Os Desafios da
Política Externa e Segurança
no século XXI
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
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Ficha catalográca
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Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2018, Faculdade de Filosoa e Ciências
Processo CAPES - PAEP 141047/2017-0
D441 Os desaos da política externa e segurança no século XXI / Sérgio Luiz Cruz
Aguilar, Isabela Zorat Alonso (organizadores). – Marília : Ocina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2018.
464 p. : il.
Textos em português, textos em inglês e textos em espanhol.
Inclui bibliograa
Apoio: CAPES
ISBN 978-85-7983-967-2 (impresso)
ISBN 978-85-7983-968-9 (digital)
1. Relações internacionais – Séc. XXI. 2. Segurança internacional. 3.
Assistência humanitária. 4. Brasil - Segurança nacional. 5. Diplomacia. I. Aguilar,
Sérgio Luiz Cruz. II. Alonso, Isabela Zorat.
CDD 327
DOI https://doi.org/10.36311/2020.978-85-7983-968-9
S
Apresentação
Sérgio L. C. Aguilar, Isabela Zorat Alonso ----------------------------------- 9
Desafios Dos Processos De Paz e
Questões Humanitárias
Desafíos de los Procesos de Construcción de Paz: el Caso
Colombiano
Vicente Torrijos Rivera, Juan Martín Londoño Zuluaga -------------------- 17
O Que os Olhos Não Veem: Assistência Humanitária em
Conitos Armados
Susana de Deus, Renata Reis -------------------------------------------------- 47
Painel Independente de Alto Nível Sobre as Operações de
Paz (PIANOP)
Floriano Peixoto Vieira Neto -------------------------------------------------- 61
Making Sense of the Social Grammar and Local Subjectivities
in Peacebuilding Ethnography
Roberta Holanda Maschietto -------------------------------------------------- 79
6
Tensões entre o Relativismo Cultural e a Universalidade dos Direitos
Humanos das Mulheres
ayná Gava Borges ----------------------------------------------------------- 107
forças armaDas
Forças Armadas, Militares da Reserva, Anticomunismo e a Comissão
Nacional da Verdade – Memórias em Disputa
Eduardo Heleno de Jesus Santos ---------------------------------------------- 127
O legado da Comissão Nacional da Verdade: Considerações sobre a
Implementação de suas Recomendações
Vivien Fialho da Silva Ishaq -------------------------------------------------- 149
Exército Brasileiro e o Setor de Segurança: uma Atualização da
Doutrina de Segurança Nacional
aiane Caldas Mendonça, Frederico Carlos de Sá Costa ------------------ 167
Reforma do Setor de Segurança: a Construção de uma Agenda
Latino-Americana
Ana Maura Tomesani ---------------------------------------------------------- 191
Desafios Dos Processos De integração regional
O Mercosul: Histórico, Atores Não Institucionais, Décit Democrático
e Autonomia Energética
Augusto Zanetti ---------------------------------------------------------------- 223
América Latina e América do Sul: que Regionalismo?
Miriam Gomes Saraiva -------------------------------------------------------- 247
7
A Experiência dos Processos de Integração na África: Problemas e
Perspectivas
Mamadou Alpha Diallo ------------------------------------------------------- 269
Brexit as the Salvation of the European Union? Views from a
Complexity Perspective
Kai Enno Lehmann ------------------------------------------------------------ 295
DiPlomacia e relações internacionais
Formação do Diplomata Contemporâneo
José Estanislau do Amaral Souza Neto --------------------------------------- 317
Do Virtual ao Material: Tendências da Ciberização das Relações
Internacionais
Friedrich Maier ---------------------------------------------------------------- 331
governança e imigrações
Fluxos de Práticas de Governo em Escala Global: Sobre Tecnologias
de Desenvolvimento e Alguns de seus Efeitos
Kelly Silva ----------------------------------------------------------------------- 351
Acesso à Saúde e Educação Pública dos Imigrantes na Cidade de
São Paulo
Ana Cristina Braga Martes, eo Lovizio de Araujo ----------------------- 387
Desenvolvimento
Desindustrialização, Reprimarização e Dependência: o Aprofundamento
das Relações Brasil x China no Atual Quadro da Economia-Mundo
Hermes Moreira Jr. ------------------------------------------------------------- 415
Indústria Extrativa, Conitualidade e os Paradoxos do Modelo de
Desenvolvimento Moçambicano
Isabella Alves Lamas ----------------------------------------------------------- 433
Sobre os Autores --------------------------------------------------------------- 453
9
A
O seminário denominado “Semana de Relações Internacionais
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) é
realizada anualmente em forma de rodízio entre os campus de Franca (Fa-
culdade de Ciências Humanas e Sociais - FCHS) e de Marília (Faculdade
de Filosoa e Ciências – FFC), onde funcionam cursos de graduação em
Relações Internacionais.
A “XV Semana de Relações Internacionais da UNESP”, realizada
no nal de agosto de 2017, na FFC – campus de Marília/SP, teve como
tema “Os Desaos da Política Externa e Segurança no Século XXI”. A
escolha do tema se deu em razão do mesmo ser central nas relações entre
agentes estatais e, nos últimos anos, com a presença também de agentes
não estatais. Apesar do tema central, o evento procurou abranger diversas
áreas das Relações Internacionais com o intuito de aprofundar a análise
de estruturas, processos, instituições, atores e normas presentes no sistema
internacional. O seminário contou com a presença de professores, pesqui-
sadores e prossionais em conferências, mesas-redondas, minicursos, oci-
nas e workshops, além de sessões temáticas com apresentação de trabalhos
de graduandos e pós-graduandos.
A presente obra é o resultado das atividades realizadas durante a
“XV Semana de Relações Internacionais”, que teve o apoio da Fundação
10
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e das Pró-Rei-
torias de Pós-Graduação (PROPG) e de Extensão (PROEX) da UNESP.
O livro apresenta contribuições originais, em forma de en-
saios e artigos, dos acadêmicos e profissionais que participaram do
evento e foi dividido em seis partes: Desafios dos Processos de Paz e
Questões Humanitárias; Forças Armadas; Desafios dos Processos de
Integração Regional; Diplomacia e Relações Internacionais; Gover-
nança e Imigrações; e Desenvolvimento.
O primeiro texto é de autoria de Vicente Torrijos e Juan Martín
Londoño. Interessados na complexidade dos acordos de paz, os autores
escrevem sobre as diculdades encontradas na concretização do acordo de
paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC). Fazendo uso do mesmo conceito de paz que as Nações
Unidas, o qual considera direito de verdade, justiça, reparação e garan-
tia de não repetição como princípios essenciais para se alcançar a paz, os
autores analisam sistematicamente cada princípio, tentando identicar a
partir deste conceito, quais as diculdades enfrentadas pela Colômbia no
estabelecimento da paz duradoura.
No segundo texto, Susana de Deus e Renata Reis apresentam as
diculdades enfrentadas pela assistência humanitária em prestar socorro à
população vítima dos conitos armados. Com uma abordagem pautada
na jurisprudência, as autoras fazem um resgate histórico e conceitual sobre
o Direito Internacional Humanitário (DIH) e a legalidade dos conitos
armados. A partir de então, discorrem sobre os desaos enfrentados pela
assistência na resposta às crises humanitárias frequentemente vivenciadas
nos conitos armados internacionais, elencando alguns sujeitos que consi-
deram ser responsáveis por essas diculdades.
No terceiro texto, Floriano Peixoto Vieira Neto apresenta aspec-
tos relevantes do Painel Independente de Alto Nível Sobre Operações de
Paz (PIANOP). Como membro do Painel nomeado pelo Secretário Geral
da ONU, o autor discorre sobre a criação do PIANOP, os membros, a me-
todologia de trabalho, as atividades realizadas e os principais tópicos do re-
latório nal apresentado. Produzido a partir da exposição do autor durante
11
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
o evento e, fruto da sua experiência como membro do PIANOP, o texto
guarda o tom coloquial que caracteriza as palestras em eventos acadêmicos.
O quarto texto, escrito por Roberta Maschietto, aborda aspectos
subjetivos nos contextos de construção da paz. Partindo de aspectos epis-
temológicos e metodológicos da pesquisa nesse campo, a autora discute
aspectos fundamentais para o processo de apreensão das subjetividades: a
gramática social local’ e ‘o processo prático de tradução de subjetividades
locais’. Para isso, oferece exemplos desses processos na análise dos conceitos
de paz e poder, além de apresentar algumas observações sobre como me-
lhorar esta agenda de pesquisa.
No quinto texto, de ayná Gava Borges, são discutidos os
embates e limites da universalidade dos direitos humanos das mulheres
em relação ao relativismo cultural. A grande questão abordada pela au-
tora é quão universal podem ser os direitos humanos das mulheres de
modo que não desrespeitem o multiculturalismo e não se tornem um
argumento justicador de suas violações. Partindo de uma retrospecti-
va histórica, a autora apresenta as origens dessas tensões e a necessidade
de reexão sobre o tema.
Em seguida, o texto de Eduardo Heleno de Jesus Santos se inicia
com uma breve contextualização do momento em que o papel das Forças
Armadas ganha força e relativa autonomia política no Brasil. A partir daí, o
autor apresenta análises de documentos para sustentar o argumento de que
as ações das Forças Armadas brasileiras, bem como dos militares da reserva,
inuenciaram no processo de construção da memória nacional.
Vivien Ishaq é a autora do sétimo texto desta obra. Interessada
em discutir o legado da Comissão Nacional da Verdade (CNV) do Brasil,
Ishaq inicia seu texto apresentando alguns aspectos sobre os limites da
redemocratização brasileira, principalmente no que diz respeito à criação e
efetividade da CNV. Nesse sentido a autora faz breves análises comparati-
vas com o período pós-ditadura militar de outros países latino-americanos,
e apresenta uma série de documentos ociais, como relatórios da CNV, e
as ações do Brasil após o término da Comissão, buscando vericar a efe-
tividade e o cumprimento das recomendações feitas por ela. No nal, faz
12
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
considerações acerca da importância da CNV como uma forma de conso-
lidação da democracia brasileira.
aiane Mendonça e Frederico Costa, autores do oitavo texto,
discutem a atualização da doutrina de segurança nacional brasileira. De
início, discorrem sobre as variações no entendimento sobre o que engloba
o setor de segurança. Em seguida, analisam as atuais ações em âmbito in-
terno das Forças Armadas brasileiras com base em documentos ociais do
Estado, o que é compreendido por doutrina de segurança nacional e a qual
concepção de segurança o Brasil está mais relacionado e de que forma. No
nal, fazem algumas considerações a respeito da atualização da doutrina de
segurança nacional brasileira.
Tendo em vista problemas semelhantes relacionados a violência
enfrentados por diversos países latino-americanos, Ana Maura Tomesani,
discute no nono texto desta obra, a existência ou não de uma agenda
comum latino-americana no tocante à reforma do setor de segurança.
Para sustentar seu posicionamento positivo, a autora apresenta e analisa
documentos ociais sobre o tema de três organizações regionais (OEA,
UNASUL e MERCOSUL).
No décimo texto, Augusto Zanetti faz uma revisão histórica des-
de os primeiros fatos que impulsionaram a criação de projetos de integra-
ção regional sul-americanos, passando pelos fracassos de alguns deles, até
a criação e consolidação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Em
seguida, analisa a integração regional utilizando parâmetros como o décit
democrático e o setor energético.
O décimo primeiro texto é de Miriam Saraiva. Levando em conta
os diversos tipos de regionalismos existentes (aberto, pós-liberal e difu-
sos), a autora procura identicar qual o tipo de regionalismo existente hoje
na América Latina e, particularmente, na América do Sul. A autora parte
de um retrospecto histórico, conceitua os principais termos do assunto
(regionalismo, cooperação, integração, integração regional e governança
regional), para então discorrer sobre os motivos que causaram a mudança
do regionalismo na região e seus desenhos mais recentes.
13
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Em seu texto, Mamadou Diallo procura compreender os desaos
e as perspectivas enfrentadas pelo processo de integração africana. Argu-
mentando que o legado colonial ocidental naquele continente inuencia
bruscamente esse processo, o autor relembra aspectos anteriores, durante e
posteriores ao período de colonização, para focar nas diculdades enfren-
tadas pelos africanos devido à persistência da inuência externa, principal-
mente europeia, no continente.
Tendo em vista as constantes implicações da saída do Reino
Unido da União Europeia (UE), Kai Lehmann discorre sobre o que ex-
plica o atual otimismo expressado pelo bloco, bem como quais os desa-
os a serem enfrentados e qual o futuro para o processo de integração
europeia. Além disso, o autor aborda as complicações da saída da UE
para o próprio Reino Unido e seus argumentos são defendidos no quadro
conceitual da complexidade.
No décimo quarto texto, o Embaixador José Estanislau Souza
Neto faz algumas considerações em torno da carreira diplomática. Expon-
do um resumo histórico da prossão e explanando brevemente sobre a
importância da mesma no atual cenário internacional, o autor foca na for-
mação do diplomata, esclarecendo os principais passos e requisitos para
entrar na carreira.
No décimo quinto texto, Friedrich Maier discute a inuência do
ciberespaço nas Relações Internacionais (RI). Iniciando com uma discus-
são acerca da denição do termo ‘ciberespaço’, o autor analisa dois casos
em que este inuenciou as RI - o ataque a uma usina de enriquecimento
de urânio no Irã e o caso de hackers nas eleições presidenciais de 2016 nos
EUA. Com isso, Maier procura comprovar a existência e evidenciar ten-
dências resultantes de um possível processo de ciberização das RI.
No décimo sexto texto, Kelly Silva discute tecnologias que pro-
pagam práticas de governo globalmente. Silva faz inicialmente algumas
considerações sobre os conceitos por ela utilizados, como governo, uxos
de práticas de governo e desenvolvimento, para então analisar as práticas
ociais de cooperação técnica para o desenvolvimento internacional, fo-
cando nas estruturas organizacionais.
14
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
O décimo sétimo texto desta obra foi escrito por Ana Cristina
Martes e eo Araújo. Preocupados com os direitos dos imigrantes, os au-
tores investigam as políticas públicas de acesso à saúde e à educação da ci-
dade de São Paulo, discutindo a inclusão dos imigrantes nelas. Os autores
defendem uma abordagem multicultural das políticas públicas como for-
ma dos imigrantes serem realmente incorporados na sociedade brasileira.
O décimo oitavo texto, escrito por Hermes Moreira Junior, abor-
da a relação econômica Brasil - China. A partir da grande presença chinesa
na pauta de exportação de commodities brasileiras, algumas diculdades
para o desenvolvimento do país ganham destaque como desindustrializa-
ção, reprimarização das exportações e dependência. Nesse sentido, o autor
discorre sobre cada um desses desaos, para então propor algumas alterna-
tivas para o Brasil.
Por m, no décimo nono texto, de autoria de Isabella Lamas, são
discutidas as implicações do processo de paz ocorrido em Moçambique,
visto como exemplo de sucesso. Utilizando o entendimento de paz positiva
de Johan Galtung, a autora analisa aspectos da economia política moçam-
bicana no pós-conito, sua indústria extrativa, incluindo o maior projeto
de investimento brasileiro naquele país, para concluir que o processo de
desenvolvimento não permitiu o aumento do bem-estar da sociedade.
