, muitas vezes se desenvolvem atitudes homofóbicas e situações de
opressão para com os GLBT.
Jordi Planella Ribera
282
nidades (como já tem ocorrido com coletivos de estudantes com
deciências, imigrantes, mulheres, etc.) para que esse coletivo de
estudantes possa desenvolver os aprendizados com o máximo de
dignidade possível, assim como permanecer nos centros educativos
o menos problematizada possível. Por meio da Equal Opportunity
Policy é possível romper com a binarização do sistema educativo
21
. É
necessário um compromisso por parte das administrações e institui-
ções educativas para entender essa necessidade.
• Informação sobre sexualidade: Warner (1999, p. 178) se pergunta
por que razão o sistema escolar formal considera importante a se-
xualidade, e a educação sexual, como um tema privado. Este é um
passo prévio: trabalhar com maior intensidade, abertamente e com
seriedade a educação sexual dos educandos nos contextos educati-
vos. Se esse é um passo prévio, como se poderá incluir temas de
sexualidades queer? O passo seguinte consiste em incluir temas de
educação homossexual no currículo. Sem informação/formação so-
bre aspectos sexuais ligados às identidades queer será muito difícil
entender e aceitar uma identidade queer por parte de um estudante
que não o leia. Nesse sentido, é importante desterrar a categorização
de perversidade das práticas sexuais queer. Essa encenação de todas
as sexualidades possíveis é defendida pela Fédération canadienne des
enseignantes et des enseignants: “planicar y desarrollar los programas
(planicación de módulos o de lecciones, programas de alianza entre
homosexuales y heterosexuales, etc.) que aborden esta cuestión” (Guiney
e O’Haire, 2002, p. 25).
• Desconstrução dos tópicos gay e lésbico nas classes: embora tenhamos
falado de diferentes ações que informam e formulam outras reali-
dades, desestabilizando as construções binárias normal/anormal,
alguns programas pedagógicos acreditam em trabalhar a partir da
desconstrução dos tópicos gay e lésbico, que já são parte dos ima-
ginários e crenças de alguns dos estudantes. Butler se formula este
tema e se pergunta quantas políticas educativas facilitam realmente
21
Trabalha-se com muita seriedade desde o Comité sur les droits des gais et lesbiennes da Centrale des syndicats
du Québec (CSQ), especialmente no setor de ensino. Seu objetivo é claro: “que nuestros miembros tengan los
mismos derechos que todos los ciudadanos, no más, pero sobretodo no menos” (Trudel, 2002, p. 24).
283
Corpo, cultura e educação
que nos contextos educativos se trabalhe para descontruir esses tó-
picos (2002a). Portanto, é necessário este exercício explícito de des-
montar mitos, imaginários e fantasias, habitualmente negativizadas,
sobre o que são e o que não são os sujeitos queer.
• Desenvolvimento de estratégias para adolescentes/jovens queer: parale-
lamente às outras linhas de trabalho que se realizam, é necessário
dotar os jovens queer de habilidades que lhes permitam diferentes
objetivos. O primeiro encontra-se ligado à autoestima e à aceitação
de sua identidade. Aceitar a identidade facilitará muitos aspectos da
vida cotidiana e escolar. O segundo aspecto se refere à relação com
os outros companheiros e/ou com a resolução de conitos nos espa-
ços educativos ou comunitários provocados pela não aceitação das
identidades queer por parte de outros estudantes. Uma das formas de
trabalhar essas estratégias é por meio das histórias de vida de outros
estudantes e/ou jovens queer. A partir da publicação de materiais so-
bre experiências (livros, artigos ou materiais audiovisuais) se podem
mostrar outras experiências sobre a vivência da identidade queer e
formas de administrar as relações com sujeitos não tolerantes
22
.
• Produção de publicações formativas para jovens queer: uma boa parte
das instituições que trabalham no campo da educação, e consideram
os temas queer, tem produzido publicações dirigidas a informar/for-
mar os jovens queer. É destacável a edição You’re not alone, produzida
pela Here for Life Youth Sexuality Project, uma revista que informa de
forma periódica sobre essas temáticas
23
.
• Formação do professorado em temas queer: como facilmente se pode
deduzir, os posicionamentos do professorado em relação aos te-
mas queer é muito variado. Kopelson (2002) propõe três tipos de
prossional: são professores que atuam de forma disciplinar frente
a identidades queers, situando-as em posições binárias de sujeitos
anormais; professores que possibilitam condições na sala de aula
22
Algumas das publicações existentes em inglês são: W. Corlett (1995) Now & en. Great Britain; Abacus;
G. Johnson (1993) Pagan Babes. Nova York: Plume; A. Waters (1996) What Could Have Been. Los Angeles:
Alyson Publication;
23
Publicada pela Western Australian AIDS Council (WAAC) e de Gay and Lesbian Counselling Service
(GLCS).
Jordi Planella Ribera
284
para que os estudantes queer encontrem-se em situações confortá-
veis e possam desenvolver seus aprendizados de maneira ótima; e
professores, eles próprios com identidades queer, que são vistos, com
frequência (principalmente por parte da administração), como su-
jeitos, igualmente, senão mais perigosos do que jovens queer, e que
podem estender uma “epidemia queer” nas salas de aula. Para Ri-
chard, o trabalho com o professorado passa por: “ofrecerles útiles para
aprehender la realidad de la homofobia, modicar sus comportamientos
y crear entornos escolares sanos y libres de discriminación no solamente
para los jóvenes sino también para los colegas de trabajo” (2002, p. 31).
A pressão do grupo, dos pais, da escola, dos professores, da socieda-
de e a autopressão conduzem o sujeito a situações sem saída que se
convertem em intoleráveis. A redução de tentativas de suicídio passa
por todas as formulações que temos exposto neste capítulo, mas são
necessárias ações especícas e concretas com aqueles sujeitos que po-
dem ser mais vulneráveis. Reclassicar o sujeito além das estruturas
binárias tornaria muito mais fácil evitar essas situações.
• Prevenção de suicídios como resultado da localização na categoria bi-
nária de anormal: o tema dos suicídios nos jovens queer é uma das
preocupações presentes nas instituições educativas. Se não for tra-
balhado a partir da prevenção e a redução de práticas homofóbicas,
uma das consequências mais claras é o suicídio do jovem queer não
aceito, marginalizado e humilhado. Tal como Morrison e L’Hereux
armam, o número de jovens queer que tentaram suicídio é muito
mais elevado que o dos jovens com identidades não queer (2001).
• Proteção a jovens queer em contextos educativos: apesar de poder pare-
cer uma prática que aparentemente esteja fora de lugar em uma ins-
tituição educativa, a verdade é que boa parte dos programas em que
se formulam políticas educativas queer tem presente, pelo menos em
uma fase inicial, a proteção dos estudantes queer. Em uma reexão
sobre a necessidade de sentir-se protegidos, Dorais manifesta que
los jóvenes homosexuales no se benecian de la misma protección y del
mismo derecho al respeto y a la seguridad que los otros” (Dorais, 2002)
24
24
Entrevista no jornal Le Soleil de Québec (3/02/02), (citado por Trudel, 2002).
285
Corpo, cultura e educação
e essa falta de proteção se vê agravada pela sensação “de ostracismo
de la cual son víctimas y de la imposibi lidad de creer que pueden estar
contentos de siendo homosexuales” (Dorais, 2002). De fato, parte das
pesquisas denunciam que alguns professores atuam com total passi-
vidade e/ou ignorância ante situações de abuso que sofrem os jovens
queer (Curren, 2002, p. 138). Mas também há casos que vão além,
com a participação de alguns professores que iniciam, apoiam ou
potencializam essas situações de abuso aos coletivos queer.
O que ca claro é a necessidade de incluir no centro de inte-
resse da pedagogia o tema queer, seja para seguir reetindo a partir da
pedagogia, seja para introduzir mudanças na práxis pedagógica. Uma
das formas de começar a fazê-lo, entre outras possibilidades, é por meio
do que Britzman nos propõe:
Una pedagogía queer que se resista a las prácticas normales y a las prác-
ticas de la normalidad, que empiece preocupándose por la ética de las
propias prácticas interpretativas y por la responsabilidad de estas en
imaginar las relaciones sociales como algo más que un efecto del orden
conceptual dominante (Britzman, 2002, p. 225).
Mas se é importante e signicativo incluir essa teoria nos dis-
cursos acadêmicos da pedagogia, também é importante ter presente o
risco que se pode correr ao convertê-la novamente em uma estrutura
pedagógica em forma de gueto ou em fazer apologia do queer. É nesse
sentido que devemos ter presente, novamente, as estruturas binárias que
podem produzir, por exemplo, a confrontação o queer e o não queer,
ao invés de produzir situações nas quais não existam essas construções
sociais subjetivas e excludentes, a partir de sua própria ontologia.
O verdadeiro sentido da pedagogia queer encontra-se em apli-
cá-la às estruturas gerais dos sistemas educativos (formais, não formais
e informais) para repensar as classicações e estruturações que fazemos
dos sujeitos. É assim que nos servirá para repensar as atitudes racistas,
a discriminação das pessoas com deciência, o esquecimento ou super-
proteção das crianças com superdotação etc. Somente aplicando uma
Jordi Planella Ribera
286
pedagogia geral que sirva para repensar os corpos dos sujeitos pedagógi-
cos, se poderá escapar da estrutura binária que ela mesma critica.
CaPítulo 9
Novos usos sociais do corpo no
século XXI
289
N      -
 XXI
La malléabilité de soi, la plasticité du corps deviennent des lieux
communs. L’anatomie n’est plus un destin mais un accessoire de la pré-
sence, une matière première a façonner, à redénir, à soumettre au de-
sign du moment. Le corps est devenu pour nombre des contemporains
une représentation provisoire, un gadget, un lieu idéal de mise en scène
pour “eets spéciaux”.
[Le Breton, 1999, p. 23]
Le corps désigne certes d’abord une réalité objective, biologique, dotée
d’organes, de fonctions, de frontières, de surfaces, mais notre rapport
personnel, subjectif, intime à notre corps se développe aussi par un en-
semble de représentations qui le modient, le surchargent de naturel au
las apparences sensibles.
[Wunenburguer, 2002, p. 223]
introdução
No nal do século XX e início do XXI provocaram-se novos
usos do corpo, mais radicalizados, que permitiram repensar muitos dos
modelos ortodoxos construídos historicamente. Este capítulo centra-se
na interpretação destes novos usos e em organizá-los em diferentes cate-
gorias de estudo. O que é certo é que os novos usos corporais carregam
novas hermenêuticas implícitas que permitem entender os corpos dife-
rentemente, a partir de perspectivas inovadoras e que também chegaram
a inuenciar os discursos pedagógicos e as possibilidades de incorporá-
Jordi Planella Ribera
290
-los nas práticas a que correspondem. Arma Le Breton na citação com
a qual iniciamos o capítulo: o corpo passou a ser concebido como uma
matéria prima para modelar, formar, deformar, transformar em função
do que nós desejamos ou necessitamos.
São muitas as possibilidades de afrontar esses novos usos, mas as
limitações de espaço, determinadas práticas no campo acadêmico e a atração
pessoal por alguns temas nos fez escolher os seguintes: os corpos pós-huma-
nos, a transformação corporal na sala de cirurgia, os corpos transexuais e as
tatuagens e piercings, temas que trataremos nas seções que seguem.
9.1. oS CorPoS PóS-humanoS
Um dos temas que se tornou essencial no século XXI é o corpo
relacionado às novas tecnologias (Echeverría, 2003, p. 13)
1
. Dos mo-
delos predominantemente dualistas, passamos a modelos monistas que
convivem com os anteriores, enquanto que a enigmática armação pla-
tônica que nos recorda que el cuerpo es una prisión para el alma, tem sido
retomada pelos teóricos do corpo no ciberespaço em busca de uma vida
não corporal, que há que abrir o caminho até la era posthumana (ou pós-
-corporal)
2
. A metáfora cartesiana do homem como uma máquina volta
a aproximar-se dos momentos nos quais a dimensão biônica e a ciberné-
tica apontam para as janelas do futuro. Se o corpo era para Platão uma
prisão —que não permitia que a alma alcançasse o precioso mundo das
ideias— para alguns jovens e teóricos do ciberespaço, o corpo se percebe
como um vestígio arqueológico que está predestinado a desaparecer em
um futuro imediato. A inuência dos avanços em engenharia humana
e biotecnologia tornam possível pensar em outras organizações e reali-
dades corporais. Como arma Vilanou, “el enfoque tecnocultural de la
cibernética supera los estrictos límites de la ciencia afectando, también,
aspectos antropológicos más allá incluso de la articulación de un inci-
piente homo digitalis” (2002, p. 359).
Echevarría denomina tudo o que se encontra ligado com o corpo e as novas tecnologias “el tercer entorno”.
Alguns autores como Yehya não estão de acordo com a tese dualista do corpo no ciberespaço que acabo
de expôr. Fundamenta dizendo que “esta perspectiva se opone a la concepción dualista que supone que el
alma, equivalente de la mente, existe de manera independiente del cuerpo, al que está vinculado por un lazo
inexplicable” (2001, p. 26).
291
Corpo, cultura e educação
O corpo volta a ser o que nos impede de conseguir determi-
nados objetivos (as ideias, a objetividade, o estado de pureza, a imorta-
lidade, a absoluta virtualidade, etc.). Para Le Breton, os entusiastas de
pensar um mundo mais além dos corpos orgânicos “disocian el sujeto
de su carne perecedera y lo quieren inmaterializar en benecio del espí-
ritu, único componente digno de interés” (2001, p. 24). Mas se esse é o
desejo expresso por alguns sujeitos, o corpo eletrônico continua sendo
um projeto ainda sem denição, um projeto aberto que será necessário
ir repensando e interpretando.
9.1.1. a CiberSoCiedade, oS mundoS PoSSíveiS e o foSSo
digital
Bradbury nos descreve uma comunidade virtual em que os in-
divíduos que fazem parte dela tem verdadeira fobia de manter contatos
físicos com outras pessoas, e organizam um mundo paralelo em formato
virtual
3
. Porém, não é necessário chegar ao extremo de comunidades
virtuais que têm fobia do contato; as comunidades virtuais existem,
ainda que em muitas delas —nas quais seus membros se encontram
situados sicamente próximos— mantém-se contato físico com pessoas
(apesar de poderem mantê-lo) e com outros membros de sua comuni-
dade virtual. A tecnologia que torna possível as comunidades virtuais
têm a possibilidade de dar a qualquer cidadão um poder enorme a um
custo relativamente baixo: poder intelectual, social, comercial e, o que
é mais importante, poder político. Nesse sentido, o acesso a um espaço
comum, democrático, e às vezes descorporicado” (pelo menos virtu-
almente falando) é uma ação democratizadora dos espaços sociais. Um
dos espaços virtuais que podem ser denominados de múltiplas formas,
mas cuja forma mais usada é a de ciberespaço ou cibersociedade. O
termo provém das obras de cção cientíca de William Gibson e pode
ser denido como um novo universo, um universo paralelo criado e
Citado por. A. Díaz (1998, p. 71). A tecnologia digital avança com a nalidade de oferecer respostas nessa
linha que se leva à cabo a partir da Microsoft, e que Gates expõe da seguinte forma “en el caso del tacto, la
idea que tiene más cuerpo es la de que se podría hacer un body y forrarlo con pequeños sensores y dispositi-
vos de retroalimentación que pudiesen ponerse en contacto con toda la supercie de la piel. No creo que los
bodys sirviesen para todo el mundo pero sería factible” (1995, p. 130).
Jordi Planella Ribera
292
sustentado por meio dos computadores e das comunicações on-line
4
. As
comunidades virtuais são formas de organização social das cibersocieda-
des ou do ciberespaço.
As comunidades virtuais possibilitam o aceso democrático dos
sujeitos à informação e aos espaços de participação até então não pos-
síveis ou excessivamente restringidos. Contudo, se por um lado possi-
bilita o aceso de muitas pessoas, por outro lado cria uma nova situação
de exclusão que se denomina exclusão digital
5
. Uma lacuna que divide
aqueles que têm acesso às novas tecnologias e ao seu uso, daqueles que
cam à margem, e que constrói uma realidade binária entre os possui-
dores de e-identidades e os que não. Nesste sentido, devemos colocar a
seguinte pergunta: se boa parte da população trabalhará por meio de
computadores, o que ocorrerá com aqueles que não têm acesso a tal fer-
ramenta? O que acontecerá com aqueles que não sabem ou não podem
utilizá-la? A resposta pode ter diversas direções, mas nos Estados Unidos
já têm surgido o que se denomina como cibermarginais. Joyanes (1996,
p. 2) nos coloca que na sociedade da informação os trabalhadores não
se encontram organizados entre os que realizam um trabalho corporal e
os que fazem trabalho intelectual. A partir de agora o mundo laboral se
organizará em torno dos trabalhadores do saber e dos trabalhadores de
serviços
6
.
Nas comunidades virtuais (originariamente conhecidas como
MUD: domínios multiusuário), os participantes entram a partir de
qualquer espaço geográco, cada um por meio da sua interface, e se
unem a comunidades que unicamente existem por meio do computador
(Turkle, 1998). Tratam-se de realidades virtuais sociais, que, nas palavras
de Vilanou, nos descrevem uma nova situação “ya que lo virtual anuncia
y escenica la desaparición de la categoría de lugar” (2001a, p. 100). E
se o espaço físico e geográco agora perdeu a relevância que tinha nos
contatos físicos, a identidade (a e-identidade ou a ciberidentidade) já
 As obras mais relevantes de Gibson são: Neuromancer (1984) e Count Zero (1987).
Já se fala desste fenômeno no Plan de la Lucha por la Exclusión del Ministerio de Trabajo y Asuntos
Sociales, 2002.
Os trabajadores del saber serão aqueles que gerenciarão bases de dados digitais em entornos virtuais, en-
quanto os trabajadores de servicios facilitarão a vida cotidiana (também podemos designar como vida corpo-
ral) dos trabalhadores do saber, também designados como trabajadores digitales).
293
Corpo, cultura e educação
tinha ganhado força e se encontra denida, sobretudo, pela presença/
ausência dos sujeitos nos espaços virtuais e pelas ações que ali ocorrem.
Existem muitos exemplos do que poderia se denir como comu-
nidade virtual, mas é possível que sejam mais claros os que têm a ver com:
• grupos de jovens que existem em formato virtual
• comunidades virtuais de e-learning, que compartilhem objetivos,
metodologias e atividades, mas que possivelmente nunca coincidem
em tempos e espaços reais.
O primeiro exemplo (jovens que convivem em formato vir-
tual) seria o caso de sujeitos que se conheceram em um Chat por meio
da palavra escrita (frequentemente codicada), e que se descreveram
corporalmente e identitariamente (de forma real ou ctícia), iniciando
uma relação. Núñez (2002) estudou as relações nos chats e nos coloca de
maneira muito gráca que no es oro todo lo que brilla. A realidade virtual
permite inventar personalidades, identidades, formas físicas, realidades
e inclusive o sexo; por isso, ¿Quién nos asegura que nuestro interlocutor
(que nos dice que es una chica) es realmente una chica?
9.1.2. oS CorPoS cyborg
O termo cyborg foi cunhado por Clynes no ano de 1960 para
denir as características de um homem melhorado que poderia sobre-
viver em una atmosfera extraterrestre. Em um trabalho publicado con-
juntamente com Kline, intitulado Cyborgs and Space, armam que as
viagens espaciais desaam a humanidade não unicamente a nível tecno-
lógico, mas também espiritualmente, já que convidam o homem a to-
mar parte ativa da sua evolução biológica
7
. Desse uso que Clynes y Kline
deram o conceito, passou a ser mais conhecido por meio do manifesto
cyborg, proposto por Dona J. Haraway en Ciencia, cyborgs y mujeres.
La reinvención de la naturaleza, e popularizado entre os seguidores do
ciberespacio”.
7
Citado por Yehya (2001, p. 41).
Jordi Planella Ribera
294
O termo Cyborg pode ter múltiplas interpretações, inclusive
prestando-se a determinadas confusões que tornam mais difícil a con-
cretização real de seu signicado. Para Yehya (2001, p. 44), o cyborg não
é unicamente homem com acessórios tecnológicos incrustados na carne
e nos ossos: cyborgs podemos ser todos que tenhamos sido modelados
e conformados pela cultura tecnológica. Da mesma maneira que todos
podemos nos converter e nos sentir parte dessa comunidade cyborg, de-
vemos ter presente a existência de outras formas de vida não humana
que se assemelham: por um lado, os androides, que pertencem total-
mente ao terreno da especulação cientíca e, por outra, os robôs, que há
muitos anos são reais e que a indústria usa com múltiplas funcionalida-
des no mundo
8
.
Podemos denir o cyborg como uma mescla do orgânico, do
mitológico e do tecnológico. A revista El Paseante, no número 27-28
(1998), dedicada exclusivamente à revolução digital, nos oferece duas
imagens claras e precisas do que é o cyborg. Uma primeira imagem nos
mostra uma garota com um braço mecânico com unicamente dois
dedos, com um peito eletrônico e a carne que cobre uma sexualidade
transparente. A segunda imagem é a de um garoto com um corpo
transparente, que nos deixa ver seus intestinos, suas costelas e um apa-
rato eletrônico implantado na altura do seu peito. Seu braço esquerdo
é o acesso ao funcionamento de sua parte tecnológica (encontramos
botões que nos permitem apagar e acender as opções tecnológicas des-
se novo homem). As imagens que acabamos de descrever, amplamente
conhecidas no cinema, fazem com que a realidade e a cção sejam
transparentes por meio de pontos de fusão
9
. Porém, o que nos sugere, e
de certa forma nos lembra o cyborg, é nosso próprio corpo (concebido
a partir de sua condição de mortal), resgatado de si mesmo por meio
da tecnologia.
Para Yehya, trata-se da melhor metáfora das possibilidades que algum dia ofereceram a biotecnologia, a
engenharia de materiais e a inteligência articial (2001, p. 45).
 Alguns desses lmes são: Blade Runner, Terminator, El cortacesped, etc.
295
Corpo, cultura e educação
9.1.3. uma vida Com CorPoS PóS-orgâniCoS
Do que mencionamos até o momento, facilmente podemos de-
duzir que alguns dos teóricos da realidade virtual propõem uma nova era
que vem a ser marcada por um universo pós-biológico. Esse novo universo
aposta na criação (ou fabricação) de corpos que não sejam corpóreos nem
mortais. Os avanços tecnodigitais permitem a aparição de novos discursos
corporais, já que os corpos se converteram em nômades, etéreos e voláteis
(Vilanou, 2001). Este era o lema da revista futurista Mondo 2000, quando
anunciava que os homens renasceriam convertidos em uma espécie de
anjos biônicos. Como aponta um desses teóricos radicais:
La moda del piercing es un acercamiento estético al mundo del implante
que está por venir. El siguiente paso, en vez de colocarse bolitas de metal
en la base de la lengua, exponiéndose a dolor, infección y supuración
sin límites por obtener una mirada de sorpresa de los colegas, serán los
implantes de pequeñas maquinarias, por ejemplo un reloj. Me encantaría
tener un reloj suizo implantado en la muñeca, que cambiaria de color y
apariencia según mi indumentaria (Dyaz, 1998, p. 137).
Alguns desses teóricos propõem que o corpo toma, à luz da di-
mensão virtual, uma nova concepção (Haraway 1991, Dyaz 1998, Dery
1998), e se situa em uma corporeidade radicalmente diferente. Segundo
Dery, “en la cibercultura el cuerpo es una membrana permeable cuya
integridad es violada y su santidad amenazada por rodillas de aleación
de titanio, brazos micro eléctricos, huesos y venas sintéticos, prótesis
de senos y de pene, implantes cocleares y caderas articiales” (1998, p.
254). Stelarc, um dos experimentadores mais atrevidos na transforma-
ção corporal, esteve trabalhando em investigações e performances de
um projeto de transformação corporal que implica passar de um corpo
biológico a um cibercorpo. Nesse contexto, podemos nos perguntar: o
que representa essa nova dimensão corporal?
De início, supõe mudar alguns aspectos chave da existência
que caracterizou os corpos humanos até a atualidade. Os sujeitos com
deciência agora podem se deslocar pelo ciberespaço sem diculdades,
com menos barreiras culturais, sociais, mentais. Permite um desloca-
mento virtual mais efetivo e por sua vez a igualdade em relação à elimi-
Jordi Planella Ribera
296
nação de algumas diferenças sociais (especialmente as diferenças físicas
ligadas a aspectos evidentes do plano visual). A nova utopia, apesar de
parecer uma possibilidade remota, isolada, alijada e talvez irreal, se de-
senha entre seus seguidores como uma possibilidade de romper com as
estruturas binárias. Como em toda utopia, pensar em corpos pós-huma-
nos ca no imaginário dos sujeitos e das sociedades, e o discurso sobre o
m do corpo é, como nos sugere Le Breton: “un discurso religioso que
crea ya en el advenimiento del Reino” (2001, p. 25).
9.2. o CorPo não aCeito: deSenho, arquitetura e Cirurgia
CorPoral
Devemos insistir em Le Breton (1999) sobre a condição do
corpo como matéria prima, porque se falamos da hipótese que é maté-
ria prima, podemos mudá-lo, transformá-lo, modicá-lo, sobretudo se
não nos agrada, não nos convém ou não o aceitamos. A arte nos oferece
uma nova perspectiva, sobretudo por meio das práticas performativas e
o body-art, que abriu outras possibilidades de viver e entender os corpos.
Essa inuência se dá porque na performance “el actor no es un actor,
sino un actuante; se pone en juego física y psicológicamente frente a
espectadores que no viven precisamente un, sino un verdadero drama,
aquí y ahora” (Orlan, 2002, p. 203). O sujeito passa a atuar de forma
ativa, convertendo-se em uma espécie de ativista de seu próprio corpo.
Esse ativismo transformacional do corpo pode se canalizar de
formas diferentes, segundo nos propõem Cruz y Hernández: suportes
corporais sem modicação (transformações temporais) e suportes corpo-
rais com modicação (corpos protésicos, corpos reconstruídos) (2003).
Em todos eles o corpo toma uma dimensão arquitetônica e projetual:
frente a um plano vazio podemos projetar e construir nossa ideia de cor-
po. Na realidade, trata-se de práticas superciais: a primeira proposta,
que se exemplica em performatividades do corpo em forma de jogos,
happenings e outras variações que permitem um fácil retorno à maleabi-
lidade corporal; a segunda proposta, por sua vez, faz referência a incisões
feitas na carne e que se podem traduzir no implante de elementos protési-
cos (que abarcam uma grande variedade de possibilidades que nos trans-
297
Corpo, cultura e educação
porta a partir do terceiro braço de Stelarc até a prótese, os implantes
mamários, os marca-passos, etc.) ou em incisões performativas ligadas à
forma, desenho, estética e saúde corporal que nos reenviam aos avanços
médicos e biotecnológicos (operações de cirurgia estética, transplantes
de órgãos, etc.). Encontramo-nos em um momento em que o sujeito, a
partir das posições de Self Hybridations, se convertem no artifício da for-
ma, o desenho e a estética de seu próprio corpo. O corpo ultrapassou, se
tivermos em conta toda essa perspectiva, o papel de ferramenta (arma-
ram Mauss y Galimberti), ao converter-se em uma nalidade axiológica.
9.2.1. a ConStrução de PadrõeS eStétiCoS ou a invalidação
doS CorPoS exiStenteS
A construção social da realidade pode extrapolar a construção
pessoal da corporeidade, porque “el ser quiere esculpirse, remitirse en
forma, ajustarse a las normas veiculadas por las fotografías y las revistas
(Borel, 1992, p. 209). Essa ideia serve para iniciar a reexão em torno
da negação dos corpos que não são aceitos por aqueles sujeitos que os
encarnam. Alguns autores apontam que essa negação do próprio corpo
pode fundamentar-se nas concepções históricas existentes que armam
que a beleza é uma característica prototipicamente feminina comparável
ao que pode signicar a força do sexo masculino
10
. Os padrões estéticos e
os padrões corporais não foram xos e têm evoluído desde a Grécia até os
dias atuais, passando por múltiplas formas de aceitação e repúdio social.
No primeiro terço do século XX, o padrão corporal para as mulheres as
denia como “rechonchudas”; aquelas mulheres que eram magras não se
encontravam dentro do cânone de beleza imperante no contexto social da
época
11
. Mas desde meados dos anos cinquenta, os padrões estéticos re-
presentavam as mulheres muito mais magras. Essas concepções de formas
de beleza têm sido acompanhadas de variadas formas de cuidar do corpo
(por meio de produtos de embelezamento ou formas de mantê-lo dentro
10
Porrot (1992), Toro (1994), Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (1999), Marzano (2001).
11
Em relação ao tema do cânone de beleza corporal, Ramírez arma que “la tradición académica creía en la
existencia de un cuerpo humano perfecto, sujeto, incluso, a unas medidas proporcionales que derivaban de
los estereotipos heredados del mundo clásico. La justicación intelectual remota estaría en El canon, aquel
libro sobre el tamaño y proporciones de cada parte de los cuerpos” (2003, p. 21).
Jordi Planella Ribera
298
da margem dos padrões de normalidade corporal que regem a sociedade) e
de formas de transformá-lo para torná-lo mais belo (operações de cirurgia
estética, drásticas medidas para anar a cintura, etc.).
Parto da suposição que todo padrão de beleza é arbitrário, cul-
tural, social e não universal. Para Brohm, “la construcción estética de
un canon de perfección corporal es una pura cción ya que todo en el
cuerpo es asimétrico” (2001, p. 232). Contudo, nos últimos anos, com
a facilidade de receber informações de diferentes partes, a publicidade
mesmo se converteu em uma uniformidade de critérios, de ideias para
vender o mesmo produto (ou padrão estético) nos Estados Unidos ou
na Turquia. Já dizia Dürer, depois de ter estudado com cuidado as pro-
porções corporais, que era incapaz de dar uma descrição exata da medida
que nos aproximaria da verdadeira beleza e que nenhum ser humano
poderia tê-la por inteiro
12
. Seguindo essa linha de busca, encontramos a
citação de Bertherat que, ao ser perguntado sobre o cânone estético esta-
belecido, arma que: “la forma perfecta no es otra que la forma normal
del cuerpo, la de no importa que cuerpo” (1980, p. 140).
Apesar das palavras de Dürer, para muitos sujeitos, as indica-
ções e convites publicitários para possuir corpos esbeltos e magros se
convertem em verdadeiros padrões corporais a seguir, que terão con-
sequências diretas no eu e no meu corpo. Esse fato fez com que, entre
outras consequências, um número bastante signicativo de garotas e ga-
rotos sofressem de anorexia nervosa. Assim como o aumento de casos de
garotas com anorexia, cada vez há mais mulheres que decidem fazer uso
da cirurgia para transformar seu corpo e construí-lo de acordo com os
padrões estéticos propostos por determinadas cadeias de televisão e pelo
mundo da publicidade em geral.
Anúncios de revistas de grande tiragem publicam reportagens
com títulos como Camino de perfección, que serão lidas por muitas pes-
soas e cujo conteúdo será tomado como ideal corporal
13
. Isso porque o
corpo exterior faz referência à aparência, mas também ao movimento e
ao controle do corpo dentro de um espaço social (Featherstone, 1982).
12
Citado por Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (1999, p. 3).
13
Trata-se da revista Salud y vida, nº 32, noviembre 2001.
299
Corpo, cultura e educação
Os padrões sociais (ou o espaço social) são os que marcam o que corpo-
ralmente é aceito e o que corporalmente não é. Será essa a conexão entre
percepção externa e a percepção interna que fará com que alguns sujei-
tos se sintam desgostosos e não aceitem seu corpo tal como se apresenta
de forma natural.
Por trás dos modelos corporais, atrás dos padrões de beleza, se
escondem outras concepções do sujeito. Para Pérez, “lo bello según el
estereotipo se identica con la bondad, la justicia, la profesionalidad,
la inocencia, la equidad, etc. arrinconando socialmente a las personas
menos agradecidas. Este modelo de belleza está contaminado cultural-
mente, asignando valores a unas razas frente a otras, y dentro del mismo
género según el estereotipo asignado a cada sexo” (2000, p. 68). Encon-
tramo-nos diante de uma situação de des-incorporação social em função
dos corpos dos sujeitos e aqueles corpos que se excluem de determinados
padrões estéticos e se encontram destinados a car nas margens, a pos-
suir e arrastar seus corpos marginalizados.
Algumas dessas ideias podem ser reforçadas com estudos nos
quais se analisa a relação entre a variável beleza e a variável aceitação
social. Um exemplo encontramos no livro Du monstre a l’enfant (2001),
onde seu autor analisa a percepção social das crianças com deciência,
de monstros a crianças. Grim propõe que a monstruosidade passa a fazer
parte dos imaginários: “en la clínica del niños con discapacidad, padres y
profesionales evocan las guras de la monstruosidad” (2001, p. 13). Essa
temática também é objeto de reexão no livro coordenado por Da Silva
(2000), no qual Cohen, um dos autores, lança a ideia de que o corpo do
monstro é um corpo cultural, já que o monstro não existe por si mesmo
(2000, p. 26). Em relação à aceitação social dos corpos diferentes, Mai-
sonneuve e Bruchon-Schweitzer (2000, p. 32) propõem três aspectos
que socialmente articulam as duas variáveis comentadas:
• a beleza atrai e fascina os sujeitos, enquanto que a feiura provoca a
repulsa (e cria esses monstros sociais repudiados)
• segundo seu aspecto físico, um indivíduo suscitará outras reações
extremamente diferentes. Desde atração até repulsa, passando pela
mais absoluta indiferença
Jordi Planella Ribera
300
• esses tratamentos diferenciados, repetidos e coerentes entre eles, se-
rão interiorizados pelos sujeitos que acabaram por se perceber e se
comportar de acordo com o que os outros esperam dele.
Da mesma forma que esses dois autores fundamentam seu tra-
balho, ca evidente a conexão entre a forma corporal e o grau de aceita-
ção social por parte da sociedade, criando-se uma conexão direta entre
beleza corporal e nível de aceitação social.
Existem múltiplas teorias explicativas para argumentar essas
armações. Entre outras é destacável a teoría de la inculcación social,
defendida há mais de quarenta anos. Alguns dos autores clássicos que
fundamentaram essa teoria são Brodsky (1954), Staeri (1967) e Ler-
ner (1977) e, de suas propostas, se desprende que os critérios de beleza
podem variar de uma sociedade a outra e podem fazer parte da cultura
própria de cada uma delas. Dentro de cada cultura existiria um conjunto
de normas relativamente especícas que interiorizamos desde crianças e
que nos acompanham durante nossa existência. Esse seria um dos moti-
vos pelos quais compartimos esses modelos estéticos.
Também existem explicações dos padrões estéticos fundamen-
tados a partir da sociobiologia, sobretudo a partir das armações feitas
por Darwin (1871) e Lorenz (1973). Essa teoria argumenta que a partir
de uma perspectiva evolucionista, os seres humanos selecionaram pares
aptos para procriar, com boa saúde e que estimulam no sexo oposto os
comportamentos de acasalamento, reprodução, etc. Os critérios de be-
leza seriam, então, as marcas que nos indicariam que aqueles sujeitos são
úteis para a sobrevivência da espécie humana (Cunningham y al., 1995).
Outra teoria explicativa das relações entre o corpo e a socieda-
de é a que se conhece como natureza transacional. Cada individuo está
submetido à inuência de determinantes biológicos e socioculturais,
mas o sujeito não é um objeto passivo dessas forças, mas que pode in-
tencionar controlá-las, modicá-las, decidir por ele mesmo. Seguindo o
trabalho mencionado de Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (2000, p.
48), podemos armar que “el fenómeno de la belleza podría depender,
301
Corpo, cultura e educação
entonces, de una interacción ente factores biológicos, socioculturales e
individuales”. Essa terceira teoria explicativa daria uma resposta mais
clara a todas as variáveis que podem entrar em jogo nos determinantes
sociais dos padrões de beleza.
Além dos aspectos que discuti até o momento, é importan-
te destacar que os padrões estéticos comentados são aqueles vigentes
no ocidente, especialmente nos países ricos. Os modelos predominan-
tes nos meios de comunicação de massa se fundamentam nos padrões
anglo-americanos. Dessa maneira, propõem-se corpos construídos so-
cialmente em sociedades organizadas com base em outras estruturas.
Acabam se produzindo corpos diferentes em contextos socioculturais
que lhe são estranhos.
9.2.2. a feminilidade doS CorPoS o aCeitoS
Apontei na seção anterior o que socialmente tem sido o corpo
feminino, e que se tem exigido com mais insistência manter-se dentro
de alguns determinados padrões. Para Toro:
La relevancia del cuerpo femenino suele ser en todas las culturas
signicativamente superior a la del masculino, tanto a ojos de la
propia mujer como de quienes la rodean. En la práctica totalidad de
las culturas, la belleza física de la mujer recibe una consideración más
explícita que la del hombre (Toro, 1996, p. 54).
Parece evidente que a mesma sociedade, por meio da família e
da cultura, tem construíram padrões que tem feito com que muitas jo-
vens, adolescentes e mulheres adultas não se sentissem bem com seu cor-
po. O fato de muitas vezes a mulher ter sido concebida com uma função
dupla - procriadora e sociossexual - é o que tem levado à existência dessa
excessiva exigência em manter o corpo com determinadas medidas e
formas. O nível de exigência chega a ser tão grande que frequentemente
se pede que o corpo feminino que já tenha dado à luz e amamentado os
lhos continue exercendo um alto nível de atração sexual. Essa exigência
de corpos femininos esteticamente corretos repercute de tal maneira na vida
cotidiana das mulheres que essas, por meio dos estereótipos marcados
Jordi Planella Ribera
302
pela sociedade, não se podem desfazer de seu corpo. Para Gauli e Ló-
pez (2000), esse fato chega a casos extremos em determinados anúncios
publicitários nos quais se quer dar importância à capacidade mental da
mulher que aparece neles, mas que acabam caindo no estereótipo de sa-
lientar a beleza e o corpo feminino. Esse fenômeno não se dá nos anún-
cios protagonizados por homens. Na análise foucaultiana da biopolítica,
o controle dos corpos femininos é o máximo expoente das relações de
poder, já que o corpo se converteu em um objeto político. Os corpos fe-
mininos se encontram muito mais controlados que os masculinos. Esses
últimos, apesar de que socialmente se espere deles determinadas condu-
tas, escapam geralmente ao exercício da biopolítica.
Embora cada vez mais os homens, jovens e não tão jovens, te-
nham decidido cuidar do seu corpo e embelezá-lo, não se pode compa-
rar com as mulheres na relação que se estabelece entre ela e seu próprio
corpo. Isso ocorre, entre outras razões, porque “en las mujeres la belleza
se convierte en estrategia de supervivencia. La belleza de la mujer es una
mercancía que se puede cambiar por poder y por dinero, es un valor a
través del cual se puede obtener seguridad” (Alberdi y al., 2000, p. 30).
Na armação de Alberdi, encontramos uma das chaves em que, nas dife-
rentes seções do nosso livro, vai aparecendo o corpo: o corpo entendido
como valor, especialmente no sujeito que está encarnado nele.
Ainda que para alguns autores se torne evidente essa dimensão
do corpo feminino (da beleza feminina) como valor, para outros autores
trata-se somente de uma campanha reacionária que usa as imagens da
beleza como arma política para frear o progresso das mulheres (Wolf,
1991). Essa tese é apoiada pelo discurso feminista, que tem como ob-
jetivo a libertação da mulher, e dentro do objetivo de libertar a mulher,
busca libertá-la de seu próprio corpo. Essa perspectiva contrasta com o
coletivo de mulheres que tem o corpo como valor e, no extremo, as que
creem que a melhor forma de manter o corpo em um estado de sociali-
zação é passar pela sala de cirurgia.
303
Corpo, cultura e educação
9.2.3. a fabriCação de CorPoS eStetiCamente CorretoS: o
CiliCone na Sala de Cirurgia
A construção de modelos e padrões estéticos no ocidente tem
comportado o desenvolvimento de toda uma indústria que, por meio de
operações de cirurgia estética, oferece poder escolher a la carte uma nova
forma para os corpos. Para Pérez, trata-se de que a “transformación del
cuerpo mediante la cirugía se ha desarrollado fundamentalmente a través
del cine y desde ahí ha pasado al resto de los medios” (2000, p. 71). Os
padrões arquetípicos do que se espera da mulher, transmitidos por meio
do cinema, tem inuenciado, nos modelos de corpos femininos a seguir.
14
Um dos temas que tem marcado essa determinação corporal tem sido os
concursos de beleza. Esse fenômeno tem levado boa parte do que tem re-
presentado a construção de um padrão corporal feminino excessivamente
magro. Sua origem remonta aos anos sessenta, quando apareceu o fenô-
meno de Twiggy. Tratava-se de uma garota de 17 anos quase esquelética
que se introduziu na moda europeia e americana. Suas medidas  79-56-
81  deram uma virada radical nas medidas até o momento vigentes. É
por essa razão que Toro (1996, p. 134) defende que somente assim se pode
entender que o corpo mais prototípico nas sociedades tinha sido abolido
como modelo estético, e que em seu lugar encontramos outro corpo que
unicamente representa uma minoria dos corpos. Para muitas feministas,
este é o feito desencadeante que terminará anos mais tarde provocando o
fenômeno dos transtornos alimentícios.
Atualmente, o modelo corporal feminino é o “de una mujer es-
belta y delgada. El proceso de estrechamiento y alargamiento del cuerpo
ideal de las mujeres ha ido avanzando con pasos hacia adelante y hacia
atrás” (Alberdi, 2001, p. 41). No século XXI imperam corpos excessiva-
mente magros. As revistas, mas sobretudo a televisão e o rádio, bombar-
deiam com anúncios de clínicas especializadas em transformar o corpo
das clientes que assim desejam, com anúncios como “ahora es posible te-
ner pechos a la carta con implantes anatómicos”, “modelamos tu gura” ou
14
Nesse sentido, houve uma clara evolução dos padrões corporais femininos dos anos cinquenta e sessenta,
com Martha Rocha, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, Marilyn Monroe, Elisabeth Taylior, etc. com corpos
mais facilmente acessíveis para a maioria das mulheres, para novas atrizes que possuem corpos mais magros
e que parecer com elas implica passar por dietas ou por operações de cirurgia estética.
Jordi Planella Ribera
304
hacemos que se giren para mirarte allí dónde la espalda pierde su aburrido
nombre”. Esses modelos construídos socialmente se convertem no guia
ou padrão para muitas adolescentes, que sonham em incrementar o vo-
lume dos seios, perder peso por meio de técnicas como a lipoaspiração,
arredondar os lábios por meio da injeção de silicone, etc.
15
Trata-se de
intervenciones estrella con las técnicas más avanzadas para estar bella de
los pies a la cabeza, desde los transplantes de cabello con micro injertos
hasta la remodelación del pecho a la carta, pasando por la reducción del
estómago, las operaciones de nariz sin cicatrices, los liftings faciales y la
liposucción ultrasónica combinada con lipoescultura” (Girona, 2001, p.
42). Operações que, se saem como previsto, podem permitir o exercício
da reincorporação social.
9.2.3.1. genealogia da Cirurgia eStétiCa
A cirurgia começou a desenvolver técnicas para a correção ma-
mária, sobretudo de seios que sofriam hipomastia, ou mama pequena.
As primeiras tentativas buscavam introduzir na mama da paciente li-
pomas da própria paciente. Devido ao fracasso desses primeiros experi-
mentos, pouco tempo depois aparecem em publicações especializadas da
época referências a colocações de parana, cera, bolas de cristal, marm
ou cartilagens dentro da mama para dar a forma e o volume desejado
ao seio feminino. Antes de começar a experimentar o produto estrela da
atualidade  o silicone , os cirurgiões introduziram nas mamas das
suas pacientes polietileno, polivinil e teon em forma de pequenas fatias
ou esponjas. O fracasso com esse tipo de produto foi tão grande que se
viram obrigados a retirar todos os implantes que realizaram. Com a che-
gada do silicone, assistimos a um renascimento dos implantes corporais
para ampliar as dimensões de determinadas partes do corpo, especial-
mente dos seios. Já em 1963, Cronin y Gerow propõem um implante
mais avançado, no qual não se implanta silicone líquido, mas que se faz
com silicone em uma espécie de receptáculo que evitará que se mova
dentro do corpo.
15
Em algumas ocasiões chegou-se a casos extremos em que as garotas adolescentes pediam como presente de
reis uma operação de cirurgia estética.
305
Corpo, cultura e educação
Daquelas primeiras tentativas de transformar o corpo até a
atualidade, as técnicas médicas de cirurgia têm avançado consideravel-
mente, sobretudo pelo que este fenômeno representa economicamente.
A indústria da modicação corporal, da transformação corporal, que tor-
na realidade os sonhos de encarnar outros corpos, (esses, esteticamente
corretos”) tem possibilitado a investigação e os avanços na ciência da
modicação corporal. Porém, ainda que os avanços tenham sido muito
importantes, não podemos deixar de lado algumas críticas que surgi-
ram a respeito. A Agência de Fármacos e Alimentos dos EUA (FDA)
tem constatado em diferentes estudos que dois terços dos implantes de
silicone nas mamas acabam se rompendo. O silicone que permite aos
cirurgiões dar volume e forma às mamas termina por produzir rupturas,
apesar de a maioria dos casos não ter ocasionado danos nas mulheres
implantadas. Os dados disponíveis da FDA revelam, aparentemente e
tendo em conta o número das pessoas que o praticam, a simplicidade
de passar pela sala de cirurgia e renovar o corpo. Mas essa aparente sim-
plicidade, como vou seguir armando, desaparece em muitas ocasiões.
9.2.3.2. Cirurgia e imPlanteS: arquitetura de um CorPo
Para Ser aCeito
Operar o corpo, implantar próteses ou objetos externos para
modicar as dimensões e para revalorizá-lo se tornou uma prática habi-
tual. Seguindo o que Farías argumenta, “ya no es cuestión de salud, de
sentirse bien e ir al gimnasio. No. Ahora hay un culto heavy al físico
(2001, s/p). A popularização de passar pela sala de cirurgia e mudar o
corpo vem das mãos de alguns famosos, que têm feito com que cada
vez mais a sociedade aceite e veja com melhores olhos a modicação da
silhueta e da aparência corporal. Exemplos de como a transformação de
artistas populares como Michael Jackson, Cher, Demi Moore ou Eli-
sabeth Taylor tem popularizado uma prática que anteriormente estava
nas mãos de muito poucos, passou a ser tão popular que há alguns anos
temo assistido a um aumento de notícias nos meios de comunicação que
nos falam de garotos e garotas adolescentes que tem passado pela sala de
cirurgia. Um caso extremo é o da Miss Brasil que, com 22 anos, havia se
Jordi Planella Ribera
306
submetido a 19 operações de cirurgia: fez lipoescultura em todo o corpo,
implantou silicone nas mamas e corrigiu o nariz e as orelhas. Mas o caso
da Miss Brasil não é o único e, nos concursos de beleza, é habitual que
a maioria das concursantes apresentem corpos modicados à la carte.
Detectou-se que cada vez garotas mais jovens, adolescentes, pedem para
transformar seu corpo na sala de cirurgia. Aos 15 anos, quando o corpo
ainda não terminou de se desenvolver, sentem a necessidade de controlar
a direção e o ritmo do seu crescimento corporal. Algumas adolescentes
sonham em possuir corpos espetaculares, corpos irreais. Moscana e ou-
tros (2002) entrevistaram um grupo de adolescentes norteamericanas
cujo lema é Quero ser como a Barbie, porque a Barbie tem tudo perfeito! É
evidente que a cirurgia estética apresenta importantes vantagens, o que
não é tão evidente é a vantagem que existe em avançar o próprio desen-
volvimento corporal.
Supõe-se que passar por uma cirurgia pode servir para que o
sujeito se sinta melhor com seu corpo, uma vez que o corpo está recons-
truído. Mas essa armação contrasta com a realidade dos pós-operató-
rios e/ou das reações corporais frente à presença de corpos “estranhos
no seu interior. O extremo das experiências operatórias encontramos
naqueles casos, ultimamente muito numerosos, de garotas que entraram
em uma sala de cirurgia para fazer uma operação facial e não sobrevive-
ram ao pós-operatório. No trabalho documental de Moscana (2002) se
revela a outra face das operações de cirurgia estética. Mostra-se a exis-
tência de uma clínica em Atlanta (EUA), onde se tratam enfermidades
catalogadas de “intratáveis”, além dos desastres causados por operações
de cirurgia estética. Especializaram-se na extração de implantes mamá-
rios, já que entendem que o silicone está por trás de muitos transtornos
físicos que até agora ninguém havia relacionado com a cirurgia plástica.
Sua diretora, Catherine Coltus, quis experimentar o que haviam sofrido
as mulheres acolhidas no serviço e se submeteu a uma operação de im-
plante de mamas.
Também na França existe a Association Française des Victimes de
la Cirurgie Esthetique (AVCE), onde oferecem apoio psicológico a mu-
lheres que sofreram traumas em consequência das operações de cirurgia
307
Corpo, cultura e educação
que, teoricamente, deveriam servir para melhorar seu bem estar pessoal.
Atualmente há 800 mulheres associadas, sobretudo operadas do nariz e
das mamas. Alguns dados que saíram àa luz pública são estarrecedores:
• em 1998, 43.000 mulheres retiraram os implantes mamários por
diculdades ou doenças
• supostamente, nos últimos 15 anos, houve somente 118 mortes por
implantes mamários, mas especialistas dizem que podem ser muito
mais, mas que as causas da morte frequentemente são encobertas
(Moscana 2002).
9.2.4. o CorPo renovado
Transformar o corpo na sala de cirurgia, tanto para aquelas
pessoas que apresentam uma identidade mental diferente da identidade
sexual, como para aquelas que não se sentem bem com sua forma cor-
poral, pode representar uma reapropriação da sua corporeidade. Digo
reapropriação pois a transformação do seu corpo pode ajudar a pessoa
a se sentir melhor com ela mesma. É evidente que essa prática pode au-
mentar a qualidade de vida de algumas pessoas, especialmente se enten-
dermos o homem a partir de um modelo antropológico monista no qual
não se não se diferencia o eu-corpo do eu-mente. É justo, pois, aceitar que
as modicações do corpo podem ter uma incidência na mente da pessoa
e, portanto, a partir desta perspectiva o corpo passa a se transformarem
um valor por meio do qual se incorpora ao mundo.
16
Contudo, apesar dessa perspectiva de revalorização da corpo-
reidade, também é certo que o preço que é necessário pagar, em ocasiões
pelo excesso de valorização do corpo, é muito caro. Existe um conjunto
de aspectos diferentes necessário para poder equilibrar. Por outro lado,
encontramos um sujeito que está desgostoso com seu corpo e que quer
ou necessita mudá-lo, modicá-lo; uma das formas mais rápidas (ainda
que também a mais cara) de fazê-lo é entrar em uma sala de cirurgia e
se operar. Por outro lado, existe um importante número de mulheres
que tem sofrido verdadeiras agressões contra seu corpo, por negligência
16
Incorporar-se signica estar presente no mundo, e estar a partir da corporeidade da pessoa mesmo.
Jordi Planella Ribera
308
ou exigência prossional. Não podemos nos esquecer que as operações
têm um valor primordial para muitas pessoas (pensemos nas reconstru-
ções faciais dos acidentados ou queimados), mas algumas pessoas que
decidem se operar não têm presente que o que farão será justamente se
operar. Não vão fazer uma sessão de manicure; entrarão em uma sala
de cirurgia e as operações, por pouco que sejam, têm um risco. São
signicativas as reexões da AFVCE dirigidas às pessoas que querem se
submeter a uma operação de cirurgia estética: que reitam, que pensem
bem, que escolham bem o cirurgião, que não tenham pressa, que saibam
exatamente onde estão se metendo e o que vão fazer.
9.3. o CorPo tranSexual
O tema da transexualidade é o terceiro dos novos usos do
corpo que me disponho a estudar. Apresenta algumas conexões diretas
com outros temas estudados nos capítulos precedentes, como a Teoria
do Corpo e a Pedagogia Queer. Apesar do que foi estudado, nesta se-
ção ofereceremos uma perspectiva mais sócio-antropológica da realida-
de dos sujeitos que encarnam corpos radicalmente diferentes das suas
identidades. Como acontecia com os aspectos ligados à teoria queer e a
academia, a transexualidade como objeto de estudo cou separada dos
discursos universitários, com exceção de alguns trabalhos destacáveis,
como por exemplo, os do professor de antropologia da UNED, Nieto,
que há mais de 10 anos investiga esses temas. Como arma no prólo-
go de um dos seus trabalhos, a investigação sobre o tema transexual se
converte em: “un intento de romper con las mudas cadenas de silencios
interrumpidos de las ausentes publicaciones en castellano” (1998ª, p.