Esta obra pretende contribuir para a disseminação do conheci-
mento e para os estudos relacionados com as Relações Internacionais, es-
pecialmente nas temáticas de política externa e segurança que foram o foco
da XV Semana de Relações Internacionais. Esperamos que os textos aqui
apresentados instiguem leitores a desenvolver novas pesquisas e reexões,
de forma que possamos avançar na compreensão das dinâmicas que ope-
ram no complexo sistema internacional.
Prof. Dr. Sérgio L. C. Aguilar
Isabela Zorat Alonso
Organizadores
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Vicente Torrijos Rivera
Juan Martín Londoño Zuluaga
1 – introDucción
A más de 6 meses de iniciada la implementación del Acuerdo
Final, las lógicas que tienden a la terminación del conicto con las Fuerzas
Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) han sido complejas y no
todas han estado acordes con lo planeado. Solo por citar algunos ejemplos,
se ha visto que las fechas de desarme no se han cumplido (ÁVILA, 2017;
SANTRICH, 2017), las estadísticas de cultivos ilícitos siguen aumentando
(JUSTICIA, 2017; ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS
(ONU), 2017) y en algunos municipios los homicidios han aumentado
18
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
signicativamente a causa de la implementación del Acuerdo Final
(INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL, 2017). Esto sucede por los
sorpresivos cambios en las condiciones y las no previstas dicultades
técnicas, económicas, sociales y políticas que reporta cada etapa del
proceso. Más allá, los actores han cambiado y la conguración socio-
política del poder se ha modicado a raíz de la ausencia de uno de los
actores esenciales: las Farc.
No obstante, es de suma importancia atender a estas problemáticas
y los desafíos que genera para convertir el proceso de paz colombiano
en una dinámica adaptativa que permita dirimir los conictos de forma
empática, no violenta y creativa. Así, este texto pretende analizar los
desafíos más importantes que se han planteado en el desarrollo del proceso
de paz y entenderlos bajo los principios básicos que rigen este tipo de
procesos. De la misma manera, se pretende ayudar al acervo práctico desde
la experiencia para analizar procesos de paz futuros, con el n de garantizar
la no repetición de los errores.
2 – Base concePtual
Para no perderse en aristas innecesarias, hay que entender ciertos
conceptos previos al análisis práctico. En primer lugar, se entiende que la
paz es la situación en la que los conictos son manejados con empatía,
en una perspectiva no violenta y creativa (GALTUNG, 1996, p. 9). Esto
quiere decir que la paz no atiende a una denición negativa en términos
estáticos de ausencia de conicto, sino que es sumamente dinámica. Por
el contrario, se entiende que la paz no está ajena al conicto, sino que lo
incluye y, además, le da una solución constante por medio de instrumentos
especícos y ecientes.
De esa manera, el paso de una situación de conicto como
discordancia entre partes a una situación de paz necesita generar un
proceso de transformación del contexto socio-político. Esto implica el
cambio de los medios, las interacciones y de las lógicas microsociales
que entre ellos se establecen, para poder encontrar vías de solución de
discordancias. Para esto, los Estados dispuestos a realizar un proceso de
paz deben estar dirigidos a realizar cambios sustanciales que impliquen el
19
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
incentivo a la creación de estos medios y al cambio de los comportamientos
individuales y sociales.
Entre las sugerencias que los investigadores de paz han hecho
para llevar este proceso, se encuentra el modelo de Joinet, quien intenta
encausar los procesos de paz bajo unos principios fundamentales. Estos
son el derecho a la verdad, el derecho a la justicia, el derecho a la reparación
y la garantía de no repetición (JOINET, 1996).
Estos principios, difundidos principalmente por la ONU, han
sido utilizados en numerosos casos de procesos de paz, siendo defendidos
como los mínimos requeridos para alcanzar una paz estable y duradera
en el tiempo. Por tanto, es conveniente utilizar estos principios como
macropuntos de análisis y establecer las dicultades que se han presentado
al tratar de garantizar el cumplimiento de ellos.
3 – los Desafíos De los PrinciPios en el caso colomBiano
La realidad siempre superará al papel en procesos sociales
como estos. Aunque estos principios son fáciles de seguir y suponen
una lógica congruente, la complejidad de los actores y los problemas
logísticos que implica llevar a cabo cada uno de estos principios hacen
que existan brechas entre lo que se hace y lo que se pensaba hacer.
En Colombia, la multiplicidad de actores y la complejidad histórica
de abandono estatal han hecho que estas dicultades sean aún mucho
mayores de lo esperado. A continuación, se enumerarán los desafíos
más importantes que se enfrentan en el cumplimiento y garantía de
estos principios. Aunque cabe aclarar que el cumplimiento de estos
principios no es la única variable, en ellos recaen en buena medida las
posibilidades de éxito del proceso de paz y, por tanto, de alcanzar una
situación de paz.
3.1 – DerecHo a la verDaD
Joinet defendía que el derecho a la verdad es, en el plano
individual, el derecho de las víctimas, sus parientes y amigos de obtener
la verdad de los hechos ocurridos en situaciones de violación sistemática
20
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de derechos humanos. No obstante, asegura que este derecho no se agota
en lo individual, sino que existe un derecho colectivo al conocimiento
de la verdad para evitar la reproducción de esta violación sistemática.
En tal medida, el derecho a la verdad tiende a ser fundamental
para evitar los roces sociales por resentimiento e incertidumbre que
generan conicto, pero a la vez tiende a ser complejo de lograr por la
multiplicidad de actores, situaciones desfavorables y la poca disposición
a relatar lo ocurrido.
En este contexto, el Estado colombiano ha dispuesto en el
contexto del Acuerdo la creación del Sistema Integral de Verdad,
Justicia, Reparación y No Repetición (SIVJRNR) para cumplir sus
deberes de esclarecimiento de la verdad con los individuos y la sociedad.
En este Sistema se encuentra la Comisión para el Esclarecimiento de
la Verdad, la Convivencia y la No Repetición; la Unidad de Búsqueda
de Personas dadas por Desaparecidas y la Jurisdicción Especial para la
Paz (JEP), entre otros. Asimismo, ha especicado que los otros entes
investigadores, como la Fiscalía General de la Nación, deben cooperar
para investigar, clasicar y entregar información para la búsqueda de la
verdad y el juzgamiento de los involucrados. No obstante, los desafíos
son múltiples.
a. asesinatos Bajo el contexto Del acuerDo final: el
silencio De las Balas
Según el informe Forensis 2016, del Instituto de Medicina
Legal (2017), menos del 4% de los homicidios ocurridos en el 2016
se relacionaron con la violencia sociopolítica del país, lo que reporta
una disminución considerable. No obstante, el mismo informe
advierte que en algunos municipios los homicidios han aumentado
considerablemente, principalmente en Tumaco, Tibú y San Vicente
del Caguán.
21
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Figura 1 Asesinato de líderes rurales.
Fonte: Observatorio de Restitución y Regulación de
Derechos de Propiedad Agraria, 2017.
Inclusive, el Observatorio de Restitución y Regulación de
Derechos de Propiedad Agraria advierte en un informe de junio del 2017
que entre el 2005 y el 2015 el asesinato de líderes sociales en Colombia
ha sido sistemático, regular, localizado y que necesitan políticas especiales
para disminuirlo (OBSERVATORIO..., 2017). Los principales afectados
han sido líderes rurales, particularmente de las Juntas de Acción Comunal,
seguidos por los líderes indígenas, líderes reclamantes y líderes afros.
22
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Figura 2 – Líderes asesinados por año de ocurrencia.
Fonte: Observatorio de Restitución y Regulación de Derechos
de Propiedad Agraria, 2017.
Estas duras estadísticas se refuerzan con los informes (ÁLVAREZ;
CAJIAO; CUESTA, 2017; S.O.S DESDE..., 2017) que demuestran un
aumento de las actividades de diferentes grupos al margen de la ley en
diferentes zonas. El fortalecimiento del ELN, de bandas criminales como el
Clan Úsuga y grupos neoparamilitares como las Autodefensas Gaitanistas
de Colombia han presentado un latente peligro para la integridad física de
los habitantes de la zona.
Así, el crecimiento de estos grupos y de las disputas por las
economías ilícitas se ha convertido en un recrudecimiento de la violencia
donde los denunciantes y los testigos son vistos como obstáculos. De esta
manera, al Estado le conviene afrontar el desafío de garantizar la integridad
física de los habitantes de estas zonas afectadas, pero con especial atención
a los líderes sociales para que su asesinato sistemático no se convierta en
el silencio de quienes poseen información relevante para la construcción
de verdad. Aquí el Estado tiene el deber de preguntarse qué estrategias
utilizará para garantizar la integridad física de los denunciantes y tendrá
que preguntarse cómo establecer vías de denuncia seguras para ellos para
que la información no sea limitada por el temor.
23
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
B. inseguriDaD juríDica y física De los excomBatientes: un
oBstáculo Para la cooPeración
La cooperación de los excombatientes es fundamental para el
proceso de paz y verdad, pero ha existido factores que han alimentado un
temor generalizado de inseguridad entre los desmovilizados. En primer
lugar, se encuentran los reiterativos problemas logísticos con las zonas
veredales
1
que dicultaron la construcción y apropiación del espacio
dispuesto (EL VIACRUCIS..., 2017). Inclusive, algunas zonas no estaban
construidas a la llegada de los excombatientes y no tenían los protocolos
adecuados de seguridad, con lo cual se demostraba incumplimiento del
gobierno a los compromisos adquiridos (BLU RADIO, 2017; ÁVILA,
2017; EL VIACRUCIS..., 2017).
En segundo lugar, se encuentra la sorpresiva lentitud del proceso
de amnistía. Jesús Santrich, excúpula de las Farc, denunció en repetidas
ocasiones la inseguridad jurídica de los excombatientes en estos términos.
Advirtió que solo se había amnistiado 500 exguerrilleros de 7000 en mayo
del 2017 (UNIDAD DE PAZ, 2017a) y que en julio del mismo año había
un retraso de 930 exguerrilleros (SANTRICH, 2017).
En tercer lugar, se han reportado asesinatos de exguerrilleros
amnistiados que generan temor entre los excombatientes, como el caso
de Rigoberto Quezada en Caquetá en junio del 2017 (REDACCIÓN
JUDICIAL, 2017) y Luis Alberto Ortiz en Tumaco en abril del mismo
año (UNIDAD DE PAZ, 2017b). Esto agrava el temor a sufrir daño
por el relato de los hechos ocurridos relativos al conicto, en el cual
deben detallar actores involucrados.
Así los hechos, en un análisis de las decisiones que pueden
tomar los excombatientes ante la inseguridad jurídica y física, se puede
ver que están incentivados a retirarse del proceso de paz y volverse
disidencia o pueden no cooperar de forma completa con los relatos
detallados. Ambas situaciones son sumamente nocivas para el proceso
de paz y necesitan de especial cuidado por parte del Estado, pues la
 Las zonas veredales son espacios territoriales, temporales y transitorios en donde se ubicarán los exguerrilleros
con el n de dar paso a la reinserción a la vida civil. En ellas se realizarán los procesos de desarme, desmovilización
y reintegración y tendrán monitoreo local por parte del gobierno. Actualmente hay 23 zonas veredales y 8
campamentos.
24
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
garantía de seguridad que necesitan los excombatientes resulta necesaria
para el esclarecimiento de la verdad.
Quedan asuntos como: ¿qué medidas se llevarán a cabo para
recuperar la conanza de los excombatientes al proceso de paz y al Estado
colombiano? ¿Cómo se puede garantizar la integridad física de estos
mismos para que puedan testicar sin miedo y de la forma más completa
posible? ¿Cómo evitar la posibilidad de disidencia desde los campamentos
hasta la reinserción a la vida civil, pasando por los juicios extrajudiciales?
c. no cooPeración entre entiDaDes: el conflicto entre la
inDePenDencia y la efectiviDaD
El proceso de recolección de la verdad puede estar en riesgo
por problemas entre las jurisdicciones de las entidades. El acto legislativo
002/2017, relativo a la JEP, demuestra en el artículo transitorio 4° que la
Comisión para la Verdad y la Unidad de Búsqueda de Personas están exentos
de su deber de denuncia y no podrán ser obligados a declarar en procesos
judiciales cuando el conocimiento de estos hechos sea en el desarrollo
de sus actividades. No obstante, el Fiscal General de la Nación, Néstor
Humberto Martínez (CARACOL RADIO, 2017), ha denunciado que
esto puede ser problemático, pues no hay una obligación de las entidades a
cooperar con las investigaciones de la Fiscalía en sus investigaciones. Esto
puede traducirse en dos consecuencias: un choque y malestar entre ambas
entidades y un doble esfuerzo investigativo para el Estado colombiano.
Cabe aclarar que los mismos principios de Joinet establecen la
independencia de los organismos creados para la justicia transicional,
en la cual se pretende las decisiones más libres posibles. Sin embargo,
los choques van a ser inevitables cuando cualquiera de las entidades del
Sistema Integral tenga información que requiera la Fiscalía pero que no
coopere. Así, la cantidad de información obtenida por las entidades puede
ser limitada por este choque de cooperación, tanto para la JEP como para la
jurisdicción ordinaria. Es decir, puede perderse la disposición de la Fiscalía
de cooperar por la no obligación de las entidades del Sistema Integral y
la justicia ordinaria no puede contar con la información y las pruebas
25
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
obtenidas por estas entidades. La sola posibilidad de estos conictos merece
un tratamiento especial.
Los desafíos se podrían resumir en las siguientes preguntas:
¿cómo encontrar una manera de facilitar la cooperación efectiva de ambas
entidades sin arriesgar la independencia que tiene el Sistema Integral?
¿Cómo incentivar la cooperación efectiva y limpia entre entidades para
garantizar la mayor cantidad de información de los hechos ocurridos?
¿Se podría pensar en mecanismos alternos para dirimir los conictos
accidentales entre estas entidades?
D. una esPina llamaDaverDaD
Procesos anteriores como Justicia y Paz con las Autodefensas
Unidas de Colombia demostraron existe la posibilidad de excesos de
verdad. Es decir, el Estado colombiano tiene el deber de encontrar la verdad
de los hechos, pero no siempre todas las víctimas están en la disposición
de escuchar toda la verdad. No toda víctima indirecta está dispuesta a
escuchar qué hicieron los implicados en un caso, por ejemplo, de violación
y mutilación de un familiar suyo. El Estado tiene el reto de aprender de
Justicia y Paz y preparar a las víctimas para escuchar la verdad, poner a su
disposición la ayuda sicológica y siquiátrica necesaria y, además, de asegurar
que en las sesiones con las víctimas de la JEP se detalle la verdad tanto como
la víctima esté dispuesta a recibirla. Se puede pensar en sesiones cerradas
para poder esclarecer toda la verdad de forma detallada, pero aun así se
plantean cuestiones importantes: ¿aquella información de los hechos que
la víctima no está dispuesta a escuchar puede hacer parte de la memoria
colectiva que se ofrece a la sociedad? ¿Cómo evitar el resentimiento por
escuchar la verdad de los hechos?