5). A maior novidade nos trabalhos de Nieto é o abandono do modelo
médico da sexualidade, na qual muitas vezes a transexualidade deixa de
ocupar um status de patologia sexual. Outra destacada investigadora é S.
López, com seu trabalho de legitimação e reivindicação de práticas sexu-
ais não normativas, também mais além das categorias médicas. A última
abordagem que ofereço ao tema da transexualidade no nosso país foi de-
senvolvida por Garaizabal (1998), quando no nal dos anos 1980 inicia
309
Corpo, cultura e educação
um importante trabalho de campo e apoio a coletividades transexuais.
17
Seu trabalho mais importante faz parte da publicação coordenada por
Nieto (1998a); trata-se de uma recompilação de dados e reexões gerais
em torno do tema da transexualidade, elaborado a partir da sua posição
ativista no movimento feminista. Com esse despertar em um contexto
acadêmico, entendi a importância de incluir esse tema em um livro que
estuda o corpo, a cultura e a educação.
9.3.1. a PriSão do CorPo: oS tranSexuaiS
Se deixamos de lado a categoria de corpos que nasceram bio-
logicamente, encontramos, retomando a sentença platônica corpos que
encarceram o sujeito, que esse aprisionamento não tem nada a ver com o
que anunciava Platão. Aqui nem todo corpo é uma prisão, apenas o são
aqueles corpos masculinos ou femininos (se é que podemos falar com
essa terminologia) que se encontram localizados nas mentes femininas
ou masculinas que não se correspondem com seu sexo. Trata-se de um
claro fenômeno de controvérsia entre a construção social dos gêneros e
o que de sexual nos vem dado de forma biológica. Essa ideia é reforçada
por Rothblatt ao armar que “para entender el rol de género de cada
uno de nosotros en sociedad, los genitales son tan irrelevantes como el
color de la piel” (citado por Nieto, 1998b, p. 35).
Começa a se denominar transexualismo uma prática que se ini-
cia nos anos 50, com as primeiras operações de mudança de sexo, em-
bora as referências ao fenômeno do transexualismo se encontrem já na
literatura grega e romana. Transexualidade é um termo moderno que foi
denido pelo endocrinólogo norteamericano Harry Benjamin durante
esses mesmos anos. Mas se a denominação do fenômeno é moderna,
suas referências ao longo da história são muitas, sobretudo aquelas que
fazem referência à castração dos órgãos masculinos para torná-lo mem-
bro do gênero/sexo feminino.
18
Muitas delas se encontram no trabalho
17
Como ela mesma arma: “Mis relaciones con personas transexuales se remontan a hace diez años. Se trata
de relaciones más personales que profesionales, aunque con el tiempo han tenido también este carácter. Mi
primer contacto con Transexualia supuso el inicio de una de las etapas más interesantes de mi vida” (Garai-
zabal, 1998, p. 39).
18
Sobre o tema da transformação corporal a partir da castração, Bullough nos faz notar que “aunque sí
Jordi Planella Ribera
310
de Gooren, “Transexualism in Greek and Roman Antiquity” (1997), em
que se põe em evidência que não se trata de um novo fenômeno, mas
que em outras sociedades históricas já tinha lugar.
Paralelamente ao transexualismo, o travestismo é tão antigo
como a história das formas de vestir da humanidade.
19
Sempre houve
pessoas que se vestiam do sexo oposto, às vezes como um simples jogo,
às vezes como necessidade vital, ainda que muitas vezes de maneira en-
coberta. O travestismo consiste em vestir-se de uma forma que não é a
que socialmente se espera daquele sexo. Trata-se de homens ou mulheres
que gostam de se vestir com roupas que socialmente se adjudicam ao
sexo oposto. Nos EUA, existe outra forma de autodenominar-se traves-
ti, que é conhecida como cross-dressers, percebida por parte do coletivo
como uma forma menos estigmatizada de se autorreferenciar.
O transexualismo faz referência à vivência em um corpo, de um
gênero totalmente ou diferente do que social e culturalmente lhe cor-
responderia.
20
Se seguimos a denição de Ochoa, entenderemos como
personas que nacen en un cuerpo masculino, y que hacen esfuerzos por
vivir sus vidas en el género que la sociedad dice que no les corresponde
(femenino)” (2003, p. 15). Trata-se de mulheres ou homens que desde
pequenos se sentem presos aos seus corpos de homens ou de mulheres
respectivamente, e que sua identidade mental não corresponde à sua
identidade sexual. Essa localização não ajustada das identidades (mental
e sexual) é para Montero “una dualidad cruel, desgarradora, una espe-
cie de pesada broma del destino. Algunos (sobretodo los que nacieron
mujeres pero se sienten hombres) hablan abiertamente de que su caso
es una desgracia, una anormalidad” (1996, p. 22). A luta de todo sujeito
se ha utilizado la castración a lo largo de la historia de la que se disponen de datos y se conocen casos de
penectomías, no siempre es claro que las personas sometidas desearan un cambio de sexo. La castración era
una operación peligrosa, con una alta mortalidad, y la mayoría de personas que se sometían a ellas no tenían
ninguna capacidad de decisión” (Bullough, 1998:63). Somente é necessário recordar os eunucos (que con-
vivíam em espaços envoltos de mulheres e justamente por essa razão eram castrados) e os castrati (que por
meio da castração conseguiam uma voz que de outras formas seria impossível ter).
19
O termo trasvestido foi cunhado em 1910 por Hirschfeld na publicação da sua obra Die Transvestiten.
20
Mas como Nieto aponta “no es fácil establecer fronteras diferenciadoras entre unos y otros. De hecho, se
han establecido pero en vano. El afán de introducir el concepto-etiqueta de manera rígida a un conjunto de
personas que reúnan determinadas características ha resultado en la práctica inviable. La rigidez conceptuale-
tiquetaría es en sí misma excluyente al sustentarse en tipologías que no admiten el continuum” (1998b, p. 21).
311
Corpo, cultura e educação
que possui duas realidades (sexual e mental) que não se encaixam tem
como objetivo nal a transformação do seu corpo, o ajuste e a aproxi-
mação das duas identidades.
Esse caminho faz com que o que muitos sujeitos transexuais
denominam a normalidade corporal frequentemente seja complicado,
difícil e duro. Os padrões sociais são claros: as mulheres devem ser de
uma determinada maneira e os homens de outra. Quando alguém deci-
de cruzar essa linha entre o feminino e o masculino, e não unicamente
por meio das transformações superciais e temporais, mas que o faz por
meio da transformação do próprio corpo, pisa em um caminho que boa
parte da sociedade, no século XXI, encara e não aceita. A pouca aceita-
ção dos corpos transexuais, ou dos sujeitos transexuais, é um feito que
se dá também no campo da investigação. A única cátedra sobre transe-
xualismo é a que ostenta o professor Louis Gooren na Holanda e, ainda
em determinadas disciplinas a transexualidade tem sido um objeto claro
de estudo (especialmente nos estudos feministas, na antropologia e no
campo da cirurgia estética). Não tem sido assim no campo das Ciências
Sociais, e muito menos no terreno da reexão pedagógica.
9.3.2. aProximação quantitativa à tranSexualidade
Para Gooren, a prevalência da transexualidade se dá em uma
relação de uma para cada 50.000 mulheres e de um para cada 30.000 ho-
mens.
21
Mas na maioria dos casos, os corpos que se encontram presos em
identidades não correspondentes cam sem realizar o passo, sem decidir
cruzar a linha do que seus corpos têm sido até o momento, para passar a
ter corpos com identidades correspondentes
22
. O porquê de muitas dessas
pessoas se manterem em corpos não correspondentes se justica, como
arma Montero (1996, p. 23), porque “el proceso del cambio dura mu-
21
Os dados correspondem aos estudos do professor Gooren. Se encontram referenciados no artigo de M. Sá-
nchez: “Transexuales: la lucha por la identidad de género”, El País (1/07/3). Segundo esta epidemiologia, no
Estado espanhol havia entre 2000 e 3000 transexuais. A realidade é que as cifras podem ser muito mais eleva-
das, já que o Estado espanhol, e mais concretamente Barcelona é uma cidade onde a prostituição transexual
atrai um número elevado de pessoas deste grupo que utiliza esta atividade como forma de ganhar dinheiro.
22
Apesar de que na opinião de Garaizabal “son bastantes las personas transexuales que, en la actualidad, vi-
ven su género psicológico y social reconciliado con unos genitales que a tenor de los cánones sociales— no
es lo que corresponde con dicho género” (1998, p. 54).
Jordi Planella Ribera
312
cho, cuesta mucho dinero y es física y psicológicamente doloroso, y a todo
esto hay que sumar el rechazo del entorno”. Porém, seguramente podemos
encontrar outras respostas, como por exemplo o pouco tempo que na Es-
panha se realizam as operações de mudança de sexo
23
.
Esse medo do repúdio aumenta pelo medo do que acontecerá
durante o período de transição. Os sujeitos que passaram por esse pro-
cesso queriam se encontrar na sua nova identidade, começar de novo.
Nos poucos dados disponíveis sobre a transexualidade no Estado espa-
nhol, 90% das pessoas que decidem se operar desistem durante o perío-
do de transição, enquanto que na Europa a taxa de desocupação entre o
grupo é de 80% ou 60%, dependendo do país. Esse fato, assim como os
elevados preços das diferentes operações pelas quais teriam que passar,
faz com que muitas pessoas se dediquem à prostituição como ocupação
laboral
24
. No Estado espanhol, como na Itália, Grécia e Portugal, não se
prevê - até o momento - que a mudança de sexo esteja incluída no que
oferece a Seguridade Social, enquanto que em países como Holanda e
Dinamarca já se inclui; na Alemanha e no Reino Unido, os gastos são
compartilhados entre o interessado/a e o Estado.
9.3.3. identidadeS CorPoraiS tranSgenériCaS
Tudo o que expus nesta seção nos coloca em uma nova dimen-
são das corporeidades, mais além do que culturalmente as estruturas
dominantes impõem e constroem nos corpos dos cidadãos. Repensar a
identidade dos sujeitos transexuais a partir dos próprios grupos (Transe-
xualia, Human Achievement and Outreach Institute, Gender Mouvement,
e International Gender Transient Anity, International Fundation for
23
Para Garaizabal, existem na Espanha cinco centros onde se realizam as operações de mudança de gênero:
dois em Madrid e o resto em Zaragoza, Barcelona e Valencia (1998, p. 45). Esses dados referentes a 1998,
estão mudando nos últimos anos. Se seguimos o artigo citado no El País, os hospitais que oferecem a ope-
ração mudaram, sobretudo desde de que “el Servicio Andaluz de Salud incluyera en 1999 la reasignacion
quirúrgica del sexo”. Segundo dados deste serviço de saúde, existe uma lista de espera de 350 pessoas. Até
julhio de 2003 se realizaram por este serviço: 40 genitoplastias completas (35 de homens para mulher e 5 de
mulher para homem) e 70 cirurgias parciais.
24
Calcula-se que os preços por passar de um corpo de homem para um corpo de mulher podem oscilar
(dados de 1996) entre 4.800 euros e 15.000 euros, e para passar de um corpo de mulher para um corpo de
homem, entre 24.000 euros e 48.000 euros. (Montero 1996).
313
Corpo, cultura e educação
Gender Education, Berdache Society, etc.) revisita os padrões, categorias
e diagnósticos no que tem sido designados, sobretudo pelos corpus de
saberes médicos. Um exemplo é a denição que propõe o DSM-IV, em
que o diagnóstico de transtorno de identidade sexual é denido por:
a) Identicação acusada e persistente com o outro sexo. Nos adolescentes
e adultos a alteração se manifesta por sintomas tais como o deseo rme
de pertencer ao outro sexo, ser considerado como o outro sexo ou a con-
vicção de experimentar as reações e as sensações típicas do outro sexo.
b) Mal estar persistente com o próprio sexo ou sentimento de inadequa-
ção de seu papel.
c) A alteração não coexiste com uma enfermidade intersexual.
d) A alteração provoca mal estar clinicamente signicativo e deterio-
ração social, laboral ou de outras áreas importantes de atividade do
indivíduo
25
.
Os diagnósticos colocam o sujeito em um território de rigidez,
também denominado como “anormalidade sexual”, em que seria neces-
sário atuar (dado que o diagnóstico está fundamentado) clínica e cirurgi-
camente
26
. Se faz evidente essa não atribuição do subjetivo com o clínico-
-patológico, sobretudo, porque “los médicos realizan la cirugía estética sin
más y sin embargo tienen que certicar que sus pacientes se han sometido
a un cambio de sexo (...) estos médicos no curan ni el cuerpo ni la mente,
sino que en su lugar realizan una función moral” (Billings y Urban, 1998,
p. 91). A subversividade dos sujeitos transexuais mostra para a sociedade
sua identidade como um exemplo de sujeitos não desviados, não patologi-
zados. A autodesignação tem conduzido a debates internos para trabalhar
a partir de estratégias de empoderamento dos mesmos sujeitos transexuais,
saindo de situações de gueto. Mas o aspecto realmente signicativo é que a
identidade corporal dos sujeitos transexuais é um símbolo evidente deste
25
APA (1995) DSM-IV. Barcelona: Masson. Trata-se do manual de diagnóstico de transtornos mentais
elaborado pela American Psyquiatric Association.
26
As primeiras aproximações clínicas buscavam reconduzir os sujeitos transexuais às identidades genéricas
que correspondiam aos sexos naturais que possuiam.
Jordi Planella Ribera
314
inacabamento corporal e da possibilidade que o sujeito se erga como ar-
quiteto e construtor da sua identidade.
9.4. CorPoS tatuadoS, CorPoS PerfuradoS (Com PierCing)
A quarta tipologia de transformação corporal que escolhi é a
que faz referência às inscrições e as incorporações de objetos no corpo
dos sujeitos. Os motivos dessa escolha são muito claros: é uma prática
que tem aumentado radicalmente em todos os países, com um aumento
signicativo no Estado Espanhol
27
. Esse aumento das práticas sociais de
transformação corporal não se transferem, como ocorreu na maioria dos
temas que estudei neste mesmo capítulo, à comunidade acadêmica
28
. O
mesmo ocorre com a reexão e a produção de saber a partir da peda-
gogia. Esse é um tema latente em muitas escolas, que, além disso, tem
sido motivo de polêmicas e conitos entre professorado e estudantes, e
continua separado das investigações pedagógicas, pelo menos em nosso
país. Não tem ocorrido assim nos EUA, onde os discursos de educação
para a saúde tem visto rapidamente a necessidade de educar os adoles-
centes com relação às práticas de modicação corporal fundamentadas
nas tatuagens e nos piercings
29
.
9.4.1. CorPoS eSCritoS, CorPoS tatuadoS
Parece evidente, à luz de muitos trabalhos, mas especialmente
os de Re-Search (1989), Lamer (1995), Zbinden (1997) e Álvarez-Uría
(1999), que as marcas corporais começaram a sair de um longo inverno,
27
Fundamento essa armação a partir do trabalho de campo de dados e informações coletadas que permitem
apontar o número de estúdios de tatuagem e piercing que foram inaugurados aumentou exageradamente,
(em Barcelona o número de estúdios passa de 50), o número de revistas publicadas (Tatto, Piercing Fans
internacional Quaterly, Piercing, Total Tatoo Book, etc.) e o número de pessoas que possuem tatuagens e
piercings que são visíveis. Essa constatação faço a partir da etnograa realizada com estudantes universitários
de Serviço Social e Educação Social).
28
Em 2001 praticamente não existiam trabalhos nas Ciências Sociais sobre piercings e tatuagens. Cabe
destacar os trabalhos iniciais de Alvarez-Uría (1999) e de Duque (1997).
29
Me rero aos trabalhos de Armstrong, Owen Roberts e Koch (2002) que estudaram as tatuagens entre
os estudantes relatando dados sobre as situações de possível risco, o trabalho preventivo e os agentes sociais
que entram em jogo. Também é signicativo o trabalho de Castellazi publicado em Orientamenti Pedagogici,
2001. Esses feitos devem ser interpretados como o despertar do interesse da pedagogia por estes temas.
315
Corpo, cultura e educação
de uma letargia social, de um isolamento no gueto de determinados gru-
pos sociais ou culturais
30
. As marcas corporais já não se escrevem “Amor
de Madre” ou “Mi novia es la muerte”, que líamos nos braços fortes dos
militares da Legião, dos marinheiros ou dos presos dos presídios
3131
. É
verdade que nesses contextos as tatuagens têm uma função concreta. Para
Álvarez-Uría (1999) o corpo, em determinados contextos de controle so-
cial, se converte em textualidade e subjetividade absolutamente necessária:
Elogio de la fuerza física y de la belleza, expresión de deseos secretos,
de sueños persistentes en noches de insomnio, manifestación obscena de
la diferencia que reduplica los músculos, los tatuajes son, sobre todo,
lamentos inconfesables por amores imposibles que hablan, en los cuerpos
de los presos, un lenguaje de orgullo e insumisión, son un signo de esa
identidad que no puede ser anulada, de una subjetividad que no puede
ser borrada con castigos físicos, ni con ceremoniales de degradación del
yo ni, tampoco, con castigos psicológicos (Álvarez-Uría, 1999, p. 109).
Embora as tatuagens, dentro do marco da prisão, continuem
tendo um papel essencial na resistência psicológica dos prisioneiros em
relação à privação da liberdade, fora de seus muros, começaram a tomar
una nova dimensão social e pessoal.
A partir da última década do século XX, as tatuagens saíram
dos guetos criminais e dos reagrupamentos monossexuais e abraçaram
um novo público como agora as crianças, os adolescentes e os pré-ado-
lescentes, as mulheres e a “gente honesta”. Podemos armar que o ní-
vel de normalização da tatuagem chegou também a ser popular, porque
diferentes personagens públicos exibem seu corpo tatuado como um
fenômeno não estranho, nem desviado nem proibido. Essas mudanças
provocaram o início do desenvolvimento de uma indústria em torno da
marcação corporal, com a abertura de estabelecimentos que oferecem aos
30
Na primeira edição da Enciclopedia Espasa Calpe se arma o seguinte em relação às tatuagens: “no puede
dudarse de que sea un estigma de degeneración psíquica cuando procede de los pueblos salvajes. Por lo de-
más, el dolor que provoca su práctica y la rareza misma de su propósito atestiguan sucientemente lo dicho.
Así se encuentra el tatuaje no solo en los delincuentes, sino en las clases bajas de la sociedad”.
31
Alguns dados apontam que 37% dos militares tinham algum tipo de tatuagem (Armstrong et al. 2002).
Para Duque, o que ocorre é que “su uso entre delincuentes, presidiarios, marinos y militares ha permanecido
inmutable, pero nuevos usuarios han tomado el tatuaje como bandera en estos tiempos tan faltos de ideales
(1997, p. 85).
Jordi Planella Ribera
316
possíveis clientes a redenição do seu corpo, a reincorporação social ou a
possibilidade de se desmarcar da massa social por meio da redenição da
sua dimensão corporal. Uma boa prova do que armo é a realização, em
oito ocasiões em Barcelona, da Convención Internacional Tattoo. Parale-
lamente, cada vez podemos encontrar mais páginas Web que oferecem
amostras e exemplos de tatuagens, alguns deles verdadeiramente ino-
vadores nessa nova dimensão social do corpo. O mesmo ocorre com a
edição de revistas especializadas de grande tiragem, que facilita o acesso
dos jovens ao conhecimento de novas técnicas de tatuagem, de novas
estéticas e de formas distintas de transformar ou readaptar o corpo.
Entre os adolescentes e os jovens, muitos deles em processo
de denir sua identidade, o fato de tatuar o próprio corpo como uma
mensagem, como uma imagem, como um símbolo que o dene, que o
diferencia e que é signicativo para eles permite, tal como arma Lamer,
presuponer que el tatuaje y el piercing revelan de uno mismo la bús-
queda de aliación identitaria, del cuerpo como agente privilegiado de
expresión en la elección de dicha identidad” (1995, p. 154). Nessa busca
pela identidade, que, por outro lado, todo homem é obrigado a seguir,
alcançar uma ancoragem permanente na solidez corporal, por meio de
um corpo que responde a todo o que lhe pede, pode nos permitir de-
nirmo-nos com mais clareza.
Para jovens e adolescentes, em um mundo no qual boa parte
das coisas desaparecem e são efêmeras, a tatuagem representa a perma-
nência, aquilo que não caduca e que persiste e os acompanha ao longo
da vida em sua pele. A busca estética por meio da tatuagem tem, ao
mesmo tempo, o objetivo de uma busca de originalidade (diferenciar-se
dos outros), de buscar e apresentar no mundo um corpo diferente e
único. Essa busca por originalidade por meio da tatuagem corporal tem
um signicado especial para os jovens, pois “cuando los encuestadores
les preguntan por su signicado, los jóvenes de ambos sexos pronuncian
algunas misteriosas palabras: libertad, amor, noche, muerte, miedo, re-
cuperación de la memoria” (Álvarez-Uría, 1999, p. 110). Torna-se evi-
dente que, por meio da inscrição, da escrita corporal, se podem recupe-
rar os valores mencionados pelos jovens.
317
Corpo, cultura e educação
Não existem dados sobre a porcentagem de adolescentes no
Estado espanhol que se tatuam, mas há dados dos EUA, que podem ser
lidos como um marco referencial. No trabalho de Carrol et al. (2002)
fala-se de 13,2% de adolescentes
32
. O número de tatuagens é distribuído
da seguinte forma:
Distribuição do número de tatuagens entre a população adolescente
Número de tatuagens % total da população
Nenhuma tatuagem 86’8 %
Uma 8’0 %
Duas 2’9 %
Três 1’0 %
Quatro ou mais 1’3 %
[Adaptado de Carrol y al., 2002]
Além do número de tatuagens, pouco relevante a partir de
perspectiva que focamos neste livro, a temática do sagrado nas tatuagens
passa a ser um elemento muito presente. Assim é apresentado aberta-
mente no artigo de Booth (2001, p. 67), ao falar de Tatia, uma garota
que começa a tatuar seu corpo aos 13 anos, e diz: “e resultado de su
crecimiento interior y del aumento de su poder moral puede ser visto en
su piel”. Tanto é assim que Tatia possui três tatuagens –na realidade, três
palavras escritas em chinês- que querem dizer: alma, espírito e superação.
Outra pessoa, Booth (2001, p. 68) arma, ao falar de sua experiência de
tatuar o próprio corpo: “Me trasladé a Malibú durante un año y me con-
vertí en una ermitaña. Pasé un año buscándome a mí misma. Fue de ahí
donde surgió la serpiente. La serpiente representa cambios en muchas
culturas, y para mí representa no sólo mis cambios, sino mi kundalini”.
Torna-se evidente a dimensão mais simbólica da tatuagem, que
pode ser lida a partir de sua textualidade, e que muitas vezes responde
à necessidade de comunicação dermatológica. Em outro trabalho, Ar-
mstrong et al. (2000) chegam às seguintes conclusões sobre o porquê
32
Esses dados diferem, ainda que não de forma considerável, dos fornecidos por Armstrong et al. (2002),
que as situam em 10% dos adolescentes
Jordi Planella Ribera
318
de os adolescentes tatuarem seus corpos: 53% como elemento de auto-
expressão, 35% para experimentar a sensação, 21% para recordar um
fato, 17% como sentimento único e 11% para buscar independência
33
.
A criação de um espaço textualizado na própria pele escapa às concep-
ções mais biologistas, que sufocam essa possibilidade comunicativa e
simbólica dos corpos escritos e desenhados. Essa necessidade se funda-
menta no que defende Castellazzi, quando diz que “la piel, superando
le diferencia de raza, de sexo, de estado, de religión, di estatus social,
siempre ha sido utilizada para explicar las necesidades profundas miedo
del hombre” (2001, p. 1013).
9.4.2. o CorPo Com PierCing ou oS metaiS in-CorPoradoS
Ver um garoto com um brinco, até não muitos anos atrás, sig-
nicava que fazia parte de determinados grupos ou bandas de jovens ou
que, supostamente, tinha uma determinada tendência sexual
34
. Ver a al-
guém com piercings em outras partes do corpo era um fato praticamente
impossível. Poucos se atreviam a atravessar a linha que separava aqueles
que mantinham seu corpo em um estado de normalidade dos que o que-
riam transformar, personalizando-o segundo seus gostos ou sua maneira
de ser. Nas palavras de Varela y Álvarez-Uríua, os jovens “abrumados por
el sentimiento casi universal de la imposibilidad de “cambiar el mundo
cambian aquello que está en su poder: sus propios cuerpos” (1989, p.
97). Esses jovens agora têm a possibilidade de incorporar, de dar formas
diferentes a seu corpo, de ter um território de domínio particular, dife-
rente e concreto. Como diz Pommereau, “marcar su cuerpo, es imprimir
su marca para sentir que existen” (1998,p. 31), e marcar seu corpo é o
que se vê como resultado simbólico da prática do piercing.
Atualmente, as modicações corporais são vistas como um dos
meios possíveis para reencontrar o corpo, para dar-lhe uma nova dimen-
são, para voltar a conectá-lo com a mente, a partir da perspectiva de sua
33
O total da porcentagem é superior a 100, porque alguns pesquisados responderam a mais de uma possi-
bilidade ao mesmo tempo. Mas as possibilidades e as motivações que guiam os jovens a tatuar-se podem ir
muito mais além dessas que citei.
34
Só me rero a sujeitos masculinos porque, na nossa cultura, as mulheres sempre usaram brincos e outros
tipos de anéis corporais.
319
Corpo, cultura e educação
dimensão simbólica. Usar elementos metálicos incorporados no corpo
implica alguma signicação, e a pessoa portadora “nos envía mensajes
a través del metal”. O corpo já não signicará unicamente “la asigna-
ción de una identidad, la encarnación irreducible del sujeto, su ser en
el mundo” (Le Breton, 2000, p. 39), mas agora poderá ser construído,
manipulado, mudado de aparência, em função do que queiramos ser, do
corpo que queiramos ter e encarnar.