3.2 – DerecHo a la justicia
El derecho a la justicia, por su parte, implica que toda víctima
pueda hacer valer sus derechos por medio de la reparación en el juzgamiento
efectivo y justo de los implicados en la violación de sus derechos. Existe
un deber del Estado de investigar los hechos, perseguir a los involucrados
26
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
y, si son condenados, asegurar la sanción que se considere necesaria para
la reparación.
El Acuerdo Final dispone de la Jurisdicción Especial para la Paz
como el método para garantizar la jurisdicción transicional que demandan
los procesos de paz. Sin embargo, históricamente la administración de
justicia en Colombia ha estado llena de inconvenientes y vicios que han
generado impunidad. La JEP no está exenta y el Estado tiene que darle
prioridad a la solución de estos inconvenientes dada la importancia que
signica la impartición de justicia en el proceso, de lo contrario corre el
riesgo de no impartir justicia de forma adecuada.
a. la verDaD incomPleta: soBre construir en cimientos
DéBiles
Generalmente, las decisiones tomadas por los magistrados de la
JEP dependen de la cantidad de información con la que cuentan. De esta
manera, las variables que hacen que la cantidad de información verídica
sea la mayor posible puedem afectar también las sentencias que la propia
JEP pueda emitir, al igual que las sanciones que establezcan. Por tanto,
los asesinatos indiscriminados, la posibilidad de no cooperación completa
de los excombatientes y la no cooperación de las entidades encargadas
de la investigación pueden ser elementos decisivos para aumentar la
probabilidad de impunidad de los dictámenes de la JEP. Esto sin contar
con los desafíos comunes que tienen los entes investigativos para obtener
información como lo son el ocultamiento de las pruebas, la posibilidad de
testigos falsos, la posibilidad de sobornos, entre otros.
B. congestión excesiva: un colaPso inminente
Ya Justicia y Paz dio un aviso: la congestión excesiva de procesos
hace que la justicia sea lenta y los resultados inefectivos (FUNDACIÓN...,
2011). Además de la ineciencia propia del sistema judicial colombiano,
en ese entonces los encargados de recibir los casos tenían que recticar
la veracidad de los testimonios dados en las sesiones. Esto hizo que se
avasallaran los organismos de justicia y que colapsara el sistema.
27
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
El actual proceso prevé parcialmente la situación, pues quiere
hacer uso de todas las investigaciones previas de la Fiscalía, la Justicia
Penal Militar, Procuraduría, Contraloría y jueces en sus sentencias. No
obstante, incluso suponiendo la total cooperación de estas entidades (que
no está asegurada), no necesariamente se blinda a los procesos judiciales de
tener que encontrar más material probatorio, de recticar su veracidad y
clasicar los casos en el que es necesario.
Especícamente, existe la posibilidad de víctimas y victimarios
falsos. En el primer caso, son personas utilizadas por terceros o personas que
buscan aprovechar la situación para obtener un benecio. En el segundo
caso, ya Justicia y Paz demostró que pueden existir personas que busquen
someterse a la JEP para aprovechar la amnistía: los llamados ‘colados
(MARÍN CORREA, 2011). Ambas prácticas signican un desgaste para
el sistema que lo congestiona, relegando otros procesos de víctimas reales a
la impunidad temporal. Por tanto, ¿cómo se depurarán estos falsos casos?
Ahora, incluso suponiendo que lo anterior no afectara la uidez
de la JEP, hay que entender que evidentemente va a existir una cantidad
excesiva de casos tras 60 años de conicto con las Farc. Por consiguiente, el
Estado colombiano tiene que prepararse para establecer una cooperación
efectiva entre organismos y establecer protocolos que permitan agilizar las
investigaciones y sesiones con el objetivo de atender en tiempo razonable
los casos presentados ante la JEP. De lo contrario, existirá la posibilidad de
conicto por la no garantía de justicia.
c. la justicia transicional y el neoconstitucionalismo: el
cHoQue De PoDeres
Colombia se ha circunscrito desde 1991 en una ola de
neoconstitucionalismo que le otorga a la Corte Constitucional la bandera
de la defensa de los derechos fundamentales y un papel marginal de
transformador de políticas públicas con sus sentencias (VALDERRAMA,
2016). No obstante, tanto los principios de Joinet como la manera de
aplicarse en el proceso de paz en Colombia hicieron que se estableciera la
JEP y el Sistema Integral sobre cualquier otra jurisdicción del Estado.
28
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
En este caso, cabe citar el A.L. 002/2017, art. trans. 6°, en el
cual se arma que el componente de justicia del SIVJRNR, en el cual
se encuentra la JEP, “[…] prevalecerá sobre las actuaciones penales,
disciplinarias o administrativas por conductas cometidas con ocasión, por
causa o en relación directa o indirecta con el conicto armado, al absorber
la competencia exclusiva sobre dichas conductas” (COLOMBIA, 2017). El
hecho de dar preponderancia absoluta a la JEP sobre las otras jurisdicciones
y que su alcance sea tan amplio por la vaga denición de su competencia,
puede chocar fuertemente con el papel preponderante que había tenido la
Corte Constitucional desde hace más de 20 años.
Inclusive, como deende el art. trans. 9°, las competencias entre la
JEP y otro organismo serán dirimidas por una sala incidental conformada
por 3 magistrados de la Corte Constitucional y 3 de la JEP no afectados
por dicho conicto. Si no hay mayoría absoluta, el presidente de la JEP
decide. Aquí se deja abierta la posibilidad de conicto de intereses de la
JEP ante sus decisiones y un sinsabor por la posibilidad del sesgo ante las
demás instancias de justicia.
Más aún, se le reduce a la Corte Constitucional el poder que
tenía para controlar y defender los derechos fundamentales frente a esta
jurisdicción, dado que la última instancia en las tutelas no las resuelve la
Corte Constitucional sino una sala incidental de 2 magistrados de esta
Corte y 2 de la JEP. Aunque la decisión solo se toma si los cuatro votan a
favor, el fallo no puede anular, ni invalidar o dejar sin efectos la decisión
tomada: solo será remitida al Tribunal de Paz para revisión.
En la víspera de estos inconvenientes ya la Corte Constitucional
ha hecho saber su inconformidad, controlando por medio de sus
sentencias el fast track que se le había dado al gobierno (REDACCIÓN
JUDICIAL, 2017; CORTE..., 2017). Lo anterior solo demuestra que
los choques tenderán a ocurrir y que la Corte Constitucional podrá tener
menos disposición a lo que el gobierno pretenda hacer en términos de
paz. La Corte, en el peor de los casos, puede utilizar su papel de control
constitucional para invalidar o dilatar acciones del ejecutivo relativos
a la paz o al normal funcionamiento que pueden generar desgaste. No
obstante, la realidad seguramente será mejor, ya que la convivencia entre
ambos organismos no ha sido tan conictiva.
29
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Aun así, es necesario que el Estado en su conjunto encuentre
maneras de diálogo efectivo entre las diferentes jurisdicciones para que se
imparta justicia de manera efectiva y las diferentes salas y entidades no se
enclaustren en discusiones desgastantes. La sola posibilidad de una lucha
entre los actores amerita encontrar soluciones preventivas al problema.
Por último, cabe preguntarse: ¿qué mecanismos pueden ayudar
a dirimir estos conictos accidentales? ¿Cuáles son los incentivos para
la cooperación de estas jurisdicciones, el gobierno y otras entidades? ¿Es
necesaria la absoluta preponderancia y exclusividad de la JEP sobre las
otras jurisdicciones? ¿Cómo se evitará el posible sesgo de la JEP al decidir
sus competencias y solucionar las tutelas de sus propios fallos?
3.3 – DerecHo a la reParación
La reparación, sin demérito de los otros principios, termina
siendo sumamente importante para el éxito de un proceso de paz. Según
el modelo, el derecho a la reparación implica unas medidas de restitución
(para devolver la situación inicial a la víctima previa al conicto), unas
medidas de indemnización (para indemnizarla por los daños causados en
el proceso) y unas medidas de readaptación (para reingresarla a la sociedad
y que su interacción con otros no se vea afectada por el conicto). Por
último, se especica un deber de reparación colectiva.
Por consiguiente, la no reparación efectiva de las víctimas y
la sociedad puede generar resentimientos que pueden ser causales de
repetición del conicto a largo plazo. Incluso, en el corto plazo, se
puede ver que la efectividad de la desmovilización y reintegración de
los excombatientes depende de la posibilidad de las víctimas de superar
sus heridas para incorporar a quien causó el daño. Así, una reparación
nula o incompleta signica una menor probabilidad de las víctimas a
recuperarse de los daños hechos y un resentimiento a futuro, que puede
signicar una exclusión de los victimarios y la repetición de las causas del
conicto. Es decir, un sentimiento de no sanción y reparación verdaderos
puede signicar una discriminación a los excombatientes y que estos no se
anexen exitosamente al tejido social. Esto puede traducirse en reproducir
el sistema político sumamente excluyente que ha sido una de las causas
30
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
estructurales del conicto (PÉCAUT, 2003 apud GÓMEZ, 2014, p. 41).
Dado lo anterior, los desafíos tienden a ser múltiples y conciernen en gran
medida a la desmovilización y reintegración en las lógicas DDR.
a. la justicia y la verDaD: una reParación en misma
Como es lógico, los principios se conectan de forma cercana y el
éxito de cada uno depende del anterior. En este caso, hay que analizar los
elementos de verdad y justicia que inuyen en la reparación. En cuanto a la
verdad, se le considera en la mayoría de los casos como una forma de resarcir
el daño al eliminar la incertidumbre de los hechos. La experiencia de las
desapariciones forzosas de las dictaduras latinoamericanas ha demostrado
que existen grupos dispuestos a renunciar a la buena cantidad de sanciones
que les ofrece la justicia, siempre y cuando se esclarezca la verdad de lo
ocurrido. Un caso representativo son las Madres y Abuelas de la Plaza de
Mayo en Argentina. De esta manera, encontrar la verdad lo más detallada
posible funciona como una reparación total o parcial de lo ocurrido, con lo
cual la víctima puede empezar su proceso de sanación. Con esto se pueden
empezar procesos de perdón al victimario, pero la reconciliación puede
ocurrir aún sin esta (CORTÉS et al., 2016).
En cuanto a la justicia, las sanciones impuestas por los tribunales
judiciales y extrajudiciales son de suma importancia para la reparación de
las víctimas. Es decir, el castigo por los actos cometidos y la reparación
material juegan un rol importante en el proceso de saneamiento de la
víctima cuando la víctima no considera suciente el esclarecimiento de la
verdad. En ese caso, tanto las sanciones que implican cárcel para los actos
graves como las sanciones alternativas para los actos más leves son efectivas
para resarcir el daño, solo hay que ser cauteloso con la proporcionalidad.
Por último, estas sanciones impuestas en la justicia tienden a
generar un efecto de bienestar social al tener la sensación de que existe una
sanción efectiva que ayude a resarcir los daños tanto individuales como
sociales que causaron estos actores. El Estado debe tener especial atención
en darle publicidad de estos procesos de justicia, tal y como deende Joinet,
para que el efecto social se propicie.
31
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
B. goBiernos locales y regionales: Del olviDo Histórico y
la aPatía
Cabe recordar que en los principios de Joinet existen unas
medidas de restitución, de compensación y de rehabilitación que ayudan a
que las víctimas se sientan reparadas. En el caso colombiano, estas políticas
están enfocadas en la restitución de tierras, la reconstrucción de pueblos,
de planes de inversión social y privada y la atención sicológica y siquiátrica
de las víctimas.
Estas medidas de reparación, como también aquellas que intentan
asegurar la no repetición, dependen en gran medida de la diligencia de los
gobiernos locales y regionales como implementadores base de la política. Así
las cosas, es absolutamente necesario establecer canales de comunicación y
cooperación efectivas en dos vías: entre las autoridades locales y regionales
con las entidades nacionales y las creadas por el Acuerdo, así como también
entre autoridades locales y regionales con otras de la misma índole. Sin
estos canales, los objetivos y tiempos de las políticas pueden no cumplirse
o tergiversarse y, por lo tanto, el resultado tenderá al fracaso. Dado lo
anterior, la armonización entre los diferentes actores, ya sean nuevos o
viejos, es un desafío fundamental.
Sin embargo, la creación y fortalecimiento de estas vías depende
en gran medida de la disposición de los actores en cuestión, elemento
que en la actualidad ya es complejo. Incluso existen otras variables que
dicultan la cooperación y comunicación entre estas entidades y que el
Estado debe solucionar para garantizar una mayor efectividad.
En primer lugar, existe la posibilidad de una disidencia por
oposición al Acuerdo desde las autoridades locales. Esto implica la
posibilidad de no cumplimiento o dilatación de lo acordado por
diferencias ideológicas.
En segundo lugar, se encuentran aquellos municipios que
históricamente han estado lejanos de las lógicas de gobierno nacional. Estos
municipios, por lo general, han estado en zonas de inuencia del conicto,
donde la autoridad soberana fue por mucho tiempo alguna cabecilla de
las Farc. En ese caso, el Estado tiene que aprovechar el vacío temporal de
poder para establecerse como soberano del territorio, si no quiere relegar
32
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
su inuencia a otros actores. Si no logra hacer esto, pierde la posibilidad de
implementar directamente las medidas de reparación y tiene que recuperar
el territorio primero.
En tercer lugar, se encuentra las lógicas de corrupción dentro de
los gobiernos locales, que generalmente no están de acuerdo con que las
entidades nacionales se inmiscuyan en sus zonas de poder y disminuyan su
inuencia. En estos se encuentran los grupos criminales, los empresarios
con gran poderío económico, los narcotracantes, las disidencias de las Farc
y los caciques regionales que han amalgamado el poder regional. El Estado
debe saber cómo entrar en esos territorios para sanear los organismos de
poder, con lo cual se le facilita realizar una acción directa.
Así pues, los desafíos secundarios que implican la comunicación,
cooperación y recuperación del poder soberano dentro de los gobiernos
locales son sumamente complejos y delicados. Es decir, ¿cómo serán esas
vías de comunicación y cooperación? ¿Cuáles son los mecanismos para
dirimir los conictos que se presenten entre estas entidades? ¿Cómo se
incentivará la participación efectiva de los gobiernos locales? ¿Qué pasa
en el caso que dilatan los procesos pero que no incumplen? ¿Cuáles son
las estrategias políticas y militares para reestablecer el control de la política
local? Sin embargo, a pesar de la complejidad, es menester para el Estado
recuperar el control y la coordinación de sus políticas con estos actores para
poder garantizar la mayor efectividad de lo acordado. No hacerlo podría
signicar un derroche de recursos que implique resultados nefastos.
c. recursos escasos, reParaciones incomPletas
Los procesos de reparación comprenden un uso de recursos
exhaustivo que implica una logística importante para obtenerlos. Aquí
existen desafíos múltiples, dependiendo de los recursos necesitados.