Em toda a explosão do fenômeno da perfuração corporal no
mundo ocidental, tiveram um papel muito importante os trabalhos e as
ações realizadas por Fakir Musafar (nascido no ano de 1930, nos EUA).
Musafar faz parte do que se chamaram de Modern Primitives, fazendo
alusão ao fato de recuperar de forma moderna práticas corporais primi-
tivas e de introduzir no mundo ocidental a prática do piercing e todas as
suas variantes. Musafar cou impressionado, quando tinha 12 anos, com
uma reportagem vista no National Geographic sobre tatuagens e trans-
formações corporais, e que foi o desencadeante da transformação de seu
próprio corpo. Aos 13 anos, faz seu primeiro piercing. Para ele, o fato de
anelar-se, perfurar-se e introduzir objetos metálicos em seu corpo, é uma
experiência de ordem espiritual. Sua losoa, inspirada no Oriente, é a
anulação da dor. Para Musafar, a dor só existe para aqueles que não estão
preparados. Os que puderam se treinar e têm conhecimento teórico e
prático, podem superar a dor, chegando a transformá-la.
No entanto, o grande impulsor do piercing na sociedade oci-
dental foi um excêntrico milionário chamado Malloy e uma série de
pessoas perfuradas que o rodeavam. De todos os modos, o piercing não
toma a força que o empurra até a atualidade enquanto não adquire um
status comercial. Isso ocorrerá com a abertura, em 1975, em Los Ange-
les, da primeira loja de piercing, por Jim Ward (Le Breton, 1999, p. 31).
Precisamente nesse momento se inicia a publicação da revista Piercing
Fans International Quaterly (PFIQ), o órgão de divulgação dos tipos e
formas de transformação do corpo por meio da perfuração.
As contribuições de Musafar servem para que muitos jovens,
primeiro nos EUA e nos últimos anos na Europa, comecem a transfor-
mar seu corpo, incorporando pequenas peças metálicas. A ideia fun-
Jordi Planella Ribera
320
damental que sustenta a prática do piercing é que o corpo é um objeto
maleável e provisório, não acabado naturalmente. Os piercings são feitos
em todas as partes do corpo, ainda que haja algumas mais utilizadas que
outras. Entre elas o nariz, as orelhas, as sobrancelhas, a língua e o umbi-
go são, provavelmente, as mais perfuradas. Outros, como os mamilos e
os genitais, carão reservadas àqueles indivíduos iniciados que buscam
intensicar suas relações sexuais (Zbinden, 1997). De forma resumida,
podemos denir, de uma maneira geral, o conceito de piercing dizendo
que se trata de perfurar diferentes partes do corpo para colocar anéis,
introduzindo diferentes peças metálicas, habitualmente feitas de titânio,
aço cirúrgico ou ouro.
Como acabamos de remarcar, não existe uma só forma de pier-
cing e eles têm tido signicados diferentes ao longo da história, sendo
denominados de modos particulares, mas dependendo do tipo, do lu-
gar e do grau de sacrifício que tem que fazer o sujeito para colocá-lo,
podem ser estruturados da seguinte forma
35
:
• Piercings no nariz: se denomina também septo, sobretudo o que se faz
no centro do nariz
• Mamilo: seu uso remonta à antiguidade, e tem uma nalidade ao
mesmo tempo decorativa e sexual
• Umbigo: era considerado um sinal de realeza nos antigos egípcios. É
dos mais utilizados entre os adolescentes ocidentais
• Prepúcio: trata-se de um dos mais antigos. Na atualidade, poucos
sujeitos  alguns deles ligados a práticas sexuais sadomasoquistas 
realizam esse tipo de perfuração
• Príncipe Albert: trata-se de um anel que vai da uretra até a base do
pênis. Remonta, ao menos na versão moderna, à época vitoriana
• Dydoe: trata-se de perfurações feitas a ambos os lados do prepúcio,
situa o prazer do sujeito a um estado de pré-circuncisão
• Guiche: se encontra na pele situada entre o ânus e o escroto
35
Parto da classicação proposta por Duque (1997, p.. 97-101).
321
Corpo, cultura e educação
• Base do prepúcio: de origem europeia, pode servir, ao mesmo tempo,
como estimulante sexual ou como repressão da ereção
• Clitóris: trata-se de uma joia em uma zona especialmente sensitiva
• Embora estas sejam variantes que localizam a perfuração em diferen-
tes espaços corporais, existem outras formas de transformar o corpo,
que ainda que não se trate propriamente do mesmo tipo de prática,
com frequência são englobadas na denominação de body-piercing:
• Branding: são desenhos ou símbolos inscritos sob a pele com ferro
em brasa ou com laser. Em um anúncio sobre branding, nos pro-
põem o seguinte: “Si tú cuerpo ya desborda adornos por todas par-
tes, y quieres algo nuevo, doloroso y una marca nueva... el branding
es la opción. ¡Para los más atrevidos”!
36
E no mesmo anúncio nos
dizem o seguinte: “en este arte el cuerpo humano se utiliza como
lienzo para ser cortado, taladrado, quemado, estirado y adornado”.
O procedimento é o seguinte: a pessoa que efetuará o branding es-
quenta o ferro com uma chama de gás propano e depois aplica o
instrumento da marca na pele da pessoa que quer transformar, que
quer marcar seu corpo. Existe uma variante do branding que é muito
mais duro e que se denomina “bod-mod”
37
.
• Escaricação ou cutting: trata-se de uma técnica de fabricação de ci-
catrizes com relevo abrindo a pele com uma navalha e introduzindo
tinta na ferida para marcar a pele de forma parecida às tatuagens.
Consiste em reproduzir uma anomalia da cicatrização com uma or-
namentação cutânea. Além da variante de introduzir tinta na pele,
também se costuma colocar vinagre ou sal nas feridas produzidas
pelo bisturi, de maneira que tomem o volume que o mestre escari-
cador dispõe segundo o desenho escolhido pelo cliente. As esca-
ricações são comuns, há séculos, na África, onde fazem parte de
rituais religiosos de alguns povos. Em algumas tribos do Pacíco,
36
Anuncio do estúdio de tatuagem Body and Tatto (Barcelona).
37
Trata-se de pessoas que dividem sua língua em dois, fanáticos da série americana Star Trek, que se subme-
tem à cirurgia para parecer-se com uma das raças intergalácticas da película. Há um caso extremo de um
americano que passou uns bons anos de sua vida tentando transformar seu corpo para transformar-se em
um lagarto: aumentou a própria testa, partiu a língua em duas partes, aou os dentes em forma de presas e
cobriu o corpo de tatuagens imitando as escamas deste animal.
Jordi Planella Ribera
322
são utilizadas como ritual de passagem para a vida adulta, chegando
a afetar a totalidade do corpo.
• Stretching: literalmente, a palavra stretching signica fazer alonga-
mentos musculares. No caso das transformações corporais, trata-se
de uma técnica para aumentar as perfurações já feitas por meio de
piercings, entre as quais a mais utilizada é o engrandecimento das
perfurações dos lóbulos das orelhas e do nariz.
Denitivamente, revalorizar o corpo, com uma ou outra téc-
nica, como marca pessoal, como ação consciente, como elemento de
reincorporação social é, segundo Alvarez-Uría, um recurso para afrontar
a solidão imposta e, ao mesmo tempo, um sinal de reconhecimento da
própria identidade em utuação, um gesto supercial de sobrevivência
que permite lutar contra as forças escondidas do destino (1999).
9.4.3. a tranSformação CorPoral Como ritual de iniCiação
Ao longo dos diferentes trabalhos centrados nas transforma-
ções corporais por meio dos piercings e das tatuagens, faz-se referência à
questão simbólica ligada aos rituais de passagem
38
. O marco teórico da
maioria dos trabalhos parte da obra de Van Gennep (1909), Les Rites
de passage, em que se aponta a necessidade de passar por diferentes ri-
tuais ao longo das etapas da vida. Os rituais assinalam de forma ocial
a entrada do sujeito nessas etapas vitais, conrmando as modicações
siológicas por meio das modicações culturais. Porém, se os rituais
são necessários, existe também uma cisão entre os rituais primitivos e
os rituais ocidentais; estes últimos podem ser designados como rituais
sagrados domésticos. Nas sociedades ocidentais, diferente das sociedades
tribais, o ritual se converte em um m em si mesmo. Agora, a identidade
é uma escolha pessoal e não uma escolha marcada pela comunidade. Se
nas sociedades tribais a marca “marca” o sujeito como membro de pleno
direito da comunidade, nas sociedades ocidentais a marca “desmarca
38
Entre outros, o armam Borel (1992), Le Breton (2002), Lamer (1995), Rouers (2001).
323
Corpo, cultura e educação
o sujeito dos grupos majoritários (Le Breton, 2002, p. 159)
39
. E se nas
culturas primitivas, a marca estava carregada de conotações simbólicas
e/ou espirituais, nas sociedades ocidentais entrou em jogo a dimensão
estética. O esquema seguinte reúne a comparação entre os rituais primi-
tivos e os ocidentais ou modernos:
Comparação entre rituais corporais primitivos e pós-modernos
Sociedades primitivas Sociedades pós-modernas
O corpo une o sujeito à comunidade O corpo separa o sujeito da comunidade
As marcas acompanham o ritual As marcas são um m em si mesmo
Os anciãos transmitem a cultura e as tradições
Não há presença dos anciãos nos rituais ligados ao
corpo
Trata-se de uma iniciativa coletiva Trata-se de uma iniciativa individual
Tem um claro componente de religiosidade Existe uma sacralização do eu corporal
É levada a cabo a partir de uma dimensão
simbólica
Aquilo que marca é a presença estética do sujeito.
Tem a ver com aspectos concretos da cultura local Faz parte de uma cultura globalizada
Está englobado dentro do mito coletivo Se estrutura a partir dos mitos pessoais
Esta denição das tatuagens e piercings como rituais converge
com o fato que praticamente desapareceram (às vezes mais de forma
simbólica que real) os rituais de passagem entre os adolescentes. Mas o
fato de inscrever em sua pele sua própria identidade implica já ter que
passar por um ritual. Nesse sentido, Borel (1992, p. 46) remarca que
as inscrições corporais entre os jovens têm essa função de ritual e con-
tribuem para domesticar os tempos carnais da existência. A função do
ritual é a de organizar, estruturar e domesticar o corpo, porque por meio
do ritual os corpos entram em um estado de nova signicação.
Embora seja verdade que os “rituais selvagens” têm como ele-
mento chave ser praticados em grupo, não ocorre o mesmo no momen-
to de tatuar a própria pele e de colocar nela uma joia, já que esta ação,
39
Em relação a esses temas, destaca-se o depoimento que Le Breton cita: “el piercing es una forma de dife-
renciarse de los otros, de decirse que uno mismo no es igual que ellos.” (2002, p. 165).
Jordi Planella Ribera
324
na maioria das vezes, ocorre nos bastidores dos estúdios de body-piercing,
convertendo-se em um ato compartilhado entre tatuador e tatuado. Con-
tudo, tal como assinala Lamer (1995), para muitos adolescentes e jovens,
tatuar-se tem este sentimento de ritual, convertendo-se –acrescento- em
um antes e depois da tatuagem ou da perfuração. Isso ocorre mais quando
se realiza em momentos determinados que representam o passo de uma
etapa vital a outra. Portanto, inscrever no corpo é dar-lhe vida, fazê-lo
passar de um estado meramente anatômico e calado, a um estado social e
comunicante, de uma categoria física a uma categoria simbólica.
Parece, pois, que a tatuagem como outras formas de marca-
ção corporal ajuda o sujeito a denir sua identidade, mas não necessa-
riamente a posicioná-lo à margem da sociedade. Seguramente, a arma-
ção de Álvarez-Uría (1999) em torno da tatuagem é o que contempla,
com mais clareza, boa parte das ideias que expus, neste trecho:
Tatuar, dicen los diccionarios, es grabar dibujos en la piel humana
introduciendo materias colorantes bajo la epidermis. Pero quizás, hoy
más que nunca, lo que de verdad parece que se esconde bajo ese verbo
que reenvía a ceremoniales enigmáticos, es sobre todo mostrar que se está
vivo cuando una masa incontable de seres humanos, semejantes entre
sí, ha sido condenada injustamente por poderes sin rostro a la muerte
social. El tatuaje es hoy más que nunca, un recurso para hacer frente
a la soledad impuesta y a la vez una rma de reconocimiento de la
propia identidad en oración, un gesto supercial de supervivencia que
permite luchar contra las fuerzas ocultas del destino, es decir, subsistir
en la ingravidez de una sociedad que parece otar a la deriva sin llegar
a hacer pie sobre la tierra (Alvarez-Uría, 1999, p. 108)
Da mesma maneira que a inscrição e o desenho corporal, a práti-
ca da incorporação de novos elementos ou de elementos externos ao corpo
exerce um papel de ritual, tanto quando se trata de uma prática levada a
cabo em uma cultura primitiva como das práticas realizadas em socieda-
des ocidentais. Nessa nova situação, o ociante do ritual é o prossional
da perfuração corporal, e o mesmo foi também, anteriormente, iniciado/
transformado por meio da mesma técnica e “cerimônia”. Nas palavras de
um prossional dos EUA: “considero todo piercing como um ritual”. Essa
armação de Joe concorda com os resultados obtidos por Myers (1992)
325
Corpo, cultura e educação
em uma das poucas investigações existentes sobre a prática de técnicas
como o piercing genital, o branding e o cutting. Myers conclui que, nas
cerimônias de piercing, há três tipos de participantes: o praticante hábil e
experimentado, que efetuará a transformação corporal do outro, a vítima
ou iniciado, que é o que tomou a decisão de transformar seu corpo, e as
testemunhas, que têm a função de reconhecer e legitimar o ato cerimonial.
Parece que uma parte importante das pessoas que praticam o piercing é
consciente da natureza cerimonial de suas práticas.
Nesta cerimônia de passagem, o neóto será transformado/
iniciado e, para fazê-lo, será necessário que se separe da sociedade. Na
atualidade, será necessário separar-se sicamente da comunidade, aden-
trando no bosque, mas terá apenas que entrar na sala de piercing, para
depois passar aos bastidores, a sala onde será levado a cabo o ritual ce-
rimonioso da perfuração/inscrição. Já na sala cerimonial, a dor será o
elemento chave que marcará os fatos. Aquilo que se costuma destacar
mais da experiência é que, ao sair à rua, a pessoa se sente diferente, ela
mudou, transformou seu próprio corpo e a dimensão que até então lhe
oferecia. Agora, poderá fazer parte do grupo de iniciados (Wall, 1995).
O objetivo deste subcapítulo foi mostrar como o corpo, seja
por meio das inscrições na pele com a tatuagem ou por meio da trans-
formação do corpo num sentido amplo, volta a ter um papel central
nas vidas dos jovens e adolescentes da sociedade ocidental. Um corpo
carregado de conotações simbólicas que passou a ter uma nova dimen-
são e recuperou uma posição social que, durante muitos anos, havia
permanecido adormecida. O corpo volta a existir de forma não separada
da mente; um corpo não acessório, um corpo central, um corpo com
palavras, um corpo símbolo do homem e de sua representação social.
Um corpo que nos propõe, dessa forma, um cartão de um estúdio de
bodypiercing de Barcelona: “en los márgenes de la sociedad actual, mo-
dicar nuestro cuerpo y adquirir una identidad propia en tiempos de
masicación, más allá del desafío de convenciones estéticas y sociales,
supone la expresión más primaria, de que para el ser humano lo ilógico
también es necesario”.
Jordi Planella Ribera
326
9.5. CorPo, Cultura e vulnerabilidade na SoCiedade
ContemPorânea:
Necesitamos un mundo imaginario para descubrir los rasgos del mundo
real que creemos que habitamos.
Paul Feyerabend, Against Method (1978, p. 22).
Parece claro que o corpo, qualquer corpo, tornou-se um dos
eixos centrais das Ciências Sociais. É assim que, a partir de múltiplas
perspectivas, o corpo aparece, se faz presente e nos recorda sua exis-
tência. Mas apesar disso, alguns corpos têm mais presença que outros,
alguns corpos se comunicam (corpografam) mais que outros. É de parti-
cular interesse poder resgatar a “esses outros corpos” que, em demasiadas
ocasiões, são encurralados pelos discursos dominantes ou são silenciados
pelos padrões corporais dominantes. Podemos perguntar-nos se são cor-
pos que não interessam ou se interessa que sejam corpos outros, corpos
débeis, corpos distintos, vulneráveis. Porque, para que existam corpos
de êxito (fortes, ágeis, “normais”, belos, etc.), devem existir os outros
corpos (assim quer nossa sociedade constituir-se de forma dicotômica e
absurda). Do que vou falar neste trabalho é dessa experiência corporal
distinta que atravessou a vida de minha família e de como poder pensar
este outro corpo para além da carne, dos órgãos, das anatomias.
9.5.1. o CorPo tranSPlantado: imaginárioS e SonhoS Sobre
o CorPo
O imaginário social do corpo introduziu a ideia dos trans-
plantes na Idade Média e, por meio de curiosas utuações, chegou
até os nossos dias. Não se trata de algo que, no início do século XXI,
esteja totalmente resolvido; pelo contrário, creio que nos resta muito
a percorrer. Os imaginários sobre o transplante seguem circulando
e são gerados e regenerados dia-a-dia, dando lugar a determinadas
mitologias que os envolvem, fazendo-os crescer. E apesar disso, a
Espanha continua sendo um dos núcleos mais ativos em doações de
327
Corpo, cultura e educação
órgãos de todo o mundo. Faz mais de 10 anos que diagnosticaram
minha mãe.
É fruto disso meu interesse pelo corpo, e em especial pelo cor-
po transplantado. Enquanto trabalhava nesse projeto, pendurei no mu-
ral de meu escritório da Faculdade duas fotograas com as cicatrizes de
doador e receptor do transplante hepático. As reações a ditas imagens
(os imaginários sobre os quais falava) eram muito claras: repúdio justo
a essas duas imagens que lhes mostro. Acabei retirando-as e incorporan-
do-as ao meu livro.
A enfermidade, que alguém se atreveu a denir como ausência
de saúde, aparece, arremete, tem inuência até onde menos esperamos.
Para Gadamer, trata-se de que a enfermidade torna presente em nós o
corpo, nosso corpo doente e, às vezes, que é maldito, e de forma habitual
passa de todo despercebido (1996). Também nos recordava, pouco antes
de morrer, Harold Brodke em seu livro Esta salvaje oscuridad: “La reali-
dad del SIDA como fatalidad compleja (y total) produce en el paciente
una suerte de distante asombro ante el médico. Si uno es humano ¿qué
hace al verse enfrentado con la profunda humillación de la derrota?“
40
.
É assim que o corpo, fraturado ou como derrota, não é suportável por
meio da via racional; é necessário que nos adentremos em nossas próprias
sensações para conhecê-lo de forma mais precisa, de forma encarnada.
Nesse sentido são válidas as palavras do lósofo espanhol Emilio Lledó,
para continuar pensando o corpo. Para ele, trata-se de “una anatomía
terminológica y semántica donde el paisaje lingüístico que disecciona
nos enseña el sentido, el pensamiento, los valores que han ido descu-
briendo al tocar, herir y sanar el cuerpo entregado del paciente, el cuerpo
sin dolor ya, puesto en sus manos
41
. É certa esta dimensão linguística
do corpo, que lhe permite arrancar esse olhar unidirecional que o situa
no plano anatômico e lhe permite subjetivar-se.
Desde o mito de Frankenstein (com a busca da soma de ór-
gãos para criar e recriar uma subjetividade corporal distinta) até o corpo
cyborg (com a constituição protésica de uma realidade tecnológica apa-
40
H. BRODKE (1996) Esa salvaje oscuridad. Barcelona: Anagrama, p. 71.
41
E. LLEDÓ (2003) “Prólogo” de C. Pera El cuerpo herido. Barcelona: El Acantilado, p. 13.
Jordi Planella Ribera
328
rente) imaginamos e sonhamos os outros corpos, os órgãos nos corpos,
os objetos corporais e os transbordamentos carnais. As fronteiras e os
limites do que foi a anatomia vesálica (de Vesalio) foram derrubados e
transgredidos pelas mãos precisas, expertas e milagrosas do cirurgião. E é
justamente nesse ponto que se mesclam as epistemologias médicas com
os desejos do corpo enfermo, com sua necessidade de subjetivar para
além de uma categoria designada, de antemão, sob o nome de paciente
(ou de alguém que pacientemente resiste em uma lista de espera). Vale
a pena reconhecer a ideia de que o paciente não deve ser interpretado
como “carne pura”, como um corpo sobre o qual as instituições médicas
vão intervir. Um paciente do qual se esperam atitudes de paciência e
posições de passividade (mental e corporal), mas frente às quais mui-
tos pacientes resistem, tentando escapar de dita posição/categoria, e se
convertem em sujeitos ativos de sua enfermidade e do cuidado da mes-
ma. São produtores de saberes profanos sobre seus corpos e sobre a
vivência da enfermidade. Contrariamente a essa perspectiva, concordo
com o lósofo norteamericano Sokoloski, quando nos diz que a pessoa
era alguien con estatus legal, un hombre libre y no un esclavo, o un ser
humano reconocido legalmente en oposición a una cosa” (2013, p. 19).
Ao redor dessa questão aparecem santerias e imaginários cor-
porais sobre um órgão que cresce e decresce, que pode ser extirpado (em
parte) e que se regenera. Não posso deixar de surpreender-me ao escutar
as capacidades de regeneração do órgão hepático. Por quê? Vamos dei-
xar a resposta biomédica, para afrontar a perspectiva antropológica. A
extirpação de até 60% do fígado do doador vivo (e a permanência, em
sua cavidade, dos 40% restantes) é o que possibilita alguns dos processos
chave do THCDV (Trasplante Hepático Com Doador Vivo). A preci-
são da mão é a justa medida de toda possibilidade cirúrgica, no sentido
do que Aristóteles nos propunha em De partibus animalium, IV, 687a
8-9: “El hombre piensa porqué tiene manos”. A mão educada, treinada,
experimentada, precisa e tecnicada do cirurgião que corta o fígado de
um ser vivo para implantá-lo em outro, nos permite pensar o corpo a
partir das mitologias médicas. E nos permite pensar o corpo para sonhá-
lo de novo, lentamente, reformulá-lo em uma chave que agora constru-
ímos distintamente.
329
Corpo, cultura e educação
A reconstrução do corpo (da vida e da subjetividade em geral)
é possível graças a categorias e situações como a morte cerebral, que
permitem o uso de órgãos desse corpo “transgredido” a ponto de fazê-lo,
para regenerar a vida de outros sujeitos. A atividade de insuar mais vida
a outro corpo, morrer e doar os órgãos, deixar-se extirpar para deixar vi-
ver os outros, é fonte de imagens inéditas para a humanidade. Porém, o
imaginário do corpo não quer, nem pode ser detido; cresce e continuará
crescendo enquanto a ciência avance para oferecer qualidade de vida, ali
onde arremetem a dor e o sofrimento.
9.5.2. CorPo, mediCina e hoSPitaiS
As tecnologias serviram para revolucionar a prática médica atu-
al e guiá-la por caminhos que até poucos anos atrás eram totalmente
inimagináveis (para além das novelas ou lmes de cção cientíca). Dos
textos galênicos que nos falavam da relação médico-paciente até a práti-
ca médica atual, assistimos a um longo percurso, nem sempre em frente
ou na direção mais correta, mas com a intenção de oferecer formas mais
humanas de paliar os sofrimentos do corpo ferido
42
. Meu objetivo é si-
tuar o corpo, a medicina e os hospitais na sociedade do conhecimento,
com vistas a entender a estrutura social, antropológica e tecnológica, o
que nos permitirá falar das intervenções nos corpos dos pacientes.
As mudanças que ocorrem na sociedade do conhecimento afe-
tam diretamente a saúde e determinadas práticas do “cuidado do cor-
po”. Para entender essas mudanças, é necessário situar o papel das novas
tecnologias nas práticas médicas que permitem, entre outros resultados,
intervenções e curas, até o momento, absolutamente impensáveis. É, nas
palavras de Joseph Lluís Barona, o que pode denominar-se “o laborató-
rio e a análise do corpo”. Para ele, trata-se de que “el paulatino desarrollo
de la que se ha denominado medicina de laboratorio provocó una clara
separación en la consideración del paciente como ser social y el paciente
como organismo biológico sano o enfermo
43
. Essa divisão, com toda a
42
Nesse sentido, nos encontramos com interessantes iniciativas, como a do Centro para la Humanización
de la Salud dirigido por José C. Bermejo.
43
J. L. Barona (2004) Salud, tecnología y saber médico. Madrid: Ramón Areces, p. 108.
Jordi Planella Ribera
330
análise antropológica que queiramos dar, também serviu para avançar
na investigação médica de laboratório e desenvolver, assim, o que nós
denominamos a “milagrosidade tecnológica”, ou se preferir, “tecnologias
biomédicas da esperança”. A leitura das tecnologias biomédicas pode
apresentar muitas dimensões que se fundem na recepção dos imaginá-
rios tecnológicos em tecnofobias, tecnolias e tecnomoderações.
O que realmente me interessa ressaltar não são essas dimensões,
mas suas possibilidades reais: com o avanço tecnológico (por exemplo,
as tecnologias cirúrgicas que possibilitam a produção de transplantes
hepáticos com doador vivo), é possível mudar o curso da vida de deter-
minados corpos enfermos, corpos que encarnam determinadas enfermi-
dades e orientados a uma morte mais ou menos rápida.
De fato, qualquer retrospectiva da prática médica não pode ser
realizada à margem da análise da incorporação e do uso da tecnologia na
práxis médica. Nas palavras de Leibson, “El cuerpo es, cada vez más, un
objeto de las técnicas biomédicas que operan en el mercado. Desde la
ingeniería hasta las tecnologías para obtener una vida sana, pasando por
el imperio de los neurotransmisores, quizás nunca antes se le ha prestado
tanta atención
44
.
O corpo, para além ou apesar do sujeito (embora, na realidade,
essa seja uma separação impossível ou irreal) pode ser destroçado, se-
parado, marcado, operado, transplantado, transformado, reformulado,
etc. para produzir nele (e no sujeito que o habita e lhe dá consistên-
cia e subsistência) efeitos bioéticos de índole não maléca, autônoma,
benéca e justa
45
. Os efeitos positivos sobre o corpo podem merecer
essa separação —que, insisto, pode dar-se em determinados casos em
sujeitos ativos na prática médica— que, a longo prazo, terminarão por
beneciar necessariamente ao paciente. Mas, na realidade, as novas tec-
nologias podem ter muitas leituras e algumas delas podem dar-se a partir
44
Leonardo Leibson (2000) “Notas sobre el cuerpo”, Psicoanálisis y el Hospital, 18, pp. 8-12.