En cuanto a los recursos nancieros, el Estado debe procurar
la solvencia y su liquidez para poder responder a la reparación efectiva
de las víctimas. Para esto se ha dispuesto desde el Acuerdo de un fondo
duciario para la reparación de las víctimas, con recursos de diferentes
orígenes, entre ellos los reportados por las Farc. No obstante, aún con esto
33
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
resulta difícil obtener la cantidad necesaria para reparar todas las víctimas
del conicto y todavía no se sabe si los recursos presentados por las Farc
son la totalidad de lo que poseen o solamente es una parte de ello. Por
ende, el cómo se conseguirá la cantidad restante de recursos sigue siendo
un enigma que depende en demasía de la cooperación internacional,
teniendo en cuenta el décit presupuestario que maneja el gobierno. Aún
más allá, no se sabe exactamente cómo el Estado entrará a comprobar si
efectivamente existen más recursos de las Farc no reportados y cómo se
apropiarán de estos en el futuro, considerando que existe la posibilidad
de que estén en fondos extranjeros.
En cuanto a recursos físicos, resalta el proceso de la restitución
de tierras como un tema delicado. Esto ocurre por el simple hecho de
que las tierras que les pertenecían a las víctimas en su mayoría no están
en manos del victimario o algún cómplice, sino de un individuo que la
compró conando en la buena fe (VALENCIA LASERNA, 2012; EN
LA RESTITUCIÓN..., 2016; ONU, 2017). Casos se han presentado
en los cuales los terrenos ya han sido vendidos múltiples veces y que el
poseedor de la tierra está totalmente lejos del despojo inicial, pero que
existe la posibilidad de que el Estado reclame la tierra para reparar a una
víctima. En este caso, no se han establecido las garantías plenas de los
poseedores de las tierras ni de la forma en la que se les puede indemnizar
efectivamente en caso de reclamo. Por consiguiente, es importante pensar
cómo se conseguirán estos recursos que tienden a ser más escasos y cómo
se manejará el tema de restitución de tierras para no afectar la protección a
la propiedad privada que maneja el Estado colombiano.
3.4 – DerecHo a garantía De no rePetición
La no repetición es el resultado de todo un proceso efectivo de
paz. La garantía de no repetición implica realizar las acciones necesarias
para que las condiciones que causaron el conicto cambien y se evite la
repetición de los elementos estructurales que propiciaban la violación de
los derechos y la dignidad de las víctimas. Cuando se han garantizado
los recursos materiales, simbólicos y políticos necesarios, el contexto que
reproducía el conicto cambia y los resultados suelen ser diferentes.
34
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
No obstante, cuando existe la repetición de estos elementos,
cuando no se esclarece la verdad, cuando no se sancionan efectivamente
a los victimarios y no se repara integralmente a las víctimas, es muy
probable que se repita el conicto. El éxito de la no repetición depende
del éxito acumulado de los anteriores derechos porque atacan la
estructura violenta y poco favorable que ha causado el conicto. No
obstante, existen factores diferentes a los ya mencionados que amenazan
la garantía de no repetición.
a. gruPos armaDos organizaDos y gruPos criminales
organizaDos: la encruDeciDa lucHa Por el PoDer en
colomBia
Ya varios informes (ÁLVAREZ; CAJIAO; CUESTA, 2017)
han demostrado que la actividad de grupos al margen de la ley ha
aumentado en ciertas zonas del país. Incluso el informe del Instituto
de Medicina Legal (2017), Forensis 2016, demostró que las muertes
violentas relacionadas con el ‘ajuste de cuentas’ y la disputa de
economías criminales aumentaron a nivel nacional, especialmente en
Tumaco, Tibú y San Vicente del Caguán. El informe concluye que el
recrudecimiento del conicto se debe a los cambios de las formas de
autoridad que ejercía la guerrilla y que ahora se están desmontando.
Es decir, se adeuda a las luchas de los diferentes grupos emergentes
para ocupar los vacíos de poder dejados en el proceso de desarme y
desmovilización de las Farc.
Entre estos, los más importantes actores de estos nuevos
conflictos son el Ejército de Liberación Nacional (ELN), el Clan del
Golfo, las Autodefensas Gaitanistas de Colombia y las disidencias
de las Farc. De forma paralela, existen otros actores individuales
que se alían con estas estructuras ilegales dentro de algunas zonas
del país, como lo son los narcotraficantes y contrabandistas, quienes
ayudan a fortalecer la influencia de estos grupos para el desarrollo
de sus actividades.
35
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Figura 3 – Mapa de las Amenazas para la Seguridad en el Posconicto.
Fonte: JUSTICIA, 2017.
Todavía más allá, como establece Álvarez (2017), los esfuerzos del
Estado colombiano han sido infructuosos y no han podido detener estas
estructuras al margen de la ley, que, por el contrario, han demostrado una
gran capacidad de adaptación y anticipación de la acción del Estado. Lo
anterior ha dado como resultado que ciertas zonas estén más identicadas
con el poder que tienen estos grupos que con el propio poder estatal.
El desafío que plantean estos actores es fundamental en términos
de supervivencia y legitimidad del Estado, pues conforman en sí mismos
poderes que compiten de frente con el poder estatal por el control de zonas
dentro del territorio nacional. En ese contexto, el Estado colombiano debe
utilizar todos sus recursos, cambiando de estrategia, para eliminar o al
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Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
menos disminuir la inuencia de estos grupos sobre las zonas en las que se
encuentran y las personas que allí habitan.
Pero lo anterior no se limita solamente a una competencia
por la soberanía nacional, sino que la disminución de la inuencia
de estos grupos trae una serie de benecios que ayuda al Estado y
la consecución de los objetivos del Acuerdo Final. En primer lugar,
eliminar o disminuir el alcance de inuencia de estos grupos permite
desmontar las estructuras de violencia y reclutamiento que ya tenían
sobre los ciudadanos, principalmente campesinos. Cuando se eliminan
los elementos de reclutamiento y violencia sistemática, se reduce la
posibilidad de instruir nuevos integrantes o causar mayores víctimas
directas e indirectas. De esa manera, se recupera el control de los
territorios a la vez que se empieza a disminuir la probabilidad de
reproducción de estas lógicas de violencia a largo plazo, permitiendo
una mayor posibilidad de no repetición al eliminar los elementos
violentos del contexto que generan interacciones conictivas.
En segundo lugar, existe un efecto sobre la reducción de asesinatos
de personas dentro de estos territorios, especialmente disminuyendo la
cantidad de líderes sociales asesinados. Como ya se había demostrado, la
presencia de líderes sociales tiene un efecto positivo sobre la lucha por
los derechos ciudadanos y permite la denuncia social sobre acciones
que pretendan la violación de los mismos. Por el contrario, el asesinato
sistemático de estos actores reporta una disminución de estas denuncias
y a la disposición de las personas a relatar detalladamente la verdad, por
miedo a sufrir reprimendas. Limitar el alcance de inuencia de estos grupos
ilegales permite la protección de líderes y la evasión de los efectos derivados
de sus asesinatos.
Por último, la disminución del alcance de estos grupos es una
lucha paralela contra el tamaño de las economías ilegales. Como se
demostrará más adelante, el Estado tiene como desafío reducir en lo posible
estas prácticas económicas que reproducen comportamientos criminales y,
por tanto, reproducen las conductas del conicto.
En resumen, el Estado tiene el deber fundamental de combatir
estos poderes frontales con un cambio de estrategia, dado el fracaso actual
37
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
de las intervenciones (¿cómo va a ser esta estrategia? ¿Va a ser solamente
una estrategia militar o se utilizará en conjunto con estrategias políticas
y económicas?). El desafío de reducir y eliminar en el futuro la zona de
inuencia de estos actores es esencial para recortar el número de variables
que reproducen el conicto. Asimismo, es esencial para recobrar el control
estatal sobre el territorio y la población, aumentando la efectividad estatal.
No atender este desafío podría resultar en mayor probabilidad de fracaso
en la implementación del Acuerdo y el fracaso del Estado por recobrar el
control sobre su territorio y población.
B. economías ilícitas: los tentáculos De la violencia
Las economías ilícitas han sido una de las mayores razones (si
no, la mayor) de disputa entre los grupos emergentes que han surgido en
el desarme y desmovilización de las Farc. Entre las economías ilícitas más
importantes se encuentran, según Forensis 2016, la producción de coca,
el control de los corredores de narcotráco, el mercado de las drogas, la
minería ilegal y el contrabando.
Estas economías ilícitas tienen unas lógicas propias que reproducen
los elementos de conicto en el contexto de los individuos que están a su
alcance. Es decir, en un primer momento signica la necesaria presencia
de grupos criminales que se aprovechan de estas economías, por lo cual
implica estructuras criminales que reclutan y generan violencia. Esto causa
un contexto violento que aumenta las probabilidades de conicto y de
reincidencia, en caso de un proceso transicional.
En segundo lugar, estas economías ilícitas generalmente
se aprovechan de los contextos desfavorables de las personas, que
generalmente son campesinos, y los involucran en comportamientos
criminales. Por tanto, así en un primer momento los individuos que
hayan ingresado a estas actividades como método de supervivencia, es
inevitable que en el tiempo los individuos terminen por adoptar estos
comportamientos criminales y los escalen por el simple hecho de estar en
contextos de ilegalidad. Estas situaciones pueden generar vías en las cuales
aumente la participación de otros actores en el conicto, perpetuando los
elementos reproductores del mismo.
38
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
El caso de la producción de coca es de especial mención, pues su
tratamiento es sumamente complejo. Según un informe de la Ocina de
las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito de julio del 2017, el área
cultivada en el país ha venido en aumento desde 2013. El informe deende
que en 2016 el área cultivada de coca en el país subió un 52% respecto al
2015, alcanzando 146.000 hectáreas. Inclusive, se encontró que las áreas
cultivadas en territorios protegidos también habían aumentado, al punto
que en los resguardos indígenas subieron un 32% en 2016, en los consejos
comunitarios afro un 45% y que 16 de las 59 áreas protegidas presentan
cultivos de coca.
Figura 4 – Serie histórica de área con coca 2001 – 2016.
Fonte: ZAMUDIO PALMA, 2017.
Además, no solo halló que las áreas cultivadas habían aumentado,
sino que el potencial productivo de estos cultivos había aumentado un
33,5%. Por último, se observó que los precios nales del clorhidrato de
cocaína aumentaron, con una baja de los productos intermedios. Estos
datos permiten concluir que el alza observada de la producción de cocaína
tiende a mantenerse o incluso a acrecentarse, por lo cual la lucha por los
territorios con este n seguramente se encrudecerá aún más.
Además, cabe hacer hincapié en los involucrados de estos
cultivos: las minorías étnicas y las zonas históricamente afectadas por el
conicto. Como ya se había dicho, hay un mayor involucramiento de
39
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
los indígenas y afros dentro del de cultivo de coca, por lo cual se está
permitiendo la vulnerabilidad de estos grupos de especial cuidado a la
adaptación de lógicas de conicto. Asimismo, se encuentra que el 63%
de las áreas cultivadas se concentran en Nariño, Putumayo y Norte de
Santander, áreas afectadas por el conicto y que siguen reproduciendo
los elementos de conicto en su interior.
Lo anteriormente dicho demuestra la necesidad de una lucha
contra las economías ilícitas, especialmente con el cultivo de coca,
porque está afectando poblaciones especialmente vulnerables y zonas
históricamente transformadas por el conicto con las Farc. Así, se
encuentra una afectación en dos vías. La primera afectación se presenta por
la disputa de los grupos emergentes que perpetúa un contexto de violencia,
manteniendo unas redes de reclutamiento y de daño a los individuos que
asegura materia prima para el conicto. La segunda afectación es por las
lógicas que implican las economías ilícitas y que permiten una mayor
probabilidad del escalamiento de las acciones criminales, involucrando
personas que anteriormente eran ajenas a ellas.
El desafío de disminuir la cantidad de actividades de este tipo y
su inuencia en la sociedad resulta menester para erradicar elementos que
reproducen el conicto, permitiendo una mayor garantía de no repetición.
Cabe preguntarse: ¿cuáles van a ser las medidas alternativas en el caso de
que, como ha ocurrido en estas zonas, fallen los incentivos dispuestos en
el Acuerdo para la transición a las actividades legales? ¿Cuáles van a ser
las estrategias para la transición a actividades legales que sean diferentes
a las agrícolas, ya que el Acuerdo habla casi exclusivamente de estas?
¿Qué incentivos existen para la transición a la legalidad en la minería, el
contrabando, entre otros?
4 – otros Desafíos: legitimiDaD y Democracia
Teniendo en cuenta las diferentes velocidades con las que se aplica
lo acordado en la Habana y los diferentes plazos que se estipulan, existe un
desafío que puede poner en peligro la totalidad del proceso de paz. Este
desafío concierne a la democracia como sistema político y su capacidad de
redenir el rumbo del Estado por el simple cambio de gobierno.
40
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
En Colombia, especialmente, existe una incapacidad del aparato
estatal de imponer y sostener políticas de Estado que se mantengan en
el largo plazo independiente de los cambios de gobierno. Incluso temas
tan delicados como la salud y la educación tienden a transformarse de
acuerdo con el gobierno de turno, dada la vaguedad de los objetivos y
especicaciones de las leyes que los regulan. Aunque tiene un alcance
constitucional, el proceso de paz no está exento de estos fenómenos,
sino que puede ser vulnerable al cambio de guía que proponga tanto el
legislativo como el ejecutivo. Ocurre que lo acordado depende en gran
medida de lo que se decida en el Congreso y lo que dispongan los decretos
presidenciales, por lo cual un giro abrupto en la ideología del Estado puede
hacer que el proceso se ralentice, tenga resultados no esperados o, en el
peor de los casos, fracase en su intento de alcanzar la paz.
Solo para citar algunos casos, ya el presidente del partido político
Cambio Radical aseguró en vísperas de las elecciones que se levantaría
de la mesa de negociación con el ELN si su colectividad gana en las
contiendas (POLÍTICA, 2017). El Centro Democrático, por su parte,
ha hecho reiteradas críticas al proceso de paz y cambiaría puntos fuertes
de lo negociado con las Farc y de lo que se está negociando con el ELN
(REDACCÍON POLÍTICA, 2017). Así las cosas, las elecciones amenazan
con dar un vuelco a las políticas estatales y el apoyo al proceso de paz.
Pero este asunto va más allá de las simples elecciones: implica
una crisis de legitimidad. Factores como la imagen negativa que presenta
el presidente Juan Manuel Santos como abanderado del proceso, como
también la exacerbada división política que ha surgido a partir del
plebiscito, han llevado a que el Acuerdo de Paz y su implementación
estén experimentando una crisis de aceptación por parte de la sociedad
colombiana. De este modo, las elecciones son un desafío gigante que
tiene que superar el actual Acuerdo con las Farc, pero la legitimidad
del mismo proceso es uno de los desafíos fundamentales que se tiene
que solucionar en el corto, mediano y largo plazo para garantizar su
continuidad y cumplimiento.
Así las cosas, surgen varias preguntas que guían los desafíos de
este aspecto en especial: ¿cómo mejorar la legitimidad del Acuerdo de Paz
con las Farc bajo el contexto de las elecciones legislativas y presidenciales?
41
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
¿Es necesario un punto de no retorno? Y si es así, ¿cómo asegurar que exista
este punto de no retorno para que no fracase el proceso en un eventual
cambio de gobierno?