45
Nos referimos aos quatro princípios básicos da bioética e sua hierarquização propostos por Beauchamp e
Childress (1999) Principios de ética biomédica. Barcelona: Masson. Em sentido amplo, podemos dizer que a
não-malecência obriga a não danicar aos demais –primum non nocere-; a justiça obriga a proporcionar
a todos as mesmas oportunidades na ordem social; a autonomia nos exige reconhecer a todas as pessoas; a
benecência exige fazer o bem.
331
Corpo, cultura e educação
de sua dimensão negativa. São necessárias sempre, até pontos extremos?
Devemos manter a vida, apesar de tudo? O sofrimento biotecnológico
é ético? São questões abertas sobre os limites e possibilidades de uma
medicina atravessada, já, por um saber médico biotecnologizado. Na re-
alidade, não podemos perder de vista o que nos propõe Vanhoomissen:
“Ogni malattia, infatti, per quanto leggera, non colpisce solo un corpo
malato, un corpo oggetto, ma coinvolge la persona nel suo organismo,
nella sua psiche, nelle sue relazioni, nel suo essere stesso.” (2014, p. 6).
O Hospital aparece como uma das míticas instituições da con-
temporaneidade. Está ali, no centro da polis, ou separado dela, esperan-
do nossa chegada, a intervenção e a cura de nossos corpos. Para Bolufer,
el cuerpo resultó ser así uno de los lugares donde de forma más pode-
rosa se construían y se combatían las nociones culturales sobre orden
social, y la Medicina el discurso que se pretendió más autorizado, con la
revolución epistemológica de la modernidad” (1999, p. 541). Esse olhar
da medicina terá um claro objetivo: elaborar um discurso higienista e
começar a aplicá-lo a toda a sociedade. A manutenção de um conjunto
de condutas higiênicas ajudará a manter e regular a ordem social.
Esta ordem social terá como objeto os corpos que tenham uma
aparência estranha e diferente. Os corpos das pessoas com deciência
começam a ser considerados diferentes, e a ideia antes comentada, do
nexo entre pobreza e enfermidade ou deciência, põe em funcionamen-
to uma importante maquinaria para a reeducação de ditos sujeitos. A
assistência aos corpos com “necessidades especiais” passa por uma prá-
tica precisa: o isolamento e a reclusão. Também se desenvolverá e sis-
tematizará uma ciência já presente desde a antiguidade: a ortopedia.
Trata-se do nascimento de um novo ramo do saber médico, que terá
um grande impulso a partir do rastro deixado por Nicolas Andry, que
deniu a ortopedia como a arte de prevenir ou corrigir nas crianças
as deformidades do corpo
46
. O termo, procedente das palavras gregas
orthos e pedia (reto e criança), resultou perfeitamente na terminologia
médica do século XVIII
47
. Tal como Nieto arma, “la unión de estas dos
46
Andry (1741) L’Ortopédie ou l’art de corriger dans les enfants les diormites du corps. Brusel·les: George
Fricx.
47
Os antecedentes do termo ortopedia eram os seguintes: pedotroa (fazendo referência à nutrição das
Jordi Planella Ribera
332
palabras sirve para explicar lo que se propone, es decir, enseñar diversos
modos de prevenir y corregir en los niños las deformidades del cuerpo
(2002, p. 63-64).
Contudo, apesar disso, o Hospital toma vida própria, começa
a pulsar e a pensar, a desejar-nos como sujeitos habitantes ou visitantes
de suas instalações, corredores e cantos. Se me rero às topograas do
corpo no hospital, não posso ignorar os múltiplos espaços que nos aco-
lhem e recusam: frios e quentes, cheios e vazios, permitidos e proibidos.
Estão ali para uso e desfrute dos corpos. Porém, o hospital acaba sendo
um lugar de sacralização da prática hospitalar. Nas palavras de Comelles,
“Es posible documentar etnográca e históricamente roles fuertemente
diferenciados encargados del complejo asistencial. No siempre delimi-
tan espacios para su práctica al margen del doméstico –el más universal
de todos-, y pocas son las sociedades que los diferencian arquitectónica-
mente: tiendas o puestos que venden remedios o en las que se practica la
cirugía; santuarios y espacios sagrados en los que se desarrollan prácticas
o rituales mágicos, adivinatorios o terapéuticos, o instituciones civiles de
atención o cuidado, de adivinación y terapéuticas
48
. O Hospital e toda
a sua complexidade se desdobra em formas, apropriações de funções e
espaços, saúde e enfermidade, jalecos brancos e camisolas, para ordenar
a vida que pulsa entre seus muros.
Disse ironicamente Guido Ceronetti que a medicina é, tradi-
cionalmente, uma disciplina losóca que pode ser estudada como se
queira, inclusive frequentando as faculdades de Medicina, mas que nada
nos tire a liberdade de abrir solitariamente o crânio, o coração e o ventre
do homem, de ler os os que o ligam ao céu e às sociedades ctónicas, de
curar-nos ou de deixar-nos morrer, para curar-nos da vida sozinhos
49
.
Laín Entralgo, Pera, Canguilhem, Bermejo e muitos outros transitaram
por essas formas tão antigas de relacionar-se com o paciente, para além
de sua capacidade de resistir com paciência às intervenções sobre seu
crianças de picho, que precisavam ser amamentadas mais e melhor), callipedia (forma de conseguir crianças
belas). De Andry, é a imagem da árvore torcida, representação simbólica da ciência ortopédica.
48
J. Ma Comelles (1995) “La sacralización de la práctica hospitalaria. Del despliegue tecnológico a la insti-
tucionalización del milagro”, en Barona, Op. Cit. pp. 179-206 (p. 179).
49
G. Ceronetti (2006) El silencio del cuerpo. Barcelona: El Acantilado, p. 9.
333
Corpo, cultura e educação
corpo, sobre seus órgãos, talvez sobre sua pessoa. Os riscos da práxis
médica nas sociedades complexas podem ocorrer na construção de uma
relação à distância, fria, mecanizada, articulada por meio de objetos que
trazem à luz formas de diagnosticar baseadas no objetual. Para Pera,
trata-se de que “todas estas tecnologías diagnósticas mediante imágenes
ejercen hoy una enorme inuencia en todos los campos de la biomedi-
cina, de la que se han convertido en uno de sus fundamentos (…) La
telemedicina implica, en su sentido más amplio, el uso de la moderna
tecnología de la telecomunicación con objetivos diagnósticos, terapéu-
ticos y de monitorización de constantes siológicas, cuando la distancia
física aleja a los presuntos pacientes de sus médicos
50
.
Creio que é justamente o compartilhar a vinculação corporal
das relações humanas (entre médico e paciente) fundadas na aprendiza-
gem da dor, no caos da saúde e da enfermidade, o que confere a dita prá-
tica como algo autêntico e real. A subjetividade do paciente no hospital,
a transgressão dos limites do hospital moderno e as formas de resistência
à mesma instituição hospitalar dão sentido às vidas marcadas pela dor
e a paciência, e pelos passeios por espaços e territórios médicos (quase
sempre insípidos, desinfetados dos odores da vida). Uma vida que pode
chegar a ser vivida com plena autonomia moral.
9.5.3. narrativaS do CorPo vulnerável
A experiência de Robert Murphy sobre seu processo de enfer-
midade e a posterior situação de deciência é um claro reexo da con-
cepção da autoetnograa como “forma política pessoal”. Trata-se, mais
concretamente, das vivências de um antropólogo que sofre de tetraplegia
e narra –a partir de um ponto de vista antropológico- , dita situação. Tal
como nos conta, “Mientras mi estado se ha ido deteriorando, he llegado
a considerar mi cuerpo cada vez más como un sistema defectuoso de
mantenimiento de la vida, cuya única función es sostener mi cabeza …
El cuerpo del tetraplégico ya no puede hablar un lenguaje mudo expre-
50
C. Pera, El Humanismo en la relación Médico-Paciente: del nacimiento de la clínica a la telemedicina. Do-
cumento de trabajo nº 6. Documento electrónico: [www.redadultosmayores.com.ar/buscador/les/ SA-
LUD020.pdf], Consultado em 22/10/2007.
Jordi Planella Ribera
334
sando emociones o conceptos demasiado huidizos para el habla normal,
ya que se han roto los delicados circuitos de retroalimentación entre el
pensamiento y la acción. La proximidad, los gestos y el entorno corporal
han enmudecido, y la capacidad del cuerpo para expresar el pensamien-
to se ha silenciado
51
.
Mas não é o único nem o mais conhecido. Existem determi-
nadas narrações que falam do corpo que o convertem no eixo central de
seu discurso. Sem o corpo, não tem sentido sua escrita. Desde a antigui-
dade essas narrações têm existido, muitas vezes ligadas a temas religio-
sos. Desde narrações que falam de milagres (exemplos delas são as curas
de corpos em Lourdes ou Fátima) até as histórias das relíquias de santos
cujos corpos, com o passar do tempo, não se decompõem.
Além das relações da metáfora do corpo como elemento dis-
cursivo, é necessário situar as histórias narradas por pessoas que têm al-
guma relação especial com seu corpo. São relevantes as histórias narradas
por pessoas com deciência física. Entre muitas, optamos por três narra-
ções corporais da deciência. A primeira é o livro escrito por Alexandre
Jollien, Elogio de la debilidad. O autor narra sua vida, até os 25 anos, e
expõe, por meio de um diálogo com Sócrates, algumas percepções de
seu corpo. A segunda narração que nos aproxima da discursividade e da
corporeidade é o trabalho de Marta Allué, DisCapacidades (2003). Allué
é uma antropóloga especializada em rituais funerários que em 1993 so-
freu um acidente, fruto do qual teve queimada uma parte importante de
seu corpo. Desde então, vem trabalhando na linha da antropologia da
deciência, onde o corpo é um dos eixos centrais
52
.
Também é relevante um trabalho recentemente editado em
que Rubén Gallego narra sua vida em orfanatos e internatos da URSS,
depois de haver sofrido uma paralisia devida a complicações no parto.
Narra o seguinte em relação ao seu corpo: “lo primero es bajar de la
51
R. Murphy (1987) e Body Silent. Nueva York: Henry Holt and Co, p. 101.
52
Alguns de seus trabalhos são: (1996) Perder la piel (em que trabalha narrativamente sua experiência do aci-
dente, a recuperação das queimadas, a reconstrução de sua própria história); (2001) Temporalmente válidos:
una etnografía sobre el entorno de la discapacidad (trata-se de sua tese de doutorado, em que estuda 25 histó-
rias de vida de pessoas com deciência); (2003) “El sexo también existe(um capítulo de um livro dedicado
às sexualidades não normativas e a seu controle social).
335
Corpo, cultura e educação
cama. Hay un modo de hacerlo; se me ha ocurrido a mí. Sencillamente
me deslizo hasta el borde de la cama, me doy la vuelta hasta quedar sobre
la espalda y me dejo caer. Tras la caída llega el golpe. Y el dolor” (2003,
p. 13). A leitura do corpo como elemento discursivo foi um dos temas
que trabalhamos em diferentes ocasiões. O silêncio da cultura e da so-
ciedade leva algumas pessoas a usar o corpo como base de seu discurso.
Em um primeiro trabalho sobre a inscrição e os corpos, intitulamos uma
das seções: corpos escritos, corpos tatuados. Ali armávamos que ins-
crever no corpo é dar-lhe vida, fazê-lo passar de um estado meramente
anatômico e calado, a um estado social e comunicante. A conexão entre
o corpo e o discurso pode possuir essa dupla vertente que expusemos:
pessoas que necessitam escrever as vivências de seu corpo e pessoas que
necessitam escrever em seu corpo para fazer-se sentir.
9.5.4. geografiaS do hoSPital: itinerárioS doS CorPoS
tranSPlantadoS
A instalação hospitalar revela uma possibilidade de existência
entre suas entranhas. Entre jalecos, oxigênio, odor etéreo limpo, macas
e silêncios, o corpo transplantado constrói seus espaços e geograas de
vida. Já disse que minha mãe descrevia seus episódios móveis como um
passear pelo Calçadão do Hospital”. É no ir-e-vir que o corpo subjetivi-
za seu estado/estádio no contato com os outros corpos, com corpos que
foram transplantados ou extirpados, mas corpos ao m e ao cabo que
habitam as entranhas do hospital. O disse com clareza Dovigo: “Analo-
gamente ad altre istituzioni social complesse, nell’ospedale convivono
(e a volte coniggono) una pluralità di mondi dierenti, che corrispon-
dono ad altrettante rappresentazioni della malattia e del suo signicato
(2009, p. 11). O hospital é a própria vida concentrada entre seus muros,
feita de ires-e-vires de múltiplas subjetividades que se deslocam, vivem e
convivem em suas entranhas.
Jordi Planella Ribera
336
itinerário 1. a: CaminhoS que levam à Sala CirúrgiCa
Não estamos equivocados se falamos dos percursos do corpo
no hospital, e se o fazemos iniciando pelo que designamos como mo-
vimento involuntário. Também nos fala disso Moss: “el espacio vivido
respecto a un cuerpo que se disponen a realizar posibles acciones como si
fuera una red organizada de rutas, caminos y obstáculos a esas acciones,
como un espacio humano lleno de oasis acogedores y peligros a sortear;
de escenarios familiares y territorio extranjero; y de puntos de salida y
de destino” (1978, p. 85). O corpo deve exercitar-se na reapropriação
do espaço, seja de forma física ou simbólica. O movimento involuntário
é aquele que é ordenado pelo médico, e o executa um auxiliar, um en-
fermeiro ou o próprio enfermo. Exemplo disso é o descer do quarto do
andar 3.9 até a sala de cirurgia (que se encontra no andar de entrada do
hospital) para ser operado, e o caminho de volta. Na volta, é obrigatória
a parada na UTI, onde, em poucos dias o corpo se recupera da operação.
[Andar 3, escada 9]
São geograas e caminhos que se realizam e recorrem em silên-
cio, em uma espécie de inconsciência total. A passividade do paciente é a
referência, o uso e, às vezes, o abuso. Não se espera dele atividade nenhu-
ma além de ser deslocado (e não passeado) de seu quarto até alguma das
salas para poder realizar nele algum teste médico que dê conta e ciência
de seu estado, de sua evolução (uma ecograa, uma TC, a própria ope-
337
Corpo, cultura e educação
ração de transplante, etc.). Essa perspectiva tem relação com o que diz
Ángel Martínez ao falar do percurso do enfermo: “La etapa de paciente
se inicia con esta etapa de expropiación. Desposeído de sus pertenencias
simbólicas más preciadas y de su identidad y de su identidad, el paciente
debe adaptarse a un orden institucional y a una lógica de premio-cas-
tigo materializada en una disposición de salas, en donde el nivel mejor
incluirá ventajas como relaciones inofensivas con el personal o libertad
bajo palabra dentro o en los alrededores del hospital, y el peor bancos de
madera y la comida menos apetitosa posible” (2008, p. 142). É assim e,
desta forma, se estrutura a hierarquia dos deslocamentos médicos.
itinerário 1. b: viagenS Pelo quarto
Fora da UTI, a mobilidade é ainda muito reduzida, quase se
limitando ao espaço que o quarto permite. Voltas e mais voltas na cama
com sabor de dor, de algo que ainda nos dá vida, dói. Primeiros passos
do que é como aprender de novo a caminhar, e que nos levam até a ca-
deira ou poltrona do tênue quarto 49 do andar 3.9 do hospital. Passados
uns dias, o deslocamento talvez nos permita adentrar no reino do andar,
sem poder sair –a princípio- dela. A limitação dos espaços e do corpo se
dilui com as horas.
O pequeno espaço do quarto deve acolher os pacientes e seus
familiares. Alguns destes tornam-se coabitantes do quarto e em sujeitos
itinerantes dos espaços livres e abertos do hospital. O mais representati-
vo, curioso e espetacular é a capacidade de admissão do quarto do Hos-
pital. Às vezes entravam (no nosso e em outros quartos) visitas e mais
visitas, e prossionais e mais prossionais. De forma mais ou menos
natural se distribuem e organizam tais espaços.
itinerário 1. C: itinerárioS de eSPerança
A recuperação pós-transplante é quase milagrosa no doador e
no receptor. Depois dela, os itinerários de ambos, ainda que diferentes,
seguem caminhos muito parecidos. O terceiro andar permite fazer um
Jordi Planella Ribera
338
longo percurso que toma a forma de U. Ir de uma parte a outra serve
para muitas nalidades (matar tempo, fazer exercício, socializar, etc.),
todas válidas em função do momento e do estado de ânimo. Trata-se
de momentos de esperança, ainda que o transplantado deva transportar
uma bolsa onde são recolhidos os líquidos produzidos pelo órgão hepá-
tico. Sua espetacularidade (conheci quem tenha ido com ela –de forma
bem visível- em transporte público) não freia em nada o perambular. Ca-
minhar, com ou sem artefatos pendurados, enxertados no corpo, é uma
necessidade vital, o exercício por excelência de resistência ao papel de
paciente hospitalar. As paradas do percurso são quase obrigatórias: UTI
do terceiro andar, esquina de elevadores, bancos da ala norte, conversas
com conhecidos que requerem que nos detenhamos, etc. Mais adiante,
os caminhos podem nos levar até o andar de entrada ao hospital, onde
o movimento de entrar e sair, subir e descer, deslocar-se de norte a sul
e ao revés, é muito maior. A possibilidade de sair ao pátio ou ao terraço
oferece uma nova dimensão da vida de convalescência no hospital.
itinerário 2. de retorno
Chega o dia e o paciente transplantado deve ir para casa. Em
nosso caso foi rápido e não chegamos a um mês de ingresso na 3-9. Mas
ir para casa comportava, a nossos olhos, milhares de perigos e façanhas.
Previamente, era necessário reunir e repassar uma longa lista de medica-
mentos que deviam acompanhar o lento processo de recuperação em casa.
Ainda que a saída do hospital represente uma injeção brutal de positivida-
de para o processo de recuperação, a saída do hospital representa também
seu retorno. Pequenos problemas, estipulados como efeitos secundários
do transplante, marcarão presença no corpo. Diculdades com a drena-
gem, rejeição do órgão, escaras insuportáveis na pele, diculdades na vi-
são, serão elementos que acompanharão o caminho de retorno.
Mas mover-se e traçar geograas no contexto hospitalar são o
primeiro sintoma de uma Bio-Graa reativada.
339
Corpo, cultura e educação
9.6. o dom: um CiClo de dar e reCeber a vida
Os cirurgiões cortam a carne com precisão, deslizando suave-
mente o bisturi. Mas o olhar sócio-antropológico ao corpo não se fun-
damenta no físico-anatômico, mas no vivencial. Estar vivo e habitar um
corpo nos faz existir organicamente, ser de forma encarnada. Os gestos
do corpo nos envolvem e já não podem mais ser silenciados, porque seus
movimentos se derramam, nos rompem e acolhem. Zweig se alegraria
se os novos europeus não se escondessem sob mantos incorpóreos. E os
gestos são vozes, vozes que falam apesar dos silêncios sonoros. Adentrar
o corpo e suas possibilidades tem seus riscos, mas também seus prazeres,
suas diculdades e suas epifanias.
9.6.1. bioPolítiCaS do CorPo tranSPlantado
Dar e receber vida e morte, ser e não ser, são sentidos e contras-
sentidos que, de uma ou outra forma, têm acompanhado os caminhos e
o clima do presente texto. Seu olhar aos corpos, feita de forma mais ou
menos clara, mais ou menos escura, serviu para abrir algumas questões. A
escuridão da agonia corporal encontra sua luz no templo-sala cirúrgica, e a
liturgia do cirurgião é a que organiza o ritual de insuar vida ao corpo. O
dom (doar a vida, um órgão ou uma parte do corpo) rompe com as estru-
turas de dominação que marcam os caminhos do corpo. O corpo humano
é cada vez mais desaado, inclusive literalmente atravessado pela técnica,
e doar um órgão para o transplante não é senão um ato de resistência
na direção dessa atitude condicionante de formas de luta para sobreviver.
Humanizar a biopolítica do controle é um dos sentidos reais e verdadeiros
da ação que representa a transação de órgãos corporais.
Tal como alguns autores não deixam de recordar-nos, vivemos
sem viver realmente a experiência. Para dizê-lo com Odo Marquard: “las
modernizaciones consisten en la sustitución (parcial) de los mundos de
procedencia mediante mundos objetivos probados experimentalmente y
generados técnicamente, que a su vez requieren (para que se oriente en
ellos) al ser humano intercambiable a costa de sus diversidades tradicio-
nales” (2000, p. 115).
Jordi Planella Ribera
340
Voltemos ao espaço hospitalar. Ali não é possível estar presente
sem experiência. A própria vida nos arrasta aos enraizados labirintos da
dor. Não podemos resistir a ele. A dor inuencia nossas vidas e o cor-
po de nossos pacientes familiares (apesar de tal expressão conter uma
substanciosa dose de domínio e possessão dos seus/nossos). Para além dos
nossos, vivemos e convivemos com outras experiências de dor, paixão,
esperança e morte. Rostos que nos olham, que se apiedam de nós, que
nos chamam a gritos para que sejamos solidários com seus corpos. A
organicidade da própria vida entrelaça os elementos do corpo moribun-
do. Apenas as guras imaculadas do hepatólogo e do cirurgião parecem
(embora nem sempre) se distanciar da própria experiência da dor. Es-
condem-se e revestem-se em suas máscaras (como tantas vezes nós tam-
bém zemos) prossionais que lhes permitem pintar-se como hepatólo-
go e cirurgião, porém muito menos como pessoas. Como personagens
sim, mas sem chegar a personalizar no trato. Isso pode se agravar em um
antes do transplante (não é bom se apegar aos pacientes se têm risco de
morte…). E se apresentamos a doação como uma forma de resistência
própria das sociedades complexas, é necessário justicá-lo. Para isso, ex-
pomos cinco formas de se resistir.
A) Resistência à economia de mercado (dos corpos)
Em um primeiro ponto aparece a resistência, já que a ação de
doar um órgão se situa ao lado oposto das formas relacionais media-
das pela mercantilização das identidades. No desenrolar dos múltiplos
e possíveis casos de uma determinada economia dos gestos, não gura a
ideia de doar um órgão em troca de nada. Em vez disso, gura o uso e o
abuso dos órgãos por meio do que se denomina comércio de órgãos. Os
órgãos não são doados, mas sim vendidos ou roubados.
B) Resistências à passividade corporal
Decidir doar uma parte do fígado é um ato plenamente ativo.
Os motivos são muitos, mas denitivamente ativos. Toma-se um cami-
nho que pretende (com a ajuda de cirurgiões, hepatólogos, enfermeiras,
341
Corpo, cultura e educação
auxiliares, etc.) mudar uma situação desastrosa, no próprio limite da
vida; passar de uma predeterminação corporal condenada à morte a en-
xertar um novo órgão que insua vida. O contrário é deixar-se morrer,
aceitar que a lista de espera é longa (e que seguramente nunca chegará a
tempo nossa vez). O contrário de tal passividade se traduz em ativar-se
em direção à vida, em ser humano (sujeito no lugar de objeto) e rear-
mar-se por meio da tomada de decisão. Uma tomada de decisão que se
traduz em aceitar a doação do órgão de um familiar (lho/a, compa-
nheiro/a, etc.), bem como aceitar doar a alguém da família uma parte
de você mesmo, do teu ser que te permite existir. E é justamente nesse
permitir existir que é possível transferir ao outro a própria vida.
C) Resistências às políticas Tanatológicas
Se os hospitais são instituições em cujos interiores se produz
uma estranha mistura de vida e morte, a doação para o transplante se si-
tua ao lado da vida. Quantas pessoas morrem estando na lista de espera?
A cultura mediterrânea, com um forte componente de laços e estruturas
familiares centrípetas, promove o fato de tomar conta da realidade do
outro. Isso inclui, entre muitos detalhes, a doação de órgãos. Dar apoio
emocional, oferecer um ajuda econômica, dar uma parte do corpo para
permitir que a vida siga uindo. A bio-política do thanatos acabou, em
parte, encurralada.
D) Resistência à Desagregação da Identidade
As máquinas, as próteses e os variados artefatos que rodeiam a
vida de muitas pessoas dependentes ou em situação de doença crônica,
muitas vezes não permitem aorar essas doses de identidade, necessárias
para poder existir. Cabos, sinais vitais, RNM, anestesias locais e gerais,
suturas, respirações articiais, cadeiras de rodas que devem ser empurra-
das perpetuamente, medidores de pressão e radiograas. Como afetam
nossa existência? São neutras ou contrariamente impõem estilos e olha-
res? A doação e o transplante, apesar de estarem totalmente envolvidos
em tais circunstâncias, devem procurar encontrar modos abertos de ser.
Jordi Planella Ribera
342
As cicatrizes dos corpos (do receptor e do doador) são um tes-
temunho vivo e em evolução das formas de resistência que apresenta-
mos. Cada um com um traço bem diferenciado, para recordar (nos)
que seus trajetos (de entrada, de saída e de permanência) são claramente
distintos.
E) Uma Esperança na Biopolítica do Corpo Transplantado
Ficou gravado (pelo menos durante um longo tempo), como
testemunho de solidariedade corporal, o ato da doação e da recepção do
fígado. Como a sístole e a diástole, se fundem em seus movimentos e
desenhos. Romper com os processos de morte, sonhar com outro corpo,
buscar um órgão, levá-lo incorporado no próprio corpo, representa um
caminho alterado dos destinos sem possibilidade. O sonho de construir
um homem novo pode ter algumas esperanças ao longo do caminho da
solidariedade orgânica, porque continua valendo a pena não esquecer
que “la solidaridad nace en el intersticio y en la conuencia de una triple
tradición, que constituye sus tres almas: un sentimiento, un acto racio-
nal y un imperativo moral”
53
.
Talvez possamos continuar pensando o corpo, e especialmente
o corpo reconstruído a partir do dom e seus enxertos, como espaço de
resistência e espaço de identidade duradoura e sólida. Na modernidade
líquida sobre a qual nos fala Bauman, em que as identidades são feitas e
desfeitas, são pensadas novamente a cada vez que se reiniciam, e oferecer
parte do corpo para ser transplantado a outro ser é optar pela solidez da
vida, é exercer a solidariedade orgânica. Não em vão Elaine Scarry nos
anunciava que “la ausencia de dolor equivale a la presencia del mundo.
La presencia del dolor equivale a la ausencia del mundo. En virtud de
esas ecuaciones, el dolor se convierte el poder”
54
.
53
J. GARCÍA ROCA (1998) Exclusión social y contracultura de la solidaridad. Prácticas, discursos y narracio-
nes. Madrid: Ediciones HOAC, p. 161.
54
Scarry, E. e Body in Pain.
343
Corpo, cultura e educação
9.7. enCarnar o CorPo tranSPlantado
Apprends à penser avec douleur
Maurice Blanchot, L’Écriture du desastre.
A integridade da pessoa é interrogada no mesmo projeto da
reconstrução orgânica do corpo; digo que é interrogada, mas não é rom-
pida. Trata-se de um certo estremecimento, um deixar de ser vulnerá-
vel e sofrível. O corpo transplantado, receptor do órgão dado, necessita
assumir e compreender sua nova condição. A introdução de um novo
órgão produz ações e reações a níveis distintos. É assim que encontramos
as reações do próprio corpo, já que em um período muito reduzido de
tempo (na realidade, muito poucas horas) passou a ter um órgão atroa-
do para que tal órgão seja substituído por outro novo e melhor. Mas esse
órgão novo não deixa de ser um estranho para si mesmo. O estranho é,
ao mesmo tempo, próximo e distante. Curioso esse olhar de alteridade e
mesmidade, porque o órgão novo é outro e o mesmo simultaneamente.
Sendo doador do fígado meu irmão, minha mãe recebia carne de sua
carne. O criado e gerado fazia muitos anos regressava, e retornava a um
mesmo ponto de partida.
Mas não é suciente que a carne da própria carne retorne. Os
outros órgãos, os tecidos e as células, deverão aprender a envolver de
novo ao desamparado órgão. Não deixá-lo só, apoiá-lo e ajudá-lo; in-
clusive animá-lo em momentos de baixeza. Em meu imaginário sobre
o transplante aparece uma e outra vez esse órgão envolvido como se de
um recém-nascido se tratasse (sua condição não é realmente a de recém
chegado?). Um recém-nascido a quem se aconchega, se abraça, se envol-
ve, se mima e se cuida.
Mas não só os órgãos tiveram que se mobilizar e aprender; a
mente, e seus imaginários –já desde um início- tiveram que aceitar ou
recusar esse intruso no interior do corpo procedente do próprio lho.
Colocá-lo em perigo (ao lho) era um ponto chave e decisivo. Esse já foi
o primeiro aprendizado: cortar, doar, para seguir vivendo. A contragosto
(e com a doença logo atrás) se aceita e se aprende. Não há tempo para
Jordi Planella Ribera
344
pensá-lo nem para negociar categorias que complementem essa decisão.
A mãe pode seguir vivendo porque o lho oferece parte de seu fígado;
para que seja cortado (pela mão precisa e quente do cirurgião) e depois
implantado. O transplante insua ar novo, cria e remonta a vida huma-
na. Em parte, aparece uma nova identidade que leva o transplantado a
fazer parte de uma espécie de irmandade de receptores e ao doador, ao
seio de um grupo de escolhidos, salvadores. Os salvadores do corpo, os
iniciados no caminho da solidariedade corporal.
CaPítulo 10
Pedagogia e hermenêutica do
corpo simbólico: bases para a
ideação corporal
347
P    
:     -

No es el individuoo como tal el que trata de reconstruirse, de reencon-
trar su unidad y la conciencia de esta; su reconstrucción sólo puede ope-
rarse si se reconoce y se arma como Sujeto, como creador de sentido y de
cambio, lo mismo que de relacionas sociales y de instituciones políticas.
[Touraine, 1997, p. 85]
Recongurar un universo simbólico y relacional en torno al cuerpo hu-
mano que, en vez de ser dominado, secuestrado, mutilado o colonizado,
pueda despertar la conciencia de una nueva realidad individual y so-
cial. Tal vez, si aceptamos el cuerpo de los otros acabaremos por aceptar
nuestros cuerpos con todas sus imperfecciones y limitaciones.
[Vilanou, 2003, p. 233]
10.1. Sobre a Pedagogia hermenêutiCa
Cada vez são mais numerosos os trabalhos que nos últimos anos
falam da pedagogia a partir da hermenêutica. Ao iniciar o livro, z uma
breve referência à temática e a alguns dos autores que a abordam abun-
dantemente. Quero iniciar este último capítulo aprofundando o concei-
to do que denomino pedagogia hermenêutica. Se nos centrarmo tanto no
trabalho de Vilanou (2002ª, 2003), como no de Pagano (2001) ou no
de Esteban (2002), aparece uma gura central e um texto de referência:
Jordi Planella Ribera
348
trata-se de Gadamer e de um breve discurso intitulado originariamente
Erziehung ist sich erziehen (a educação é educar-se), que serviu de base
para pronunciar uma conferência no Dietrich-Bonhoeer-Gymnasium
de Eppelheim, no dia 19 de maio de 1999. No início do texto, o autor
faz uma armação que se converte em um elemento imprescindível para
nosso objetivo. Exatamente, diz: “armo que la educación es educarse,
que la formación es formarse”. E depois, passam a ser formuladas duas
questões que tenderão a guiar seu discurso: “¿Quién es propiamente el que
educa? ¿Cuándo comienza propiamente la educación”? A formação (Bildung)
se converte no tema central de uma parte das reexões pedagógicas, que se
caracterizam, precisamente, por interrogar-se sobre o lugar do educando e
sobre as direcionalidades dos processos formativos.
Porém, ainda que possa parecer que a formação, seguindo a
proposta de Gadamer, é um caminho que cada um tem que realizar por
si mesmo, essa concepção nem sempre é compartilhada por toda a co-
munidade educativa. Se a analisarmos em termos corporais, chegaremos
às concepções do livro em que estudamos as pedagogias que formam
corpos e as pedagogias que permitem a formação por meio do corpo. É por
isso que Vilanou se pergunta se “¿Es posible una Bildung hermenéutica”?
(2000 b. 29), pois “la educación exige un esfuerzo personal autobiográ-
co de reexión y formación”. Essa exigência pode encontrar-se limitada
por muitas variáveis que dicultarão esse processo de atividade por parte
do sujeito pedagógico, e que podem ser: a própria pedagogia, os edu-
cadores/mestres/ pedagogos/professores ou mesmo os próprios sujeitos.
Vilanou responde à interrogação armativamente:
La pedagogía hermenéutica a modo de heredera de la Paideia clásica
y de la Bildung neohumanista puede contribuir a la búsqueda de un
horizonte que oriente y dé sentido a la praxis educativa teniendo en
cuenta aquellos aspectos de la tradición cultural occidental que han sido
olvidados, a menudo, en un proceso de tecnicación de una pedagogía
que -en muchas ocasiones- parece alejarse denitivamente de los ideales
formativos (Vilanou, 2000 b, p. 31).
Resolvida a questão, é necessário continuar articulando as pos-
sibilidades de pensar os corpos dos educandos a partir da pedagogia her-
349
Corpo, cultura e educação
menêutica. Com essa intenção, Gadamer faz referência às aprendizagens
que concretizamos na infância: “es un educarse como el que percibo en
particular en la satisfacción que uno tiene de niño y como alguien que
va creciendo cuando empieza a repetir lo que no entiende”. Quando
somos pequenos, já não estamos nos educando a nós mesmos, ainda
que possa parecer que o papel dos pais e dos educadores é, certamente,
o mais crucial. Esse processo, que se inicia na infância, nos leva a uma
autointerpretação que continuará aberta a novas compreensões de nós
mesmos, que se irão sucedendo ao longo dos anos. É justamente na in-
fância que a formação do corpo (no sentido mais puro de dar-lhe forma)
ocorre. Essa formação pode ser realizada a partir de muitas expectativas
que conuem na construção de corpos que sejam ortodoxos (norma-
lizados) e corpos que sejam heterodoxos (anormalizados). Por isso, é
signicativo retomar a ideia inicial de Gadamer: a educação é educar-se, e
pensar como se pode aproximá-la da ideia de corporeidade.
10.2. oS CorPoS e a Pedagogia hermenêutiCa: uma Primeira
aProximação
Parto da hipótese de que a formação é formar-se, e que a forma
do corpo encontra-se ligada a este processo de formação que acabo de
mencionar. Vimos, ao longo dos diferentes capítulos, como, por meio
do exercício de construção social, se dá forma aos corpos dos sujeitos.
O processo é claro: a matéria prima do sujeito (o corpo entendido a
partir de sua dimensão Körper) é modicada, transformada, formada ou
deformada por parte dos elementos contextuais que ali participam. Se
o sujeito se deixa modicar, será objeto de formação por meio do que
podemos designar como curriculum corporal fechado. No curriculum
corporal fechado, os corpos se formam a partir de uma série de critérios
que podem ser organizados como: corpos silenciosos (não portadores de
textualidades), corpos normalizados (que se ajustam às medidas/carac-
terísticas/estéticas marcadas pelos contextos), corpos uniformes (que não
podem ser lidos nem ser interpretados de formas diferentes), corpos físi-
cos (que não dispõem de uma perspectiva simbólica) e corpos obedientes
(que se submetem aos elementos biopolíticos que marcam as práxis pe-
dagógicas, sem apresentar ações de resistência corporal).
Jordi Planella Ribera
350
10.2.1. CorPo e Cultura na eduCação
Se tomarmos por referência o trabalho de Judovitz (2001), en-
tenderemos que a recuperação da subjetividade corporal pede a presença
e a ressituação da dimensão cultural nos corpos dos educandos. Situei,
em alguns capítulos precedentes, o espaço da dimensão simbólica dos
corpos a partir das contribuições feitas por Cassirer, porém entendo que
é necessário aprofundar o conceito de cultura corporal. Essa cultura do
corpo tem sofrido, ao longo dos discursos e das práxis pedagógicas, di-
versos deslocamentos que têm conduzido o próprio corpo de territórios
de onde foi excluído, até territórios em que tem sido objeto de veneração.
Neste perambular pedagógico-corporal, de pedagogias que se caracte-
rizaram por querer submeter e controlar os corpos dos educandos, até
pedagogias tecnológicas, nas quais o corpo passa a ser um elemento so-
brante, podemos chegar a reconstruir uma história pedagógica e corpo-
ral que nos aproxima a sua leitura a partir do termo cultura.
Porém, por que essa insistência em levar o corpo até o terreno
cultural? Em um trabalho dedicado à hermenêutica pedagógica, Esteban
nos aponta uma das possíveis razões: “todas las alternativas pedagógi-
cas culturalistas, dialógicas, narrativas, etc. chocan una y otra vez con
el interesado endurecimiento de la derivación instrumental de la razón
en su ejercicio de convertir lo real en una entidad simple, objetivable,
inequívoca y manejable” (2002, p. 37). A aproximação da educação à
corporeidade busca justamente evitar os discursos e as práxis que con-
vertem os corpos dos sujeitos em corpos, que podem ser lidos a partir
de uma ótica simplicada, objetivada, sem interpretação possível e que
facilmente podem ser manipulados.
É justamente o pensar o corpo a partir de sua dimensão cultu-
ral, que nos conduz ao sentido último da Bildung (ou Humanitas ou Pai-
deia), que Gennari (2001, p. 29) entende a partir de duas perspectivas
possíveis: Schöpfung (criação) e Verfertiung (fabricação). Entendo que a
perspectiva que proponho está muito mais próxima à Bildung, entendida
como Schöpfung, que como Verfertiung. Se falarmos de cultura, a ideia
de fabricação ca distante das possibilidades de pensar uma educação a
partir dessa dimensão, enquanto que pensá-la a partir da possibilidade
351
Corpo, cultura e educação
de criação já é inerente à mesma conceituação da cultura. Se a cultura se
conecta com a mesma ideia da hermenêutica e esta nos convida a pensar
que o homem é formado interpretando, que tipo de formação pode ser
alcançada com os processos de fabricação? Voltamos, outra vez, ao que já
denimos e situamos: a produção de sujeitos objetivados, que se conver-
tem, sobretudo, em corpos que devem ser educados, em corpos que, por
meio dos sistemas e mecanismos, serão transformados seguindo uma
determinada disposição regulada dos corpos. Essa disposição pode chegar
a car muito distante dos ideais da Bildung, que comecei a esboçar.
A Bildung reivindica um conjunto de elementos que se devem
levar em conta e que se podem caracterizar por meio da história, da arte,
da criatividade, uma determinada Weltanschauung, a experiência vivida,
o gênio, un mundo externo, a interioridade, a expressão, um estilo, um
símbolo, etc.. Esses elementos nos remetem não a um resultado, mas a
um processo, em que a subjetividade se converte em um elemento cen-
tral. À luz da pedagogia hermenêutica, a Bildung permite esse processo de
recuperação da dimensão cultural dos corpos dos educandos. E, de fato,
será em uma determinada cultura que os sujeitos “tomarão corpo”, se
encarnarão e se corporeizarão. Porém, mais além da própria cultura, não
teria sentido essa hermenêutica dos corpos simbolizados, semantizados
ou textualizados.
A perspectiva cultural do corpo dos educandos nos oferece a
dimensão escondida (pelos discursos platônico e cartesiano) que alguns
discursos atuais almejaram recuperar. Não se trata de pensar o corpo (e de
formá-lo) com práticas revisionistas, reparacionistas ou de manutenção. A
perspectiva cultural aponta para uma nova dimensão, uma dimensão que
nos fala do simbolismo dos corpos. Essa perspectiva passa, se seguimos o que
nos sugere, por transitar da natureza à cultura, e é justamente por meio do
símbolo que ocorre este processo. Isso dá signicado aos corpos, sobretu-
do em sua dimensão simbólica e cultural, para além das anatomias, o que
algumas pedagogias insistem em continuar educando.
A simbologia dos corpos parte da experiência do próprio sujei-
to em relação ao seu corpo e ao mundo que o rodeia, e facilita o rompi-
mento com o externo para acompanhar a ideia de corpo na direção de
Jordi Planella Ribera
352
uma dimensão interiorizada. É a partir desse processo de interiorização,
e, portanto, de simbolização, que podemos falar de corporeidade. A cor-
poreidade faz referência ao corpo em sua dimensão Leib e permite ao
sujeito passar de uma categoria objetivada a uma categoria subjetivada
. Esse é o objetivo de toda educação: “proporcionar las condiciones
propicias para una interiorización de este orden simbólico que modela
su lenguaje, sus pensamientos, sus actividades, sus gestos” (Le Breton,
2000, p. 39. Mas é nesse “proporcionar” que se deve ir com cuidado para
não passar por cima daquilo que é signicativo para o próprio sujeito, e
por meio dos dispositivos de moralização, medicalização e mecanização,
formar corpos objetivados, e não sujeitos corporeizados.
10.2.2. a formação de um SuJeito PedagógiCo: Para ir maiS
além doS CorPoS obJetivadoS
Depois de situar a formação entre a simbolização e os proces-
sos de inserção em contextos culturais, o que acaba dando sentido ao
processo em si é a formação de um sujeito pedagógico, no qual o corpo
terá um papel central. Essa formação do sujeito terá sentido se mantiver
relação com o que propõe Touraine:
La subjetivación, que es la voluntad de individuación, actúa a partir
de la rearticulación de la instrumentalidad y de la identidad, cuando el
individualizo se dene de nuevo por lo que hace, por lo que valoriza y
por las relaciones sociales donde, de este modo, se encuentra comprome-
tido (Touraine, 1997, p. 86).
Embora a formação do sujeito pedagógico faça parte de nossas
ideações, a criação do binômio (objeto pedagógico/sujeito pedagógico)
esteve presente ao longo de nossa cultura pedagógica e corporal. Tal
como Cullen anuncia: “se trata de la enseñanza de determinados saberes
corporales, organizados de determinada manera y evaluados de una for-
ma y no de otra (...) se seleccionan algunos de los diferentes sentidos y
imágenes con respecto al cuerpo, que se producen y circulan en la cultu-
ra” (1997, p. 105). A seleção prévia não pode levar ao que designei como
um sujeito pedagógico, porque previamente esperamos que o menino,
353
Corpo, cultura e educação
a menina, os educandos, etc, se comportem, corporalmente falando, de
uma determinada forma. Na transmissão dos saberes corporais, entra
em jogo o educador/mestre/docente que o leva a cabo a partir de seu
próprio corpo, e aqui é onde temos a oportunidade de assistir a um dos
paradoxos da educação. Enquanto o corpo do educador/mestre/docente
poderia servir para ajudar a entrar nessa dimensão simbólica dos corpos,
muito frequentemente se transforma em promotor de ordem e disciplina
corporal. Essa promoção da ordem continua ancorada naquele aspecto
tantas vezes criticado ao longo deste livro: aquilo que é signicativo,
relevante e preocupante para a pedagogia segue sendo a educação da
mente (intelecto, processo cognitivos, aprendizagem, etc.). Para Cogen
(1997), se produz uma tensão entre o desejo de aprender do corpo-sujei-
to-pedagógico e do corpo-sujeito-docente. Se este último tem a necessidade
(e o desejo) de impor sua eleição de saberes corporais, não surgirá um
corpo-sujeito-pedagógico, mas surgirá un corpo-objeto-pedagógico. O pro-
cesso de construção e/ou transmissão de saberes corporais por parte do
corpo-sujeito-docente pode ser representado da seguinte forma:
A avaliação do sujeito pedagógico a partir do corpo-poder
Educando Educador
Cultura
Corporal
Acata a
cultura
corporal ou
resiste
Cultura
Corporal
Selecção de
determinados
saberes sobre o
corpo: aquilo
possível e aquilo
não possível no
uso do corpo por
parte do sujeito
Mediam a relação
pedagógica
Jordi Planella Ribera
354
Para avançar na constituição da vertente subjetiva ligada à di-
mensão pedagógica e corporal, entendo que na relação poder, saber e de-
sejo se encontra localizada a chave do mistério da construção binária que
nos situa entre a objetividade e a subjetividade. Sua localização pode se
encontrar mitigada pelos efeitos que a problematicidade corporal pode
produzir nos contextos pedagógicos. A problematicidade corporal pode
ser lida a partir da ideia de resistência e conectada à crítica freiriana da
perspectiva bancária da educação (o sujeito não é um corpo no qual de-
positamos informações). Aquelas pedagogias que buscam trabalhar com
sujeitos que são concebidos mais além dos seus próprios poderes, de seus
próprios saberes e de seus próprios desejos, terão que afrontar, necessa-
riamente, os mal-estares corporais dos educandos.
Reconstruída essa pedagogia que segue depositando informa-
ções nos corpos dos educandos, controlando-os e negando a possibilida-
de dos desejos, me disponho a estruturar outra pedagogia que possibilite
que os sujeitos pedagógicos se autointerpretem e se compreendam em
sua globalidade. Para alcançar esse status de autocompreensão, há um
passo prévio, porém necessário: que o sujeito-corpo-docente deixe seu
papel obscurecedor do poder, do saber e dos desejos do educando. Dessa
forma, assistiremos ao encontro de uma relação baseada no tato do corpo
a corpo das corporeidades interacionadas. É necessário o que Van Manen
armava, conceitualizando-o como tato pedagógico:
La comprensión pedagógica es siempre una especie de comprensión apli-
cada (...) se quita a la práctica mediante lo que podemos llamar el
tacto pedagógico”, (...) se interesa por las circunstancias únicas y par-
ticulares, (...) no es abstracta, (...) La comprensión pedagógica es en sí
misma comprensión práctica: una hermenéutica práctica del ser y del
llegar a ser de un niño en una situación determinada (Van Manen,
1998, p. 24).
É por meio do tato que se torna possível a constituição do
sujeito pedagógico, que com seu corpo (mediador entre ele e a comuni-
dade) nos situa em comunhão (comunicando-nos) com a coletividade.
O que ocorre, ao contrário, quando os contatos (tato com) são elimina-
dos das práticas pedagógicas? Pode existir uma pedagogia mais além do
355
Corpo, cultura e educação
tato? E, se existe, que tipo de sujeito educa? São perguntas que, a partir
da hermenêutica, cam abertas a sua compreensão, e que a reexão de
Cajiao nos ajuda a delimitar:
Ahora sé que sólo soy un cuerpo para el amor y la soledad y únicamente
desde él logro articular una manera de pensar y de sentir el mundo.
Tal vez sea esto lo que me ha llevado a sentir el cuerpo como la piel del
alma, porque es sobre esa piel sensible, que de tarde en tarde reclama un
gesto amable, una expresión de ternura o un abrazo, donde se experi-
menta más hondamente el amor, la solidaridad, la posibilidad de que el
abismo interior sea contenido en otro cuerpo o la soledad terrible de un
alma que se desgarra sin hallar un sentido que justique su existencia
(Cajiao, 1996, p. 11).
É, pois, por meio do compartilhar experiências corporais, que
ocorre a formação do corpo-sujeito-pedagógico que é capaz de autointerpre-
tar-se, situando-se no mundo de forma corpórea, e por meio do exercício
introspectivo se descobre como protagonista de seu próprio projeto.
10.3. Performatividade CorPoral
Falar de performatividade nos situa na linha dos discursos pós-
modernos. Nesse sentido, Vilanou coloca que “después de los éxitos del
utilitarismo y el pragmatismo en la pedagogía contemporánea, se han
impuesto los valores performativos que persiguen el éxito y la ecacia,
en detrimento de aquellos ideales formativos que, por momentos uno
puede tener la sensación que se encuentran de vacaciones” (1997, p. 13).
Porém, eu me proponho uma leitura da performatividade pedagógica
não como o caminho para alcançar o êxito e a ecácia, mas como a pos-
sibilidade de pensar a educação a partir da corporeidade. É por isso que
a entendo a partir da leitura que faz McKeehen (2002), como a fusão de
ideias tomadas da losoa da linguagem e do campo das artes.
Apesar de nos situarmos neste cenário, não é simples denir
a origem do termo performatividade. Alguns discursos o aproximam ao
trabalho de Lyotard (1994), nos quais ele se refere ao termo formação
dizendo que “formar quiere decir que un maestro viene a ayudar a la
Jordi Planella Ribera
356
mente posible en espera de que la infancia llegue a su término” (1994,
p. 115). Apesar disso, para Lyotard, este “ayudar a la mente posible
se encontra carregado de preconcepções que situam o ator em espaços
excessivamente padronizados. A formação, entendida no sentido que
Lyotard critica, corre o risco de deformar os sujeitos, porque no exercí-
cio da ajuda, o formador atua na parte natural do sujeito, e no que ele
mesmo estiver assumindo e reconstruindo a partir de sua experiência
corporizada. Se a formação corre esse risco, a performação propõe ir mais
além e situar o sujeito no centro da ação formativa.
Antes de Lyotard, Austin, em How to Do ings with Words,
fala da performatividade com as palavras (performative utterances) no sen-
tido de que o sujeito tem que ser o que constrói o conhecimento a partir
de sua posição, por meio de suas próprias palavras. A partir da leitura
que nos propõe Austin (1971), o sujeito tem o poder de dar vida ao que
nomeia com sua palavra. Portanto, podemos designar como performati-
va aquela prática discursiva que realiza ou produz aquilo que chama ou
designa.
A construção da subjetividade com a palavra nos conduz à ideia
de performance, extraída dos trabalhos artísticos. As ações de performance
exigem uma estética da presença, do ato, do gesto, do momento e do
movimento, que muitas outras obras artísticas evidenciam e, inclusive,
negam. Esse privilégio por uma obra artística corporizada (carregada
também de conotações estéticas e simbólicas) permite uma releitura dos
discursos pedagógicos. Certo é que, tentar denir com precisão o termo
performatividade é mais difícil do que aparentemente pode parecer, já
que envolve elementos e ações de resistência (inerentes à própria existên-
cia dos cenários) que a tornam de muito difícil conceitualização.
A expansão do termo, a partir dos trabalhos centrados exclu-
sivamente na produção artística, ocorre em outros campos de saberes e
disciplinas, entre as quais devemos incluir a pedagogia, já que permite
essa nova hermenêutica que possibilita a encenação dos sujeitos corpo-
rizados, mais além do trabalho puramente intelectual. Os trabalhos de
Apple (1995), Carlson (1996) e Kershaw (1992), que situam a reexão
teórica em um contexto mais estritamente estético, juntamente com os
357
Corpo, cultura e educação
de Hill (1998), McLaren (1986), McMahon (1995) e Pineau (1994),
que enquadram a performatividade a partir de sua dimensão pedagógi-
ca, nos permitem centrar a pedagogia a partir dessa dimensão anunciada
que reclama uma presença dos corpos dos sujeitos em sua ação.
A transferência dos discursos artísticos, mas também de suas
práxis, nos serve para apresentar uma pedagogia que se estrutura a partir
da presença das corporeidades, ao mesmo tempo em que estas se auto-
desenham, se autoesboçam e se autoformam (se autoperformam). De
fato, trata-se de que, tal como Pelias y VanOosting (1987) apontam,
essa performatividade pedagógica exige uma metodologia participativa
que leve em conta a sensibilidade e os corpos dos educandos. Porém,
diferente de outras propostas, a presença dos sujeitos corporizados não
busca a aplicação do poder nos corpos, mas a educação por meio destes
corpos. A partir de minha posição ideológica, falar de performatividade
nos conduz a ter muito presentes os seguintes aspectos:
• A própria história dos sujeitos pedagógicos, não partindo dos pressu-
postos de que os sujeitos são corpos anatômicos sem história, “in-
corporados” em um contexto pedagógico onde devam ser educados
• A participação dos sujeitos corporizados em todas as atividades que se
desenvolvem nos contextos pedagógicos
• A participação corporizada dos sujeitos docentes ou educandos, não
esquecendo que os docentes também são corpos que desejam, pen-
sam, atuam.