5 – conclusiones
Como se ha venido demostrado, el proceso de los principios de
Joinet tiende a ser dinámico y necesita de la mayor cantidad de éxito en
el cumplimiento de la totalidad de los principios para alcanzar un cambio
efectivo. Esto se traduce en que el éxito al garantizar la verdad, el hecho
de establecer procesos de justicia efectivos con sanciones proporcionales
para resarcir el daño e implementar medidas efectivas de reparación de las
víctimas, aumenta la posibilidad de no repetición. Lo anterior ocurre por el
hecho de eliminar o reducir las variables que reproducen el conicto en el
tiempo, permitiendo que la gente esté más dispuesta a llevar interacciones
más pacícas en el futuro. Al mediano y largo plazo, esto permite que las
lógicas de reconciliación se vuelvan procesos de aceptación de un grupo a
otro, que en lo esencial es la transformación de la orientación o evaluación
psicológica frente al otro (CORTÉS et al., 2016). Las lógicas microsociales
que pueden darse a partir de esta situación ayudan a la resolución de
conictos con empatía, con perspectiva no violenta y de forma creativa
para alcanzar la paz. Las lógicas macro, por su parte, se establecen desde el
deber del Estado por recoger la memoria y reparar a la sociedad como una
víctima colectiva; la ingeniería legal debe responder a esto.
Así pues, se encontró que los principales desafíos que enfrenta
el proceso de paz colombiano están relacionados con la multiplicidad de
actores violentos, las disputas que existen por los métodos de supervivencia
y el contexto que crean a partir de la reproducción de elementos que
facilitan el conicto. También existe una fuerte relación con la incapacidad
del Estado de llenar el territorio con la soberanía que le corresponde, por
lo cual se le hace difícil garantizar los derechos de forma completa. Por
último, exista una latente incapacidad de cooperar entre las entidades que
reduce la efectividad de las políticas dispuestas para el n del conicto,
generando conictos entre ellas y poca disposición a cooperar.
42
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Lo anterior se traduce en la poca legitimidad que amenaza con
el fracaso de los procesos transformadores que propone el Acuerdo Final,
tanto social como políticamente. En lo social puede convertirse en poca
disposición de la sociedad a cambiar los comportamientos de conicto,
mientras en lo político el Acuerdo se enfrenta con las futuras elecciones
legislativas y presidenciales que pueden castigar fuertemente la disposición
gubernamental a cumplir con lo estipulado como está.
El éxito o el fracaso de la implementación del Acuerdo se
encuentra, pues, en el análisis de estos desafíos que se consideran de vital
importancia y que atienden a los mínimos necesarios para un proceso
exitoso. De la misma manera, no se pretende analizar todas las variables
que existen en la implementación, pero sí las que se considera que pueden
arriesgar la continuidad del proceso de paz colombiano. Sin embargo, este
breve análisis, que intenta recoger la experiencia de este caso, sirve como
lupa para la implementación y formulación de otros procesos venideros.
En n, el conocimiento de la historia tal vez permita evitar la creación de
otras naciones macondianas.
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O Q  O N V:
A H 
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Susana de Deus
Renata Reis
1 – introDução
Guerras e conitos, grandes desastres socioambientais e outras
situações extremas sempre assolaram a humanidade, trazendo sofrimen-
tos e perdas humanas. As guerras per se foram consideradas ao longo da
história a principal forma de solução de conitos entre Estados. Do pon-
to de vista jurídico a guerra era considerada legal quando realizada por
propósito e meios justos
1
. Até ns da década de 1920, as guerras eram
A teoria da guerra justa faz parte da losoa política ocidental nos últimos dois mil anos. Teólogos como São
Ambrósio e Santo Tomás de Aquino bem como juristas como Hugo Grotius, ao longo da história avançaram nos
argumentos morais (em relação a obrigações, restrições e proscrições) que os Estados e os seus exércitos deviam
48
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
consideradas legais perante o Direito Internacional. Os estragos trazidos
com a Primeira Guerra Mundial não foram sucientes para a proibição
da guerra ou do uso da força. Apenas em de 7 de agosto de 1928, com o
Tratado Geral de Renúncia à Guerra – também conhecido como Pacto
Kellogg-Briand (ou Pacto de Paris) – a guerra foi proscrita. Isso signi-
cou, dentro do sistema internacional, que a guerra se tornou então uma
forma ilegal de solução de conitos.
Por óbvio, os pactos e tratados e mesmo a denição de sua ile-
galidade não foram sucientes para impedir a edição e novas guerras, in-
cluindo a Segunda Guerra Mundial. Mesmo antes do tratado apontado
acima, a destruição massiva e danos generalizados em relação a população
civil já eram razão de profunda preocupação. Por essa razão, se fez necessá-
rio estabelecer normas reguladoras das hostilidades, impondo às partes em
conito um padrão mínimo humanitário e impedindo o uso desregrado da
força. Ainda no século XIX foram lançadas as bases das ‘sociedades volun-
tárias de socorro’ com vistas a oferecer atenção médica e alívio às vítimas de
guerra e que foram as bases para o aprofundamento do debate e construção
de um campo humanitário. Prevalecia então a compreensão da vulnerabi-
lidade de seres humanos em zonas de conito, buscando estabelecer regras
para preservar um padrão mínimo de humanidade.
Por esse motivo, tornou-se necessário o estabelecimento de nor-
mas reguladoras da condução das hostilidades, criando imposições espe-
cícas às partes beligerantes um padrão mínimo humanitário de forma a
impedir o uso desproporcional da força. Nascia então o Direito Interna-
cional Humanitário (DIH).
O direito internacional humanitário então pode ser conceituado
como Swinarski (1996, p. 9):
[...] o conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou
consuetudinária, especicamente destinado a ser aplicado nos coni-
tos armados, internacionais ou não-internacionais. E que limita, por
razões humanitárias, o direito das Partes em conito de escolher livre-
respeitar nas três fases da guerra: antes, durante e depois da guerra. Na teoria da guerra se avançou na análise
de um quadro moral em relação a quando o uso da força é moralmente justicado (como a autodefesa), mas
também estabelece limites para os atos de guerra destrutivos, apelando a padrões de conduta que incorporem
discriminação, proporcionalidade e necessidade (MAY, 2007).
49
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
mente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as
pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conito.
Denido assim, o direito internacional humanitário faz parte do
direito internacional público positivo, ocupando o lugar do conjunto de
regras que antes era conhecido com a denominação de direito da guerra.
Em geral a doutrina classica o Direito Internacional Humanitá-
rio em dois ramos: o Direito de Haia e o Direito de Genebra
2
. O primeiro,
também chamado de Direito dos Conitos Armados, regula a condução
das hostilidades e a imposição de limites aos meios de fazer a guerra. O
segundo concentra-se nas vítimas dos conitos armados. O Direito In-
ternacional Humanitário transformou-se então num conjunto de normas
complexo que restringem o recurso à violência e colocam limites nos diver-
sos conitos armados. Trata-se de um direito de exceção, de urgência, que
intervém em caso de ruptura da ordem jurídica internacional.
Em sua acepção mais clássica existem princípios que devem nor-
tear a consecução das atividades humanitárias, tais como a provisão de
auxílio sem nenhum tipo de distinção de raça, cor, credo ou etnia. Assim,
torna-se fundamental que tal ação fosse guiada pelo princípio de imparcia-
lidade, de modo a assegurar que todos fossem assistidos de maneira iguali-
tária e tendo por base apenas suas necessidades fundamentais e imediatas.
Nestas situações, a ajuda deve ser prestada tendo em conta apenas as ví-
timas, independentemente de outro tipo de interesses militares, políticos,
religiosos ou outros.
O nal da Guerra Fria trouxe um novo momento para as ope-
rações humanitárias globalmente (DUFFIELD, 2001). Antes desse perí-
odo – ou seja durante a Guerra Fria – a competição entre os dois blocos
levou a inúmeras intervenções dos Estados Unidos e da União Soviética.
Aquele momento histórico polarizado era balizado numa batalha estra-
As Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais formam o núcleo do Direito Internacional Humani-
tário (DIH), o ramo do Direito Internacional que estipula regras para conitos armados, buscando limitar suas
consequências. Especicamente protegem as pessoas que não estão envolvidas com as hostilidades (civis, pros-
sionais da saúde e pessoal humanitário) e as que deixaram de participar ativamente dos conitos, como comba-
tentes feridos, enfermos e náufragos e prisioneiros de guerra. As Convenções de Genebra entraram em vigor em
21 de outubro de 1950. Atualmente o total de Estados Partes somam 194, fazendo com que as Convenções de
Genebra sejam universalmente aplicáveis (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2010).
50
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tégica, mas também marcadamente ideológica, onde cada um dos lados
estendia sua ajuda revestida de sua forma de ver o mundo e de ver outras
nações reetindo esse prisma particular. Assim, a literatura especíca está
plena de análises sobre as reais intenções ‘humanitárias’ por trás das in-
tervenções da União Soviética na Hungria em 1956 e na Checoslováquia
em 1968, e a dos Estados Unidos na República Dominicana em 1965 e
Granada em 1983.
Já no período imediatamente seguinte, inaugurou-se a ‘era do
poder unipolar’ onde a ideologia política dominante baseou-se na demo-
cracia liberal. A partir de então, o nanciamento disponível para ajuda
humanitária e o número de organizações que prestam assistência cresceu
de forma muito signicativa (DUFFIELD, 2014). A proliferação de ato-
res que passaram a intervir nas crises trouxe também uma distinção entre
eles no que tange aos seus mandatos e prioridades. Podemos dizer tam-
bém que o trabalho humanitário mudou de lócus e teve sua visibilidade
espetacularmente ampliada ao longo dos anos. De forma quase ausente
da mídia até o nal dos anos 70, o humanitarismo passou então a de-
sempenhar um papel central nas coberturas das crises. Especialmente em
países do Norte global as carreiras dedicadas a temas humanitários co-
meçaram a se desenvolver, foram criados cargos de Ministros para a área;
cursos, seminários e teses universitárias foram dedicados à questão. Ao
mesmo tempo, os recursos para a ação no ‘terreno’ seguiram se expandin-
do e foram implementados projetos cada vez mais numerosos e em maior
escala (BRAUMAN, 2016). Esse período foi marcado também por uma
crescente presença de organizações humanitárias muito próximas das zo-
nas de conito e um aumento no número de seus trabalhadores em áreas
que anteriormente eram inacessíveis.
Nesse contexto, pari passu com a ampliação e surgimento de
novas organizações humanitárias deu-se o surgimento das denomina-
das “emergências humanitárias complexas” e o aprofundamento de um
relativo abuso ou demasiada elasticidade no emprego do termo “hu-
manitário”, evidenciando a confusão atinente a verdadeira natureza e
propósitos da ajuda.
O conceito de emergências humanitárias complexas foi ampla-
mente utilizado pelos formuladores de políticas e pela a comunidade hu-
51
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
manitária internacional com o objetivo de identicar conitos de maior
preocupação para o sistema das Nações Unidas, agências governamentais
e organizações que prestam ajuda humanitária. Essa nomenclatura tam-
bém passou a ser largamente usada entre especialistas em saúde pública e
conitos (EVERETT, 2014; GHOBARAH; HUTH; RUSSETT, 2003).
Há uma variedade de denições na literatura das chamadas crises huma-
nitárias complexas. As Nações Unidas conceituam que uma emergência
complexa se apresenta como uma crise humanitária em um país, região
ou sociedade onde há um colapso total ou considerável da autoridade
anteriormente constituída resultante de conitos internos ou externos
e que requer uma resposta internacional que vá além do mandato ou
capacidade de qualquer indivíduo, agência e/ou o programa em curso da
Organização das Nações Unidas (ONU) (UNITED NATIONS HIGH
COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2001). Entre as características
de emergências complexas destacamos:
a) Um grande número de vítimas civis, populações sitiadas ou des-
locadas ocasionando sofrimento humano em grande escala;
b) A necessidade de assistência internacional substancial uma vez
que a resposta ultrapassa o mandato ou a capacidade de qualquer
agência isoladamente;
c) O oferecimento de assistência humanitária é impedida ou é di-
cultada pelas partes envolvidas no conito;
d) Existência de altos riscos de segurança para os trabalhadores hu-
manitários que oferecem ajuda.
Não obstante as múltiplas nuances teóricas sobre a caracterização
dos conitos e as tentativas de classica-los de acordo com seu impacto e
consequências, fato é que os conitos que seguiram ocorrendo nas últimas
décadas apresentaram mudanças importantes nos padrões de violência e na
pulverização de agentes envolvidos, incluindo milícias, governos, agentes
comunitários locais e múltiplas revoltas populares. Conitos têm ocor-
rendo concomitantemente em distintas partes do mesmo território, crian-
do múltiplas instabilidades. Esses elementos podem acarretar mudanças
demográcas súbitas como pessoas internamente deslocadas e êxodo de
52
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
pessoas em busca de refúgio; insegurança alimentar à medida que os mer-
cados e plantações colapsam; epidemias e deterioração das instalações de
saúde. O sofrimento humano em conitos não é uma novidade nem uma
exclusividade dos conitos das últimas décadas. Sempre houve populações
vulneráveis que sofreram diretamente os impactos de conitos onde seus
países foram palco. O que destacamos é que, em algumas crises, uma série
de elementos podem estar combinados – como os elencados acima – e isso
implica num cenário mais complexo que o usual.
Por óbvio, as consequências dos conitos e o sofrimento huma-
no decorrente deles são o coração da necessidade de resposta humanitária
coordenada. Assim, compreender a natureza do conito armado e suas
nuances particulares são fundamentais para que a ajuda humanitária possa
ser oferecida a quem dela necessita e para que os trabalhadores humani-
tários tenham sua ação respeitada. Porém, num contexto de ampliação da
complexidade dos conitos armados, passamos a assistir no plano interna-
cional uma inadequação entre as regras estabelecidas e a realidade. Mais
que isso, passamos a vivenciar uma incompreensão das regras existentes ou
simplesmente desrespeito deliberado. Isso não é uma exclusividade do Di-
reito Humanitário como se pode argumentar – pode-se apontar inúmeros
eventos no cotidiano das relações sociais e patrimoniais – de descompasso
entre a realidade existente e as normas estabelecidas. No entanto, em se
tratando de regras sobre ambientes patentemente inseguros e de violência
generalizada, o descompasso entre as regras constituídas e o seu desrespeito
podem trazer consequências extremamente graves, como veremos.
2 – conflitos armaDos: Distinções e Desafios
Como armamos acima, as guerras mesmo tendo sido declara-
da ilícitas pelo direito internacional público, continuam ocorrendo, com
maior e mais aguda brutalidade, e, portanto, o direito internacional huma-
nitário segue sendo mais que nunca necessário.