Trata-se de pôr em consonância alguns dos diferentes elemen-
tos que podem permitir situar a práxis pedagógica de outra maneira;
porém, sobretudo, recuperando a posição do corpo do sujeito pedagógi-
co, demasiado esquecida ou silenciada nos discursos e nas práxis peda-
gógicas. É nesse sentido que não compartilho com Collelldemont que
esta propuesta pedagógica está enlazada con las recientes propuestas
neoestructuralistas que arman que lo importante no es la identidad del
sujeto en sí, sino la existencia de su proyecto” (2001, p.16). A existên-
cia do próprio projeto é outra forma de anunciar a proposta central da
Jordi Planella Ribera
358
pedagogia gadameriana: “educar é educar-se”. Ou, se preferir, uma das
ideias de Sartre que dene o homem como “ser de projeto”. Que o su-
jeito pedagógico construa o conhecimento com suas próprias palavras,
que não é outra coisa senão o conhecimento de sua própria subjetivi-
dade, se pode ler a partir de múltiplas perspectivas, mas uma delas é a
textualidade corporal que podemos escrever por meio da corporeidade
. A partir da ideia de educação como performatividade, por meio da
própria denição que fazemos de nós mesmos, nos convertemos em ver-
dadeiros arquitetos ou escultores de nossa corporeidade.
A pedagogia performativa se caracteriza por este privilégio do
corpo frente a pedagogias que propõem a ausência dos corpos, organi-
zando-os a partir de sistemas estruturais estáticos. Se na pedagogia, a
palavra tem um papel chave, na pedagogia performativa falaremos da
palavra encarnada. Unicamente devem-se recordar alguns exemplos de
pedagogias que em algum momento privilegiaram a aprendizagem, a
discussão, a formação a partir de posições de movimento. O que ocorria
na Acadêmica platônica, senão um deslocamento do mestre e de seus
discípulos no pátio central? E na obra de Montessori, o tato -para traba-
lhar a aprendizagem numérica- não era a fonte primeira de conhecimen-
to? E Deligny não nos falava dos itinerários de movimento com os quais
as crianças autistas comunicavam sua própria existência, essência ou ex-
periência? Trata-se, anal, de uma pedagogia que privilegia a inovação, a
experimentação, a crítica e a subversão, dirá Pineau. Ests pedagogia que
confere o conjunto de privilégios ao corpo deve permitir que este faça
sua entrada dentro do curriculum.
10.4. Pedagogia da narratividade CorPoral
Apontei, no capítulo dedicado à teoria do corpo, o sentido da
metáfora corporal textualizada e narrativizada. Se entendemos a peda-
gogia do corpo simbólico a partir de uma posição performativa, em que
a presença da construção do projeto pessoal (corporal) por vir dado pela
produção das palavras, (AUSTIN, 1971), surge a necessidade de falar de
uma pedagogia que contempla, como possibilidade, mas também como
processo, a narração dos próprios corpos. Iniciei este capítulo com uma
359
Corpo, cultura e educação
citação de Vilanou, que nos dizia que “si aceptamos el cuerpo de los
otros acabaremos por aceptar nuestros cuerpos”, para tomar conciência
de nossa presença e existência corporal temos que ser capazes de nos
construir, falando de forma narrativa, como sujeitos corporicados. Não
podemos existir mais além da presença que emana de nosso rosto. Le
Breton o matiza dizendo que: “el rostro es el espacio de reconocimiento;
tenemos las manos y el rostro desnudos, y ofrecemos a la mirada de los
otros el relieve de los trazos que nos identican y nos nimbran” (1999
b, p. 76). O corpo, por meio do rosto, mas também por meio de toda
nossa anatomia, agora já simbolizada, é, ao mesmo tempo, fronteira
e exposição de nossa subjetividade. Por meio do corpo entramos em
contato, mas ao mesmo tempo nos diferenciamos da comunidade. Essa
caracterização individual tem um elemento chave: aquilo que o corpo é
capaz de transmitir, de dizer, de construir por meio dos seus discursos
corporeizados.
O corpo, em uma pedagogia da narratividade, necessita ser pen-
sado a partir da experiência e não como um simples objeto. Se o corpo
é a experiência vivida pelo sujeito (encarnada), o sujeito deve ser capaz
de transmitir corporalmente episódios de seus trajetos vivenciais. É justa-
mente o que Ricoeur nos anuncia: “la comprensión de sí es narrativa de
uno extremo en el otro. Comprenderse es apropiarse de la propia vida
de uno” (1996, p. 22). Na narratividade da própria experiência se esboça
aquilo que cou inscrito na memória corporicada: o traço de experiên-
cias vividas na própria pele. É então que a proposta que anuncia García
começa a tomar forma: “comunicar implica saberse uno por el otro, es
por eso que el adolescente otorga mucha importancia a las miradas que
sobre él realizan. El cuerpo, como símbolo de sí mismo, se convierte en
mediador entre el individuo y el mundo que le envuelve” (2000, s/p).
Ao colocar-se em contato com este outro corporizado, coloca-se em fun-
cionamento o exercício da narratividade. Explicar-me minha trajetória,
com rastros de minha corporeidade, para explicar aos outros aquilo que
quero transmitir sobre mim, dizer, explicar e/ou expor.
A narratividade corporal permite, pois, que o educando se ex-
presse, e essa expressão corporal textualizada serve, entre outras funções,
Jordi Planella Ribera
360
para atuar contra a obrigatoriedade que marcam determinadas peda-
gogias de normalização corporal, disciplina anatomocorretiva e de si-
lenciamento das pulsões e desejos. Ativar o corpo, em vez de provocar
sua neutralização. A narratividade corporal é justamente o contrário da
neutralização corporal, máxima expressão pedagógica do exercício de
proibição corporal. Torna-se evidente que se em um projeto pedagógico
que busca oferecer a possibilidade aos sujeitos que construam seu proje-
to corporal, a proibição ca fora de lugar, sobretudo porque se deslocou
o eixo central da arquitetônica corporal do corpo-sujeito-docente para o
corpo-sujeito-educando. Mais além da “fabricação” Frankensteiniana dos
corpos, os sujeitos esboçam os corpos, e nesse mesmo exercício de esboço
corporal encontramos a existência da negação etimológica a que se refere
à palavra infância (incapaz de falar).
Se o axioma da comunicação que nos propõe Watzlawick anun-
cia a impossibilidade de não comunicar (não podemos não comunicar), a
criança, como sujeito incapaz de falar, deixa em absoluto a este sujeito
corporizado que fala em travas dos gestos, os olhares, os movimentos, os
deslocamentos, os odores, os silêncios e também a quietude. Porque a
pedagogia da narratividade não é outra coisa senão:
Un viaje por el cuerpo, por los huesos, atravesando tejidos, por las tem-
peraturas corporales, por posturas que nos ponen en contacto con las
rigideces, con las incomodidades y le dan tiempo en el trabajo corporal
la memoria del cuerpo actúe, para que dé lugar la imagen, a la escena
que duerme en las formas, en las concavidades y convexidades (Kessel-
man, 1989, p. 164).
A pedagogia da narratividade corporal encontra-se, em de-
nitivo, muito mais próxima da ação que possibilita que os sujeitos re-
itam sobre si mesmos (especialmente sobre suas corporeidades) do que
da transmissão de saberes exteriores (onde se expõem formas de seres
corporais predeterminadas).
361
Corpo, cultura e educação
10.5. uma Pedagogia do tato e doS SentidoS
Por meio das novas tecnologias, mas, sobretudo, por meio dos
dispositivos pedagógicos, materializa-se o desaparecimento ritualizado do
corpo, que inclui os gestos, as posturas, as distâncias nos sujeitos, os de-
sejos e sua anunciação.. Por meio de variados mecanismos se ordenam
essas maneiras de fazer, e é então que não podem ter lugar nem os sen-
tidos, em geral, nem o tato, em particular. Se cai em uma pedagogia na
qual o corpo “es el objeto de verdaderos rituales de evitación, y no puede
transparentarse como materialidad, bajo pena de suscitar la desaprobaci-
ón” (Le Breton, 1984, p. 280).
Porém, por outro lado, falar de hermenêutica e contemplar, ao
mesmo tempo, a dimensão simbólica dos corpos, leva a pensar em uma
pedagogia que privilegie e insista em que parte de sua ação se realize
por meio do tato e dos sentidos. Deve-se ter presente, se fazemos uma
análise paralela à presença do corpo nos contextos médicos, que pensar
no corpo a partir dos sentidos está separado da ideia de um “cuerpo
sobre el cual intervenimos”. Falar de pedagogia do tato implica uma po-
sição de empatia corporal com este outro, de implicação emocional. Não
se trata de uma pedagogia que marca a distância (nomeada por alguns
educadores como distância ótima) entre educador e educando, e que,
portanto, seus corpos não interagem de forma tátil. Essa relação sem
corpos é criticada por Pain, dizendo que “día a día se trama un clima de
presencia y absencia en el cual se constuye la relación, se marca el pasaje,
se encuentra el tono, se traduce en el mutismo o la mobilización del
cuerpo” (1994, p. 24).
A pedagogia do tato propõe a encenação das corporeidades dos
sujeitos, pois entende que, por meio deste conuir corporal, potenciali-
za-se o crescimento dos diferentes sujeitos participantes. É nesse sentido
que Prel dirá que “se trata de un contacto directo piel a piel. El tacto im-
plica siempre la presencia conjunta e inseparable del cuerpo, con el cual
tocamos (...) Algunos estudiantes experimentan el cuerpo a cuerpo como
una relación piel a piel” (2001, p. 54). Trata-se de compartilhar uma certa
sensorialidade com o outro, construída a partir da conança e da proximi-
dade, e desenvolvida a partir de posições corporais mediadoras.
Jordi Planella Ribera
362
Torna-se difícil, chegados a este ponto, pensar em uma peda-
gogia sem tato, em que educador e educando apaguem de sua ação coti-
diana a realidade corporal, sem que existam interações das vivências dos
sujeitos. Essa pedagogia do tato leva implícitas diferentes perspectivas
que, a partir do meu ponto de vista, concretizam-se em:
• Trabalhar, a partir de posicionamentos não pré-denidos, mas a par-
tir do encontro e da relação pedagógica;
• partir da experiência de ambas corporeidades;
• não querer apagar a corporeidade do território pedagógico;
• não pretender objetivar os processos educativos.
E se falamos de uma pedagogia do tato, temos que falar a partir
de um enfoque mais global, de uma pedagogia dos ouvidos. O tato é um
dos sentidos que se quer privilegiar, mas existe uma concepção mais am-
pla dos mesmos que permitem a Le Breton falar de mestres do sentido e
mestres da verdade (LE BRETON, 2000). A pedagogia do sentido parte
dos sentidos, potencializando-os ao máximo e tentando fazer com que
por meio deles o sujeito possa desenvolver sua potencialidade. O mes-
tre da verdade, tal como Le Breton o esboça, é um “maestro de pureza
y sometimiento, no incita a la búsqueda y fuerza la inculcación de un
sistema en el que las formas son intercambiables, ya que sólo importan
las formas que transitan por él” (2000, p. 38). Se do tato e dos sentidos
se desprendem as emoções: Que papel tem nos contextos pedagógicos?
Podem aorar as emoções nas aulas?
Muito frequentemente obtemos uma resposta negativa que
vem dada pela ação de uma pedagogia que segue privilegiando aquele
intelectual sobre aquilo que ocorre, provém, se expressa e se manifesta
por meio do corpo. Trata-se de uma pedagogia que ensina a escutar a voz
do corpo, a conhecê-lo, a senti-lo e a atuar a partir de suas necessidades.
E uma das formas de fazê-lo é despertando o sentido do tato, adormeci-
do pela ação da pedagogia excessivamente racionalista.
363
Corpo, cultura e educação
10.6. CenografiaS e territórioS: Para uma Pedagogia do
CorPo SimbóliCo
Falar de pedagogia do corpo simbólico nos leva a revisar os
territórios e as cenograas que utilizamos para colocá-la em prática. O
espaço externo onde a pedagogia congura a presença dos corpos mar-
cará a subjetividade ou as objetividades corporais. A disposição regula-
da dos corpos necessitará de uns determinados espaços que permitam
precisamente o exercício da disposição. Esse exercício se fundamenta em
determinadas “maneras de organizar corporalmente la emotividad que
concurren en un orden” (Pedraz y Brozas, 1997, p. 9). E se os espaços
marcam uma linha e uma tendência pedagógica, a este espaço corres-
ponderá uma determinada cenograa, que dará a pincelada nal à con-
cepção/possibilidade dos corpos. Porque, tal como aponta Varela, “los
controles socialmente inducidos a través de la regulación del espacio
y del tiempo, contribuyen, a interiorizar, a ritualizar y a formalizar las
conductas” (1995, p. 157).
Apenas há que se situar nos espaços pedagógicos amplamente
conhecidos, onde podemos encontrar ainda um conjunto importante
de elementos que conguram as disposições corporais que ali têm lugar.
Que papel tem a disposição assimétrica entre professores e estudantes,
situado ainda este primeiro a uma altura diferenciada, verdadeiro reduto
do panoptismo do século dezoito? Ou, o que signicam determinados
exercícios que, por meio da simples repetição, querem inculcar nos edu-
candos todo um dispositivo que faz parte de uma maneira de fazer? Ou
as “normas de conduta” que inscrevem ao sujeito no que é possível fazer
e o que está sancionado, se se faz, não pretendem moldar o corpo do
sujeito em um território muito mais delimitado e denido previamente?
Ou por que razão McClelland y al. (2002) falam do professor como um
sujeito situado sobre uma “torre de marm”?
Vistas algumas das possibilidades que a geograa dos terri-
tórios pedagógicos nos oferece, me disponho a recuperar o que este
enfoque pode contribuir ao tema da performatividade. Se conceber-
mos uma pedagogia que privilegia a hermenêutica do corpo simbólico,
é contraditório fazer uso dos dispositivos reguladores determinados
Jordi Planella Ribera
364
tecnicamente por algumas pedagogias. A performatividade requer ce-
nários diferentes, ou ao menos cenários construídos e utilizados de
forma diferente. Não é o mesmo a disposição assimétrica dos corpos
que mencionamos, que uma disposição em círculo e sem utilizar as
mesmas. Uma visão dos outros corpos por parte de todos os sujeitos
pedagógicos tem lugar nesta condição de privilégio corporal. Apesar
disso, não é suciente dispor os corpos em círculo, porque pode-se
cair no erro de ser somente outra forma de dispor geogracamente os
corpos. A concepção pedagógica pode ir muito mais além das arqui-
teturas que delimitam uns determinados espaços, para umas práticas
exclusivas concretas.
Se nos propomos partir da experiência corporal do sujei-
to, a maior parte de sua experiência (pelo menos da experiência pré-
via à chegada do sujeito ao território pedagógico) ocorre mais além
dos espaços destinados a usos concretos. O que queremos dizer com
este situar a ação pedagógica mais além destes territórios? O apon-
ta com clareza Collelldemont: “salir, ir o, incluso huir a la naturaleza,
es por lo tanto uno de los objetivos del hecho de pensar el entorno
(2002, p. 62). As experiências têm sido múltiplas, mas seguramen-
te é a Pedagogia da Bauhaus que mais nos interessa para concretizar o
tema que nos ocupa. A mencionada escola alemã propunha que fos-
sem as crianças as que denissem seus próprios espaços (Wick, 1988)
. Desenhar o próprio espaço está em consonância com a ideia de projetar
o sujeito pedagógico no centro das práticas pedagógicas.
Mas também se encontra em consonância com a pedagogia
hermenêutica a ideia dos territórios não lineares, mas curvilíneos e, por-
tanto, muito menos padronizados. Trata-se de uma possível pedagogia
dos territórios, que Gennari qualica como Wanderung. Wanderung sig-
nica viver na viagem e durante a viagem, “habitarlo por lo que es y no
por lo que conlleva (...) implica pensarm el lugar como mundo-de-vida
y no como lugar de tránsito” (Gennari, 2001, p. 57). É por meio do
descobrimento que alguém se educa, e se educa na corporeidade rela-
cionada com o território por onde percorre a viagem. O fato de que
Wanderung seja concebido dentro dos parâmetros de um espaço ree-
365
Corpo, cultura e educação
xivo pouco denido, faz com que se encaixe perfeitamente com a ideia
de uma formação aberta à experiência da subjetividade e, portanto, da
corporeidade.
E ainda uma última possibilidade para repensar a pedagogia a
partir de uma perspectiva territorializada: que sentido tem a construção de
territórios discursivos e geográcos que englobam os sujeitos pedagógicos
em categorias binárias? O exercício de desconstrução que realizei serviu
para questionar essa estrutura, que, por exemplo, nos conduz a organizar
a educação entre normal (ou normalizada) e especial, ou a dividir os grupos
dos institutos entre aqueles que funcionam ou aqueles que incomodam
. A pedagogia deve perguntar-se pelo sentido e colocar-se seriamente
um debate em torno dos espaços, as classicações, as categorizações que
organizam grupo segundo os usos, as estéticas, as formas, etc., das suas
corporeidades. Essa tendência ao controle corporal em espaços e territó-
rios é um elemento chave para Dewey, porque:
Los niños físicamente activos se hacen inquietos e impacientes; los más
tranquilos, los llamados reexivos, gastan la energía que tienen en la
tarea negativa de mantener sofocados sus instintos y tendencias activas,
en vez de la positiva del planeamiento y la ejecución constructivos; así
son educados no en la responsabilidad del uso grácil y expresivo de los
poderes corporales, sino en el deber forzado de no dejarles libre juego
(Dewey, 1995, p. 126).
Seguramente, a chave de uma pedagogia situada mais além de
territórios organizados a partir dos corpos, o que se fundamenta na or-
ganização corporal, encontra-se em superar esta disposição geográca
passando a educar o sujeito na própria expressividade dos poderes cor-
porais enunciados por Dewey.
10.7. Pedagogia e meStiçagem CorPoral
Por que incluir o termo mestiçagem, pouco utilizado nos dis-
cursos pedagógicos, em um livro que estuda a construção dos corpos
nos discursos? A resposta é simples: a ideia de corpo e a da mestiçagem se
constrói de forma simultânea desde a losoa clássica e se transmite até
Jordi Planella Ribera
366
nossos dias por meio dos imaginários sociais. A construção de um mun-
do, com as corporeidades que lhe correspondem e fundamentado em
uma ideia eurocêntrica, fez com que a presença do termo mestiçagem
(que nos remete à ideia contrária de pureza) fosse um conceito e uma
realidade especialmente temidos, os corpos ideais eram corpos separados
da mistura, dos corpos mestiços. É por essa razão que De Diego arma
com contundência que “los cuerpos de las minorías sociales, raciales o
sexuales han sido tradicionalmente colonizados en una doble dirección:
reducidos con violencia o desposeídos de su propia subjetividad en tra-
bas de la apropiación -relativa o total- por parte de las clases de poder”
(1992, p. 159). A descolonização dos corpos e a presença de discursos
inter, trans e multiculturais, apesar de haver rompido com muitos mitos
do imaginário social, seguiram ignorando o corpo como espaço reexivo
e de produção de novos discursos, entre os quais encontramos o discurso
da mestiçagem.
Laplantine se refere à mestiçagem como um paradigma em
construção (1997) que nos há de permitir repensar as congurações cor-
porais da sociedade e propor novas topograas para os corpos. O sentido
desta nova forma de entender os corpos que habitam, compartilham
espaços e se tocam fugazmente com outros corpos, estrutura-se com a
proposta de romper com as ontologias que os separam. Não é possível,
pelo menos em nosso contexto, um controle biolopolítico da natalida-
de e, portanto, da mestiçagem. Isso se traduz em que as relações entre
sujeitos de diferentes culturas, com corpos externamente diferentes, dão
lugar a novas expressividades corporais. Esta reconguração corporal é um
ponto de partida para repensar o corpo e a educação. Vilanou o expressa
da seguinte maneira:
Ya no hay -felizmente, ya no podrá existir- un único modelo corporal. El
hombre de raza blanca se ha percatado que ya no vive sólo en el mundo.
Nos encontramos abocados al contacto, al intercambio, en n, a una
nueva cultura de mestizaje en la que el cuerpo ocupa un lugar central
de forma que la corporalidad constituye la auténtica condición de
posibilidad para alcanzar un verdadero mundo intercultural (Vilanou,
2002b, p. 373).
367
Corpo, cultura e educação
A mestiçagem corporal, lida como um novo paradigma, como
práxis cotidiana ou como discurso pedagógico, serve para desconstruir
as fronteiras que separam os corpos denominados autóctones daqueles
que se designam como estrangeiros. A hibridação entre aquele que era
denido como corpo autóctone e aquele que era denido como corpo
estrangeiro gera novas hermenêuticas e novas texturas sociais. Porém, o
ponto realmente importante dessa ideia é o rompimento das fronteiras
que conduzem as experiências relacionais para além de posturas colo-
niais, nas quais os corpos podem ser lidos a partir da ótica de coloniza-
dos e colonizadores.
A mestiçagem pode ser entendida a título de identidade nar-
rativa fronteiriça, se retomamos a proposta de McLaren (1997). Para
esse autor, trata-se de “renombrar y reconstruir la realidad, en lugar de
abordar la realidad mediante la producción de una subjetividad nega-
tiva” (1997, p .132). A fronteira questiona o centro dos discursos e das
práxis, desestabiliza, ainda que também corra o perigo de criar novas
separações. De fato, não se trata só de um tema estritamente carnal (da
cor da pele, das distâncias, dos odores, etc.), mas da vivência do corpo,
da corporeidade. Porque as possibilidades descritas no capítulo anterior
nos conduzem a essa reexão, de pensar pedagogicamente os corpos que
até agora não tinham formas, cores, texturas, odores, de forma normati-
va e pensada a partir de um modelo eurocêntrico. É nesse sentido que a
pedagogia tem que poder incluir a descolonização dos corpos, que na re-
exão teórica a partir da ideia de mestiçagem pode permitir desestabili-
zar as construções binárias (corpos autóctones/corpos estrangeiros) para
repensar novas formas de convivência corporizada. Trata-se de descons-
truir a ideia de corpos exóticos (que nos atraem só quando realizamos a
viagem), que em nosso retorno à cotidianidade também construímos
como corpos perigosos, para conceitualizá-los simplesmente como corpos.
É nesse contexto que tem sentido uma pedagogia que trabalha para a
aceitação dos outros corpos: corpos que nos possam permitir, com mais
facilidade, poder aceitar nosso próprio corpo.
Jordi Planella Ribera
368
10.8. Pedagogia do CorPo oPrimido
Freire arma com veemência, ao início de Pedagogía del oprimido,
que: “la Pedagogía del Oprimido, es aquella que debe ser elaborada con
él y no para él, en tanto hombres o pueblos en la lucha permanente de la
recuperación de su humanidad” (1995, p. 40). A pedagogia do oprimido
faz referência à imposição das políticas nos corpos dos sujeitos que buscam
sua submissão ou docilização. A leitura dos corpos oprimidos pode-se rea-
lizar num sentido amplo, e podemos dar lugar aos corpos dos imigrantes,
dos enfermos mentais, das pessoas com deciência, das mulheres vítimas de
violência doméstica, dos transexuais obrigados a se prostituir, dos menores
sem documentos ou não acompanhados que habitam as cidades europeias,
da gente com problemas de autonomia, dos jovens infectados com HIV, etc.
São casos extremos de opressão corporal, mas entre estes corpos e os corpos
exemplares, pelos meios de comunicação, e às vezes instigados a partir de de-
terminadas pedagogias, há muitos outros que, apesar das aparências, possam
dissimular ou enganar, encontram-se igualmente em situação de opressão.
É assim que a pedagogia deve poder abrir-se a todos aqueles
corpos que têm sintomas de opressão, seja porque tenham sido sujeitos
hipercorporeizados, seja porque tenham sido sujeitos descorporeizados.
McLaren insiste nessa ideia:
Dicha praxis pedagógica rechaza la sujeción clasista del cuerpo proletario
mediante su estetización estéril por parte de las categorías burguesas de
la carne. También rechaza la imposición del patriarcado sobe el cuerpo
femenino y la intextuación de las ideologías masculinas. Debemos propor-
cionar a los marginados y a los que se han visto conducidos a la miseria el
poder necesario en la línea de sus deseos (McLaren, 1997, p. 104).
Seguramente, encontra-se no desejo uma das chaves da pedago-
gia que pode possibilitar o exercício da subjetivação corporal e permitir
deixar para trás as práticas que coisicam os sujeitos. O desejo é inerente
à subjetividade, no sentido de que o homem pode ser entendido como
um corpo que deseja de forma intencional. A negação do desejo (a partir
de sua dimensão corporeizada) leva o sujeito aos territórios da coisica-
ção; só devolvendo ao sujeito a possibilidade de viver na própria carne o
desejo se pode passar da condição de coisicação à de corporeização.
369
Corpo, cultura e educação
Tal como sugerem Escolano e Hernández: “la educación está de-
terminada por la fuerza de los deseos y las esperanzas que los hombres y las
sociedades maniestan para prolongar esta cultura que siempre concluye
siendo una bildung compartida (2002, p. 13). Mas tal como vimos no pará-
grafo, estes desejos que marcam o fazer dos homens podem car rompidos.
As possibilidades de lutar contra a coisicação são muitas, mas quero cen-
trar-me na pedagogia da resistência corporal. Resistir é, simbolicamente, mas
também nas práxis corporais, colocar o corpo adiante, com força, para não
ser engolido pelas forças que nos oprimem. Se entendermos o corpo como
um simples produto (discursivo, político, ideológico ou pedagógico), em
vez de entendê-lo como espaço de luta e conito, será muito difícil pensar
em uma pedagogia da resistência. No entanto, se somos capazes de ver nas
corporeidades dos sujeitos a capacidade de atuar frente a situações consti-
tutivas de coisicação, então terá sentido pensar na possibilidade de uma
pedagogia que forme os sujeitos na autoconciência corporal.
Porém, a que, a quem e como têm que resistir estes corpos for-
mados em sua autoconciência? São muitas as respostas que se podem dar
a uma pergunta como a que nos formulamos, embora pense que o que
é importante é resistir à imposição, sobretudo, do que ao longo do livro
construído criticamente e designado como corpos ortodoxos. Os corpos
ortodoxos são corpos que vêm dados, que são constituídos pelos outros,
que situam os sujeitos em espaços onde o desejo se encontra aplacado;
espaços onde o corpo já tenha voltado a perder a possibilidade de desen-
volver sua narratividade. Trata-se, denitivamente, de resistir ao exercício
da biopolítica, que entende os corpos dos sujeitos como espaços de gover-
nabilidade, de inscrição do poder, de materialização dos desejos dos outros.
E resistir passa por aprender a habitar o corpo e faze-lo de for-
ma consciente e ativa, por meio da própria narração, como se tratada
de uma tecnologia do eu corporal. Uma tecnologia que há de permitir ao
sujeito atuar sobre ele mesmo para constituir-se assim em sujeito corpo-
rizado; um exercício que Foucault já deniu como “crearnos a nosotros
mismos como una obra de arte
14
e que De Diego também descrevia:
no hay cuerpo sin lenguaje, y al explicar la causa de esas cicatrices se
obligaba a la mirada del espectador a enfrentarse con otro cuerpo dife-
Jordi Planella Ribera
370
rente de aquellos que conforman el cuerpo social sin cuerpo que oculta
y reduce sus cuerpos del deleito” (1992, p. 158).
10.9. Pedagogia e ProJeto de ideação CorPoral
Compartilho com Sartre a ideia de que “el hombre es un ser
de proyecto” e que, portanto, podemos interpretá-lo e compreendê-lo a
partir de sua condição projetiva e ou performativa. O termo projeto pro-
vém do latim projicere, e indica a ação de lançar adiante. Também para
Dortier o projeto tem um signicado claro de predição e de precisão,
pois o entende como “un mapa del futuro; un proyecto se diferencia
claramente de una vaga esperanza o de una simple aspiración” (1994,
p. 23). A partir de uma dupla perspectiva o projeto é o que possibilita
que o sujeito esteja, mas ao mesmo tempo, sem sujeito não há proje-
to possível. O sujeito é o produtor da ação intencionada que tem que
conduzi-lo à consecução de seus objetivos (marcados, desejados, mas,
sobretudo, projetados). Nesta leitura do corpo a partir do projeto corpo-
ral, é especialmente signicativo o esquema que propõe Ladsous (1998),
baseando-se na ideia socrática de projeção pessoal:
Triângulo grego de projeção pessoal
Cabeça
Ideia
Antecipação
Coração
Desejo
Mobilização
Estratégia do
projeto
Ventre
Encarnação
Nova Ação
[Ladsous, 1998]
371
Corpo, cultura e educação
É evidente, à luz dessa proposta, o papel do corpo na projeção
da subjetividade. A triangulação desses três elementos, e só sua triangu-
lação, tornarão possível o desenvolvimento da estratégia projetiva que
faz com que, enquanto haja vida, não possa existir um estancamento do
sujeito. O movimento de projeção segue a sequência de antecipar-se, de
mobilizar-se e de voltar a mobilizar-se para alcançar este ou outro dese-
jo/objetivo. Portanto, a ideia de projetar nossos desejos na construção
corporal (em nossa ideação dos desejos corporeizados) se converte em
um dos elementos centrais de nosso projeto de subjetivação.
10.9.1. o CorPo no ProJeto de ideação PeSSoal
O projeto de ideação parte da expressão ideal de formação, que
para Vilanou “además de evolucionar a través de la historia, se elabora de
manera particular e individual: en último término, cada hombre debe con-
gurar -tanto interiormente como exteriormente- su propio ideal” (1997, p.
15). É precisamente nesta conguração particular e individual que entende-
mos que deve situar-se a proposta da ideação corporal. Falar de pedagogia do
corpo tem sentido na medida em que esta faça parte do projeto pessoal do
sujeito, e não unicamente dos projetos institucionais e políticos que pensam
previamente que tipos de corpos querem e desejam
1
. Mas ainda que eu insis-
ta nesta necessidade de colocar o corpo no projeto pessoal, existem aspectos
dessa proposta que devem ser revisados com mais detalhe.
Se até agora a pedagogia tem atuado de forma silenciadora,
situando o corpo para além de seus cenários e de suas geograas, por
meio da ideação corporal abre-se caminho ao ato para dar a palavra aos
corpos, e a uma nova possibilidade de habitá-los. É nesse sentido que o
mesmo Foucault anunciava que “debemos crearnos a nosotros mismos
como una obra de arte” (1984, p. 34), porque a partir dessa perspectiva
podemos desenhar aquilo que corporalmente queremos ser, podemos
dar a forma que desejamos.
Tal como nos propõe Touraine: “el Sujeto ya no se forma, como en el modelo clásico, asumiendo unos
papeles sociales, conquistando unos derechos y unos medios de participación; se construye imponiendo a la
sociedad instrumentalizada, mercantil y técnica, unos principios de organización y unos límites conformes
con su deseo de libertad y su voluntad de crear unas formas de vida social favorables a la armación de uno
mismo y en el reconocimiento del Otro como Sujeto” (1997, p .116).
Jordi Planella Ribera
372
Nesse marco de reexão também tem lugar o pensamento que
marcou boa parte da obra de Merleau-Ponty: No tengo un cuerpo, sino
que soy mi cuerpo (1945), armará. Esse giro de uma concepção possessi-
va do corpo permite entendê-lo de outra forma e situá-lo na categoria de
corpo subjetivado, isto é, de corporeidade. Por meio da palavra inicia-se
um processo de autoconstrução (de projeção) da identidade corporal que
leva o sujeito para além da colonização pedagógica de sua ideação corpo-
ral. E é por isso que Freinet se dedica a deixar claro que “el niño, como
el árbol, se construye desde el interior, según procesos que le son espe-
cícos” (1972, p. 27). É assim que se entende a projeção dos ideais em
relação à própria corporeidade, mais que como submissão às formas e
vivências corporais que podem vir dadas exteriormente. Não se trata de
impor a ele nossos projetos de educandos, mas de facilitar-lhe espaços,
atividades, relações, etc. que lhe permitam expressar (de forma textuali-
zada) seus pensamentos, desejos, necessidades, e de poder concretizá-los
na vivência corporal. Esse ponto de partida é mais importante do que
aparentemente pode parecer, porque tal como anuncia Gayet:
Toda persona con un mínimo de conocimiento de la clase sabe bien que
el proyecto del educador no es el proyecto del educando, porqué uno ya
posee el conocimiento, mientras que el otro está destinado a todavía no
poseerlo. (Gayet, 1995, p. 19).
A pedagogia não deve mutilar a criança de sua corporeidade,
mas conectá-la totalmente com ela
2
. Se alguns autores falam de mutila-
ção, outros qualicam essa ação de fabricação:
Fabricar un hombre es una tarea insensata, lo sabemos muy bien. Y, sin
embargo, es también tarea cotidiana, la de cada vez que nos propone-
mos construir un sujeto sumando conocimientos o hacer un alumno api-
lado de saberes. Fabricar un hombre es una cosa rara que nos inquieta
lo suciente como para que la novela de Mary Shelley tenga el éxito que
tiene(Meirieu, 1998, pp. 17-18).
Novamente a reexão de Freinet me serve para ilustrar esta particular perspectiva: “la escuela había cortado
los niños de sus raíces. Había niños bien armados, más bien armados para la adaptación o la defensa, que se
acostumbraban a las raíces adyacentes que se les proveía articialmente, y que crecían y hacían fruto. Para la
mayor parte de los niños aquella operación mutiladora era catastróca. Para a ellos la educación no era una
continuación viviente, sino un apretujón que los afectaba hasta lo más profundo” (1972, p. 33).
373
Corpo, cultura e educação
A mesma ideia da educação como fabricação refere-se a ações
longe da autonomia do sujeito da ideação pessoal do educando como
elemento central da instrução. Apesar de ser certo que, na produção da
identidade, não é suciente a ação que alguém desenvolve, mas necessita
a presença daqueles que o nomeiam e que o designam. Isso não implica
que, necessariamente, a posição do sujeito pedagógico seja a de alguém
separado de seu próprio projeto. A resposta encontramos no próprio
Meirieu: “la pedagogía (...) ha de trabajar sin cesar sobre las condiciones
de desarrollo de las personas y, al mismo tiempo, tiene que limitar su
propio poder para dejar que el otro ocupe su puesto” (1998, p. 140).
Se a pedagogia é capaz de deslocar-se e de dar lugar a este outro que é o
educando, falar de ideação corporal implicará passar dos enunciados às
possibilidade práticas.
A título de exercício de autodeterminação corporal, “cada actor
está invitado a producir su propia indetidad a través del bricolaje por la
mundialización cultural, es decir, la transformación en signos, es estética
» (Le Breton, 2002, p. 16). O corpo, tal como apontei em outros capí-
tulos do livro, pode ser lido a partir de sua condição de matéria-prima
que deve ser modelada, não pelo contexto (ou pelo menos não só pelo
contexto), mas pelo sujeito que o encarna. É assim que podemos en-
tender o educando como produtor de sua identidade corporizada, mais
além das imposições, das fronteiras, dos imaginários e das deformações.
O educando passa a incorporar o corpo na realização consigo mesmo,
e este si mesmo toma a categoria de si mesmo corporizado. Porque, tal
como aponta Roura-Parella,” los ideales no son sueños ni fantasmas que
van y vienen en nuestra vida. Los ideales auténticos son una fuerza pro-
pulsiva y directiva que mueve a la persona empírica y que ella hace lo
que es “(1939, p. 21).
10.9.2. Pedagogia da ComPreenSão CorPoral
Na presença do corpo na pedagogia, é necessário diferenciar
a compreensão da simples transmissão de informações. A transmissão de
informações situa o sujeito como elemento receptor passivo, enquanto
que falar de compreensão o localiza no centro da ação e o faz de forma
Jordi Planella Ribera
374
plenamente ativa. De uma posição externa passa-se a uma posição in-
terna, na qual o sujeito tem que poder buscar em sua própria vivência
as raízes de sua corporeidade. Compartilho com Alemán que “el punto
de partida para esta autocomprensión lo ofrece el convencimiento de
que lo auténticamente importante es vivir lo que es real y que el cuerpo
tiene como propiedad justamente el riesgo inmediato de una realidad
que es vivida signicativamente por nuestro organismo de forma global
(1996, p. 109). Este viver de forma signicativa nosso corpo converte-se
na chave pedagógica que estamos buscando. Uma chave que possibilita
desenvolver o desejo do sujeito de ser ator, um ator corporizado.
Porém, é possível essa vivência de forma individual? Quando
falei da pedagogia do tato, fazia referência à necessidade das relações
entre sujeitos. Compreender o próprio corpo requer conhecimento e
experiência vivida sujeito a sujeito, porque para compreender os ou-
tros, tenho de compreender a mim mesmo, mas, ao mesmo tempo, para
compreender a mim mesmo, tenho de compreender os outros. Com-
preender o corpo do outro passa por conhecer a vivência, os rituais, os
limites e fronteiras, as particulares sensações corporais, etc. Trata-se de
ativar o reconhecimento do outro como sujeito e não como a alteridade
descorporeizada (e, portanto, negativizada).
A compreensão do corpo encontra-se ligada à essência da reali-
zação pessoal, já que “pertenece a la esencia del hombre tener un mun-
do, su mundo, que selecciona del medio externo común a todos” (Rou-
re-Parella, 1939, p. 21). Porém, este mundo tem que ser contrastado,
posto de lado com outros homens, situado, verbalizado e textualizado.
Essa possibilidade de autointerpretar-se passa por um processo de com-
preensão do mundo, que é primariamente corporal e que permite ao
homem situar-se em relação com os outros. O colocá-lo de lado não
implica que a compreensão do próprio projeto se dilua a favor da com-
preensão dos outros projetos. O processo tem que ser autorreferente, no
sentido de que compreender aos outros me há de permitir compreen-
der a mim, e compreender-me a mim me há de permitir compreender
aos outros. Esse processo autorreferente é retomado por Roura-Parella
(1939) quando cita os versos de Goethe em Tasso, ato II, cena 3ª:
375
Corpo, cultura e educação
El hombre se conoce sólo en otros hombres;
Sólo la vida a cada uno muestra lo que él es.
Mas para que a vida mostre ao homem o que ele realmente é,
é necessário que siga esse processo de autocompreensão que, por outro
lado, nunca naliza, pelo menos enquanto a vida segue. No mesmo ca-
minhar na construção/compreensão/viver nossa corporeidade, encon-
tramos o processo de compreendê-la. Formar-nos não é nada mais que
tentar nos compreender, compreender-nos em relação com o mundo
e em nós mesmos
3
. E viver de forma corporizada é, denitivamente,
compreender nossa vida, uma vida a que demos forma por meio da sim-
bolização de nosso corpo. Compreender é passar daquele puramente
físico (anatômico, biológico ou siológico) àquele simbólico (subjetiva-
do, textualizado ou personalizado), colocando em jogo as coordenadas
do tempo, da linguagem e da estética com a intenção de descobrir seus
próprios horizontes, que o guiarão no processo de investigação pessoal.
Todos esses elementos permitem fazer compreender ao sujeito
que es singular, que es único y quem como tal debe saber interpretar
el contexto en el cual vive, coinsu historia y tradición, para poder rea-
lizarse” (Pagano, 2001, p. 48). Sua singularidade o levará à necessidade
de elaborar seu projeto, de idear sua subjetividade e esta terá um ponto
central na corporeidade.
10.9.3. Pedagogia da autonomia CorPoral
Freire inicia seu livro Pedagogia da autonomia com a armação
que “formar es mucho más que simplemente adiestrar al educando en el
desempeño de destrezas” (1998, p. 16). O adestramento, entendido no
sentido de instruir para o manejo preciso de determinadas práticas ou
saberes, conduz o educando ao território da passividade. Não se preten-
de criar no outro a condição de sujeito autônomo, mas de situá-lo na
3
Tal como nos convida a pensar Roura-Parella “formación puede signicar proceso y estado, camino y meta,
hacerse y estar hecho, acción de formar y forma. En realidad el hombre no está nunca formado sino que el
proceso de formación dura toda la vida. La muerte le sorprende siempre haciéndose a sí mismo, cortando,
por decirlo así, la trayectoria asintónica en su propia forma personal” (1950, p. 141).
Jordi Planella Ribera
376
condição de receptor daquilo que é verdadeiro, que o outro já o tenha
comprovado e que será útil para o sujeito que se educa. Porém, onde
ca o território da experimentação, do descobrimento, tão necessário para
descobrir-nos e construir-nos como sujeitos autônomos? Se o educador
continua se posicionando em um território onde a palavra autonomia
apenas forma parte de seu domínio, não tem sentido a experimentação
nem o descobrimento.
“Ser obra de sí mismo”, se retomamos a fórmula que nos pro-
punha Pestalozzi (1994), nos conduz a uma pedagogia da autonomia
que há de permitir ao sujeito construir-se corporalmente no mundo.
Ser obra de si mesmo rompe com as ambições de muitas pedagogias que
buscam dominar por completo o processo de criação, fabricação, consti-
tuição ou construção das corporeidades dos sujeitos. É nessa perspectiva
que se pede ao educador, não a transferência, mas a criação de contextos
e de possibilidades que permitam ao outro crescer, buscar, provar, equi-
vocar-se, voltar a cair e voltar a começar. A autonomia do outro pede
que o educando se interrogue sobre sua própria função, seu papel e a
forma como gerencia sua corporeidade em relação com os outros corpos.
Se em outros itens deste capítulo z referência aos desejos do
sujeito, falar de sua autonomia signica possibilitar que o sujeito desen-
volva, os contextualize, os anuncie e os realize. Projetar autonomamente
a corporeidade não se trata de outra coisa, senão soltar a imaginação em
relação aos próprios desejos. Ora, se o que busca a pedagogia é mascarar,
por meio dos dispositivos reguladores, os corpos dos educandos, não
podemos esperar sujeitos com corpos próprios, mas sujeitos subjugados
nos modelos corporais fechados.
Torna-se evidente que, na pedagogia hermenêutica, onde o su-
jeito tinha passado a ser o centro da ação pedagógica, a autonomia na
criação de sua corporeidade será também um dos elementos centrais.
Essa pedagogia da autonomia deve ser facilitadora de uma “adecuada re-
lación con nuestro cuerpo, expresado por un acercamiento a él, a través
de una claricación de un espacio vital, que nos separe de una identi-
cación problemática (...) que nos permita dotarlo de un auténtico senti-
do para nosotros” (Marroquín, 1990, p. 151). Nesta relação com nossa
377
Corpo, cultura e educação
corporeidade que o corpo se converte em lugar de existência, espaço
de possibilidade da relação com si mesmo, de projeção e de ideação da
subjetividade. É em meio a isso que insistimos na necessidade de que o
educando tome a atitude ativa e busque o caminho da autonomia.
10.10. Pedagogia da CorPoreidade
A partir das diferentes perspectivas que ofereci neste capítulo se
constrói a pedagogia do corpo simbólico ou a pedagogia da corporeidade.
Entendo que as diferentes perspectivas podem ser desfeitas ou dissemi-
nadas se não ofereço uma visão estruturada do conjunto de fundamen-
tos e princípios teóricos que conguram minha proposta global de uma
pedagogia da corporeidade.
Essa pedagogia propõe um modelo corporal que quer supe-
rar perspectivas históricas, em parte, ainda vigentes, que categorizam o
corpo a partir de uma ótica negativa. Mais além das hermenêuticas que
entendem os corpos como elementos a dissolver, controlar, eliminar ou
subjugar, nos situamos em uma leitura do corpo como espaço de pos-
sibilidade para a inscrição do sujeito. Ainda que rejeite a negatividade
corporal, tampouco quero posicionar-me na perspectiva do dualismo
pós-moderno que busca uma descorporização dos sujeitos em prol de
sua virtualização. Buscamos uma pedagogia situada no que Touraine de-
ne como a Escola do Sujeito, onde o corpo não é um corpo que temos,
mas que o corpo somos nós mesmos. Anal, proponho uma pedagogia
que busca romper com as estruturas binárias e com a construção de um
modelo dualista no qual o homem é concebido como corpo e alma. A
pedagogia da corporeidade se encontra marcada no ciclo de positividade
corporal, em vez de fazê-lo no ciclo de negatividade. O corpo não é
aquele inimigo que nos priva de alcançar o conhecimento, mas que po-
demos alcançar o conhecimento por meio de e a partir de nossa vivência
da corporeidade.
A hermenêutica possibilita a constituição de uma pedagogia
com modelos curriculares abertos, a ressituação do sujeito no centro da
ação educativa e permite que o educando se eduque a si mesmo. Neste
Jordi Planella Ribera
378
educar-se a si mesmo se encontra implícita a projeção da própria ideia que
o sujeito tem de seu corpo, de sua vivência corporal, dos usos e texturas
que lhe dará. A educação não fabrica corpos a la carte, mas o que possi-
bilita é e educar a consciência corporal -o Leib, a corporeidade- partindo
da ideia de que os educadores não podem pensar nem decidir como os
outros têm que viver e experimentar seus corpos. Se entendemos o sujei-
to como aquele que tem capacidade para negar determinadas ações/de-
mandas/propostas e para armar outros, o entenderemos também como
aquele que tem capacidade para negar determinados modelos corporais
(ou atitudes e pensamentos sobre o corpo) e armar outros. É nessa ação
de armar e negar que o sujeito desenvolve suas potencialidades e dá
forma a sua corporeidade.
Situei a pedagogia da corporeidade ao longo da pós-moderni-
dade e a partir da teoria da performatividade, enfocada a partir de uma
particular visão, mais além das possibilidades que negue os ideais da
Bildung
4
. Por meio da aprendizagem que permite criar e fazer coisas com
palavras, e, depois de superar-se o chamamento a manter silêncio que fez
Wittgenstein, é possível pronunciar-se, criar linguagem, simbolizar, tex-
tualizar e armar-se de forma corporizada. Chamar e designar consiste
em chamar-se e designar-se agora já no plano da corporeidade. A per-
formatividade, como decisão voluntária e arbitrária, abre o caminho aos
sujeitos para pensar seus corpos a partir da dimensão corpográca (Isido-
ri, 2002, p. 18). Ter a capacidade de construir nossa própria realidade a
partir de sua expressão nos situa na condição de artistas que produzem
sua própria obra de arte, sua performance corporal. Performar o corpo já
é uma forma de narrá-lo, de escrevê-lo para dizer e comunicar sua par-
ticularidade, sua idiossincrasia que o torna único e diferente, desunifor-
mizado. O que é narrá-lo, senão passá-lo de sua condição de objeto à de
sujeito? Os corpos dizem, e os sujeitos escrevem sobre suas experiências
corporais, pois segue sendo por meio do corpo que experimentamos as
sensações e captamos o mundo que nos rodeia. O conito se dá quando
alguns corpos narram suas particularidades com escrituras pouco orto-
doxas, e as escrituras se traduzem em inscrições, marcas e objetos que
Tal como aventura Vilanou: “la posmodernidad puede ser una excelente oportunidad para proyectar nuevas
conguraciones, ya que se presenta como un laboratorio antropológico con vista en el siglo XXI” 1997, p. 7).
379
Corpo, cultura e educação
têm, ao mesmo tempo, a função de resistir aos processos e rituais que
buscam apagar qualquer traço de corporeidade nestes sujeitos.
Mas a pedagogia da corporeidade deve realizar-se tendo em
conta que o outro se pode construir corporalmente. Sem colocar em
jogo os elementos corporais, não há pedagogia do corpo, e uma forma
de fazê-lo é a partir dos sentidos. Uma pedagogia construída, por exem-
plo, a partir do tato, privilegiará a dimensão corporal do sujeito (ou pelo
não, a relegará a uma categoria discursiva que deve ser objeto de inter-
venção e encarceramento) com a nalidade de que o outro cresça por
meio dos outros corpos. Com o tato se descontroem os imaginários que
fantasiam com corpos perigosos ou com o perigo que pode representar
manter uma relação tátil com os corpos. Assim, da relação privilegiada
que se constrói com as crianças durante seus primeiros anos, passamos a
uma relação da palavra dita, mas não da palavra corporizada.
Nesse modelo pedagógico também -como salientei nesse mes-
mo capítulo- é necessário pensar e realocar os espaços, os territórios e as
encenações. Posto que o objetivo não é fabricar corpos que quem em
silêncio, mas possibilitar que os corpos digam por meio da palavra, que
sentido tem mantê-los formados (e, ao mesmo tempo, uniformizados),
quietos, seguindo esmeradamente a moral dos gestos que os educadores
pensamos e desenhamos? O espaço, senão aberto, livre, construído de
forma conjunta e ainda voltado a pensar quando não responde à inten-
cionalidade que as relações corporizadas querem dar-lhe. As encenações,
formadas a partir da esteticidade que a mesma pedagogia hermenêutica
sugere, para que o sujeito possa buscar a beleza interior com a qual po-
derá projetar seus próprios desejos.
E se os territórios podem ser repensados, redesenhados e elimi-
nados se necessário, o colapso de muitas das fronteiras que criavam rea-
lidades binárias pediu à pedagogia que revisasse a localização dos espaços
dos outros corpos. Outros que, por meio de muitas formas (uma delas é
a produção de modelos mestiços) se fazem sentir de maneira diferente. A
pedagogia, frequentemente construída a partir de ideologias eurocêntri-
cas, brancas, masculinas e normalizadas, agora tem que ir incorporando
outros discursos, mas ao mesmo tempo desconstruindo aqueles que já
Jordi Planella Ribera
380
haviam sido estabilizados. Necessariamente é preciso trabalhar com o
conceito e a práxis da resistência corporal. É preciso poder responder a
uma questão tão chave no século XXI como: Qual é o papel da pedago-
gia em relação aos corpos oprimidos, aos corpos hipercorporizados, nos
corpos coisicados, aos corpos humilhados, maltratados, deixados ou
negados? Podemos começar a levantar respostas a partir de ideias como a
motivação e o ensino de práticas de resistência, já anunciadas por Locke,
Hobbes e Rousseau, e seguir pensando a pedagogia da corporeidade no
marco dos Direitos Humanos. É evidente que a palavra resistência é a
palavra temida por aquela pedagogia que quer inscrever nos corpos dos
educandos sua textualidade normativizada para produzir assim corpos
normalizados. É com esta prática de resistência por meio do corpo por
parte de alguns sujeitos, que os corpos se convertem em espaços de con-
ito, de luta e, nalmente, de crescimento.
Todos os elementos da pedagogia da corporeidade projetam-
-se na capacidade do sujeito de idealizar sua corporeidade. Não são os
outros, sobretudo os educadores, os que desenham projetos curriculares
onde guram os elementos dos corpos dos educandos. São os educandos
que desenham, por meio dos desejos e das vivências, aquilo que querem
ser, e como querem concretizar suas corporeidades. O educando não é
um objeto que se deve fabricar por meio de um complexo mecanismo
de projeções antecipativas, mas é a projeção dele mesmo por meio da
compreensão contextualizada e continuada de sua própria experiência
que tornará possível a concretização da pedagogia que possibilita a exis-
tência de sujeitos corporeizados. Compreender o mundo me permite
compreender-me e compreender as corporeidades me permite ver-me e
entender-me como um sujeito corporeizado.
CaPítulo 11
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(Footnotes)
1
O tenho trabalhado com maiores detalhes no capítulo sobre a Construção social do
cuerpo, quando faço referência aos corpos freak. Também será objeto de reexão no
ítem 8.3. do capítulo 8 ao falar do corpo na pedagogia queer.
2
Para Revel, a norma em Foucault trata de “l’apparition d’un bio-pouvoir, c’est-à-
dire d’un pouvoir sur la vie, et des formes de gouvernementalité qui y sont liées
(2002:45). Nesse sentido é clara a inuência que Foucault y sus seguidores recebem
de George Canguilhen e de seu livro Le normal et le pathologique.
3
Gore se refere ao trabalho de Tyler (1993) “Making better children”, dins D.
Meredyth y D. Tyler (eds.) Child and citizen: Genealogies of schooling and subtectiviy.
Brisbane: Gith University-Institute of cultural and Policy Studies.
4
Cito a Skliar: ”la imagen de las exclusiones se la naturalizado tanto que sólo sería
un juego de la retórica dudar de su materialidad, de su concretad. De hecho hay
exclusiones concretas, del mismo modo que hay excluidos de carne y hueso, con
nombres y apellidos, con edades, géneros, sexualidades, razas, etnias, religiones,
cuerpos polimorfos, clases sociales, generaciones, etc.” (2002:62).
5
Gore pone el ejemplo seguiente como práctica reguladora: “Madeleine, es la cuarta
vez que cometes una falta”, Madeleine se disculpa y le pregunta a la profesora: “¿Se
ha dado cuenta?” (...) Madeleine recoge sus cosas y abandona el aula, diciendo: “¡Y
no voy a volver!” (Gore, 2000:241).
Catalogação
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CRB 8/7867
Capa e diagramação
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Produção gráca
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Assessoria Técnica
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CRB (CRB8/4073)
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Ocina Universitária
Laboratório Editorial
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2017
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