Os conitos armados são tradicionalmente classicados entre os
internacionais e não internacionais (ou internos). Os conitos armados in-
ternacionais são aqueles cujas partes beligerantes são pelo menos dois Esta-
dos. As quatro primeiras Convenções de Genebra de 1949 e seu Protocolo
53
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Adicional I de 1977 se dedicam a regular questões humanitárias relacio-
nadas a esses conitos. O Artigo 2 (comum) das Convenções de Genebra
de 1949 estabelece, dessa maneira, que as mesmas serão aplicadas em caso
de guerra declarada ou de qualquer outro conito armado que surja entre
duas ou várias das Altas Partes contratantes, mesmo que o estado de guerra
não tenha sido reconhecido por alguma delas. Dessa forma, as Convenções
são claras ao prever que a denição do conito armado internacional, não
resulta da classicação jurídica que as próprias partes atribuam a esse con-
ito (SWINARSKI, 1996) e, ressalta-se uma vez mais, o DIH visa prote-
ger as vítimas de guerra e seus direitos fundamentais, independentemente
da parte à qual pertencem.
Ocorre que, nos dias atuais, os conitos entre Estados deixaram
de ser a regra e são na verdade a exceção à regra. Grande parte dos coni-
tos armados se desenvolvem no território de um único Estado, caracteri-
zando-se, portanto, como conitos de caráter não internacional (ZAMIR,
2017). As normas de DHI aplicáveis aos conitos armados não interna-
cionais são muito mais simples e escassas que as aplicáveis aos conitos
internacionais. Sua fonte principal é o artigo 3º comum das Convenções
de Genebra e o Protocolo Adicional II (LUQUINI, 2003). Nesse artigo se
prevê expressamente a aplicabilidade do direito humanitário na situação de
conitos armados que não apresente um “caráter internacional e que surja
no território de uma das Partes contratantes”.
Os elementos de constituição de um conito não internacional
são: i) o conito ocorre no território de um Estado; ii) as forças armadas
deste Estado opõem-se as forças armadas ou a grupos armados que não
reconhecem a sua autoridade; iii) estas forças e grupos armados devem
estar sob o comando de uma autoridade responsável e iv) devem exercer
um domínio sobre uma parte do território desse Estado que lhes permita
realizar operações militares continuas e acordadas, e aplicar as disposições
de direito humanitário do Protocolo II.
Ocorre que por vezes um conito escapa ao controle do Estado
legalmente constituído e o caos que se apresenta é tão severo que a violência
alcança níveis alarmantes. Atualmente, num contexto real de colapso ins-
titucional, as organizações humanitárias se veem mergulhadas numa luta
incessante para tentar prestar auxílio e socorro à população civil, porém,
54
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
encontram-se num ambiente onde o DIH não é respeitado ou mesmo re-
conhecido. A desintegração das estruturas estatais ocorre quando o Estado
perde um dos elementos constitutivos apontado acima: um governo que
possa garantir um controle real de seu território.
O que se assiste atualmente é o fato de que a população civil segue
sendo a principal vítima de violações do DIH cometidas por Estados Par-
tes e por grupos armados não-estatais ao arrepio das regras internacional-
mente estabelecidas. São ataques violentos contra civis; destruição de infra-
estrutura essencial – como clínicas e hospitais; deslocamentos forçados de
populações inteiras; prisão arbitrária, tratamento cruel e tortura, além de
ataques deliberados contra pessoal médico e trabalhadores humanitários.
Há, portanto, um conjunto de regras circunscrevendo as ações e compor-
tamentos que devem ser seguidos conitos armados e um incremento no
número de Estados, grupos armados não-estaduais e indivíduos que não
interrompem as violações das regras, independentemente da penalidade
envolvida. Esse fato tem um impacto direto na diminuição do espaço hu-
manitário nessas zonas.
O espaço humanitário pode ser denido como “um ambiente
onde os trabalhadores humanitários podem desenvolver suas atividades
sem obstáculos, seguindo os princípios humanitários de neutralidade,
imparcialidade e humanidade (SPEARIN, 2001). Refere-se, portanto, ao
espaço físico e também simbólico, ou seja, trata-se do espaço físico consti-
tuído, mas também a possibilidade de trabalhar sem temores de ataques ou
expostos a riscos por outros atores. Esta noção de espaço humanitário tem
suas raízes desde os primórdios da construção das respostas humanitárias
(HILHORST; JANSEN, 2010).
Embora outras causas possam ser aventadas para explicar a dimi-
nuição dos atores humanitários em ambientes ‘complexos’ ou ultra inse-
guros (por exemplo os múltiplos mandatos das organizações; problemas
em relação a nanciamentos e disfunção do próprio sistema das Nações
Unidas), cabe-nos nessa oportunidade destacar que a insegurança dos con-
textos e o desrespeito sistemático ao DIH pode ser considerada uma das
razões para a redução do espaço humanitário, acarretando uma redução na
resposta e presença de organizações humanitárias em crises atuais.
55
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Com esse cenário, organizações como Médicos Sem Fronteiras,
deparam-se com uma mudança importante que pode ser observada em
contextos considerados difíceis. De nossa experiência recente percebemos
uma série de alterações que colocam em xeque muitas vezes a capacidade
de resposta das organizações que se mantêm nesses contextos, entre elas
podemos destacar (MÉDECINS SANS FRONTIÈRES, 2014):
a) As agências das Nações Unidas e muitas organizações não governa-
mentais, que em outros momentos estavam atuando nesses locais,
estão cada vez mais ausentes, especialmente quando há algum tipo
de problema de segurança ou de ordem logística;
b) Em emergências agudas, quando a assistência se faz mais necessá-
ria, equipes internacionais de agências humanitárias são rapida-
mente evacuadas, enfraquecendo a resposta;
c) Muitos atores humanitários estão agora trabalhando de forma re-
mota (como intermediários, especialistas ou doadores), contando
com o apoio de organizações locais. Além disso algumas agências
humanitárias simplesmente esperam até as emergências passarem
para continuar seu trabalho de longo prazo, com base em agendas
de desenvolvimento.
Outra tendência crescente nos conitos atuais é a participação de
empresas privadas em assuntos militares. As chamadas Empresas Militares
Privadas (EMPs) tornaram ainda mais complexo o cenário e trouxeram
novos desaos na resposta às crises humanitárias (KALDOR, 2012). Exér-
citos ou forças privadas não são uma novidade per se, a novidade reside em
sua estrutura empresarial. São organizações com uma estrutura geralmente
estável que prestam serviços no campo militar e buscam o lucro. Estas
empresas oferecem tipos diversos de serviços. Podem exercer funções que
vão desde apoio logístico a operações militares, manutenção de sistemas de
armamento, a proteção de instalações e pessoas e treinamento militar, che-
gando a atuar diretamente em operações de natureza militar. Todas estas
atividades eram, em outras épocas, prerrogativas das forças armadas ociais
dos Estados (KOWALSKI, 2009).
56
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Alguns atores humanitários – e claramente esse não é o caso
de Médicos Sem Fronteiras – fazem também uso de agentes militares
privados. Segundo Singer (2006), os contratos entre atores humanitários
e EMPs estão crescendo e são mais constantes do que se possa imaginar.
Eles tiveram, e têm, lugar em quase todas as zonas de guerra atuais ou
recentes, incluindo o Afeganistão, a Bósnia, a República Democrática do
Congo e o Sudão. Em regra, as EMPs são contratadas em áreas onde o
governo não consegue fornecer segurança e onde parte da comunidade
internacional é signicativa. O trabalho articulado entre ajuda humani-
tária e EMPs pode trazer implicações severas a atuação neutra e indepen-
dente das organizações.
Outro desao apresentado pelas EMPs em conitos tem também
a ver com seu status jurídico e a possibilidade concreta de responsabiliza-
ção de atos cometidos pelos mesmos. Como vimos, as normas que regulam
os conitos armados foram erigidas sobre uma clara distinção entre aqueles
que participavam ou não das hostilidades, assim, a capacidade de distin-
guir civis de militares era parte importante dessa distinção. Ocorre que as
EMPs são constituídas por civis. Assim, em princípio, seriam protegidos
como civis pelo DIH, a menos que participem ativamente das hostilida-
des. No entanto, tendo em vista a multiplicidade de ações que podem em-
presarialmente executar numa zona de conito, nem sempre é claramente
identicável a ‘participação ativa’ num contexto deagrado.
Hoje já existem alguns mecanismos nacionais e internacionais
para regular a atuação das EMPs, como o acordo intergovernamental co-
nhecido como Documento Montreux e também o Código de Conduta
Internacional para Provedores de Serviços de Segurança Privada (ICoC,
na sigla em inglês). Eles surgem justamente para tentar suprir esse vácuo
legal ao exigir das EMPs o respeito ao Direito Internacional Humanitário
e ao Direito Internacional de Direitos Humanos, por exemplo através do
treinamento de seus empregados neste campo, dentre outras coisas. A exis-
tência desses acordos não signica que estejam de fato sendo implementa-
dos na prática, especialmente porque são mecanismos voluntários – não há
ainda uma resolução ou acordo vinculante no âmbito das Nações Unidas
para regular tais práticas (KARSKA, 2016). Os abusos cometidos pelas
EMPs, no entanto, seguem ocorrendo.
57
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
3 – consiDerações finais
A resposta humanitária às crises, especialmente conitos arma-
dos, nunca foi um trabalho simples. Historicamente a busca por socorrer
pessoas em agudo sofrimento em zonas de guerra avançou de uma preo-
cupação e uma prática para um conjunto robusto e complexo de normas
e regulações, de maneira a buscar garantir no ordenamento internacional
um mínimo de humanidade em contextos onde a violência e a fome gras-
savam. Com o passar das décadas e especialmente após a Guerra Fria esse
trabalho cresceu e se prossionalizou, ampliando em escala e em impacto
a resposta humanitária às populações.
Nunca houve um período de ouro para o humanitarismo. Os
desaos, como dito acima, sempre estiveram presentes, no entanto é im-
possível não estar alerta para a complexidade das crises atuais, com suas
multiplicidades de atores e implosão da capacidade de responsabilização e
de negociação de espaço humanitário em diversos contextos.
Mais do que nunca é tempo de aprofundar e ressaltar as bases do
humanitarismo, cujos princípios – tantas vezes desrespeitados, alargados e
corrompidos – continuam a ser o horizonte para uma busca de melhora do
sistema. Somado a isso nos custa acreditar que a resposta aos desrespeitos
agrantes ao DIH seja a edição de novas regras. As bases estão dadas e as-
sentadas, falta cada dia mais o respeito às mesmas.
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P I 
A N S 
O  P (PIANOP)
Floriano Peixoto Vieira Neto
For Nyakhat and Others
In April 2014, three-year old Nyakhat Pal walked four hours leading her
blind father and two dogs to a UNICEF–WFP rapid response distribution
centre in Pagak, Upper Nile State of South Sudan. When Nyakhat heard
the UN was providing vaccines food, water and sanitation supplies at the
center, she hurried.
ey walked those four hours through harsh and dangerous terrain. e
area has seen serious ghting between opposition forces and the South Su-
danese army, and peacekeepers of the UN Mission in the Republic of South
Sudan (UNMISS) have been deployed to protect the civilian population,
and create a zone of safety. At the end of the journey, Nyakhat got what she
had gone looking for; she received life-saving supplies before heading back
to her village, another four hours by foot.
62
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Nyakhat’s story is at the heart of what the United Nations was created for,
70 years ago: “to rearm faith in fundamental human rights and in the
dignity and worth of the human person”. And today, Nyakhats story still
represents what the United Nations stands for – as well as for its shortfalls.
e Organization will remain relevant to the extent that it responds eec-
tively to the expectations of people experiencing great hardship, sometimes
in remote and inaccessible places, and who yet demonstrate enormous resil-
ience, pride and bravery.
e Organization will remain legitimate to the extent that it acts as a voice
for the unheard, seeking their views and ensuring their full participation.
e Organization will remain credible to the extent it is served by leaders
and sta who demonstrate courage, integrity, compassion and humility,
and who act upon the norms, principles, and values upon which the Or-
ganization was founded.
For many, peace operations are not simply something the United Nations
does but what the United Nations is.
e work of the Panel over the past six months has been driven by the de-
sire to take a dispassionate look at UN peace operations to ascertain their
relevance and eectiveness for today and tomorrows world.
We hope that the analysis and recommendations contained here will live
up to the spirit and the letter of the mandate entrusted to the Panel by
the Secretary-General and to the expectations of Nyakhat and others:
that the Organization will be there with them, for them (UN. HIPPO
REPORT, 2015, iii).
1 – introDução
O PIANOP foi instituído pelo Secretário-Geral da ONU em 31
de outubro de 2014. Entre as razões que levaram a esse reestudo, destaca-
mos algumas a seguir. Sobre isso, o Chefe do Departamento de Operações
de paz da ONU assim se pronunciou:
O mundo está mudando e as Operações de Paz da ONU devem acom-
panhar essas mudanças, a m de continuar sendo uma ferramenta in-
dispensável e efetiva na promoção da paz e segurança internacionais.
Como nos aproximamos do 15º aniversário do Relatório Brahimi, de-
vemos reconhecer que as Operações de Paz de hoje estão sendo cada
vez mais chamadas a confrontar conitos desaadores e politicamente
complexos, freqüentemente em ambientes voláteis, em que as opera-
ções estão sendo diretamente visadas. Devemos assumir as crescentes
63
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
expectativas e considerar como a Organização pode promover a paz
e uma forma mais ecaz, ajudar países em conitos e assegurar que
nossas Operações de Paz e Missões Políticas Especiais continuem sendo
ecazes em um contexto global tão mutável (UN, 2014).
Em junho de 2015 o Presidente do Painel destacou que:
Desde então (31out. 2014), o Painel trabalhou focando um amplo
elenco de questões que se antepõem às Operações de Paz e Missões
Políticas Especiais, incluindo mudança da natureza dos conitos, evo-
lução dos mandatos, desaos aos bons ofícios e à construção da paz,
arranjos gerenciais e administrativos, planejamento, parcerias, direitos
humanos, proteção de civis, capacidades operacionais para o compo-
nente uniformizado e performance. (HORTA, 2015).
Os Termos de Referência (TR) do Painel apresentavam:
Ambas as Operações de Manutenção de Paz e Missões Políticas Espe-
ciais estão impactadas pelo contexto global de paz e segurança. Mais
frequente do que nunca, a ONU tem confrontado ciclos de repetida
violência, fraca governança e recorrente instabilidade.
...........................................................................................................
As Operações de Manutenção de Paz eram primordialmente des-
dobradas em situações de pós-conito, com um acordo de paz em
vigor. Hoje, elas são cada vez mais desdobradas onde não há paz
para ser mantida. A maioria dos peacekeepers (civis e militares) está
em áreas onde os conitos estão ocorrendo e eles são cada vez mais
alvos de ataques.
...........................................................................................................
As Missões Políticas Especiais estão também desdobradas em contextos
semelhantes, tentando construir acordos com partidos às vezes frag-
mentados e indispostos a se engajar em negociações.
..........................................................................................................
Ambas as mudanças da natureza dos conitos e a do papel das Opera-
ções de Paz têm exigido que a ONU se adapte e ofereça uma resposta
adequada (MOON, 2015).
O Sumário Executivo do Relatório destacou:
As Operações de Paz da ONU têm provado grande adaptabilidade
e contribuído signicantemente para a resolução bem-sucedida de
64
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
conitos e o seu declínio ao longo das duas décadas recentes. Hoje,
entretanto, há uma evidência de uma incômoda reversão de algumas
tendências e uma preocupação generalizada de que as mudanças nos
conitos possam ultrapassar a capacidade de reposta das operações de
paz. A difusão da violência extremista entre conitos regionais e as
aspirações crescentes das populações por mudanças vêm colocando
pressão nos governos e nos sistema internacional para responderem a
esses novos desaos. As Operações de Paz da ONU se esforçam para
alcançar seus objetivos e mudanças são necessárias para adaptá-las às
novas circunstâncias e para garantir a sua crescente eciência e uso
apropriado no futuro.
Um número considerável de Operações de Paz hoje está desdobrado
em ambientes onde há pouca ou nenhuma paz para ser mantida. Em
muitos dos desdobramentos, a tensão entre a capacidade operacional
e os sistemas de apoio está mostrando essa realidade e o apoio político
se sente bastante fragilizado. Há uma clara percepção sobre a grande
lacuna entre o que se espera das Operações de Paz das Nações Unidas e
o que elas são capazes de oferecer. Essa lacuna pode e deve ser reduzida
para assegurar que as Operações de Paz estejam aptas a responder efeti-
va e apropriadamente aos desaos que estão por vir (HORTA, 2015).
Além desses argumentos, inúmeros outros inputs podem ser con-
siderados para caracterizar a necessidade de mudanças do Organismo em
relação às Operações de Paz (Op Paz), tais como as vozes que emanam
de fontes como: C–34 (Comitê Especial Sobre Operações de Paz), Esta-
dos-Membros, Organismos Regionais, Governos e Institutos relacionados,
congurando uma sintonia em torno do que se buscou com a constituição
do Painel. O fato é que a ONU, mantendo o status quo atual, tem a sua
credibilidade e eciência comprometidas, principalmente em termos de
provisão da paz e segurança, prevenção e solução de conitos, exposição
demasiada de seu pessoal em áreas de risco e capacidade gerencial, entre
outros aspectos.
O Painel se baseou em muitas fontes para substanciar suas aná-
lises e recomendações. No entanto, tratou de consultar estudos anteriores
voltados para propósito semelhante, identicando, principalmente, os seus
argumentos constitutivos, sucessos e diculdades. Essa pesquisa possibili-
tou, de certa forma, o estabelecimento de uma coerência sequencial que
desse sentido ao que está sendo oferecido no atual relatório do PIANOP.
65
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Assim sendo, foram de grande importância as análises e conclu-
sões externadas nos seguintes documentos: 1) o Relatório Brahimi, ela-
borado em 2000; 2) a publicação “Operações de Manutenção de Paz da
ONU: Princípios e Diretrizes” (Capstone), de 2008; e 3) o estudo conjunto
do Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO) –De-
partamento de Apoio ao Terreno (DFS) “Uma Nova Agenda de Parceria
(New Horizon), de 2010. A abordagem desses documentos não será feita
neste texto, por considerá-los do domínio de quem trata do tema Op Paz.
Na busca de facilitar a implementação de suas recomendações,
o Painel decidiu, consensualmente: 1) que as análises e as recomenda-
ções (principalmente) devam ter um endereço especíco, tais como:
Secretário-Geral, Conselho de Segurança, Estados-Membros, Assem-
bleia-Geral, Países Contribuintes de Tropas (PCT), Países Contribuin-
tes de Policiais (PCP), etc. Assim sendo, as recomendações não foram
“lançadas” sem o respectivo destinatário; 2) elaborar recomendações
factíveis, sempre com a preocupação de baixo custo (ou “custo zero”)
em sua implementação; e 3) propor o engajamento de atores mais ro-
bustos nas opções de emprego de capacidades militares, além da prer-
rogativa de participar do processo decisório.
2 – o Painel inDePenDente
A escolha dos membros do painel foi prerrogativa pessoal do Se-
cretário-Geral da ONU, com base na distribuição geográca e experiência
pregressa dos candidatos. Com esse critério, formou-se um grupo hetero-
gêneo em suas qualicações individuais, mas com grande homogeneidade
em termos de vivência no ambiente ONU e em outros organismos inter-
nacionais. O grupo, durante todo o funcionamento do Painel, trabalhou
de forma harmônica e respeitosa, o que repercutiu sobremaneira nos re-
sultados, pois as decisões emanadas foram consensuais, consistentes e com
forte preocupação a respeito do impacto no que se pretendia alcançar.
O PIANOP foi integrado pelas seguintes pessoas: 1) José Ramos-
-Horta (Timor-Leste) – Presidente do Painel; 2) Ameerah Haq (Bangla-
desh) – Vice-Presidente; 3) Abhijit Guha (India); 4) Alexander Illitchev
(Rússia); 5) Andrew Hughes (Australia); 6) B. Lynn Pascoe (EUA); 7) Flo-
66
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
riano Peixoto Vieira Neto (Brasil); 8) Henrietta Joy Abena Nyarko Men-
sa-Bonsu (Gana); 9) Hilde F. Jonson (Holanda); 10) Ian Martin (Reino
Unido); 11) Jean Arnauld (França); 12) Marie-Lousie Baricako (Burundi);
13) Radhika Coomaraswamy (Siri Lanka); 14) Rima Salah (Jordânia); 15)
Youssef Mahmoud (Tunísia); e 16) Wang Xuexian (China).
É justo destacar que muito da elevada performance do grupo e
do excepcional clima de trabalho reinante entre seus integrantes puderam
ser maximizados pela excepcional atuação do Presidente, que com elevada
dose de sabedoria, vivência e engajamento, conduziu, com reconhecido
acerto, aos rumos rmados em consenso. A sua reputação e aceitação em
todos os locais visitados e autoridades com quem o Painel se relacionou
foram evidentes e contribuiu, sobremaneira, para fortalecer a consistência
do grupo como um todo.
2.1 – Dinâmica Dos traBalHos
O Painel foi inicialmente dividido em cinco grupos, de acordo
com as áreas de maior expertise e interesse pessoal de seus integrantes, di-
recionados ao aprofundamento da pesquisa e redação inicial dos textos do
Relatório. Essa constituição se desfez após a elaboração do 1º rascunho. A
partir de então, os assuntos foram distribuídos entre os grupos, para ns de
pesquisa e elaboração renada dos textos.
Os temas eram discutidos de forma presencial, por videocon-
ferência e por e-mail. Foi criada uma biblioteca eletrônica no ambiente
ONU para reunião de todo material pesquisado, recebido de fontes exter-
nas e encomendado a especialistas.
O ambiente de trabalho nas discussões era de extrema camarada-
gem, respeito e prossionalismo, sem registro de qualquer ocorrência que
pudesse comprometer a integração do grupo. A denição dos textos, em
todas as fases do Painel, era obtida de forma consensual.
O PIANOP estabeleceu, desde o início dos trabalhos, uma agen-
da de viagens para contatos com autoridades, organismos diversos, acade-
mias, think tanks, sociedade civil, organizações não-governamentais, etc.
Essa opção tinha como intenção deliberada ouvir as vozes de pessoas e
67
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
entidades de diferentes regiões, buscando maior integração com quem, na
prática, se dedica ao trato das Op Paz.
O Painel, em sua totalidade ou parcialmente, realizou quatro ti-
pos de viagens: reunião do Painel em Nova Iorque, EUA, no Quartel-Ge-
neral da ONU ou na chácara de Greentree (propriedade privada utiliza-
da pela ONU para reuniões de trabalho), em um total de seis encontros,
para discussão dos temas e redação dos textos correspondentes; consultas
regionais em todos os Continentes: África (Etiópia), Ásia (Bangladesh),
América Latina (Brasil) e Europa (Genebra); visitas a capitais da China,
Estados Unidos, Finlândia, França, Índia, Japão, Holanda, Paquistão, Rús-
sia, Ruanda, Suíça, Reino Unido e Turquia; e missões no terreno visitando
a MONUSCO (República Democrática do Congo), MINUSMA (Mali),
Base Logística da ONU (Brindisi/ Itália) e a UNOWA (Daca).
A dinâmica apresentada, ao nal, permitiu ao Painel chegar a
constatações alinhadas com as principais questões que mais afetam as Mis-
sões de Paz, as quais caram materializadas nas análises contidas no Rela-
tório e, principalmente, em suas recomendações.
3 – o relatório
A sintonia visualizada com as viagens se estendeu, também, às
diversas consultas procedidas pelo PIANOP, nas seguintes modalidades:
1) sondagens às Missões Permanentes (MP): o presidente do Pai-
nel expediu correspondência a todas as MP, em 11 NOV 14, so-
licitando o envio de sugestões aos trabalhos em curso, com envio
dessas propostas até o nal de janeiro do corrente ano. Ao todo,
o PIANOP contabilizou 60 (sessenta) propostas sobre tendências
atuais dos conitos, mandatos, desaos aos bons ofícios, arranjos
administrativos, parcerias, direitos humanos, proteção de civis,
capacidades e performance;
2) contribuições de institutos, organizações regionais, sociedade
civil e think tanks, como: MD/Brasil, MRE/Brasil, CCOPAB/
Brasil, Instituto Pandiá Calógeras, Instituto Igarapé, Norwegian
Institute of International Aairs (NUPI), International Peace In-
68
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
stitute (IPI), Stimson Center, United Nations University, Center
of International Cooperation, Group of Friends of Mediation, In-
terpol, CLINGENDAEL (Netherlands Institute of International
Relations), Brill Nijho, Danish Institute for International Stud-
ies, Global Protection Cluster, SIPRI, Peace Research Institute
Oslo (PRIO), e No Violent Peace Force, Princeton University;
3) workshops: Proteção de Civis (Londres e Amsterdã), Uso da
Força (Amsterdã e NY), Revisão de Estudos de Caso (Bangla-
desh), WPS/Mulher, Paz e Segurança(NY);
4) órgãos da ONU: DPKO, DFS, Departamento de Assuntos
Políticos (DPA), Secretariado, Conselho de Segurança (CS), 4º
Comitê (Política e Descolonização), 5º Comitê (Administrativo e
Orçamentário), C–34 (Operações de Manutenção de Paz), Espe-
cialistas (OSAGI) da Resolução 1325 (WPS), Grupo de Conse-
lheiros para Revisão a Arquitetura de Construção da Paz, Grupo
de Comandantes de Força (FC), Grupo de Chefes de Missões
(HoM/SRSG);
5) relatórios de viagens gerados pelo Secretariado do Painel, con-
substanciando as diversas tendências regionais;
6) estudos solicitados a organismos diversos sobre temas especí-
cos de interesse do Painel e;
7) bibliograa especíca (biblioteca virtual da ONU/EIDMS),
reunindo todos os documentos produzidos pelos membros do
Painel e outros recebidos de fontes externas.
O PIANOP acredita que os mecanismos de consulta utilizados
e o critério estabelecido para as viagens contribuíram, sobremaneira,
para assegurar maior legitimidade, representatividade e credibilidade
nas análises procedidas no Relatório e, consequentemente, às recomen-
dações emanadas.
O trabalho do Painel pode ser dividido em etapas com um se-
quenciamento lógico que permitiu, ao cabo de sete meses, a conclusão da
69
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
tarefa, com a entrega formal do Relatório ao Secretário-Geral, em 16 de
junho de 2015.
1) 1ª Etapa (Nov. 2014): denição inicial do campo de pesquisa
Nessa fase, o Painel se dedicou à denição dos parâmetros que
deveriam delinear os futuros tópicos do Relatório e, assim, tomou como
base inicial os próprios Termos de Referência para sua constituição e as di-
retrizes expedidas pelo SG que, em várias circunstâncias, solicitou ao gru-
po que fosse “ousado e criativo” em suas análises e recomendações. Como
dito, o Painel se debruçou ao exame de documentos anteriores que servi-
ram ao mesmo propósito, rmando posição na manutenção de referências
consolidadas, mas buscou valorizar fundamentos essenciais, como coerên-
cia, pragmatismo, permanência no tempo (duas décadas), economicidade,
representatividade e nível de abordagem (estratégico), entre outros que a
leitura do Painel subentende.
Os Termos de Referência incluíram os seguintes tópicos para a
consideração do PIANOP: a) mandatos (doutrina e adaptação às neces-
sidades do terreno); b) molduras políticas (inclusive participação de mu-
lheres) e bons ofícios; c) operações em ambientes voláteis; d) construção
da paz, estabilização, restauração e extensão da autoridade do Estado; e)
autoridade e responsabilidade; f) planejamento de Missões; g) parcerias;
h) Missões Políticas Especiais (SPM); i) promoção de direitos humanos
e proteção de civis; j) capacidades requeridas para o pessoal militar; e k)
desempenho de pessoal uniformizado, responsabilidade, Regras de Enga-
jamento (ROE) e caveats.
Cabe salientar que o Relatório se estendeu muito além do que es-
tava denido nos Termos de sua constituição, incorporando contribuições
coletadas nas viagens e nos diversos mecanismos de consulta utilizados.
2) 2ª Etapa (Dez. 2014): denição dos Grupos de Trabalho
A constituição dos cinco grupos para a elaboração do rascunho
inicial obedeceu ao critério de anidade dos membros aos tópicos, mas re-
servando-se, também, o interesse pessoal. Essa fase foi de engajamento bas-
70
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tante concentrado em pesquisas, análises de tendências atuais, relatórios
da ONU e de outros organismos, contatos pessoais e discussões internas.
3) 3ª Etapa (Jan. 2015): denição dos tópicos do rascunho inicial
e início da elaboração do texto.
4) 4ª Etapa (Abr. 2015): conclusão do 1º rascunho com base em
discussões do Painel e inputs externos.
5) 5ª Etapa (até Jun. 2015): aprimoramento dos rascunhos (6
versões).
6) Entrega do Relatório: 16 de junho de 2015.
O Painel decidiu elaborar o Relatório com base em quatro pilares
principais, a partir dos quais o documento foi expandido em suas análises
e recomendações, como sintetizado a seguir:
1) Primazia do aspecto político: o PIANOP procurou deixar cla-
ro que a paz não é alcançada nem sustentada somente por en-
gajamentos militares e tecnológicos, mas por soluções políticas.
Nesse sentido, as Op Paz devem ser desdobradas como parte de
um processo político mais abrangente, dentro do qual a ONU
assume o papel de liderança;
2) Operações de Paz como uma ferramenta mais exível, molda-
da a cada situação: as Operações de Manutenção de Paz e Missões
Políticas Especiais não devem ser diferenciadas, mas ajustadas às
necessidades do terreno, como uma singular denominação “ope-
rações de paz”;
3) Fortalecimento de parcerias: os estudos e discussões levaram
ao Painel entender que o futuro das Op Paz reside no estabeleci-
mento de parcerias bem estruturadas e adequadamente apoiadas,
em recursos materiais e nanceiros, particularmente em âmbito
regional, com a União Africana e União Europeia. As parcerias
devem ser expandidas nas áreas de desenvolvimento, direitos hu-
manos, paz e segurança, na tentativa de prevenir conitos e na
solução desses, quando for o caso;
71
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
4) Op Paz mais centradas na área da missão e nas pessoas: tal
redirecionamento vai exigir engajamento maior do Quartel-Ge-
neral da ONU para viabilizar operações desdobradas para cada
contexto. Em resumo, as Op Paz devem se voltar mais a servir e
proteger as pessoas.
As recomendações que se constituem de maior relevância estão
listadas abaixo. No entanto, seu destaque está longe de prescindir uma
leitura mais dedicada ao corpo do Relatório, com o foco nas análises que
conformaram estas e as demais recomendações. Como armado anterior-
mente, é relevante destacar que, no Relatório, todas as recomendações es-
tão endereçadas a setores especícos da ONU, de forma que a sua imple-
mentação possa ser facilitada, conforme decidido.
Com relação à prevenção de conitos e mediação da paz o Painel
propôs ao SG a realização de fóruns internacionais com envolvimento de
governos, organizações regionais, sociedade civil e a comunidade econômi-
ca global para trocarem experiências e acordarem abordagens que integrem
prevenção de conitos, governança, desenvolvimento e direitos humanos,
e que o CS deve se engajar mais cedo na consideração de ameaças, incluin-
do em parcerias, e estar aberto a análises e recomendações do SG em situa-
ções que possam comprometer a paz e segurança internacionais.
Com relação a proteção de civis, essa atividade deve engajar todos
os integrantes da Missão, Governo local e agências humanitárias, manten-
do-se a responsabilidade primordial ao Governo hospedeiro. Em relação
a contribuições de atores desarmados para proteção de civis, as missões
devem trabalhar mais próximas a comunidades locais e ONG (nacionais e
internacionais), na construção de ambientes de proteção. Foi recomenda-
do ao Secretariado: apresentar ao CS avaliações claras e francas, opções e
recursos necessários; avisar o CS quando os recursos e capacidades não se
enquadrarem aos termos do mandato; assegurar aos PCT/PCP que todo
o componente uniformizado esteja treinado, equipado e comandado ade-
quadamente às responsabilidades de proteção de civis; atualizar avaliações
iniciais e apresentar ao CS propostas de modicações nos planos, manda-
tos e recursos; todos os caveats nacionais além das restrições aceitas pelo
72
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Secretariado no planejamento da missão devem ser considerados como
desobediência ao comando; e quando o CS autorizar o emprego de forças
não pertencentes à ONU, devem ser estabelecidas as condições para relato
de performance e responsabilidade nas ações.
Quanto ao uso da força, atualmente está relacionado a três con-
textos: a) monitoramento de cessar-fogo em ambientes hostis; b) imple-
mentação da paz em ambientes operacionais difíceis e expostos ao colapso;
c) ‘administração de conitos’ onde não existe processo de paz viável ou
o processo fracassou. Segundo o Relatório, para cada contexto existe uma
abordagem especial.
As recomendações relacionadas ao uso da força podem ser assim
resumidas: a) Estados-Membros devem assegurar que os contingentes es-
tejam adequadamente equipados, treinados e capacitados a responder
às ameaças, apoiando-os ao uso da força de forma preventiva em defesa
própria e proteção de civis; b) quando as tropas da ONU estiverem des-
dobradas onde não existe um processo de paz viável, o CS, Secretariado,
atores regionais e Estados-Membros devem trabalhar para alavancar o
processo político e revisar regularmente a viabilidade da missão; c) tro-
pas da ONU não devem se engajar em operações de contraterrorismo
(CT) em razão de sua composição e natureza. Esse tipo de operação
deve ser direcionado a forças regionais ou alianças ad hoc; d) o empre-
go excepcional em parcerias para CT deve ser cuidadosamente denido
pelo mandato (divisão de trabalho); e) a ONU deve estabelecer uma
capacidade de “vanguarda” e uma estrutura de Quartel General (QG)
integrado de desdobramento rápido em novas missões; f) a ONU deve
desenvolver uma ‘modesta’ capacidade de resposta rápida a crises, assim
como um rol de forças de pronta-resposta regionais (bridging forces) ou
de Estados-Membros; e g) para que as operações sejam mais consistentes,
o Painel recomenda o fortalecimento dos processos de análise, estratégia
e planejamento, mediante o estabelecimento de um pequeno grupo de
análise e planejamento diretamente ligado ao SG.
A ‘sustentação da paz’ é uma atividade primordial que requer en-
gajamento da comunidade internacional para evitar o retorno do conito,
uma vez que o processo de paz não se encerra com cessar-fogo, acordo
de paz ou eleições. O Painel elencou sete deciências na abordagem in-
73
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ternacional que necessitam ser melhor trabalhadas. O SG com o apoio
de Estados-Membros deve se esforçar para concentrar todas as partes do
sistema ONU, assegurando uma resposta conjunta às necessidades dos pa-
íses em conito. Além disso, há muitas outras recomendações adicionais
sobre apoio às autoridades da ONU envolvidas no processo e avaliação de
eciência coletiva, nanciamento, cooperação local entre missão e UNCT
(Equipe do País da ONU), revisões independentes sobre os resultados al-
cançados, reconciliação nacional, justiça e direitos humanos e reforma do
setor de segurança.
Com relação ao ‘Desenvolvimento da Polícia Nacional’: o Secre-
tariado deve desenvolver orientações e treinamento voltados para o desen-
volvimento e reforma da polícia local, baseados nas capacidades nacionais,
incluindo apoio de equipes especializadas e uso de especialistas civis; os
países contribuintes que apoiam o esforço nacional em desenvolvimento
e reforma devem estender os ciclos de rotação para 12 meses; c) para fo-
mentar a disponibilidade e ecácia de unidades policiais formadas (FPU),
o Secretariado deve expandir o rol de contribuições e parcerias e apoiar os
PCP na preparação pré-desdobramento e melhoria de performance; e a es-
trutura organizacional da Divisão Policial da ONU deve ser reestruturada
para melhor apoio às polícias nacionais.
No campo do ‘Planejamento de Operações de Paz’: o Secretaria-
do deve fortalecer sua capacidade de análise da dinâmica dos conitos em
níveis local, regional e nacional para possibilitar a formulação de políticas
estratégicas. Para isso, o Secretariado deve imediatamente estabelecer uma
capacidade estratégica de análise e planejamento, reportando-se diretamen-
te ao SG; o Secretariado deve assegurar que a análise e o planejamento da
missão incluam avaliações detalhadas, não somente em relação à política e
dinâmica dos conitos e ameaças a civis, mas também aos desaos opera-
cionais relacionados a clima, terreno e infraestrutura, assegurando uma in-
tegração realística entre o OMA (Escritório do Assessor Militar) e o DFS;
o Secretariado deve assegurar que o sistema de análise e planejamento seja
iniciado o mais cedo possível, tomando por base uma rigorosa avaliação
da situação e análise do conito; e outras recomendações relacionadas à
condução do processo de planejamento por lideranças capacitadas; desdo-
bramento inicial para prover uma capacidade de análise na área da missão;
74
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
diálogo entre todos os atores envolvidos; fortalecimento da capacidade de
análise das missões; e avaliações independentes de resultados.
Com relação aos ‘Mandatos’: o CS deve autorizar mandatos com
base em uma clara análise da situação e na estratégia política, levando em
consideração as avaliações de necessidades e a viabilidade de sua imple-
mentação; os mandatos devem ser sequenciados e priorizados como prá-
tica regular, para um período inicial de seis meses. Esse formato reduz os
gastos e assegura que as missões sejam ajustadas às necessidades do terreno;
para o delineamento de mandato que ajustem necessidades e capacida-
des, propõe-se o estabelecimento de “discussões triangulares” (Conselho
de Segurança, Países Contribuintes de Tropas/Policias e Secretariado); e na
renovação de Mandatos, a consulta deve ser ampliada às Missões, de forma
que os termos se ajustem à realidade da área.
Sobre o ‘Desdobramento Rápido’: o Secretariado deve propor
aos Estados-Membros a adoção de “capacidade de vanguarda” e QG in-
tegrado para desdobramento rápido em novas missões; e o Secretariado
deve consultar os Estados-Membros e organizações regionais sobre opções
para uma capacidade de desdobramento rápido regional e global, inclusive
como bridging forces.
Em relação a ‘rapidez de mobilização e melhores capacidades’:
o Secretariado deve apresentar opções ao SG e à Assembleia-Geral (AG),
destacando que a redução na geração de forças e os tempos de desdobra-
mento podem ser alcançados com medidas diferentes ou recursos; o CS
deve prover apoio político ao processo de geração de forças da ONU; os
membros do CS, em particular os permanentes, assim como outros Esta-
dos-Membros com as capacidades exigidas, são estimulados a oferecer suas
tropas às Op Paz da ONU e prover as missões com os recursos essenciais,
sinalizando seu apoio em especial aos mandatos de proteção de civis; o
Secretariado e a AG devem buscar a evolução da reforma do sistema de
reembolso de PCT/PCP e, em especial, desenvolver opções de reembolso a
Estados-Membros para uma capacidade além de apenas equipamento em
uso atualmente e tropas. O Secretariado deve implementar o sistema de
prêmios de reembolso imediatamente; e o Secretariado deve desenvolver
uma estratégia de geração de tropas e policias com base em gênero, incen-
tivando os PCT/PCP a implementar a Resolução 1325.
75
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
No campo do ‘Desenvolvimento de capacidades e performance’:
o Secretariado e os Estados-Membros devem integrar as iniciativas existen-
tes em uma singular moldura de desenvolvimento de capacidades e perfor-
mance; em relação a comando e controle, a seleção de tropas para Op Paz
deve levar em conta restrições (caveats) nacionais na decisão se essas tropas
devem ou não ser aceitas como contingentes; qualquer restrição além do
que foi aceito pelo Secretariado no início da missão não deve ser tolerado,
mas comunicado de imediato ao Secretariado; e Comandantes de Força e
Comissários Policiais devem registrar situações de não cumprimento de
ordens e reportá-las ao Quartel-General; quando a situação se alterar rapi-
damente e um novo nível de preparo for necessário, O Secretariado deve
explicar claramente as novas exigências aos PCT/PCP e o comando da
missão deve fazer o mesmo em relação aos contingentes; e o Secretariado
deve rever os processos de relatório e informação das missões para torná-las
oportunas, de alta qualidade e acessíveis.
Para uma ‘maior agilidade no apoio às missões’: os Estados-Mem-
bros devem trabalhar com o Secretariado para desenvolver um modelo
futuro de apoio logístico para as missões que operam em ambientes de
elevado risco de incerteza de ocorrências, para assegurar maior mobilidade
tática e o controle militar sobre os meios disponíveis; e o Secretariado e Es-
tados-Membros devem rever os padrões das acomodações e remover limi-
tações relacionadas à aviação militar para permitir maior mobilidade tática.
A ‘Arquitetura de treinamento global’ deve ser melhor estabeleci-
da, fortalecendo-se o sistema de certicação de treinamento para auxiliar
na identicação de determinadas limitações entre os Países-Membros, e o
treinamento em ambientes de maior engajamento operacional (assimétri-
cos) deve ser intensicado, inclusive com o emprego de Equipes de Trei-
namento Móveis.
O campo que trata da ‘Agenda da Mulher, Paz e Segurança
(WPS)’ destacou que as missões devem integrar especialistas em gênero
dentro de todos os componentes funcionais que necessitem conhecimento
no assunto. O assessor de gênero da missão deve estar localizado no escritó-
rio do chefe da missão, a quem deverá se reportar diretamente; as missões
devem ter completo acesso à Resolução 1325 e de outras que tratam do
mesmo tema, com o apoio recebido do DPA e do DPKO sobre o assunto;
76
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
e o Secretariado deve assegurar que as reuniões entre o SG e os chefes de
missões tratem de indicadores de performance relacionados a gênero.
A seção que tratou da ‘Liderança’ destacou: a seleção dos líde-
res seniores deve ser baseada no mérito, com base nas competências e
habilidades exigidas para o cargo; a participação do segmento feminino
em cargos superiores da ONU deve ser ampliada, inclusive no terreno;
a representação geográca de líderes seniores da ONU deve guardar re-
presentatividade regional; e novos líderes (seniores e juniores) devem ser
submetidos a programas de indução, complementado por acompanha-
mento de performance.
Sobre ‘Segurança e administração de crises’: o Secretariado deve
rever a implementação do sistema de administração de segurança da ONU
para assegurar o seu ajuste às ameaças contemporâneas; quando necessá-
rio, as missões sem componente militar devem ser providas com pequenas
unidades de guarda militar ou policial; o Secretariado deve estabelecer uma
moldura de performance médica para as Op Paz, incluindo padrões bem
denidos para as capacidades civis e militares; e o Secretariado deve desen-
volver uma doutrina de administração de crises para as Op Paz; o UNCT
deve possuir planos e procedimentos, incluindo planos de perdas em massa
e incidentes diversos, revisados e exercitados frequentemente.
Com relação ao ‘Quartel-General’: a recomendação se baseia
na conveniência de se ajustar o QG da ONU na busca de maior efi-
ciência, integração e eficácia dos arranjos interdepartamentais, com
custo zero. Assim, o Painel apresentou a proposta de junção do DPA,
DPKO, DFS e PBSO em uma estrutura de “paz e segurança”, com a
criação do cargo de Vice-Secretário-Geral responsável por essas áreas
(UNDSGPS); e permanência do atual Vice-SG para os setores “eco-
nômico e de desenvolvimento”.
O Relatório apresentou outras recomendações como: a ONU
deve prover maior apoio logístico e nanceiro à União Africana para cobrir
despesas com desdobramento de pessoal da região; criação de conta especí-
ca para Missões Políticas Especiais, o quanto antes; remoção de limitações
impostas à aviação militar, com autoridade concedida ao FC para sua uti-
lização em benefício da mobilidade (operacional e logística); emprego de
77
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
tecnologia voltada para as necessidades das Missões, com ênfase especial:
segurança; alarme imediato e capacidades relacionadas à Proteção de Civis;
saúde e bem-estar; e alojamento de tropas; avaliação de impacto ambien-
tal como parte do planejamento de novas missões; ênfase na constituição
de estratégias para planejamento, recrutamento e nanciamento de equi-
pes de comunicação para assegurar melhor contato com as comunidades
locais, com utilização de tecnologia moderna. Além disso, a ONU deve
reforçar a política de “tolerância zero” para casos de exploração e abuso se-
xuais. Imunidade não deve ser entendida como impunidade. No Relatório
há inúmeras recomendações sobre a suspensão de imunidade, responsabi-
lidade, sistema de assistência a vítimas, direitos humanos, etc.
4 – consiDerações finais
A implementação das recomendações do PIANOP depende, so-
bremaneira, da decisão e vontade de vários atores, tais como: Secretário-
-Geral, Conselho de Segurança e Estados-Membros. Entretanto, a própria
decisão do Secretário-Geral para que o estudo fosse realizado indica uma
forte boa vontade para que essa autoridade apoie a sua efetivação. Como
salientado anteriormente, a expectativa é de que essas recomendações vigo-
rem em um horizonte de aproximadamente duas décadas.
Com o propósito de oferecer opções concretas de implementa-
ção, o DPKO constituiu um grupo de trabalho a cargo da Divisão de Polí-
tica, Avaliação e Treinamento (DPET), com estudos em curso para apoiar
o processo decisório.
O Painel entende que o pragmatismo, a consistência e o direcio-
namento das recomendações são elementos que auxiliarão a implementa-
ção do Relatório.
Mandatos ambiciosos, difíceis cenários políticos e operacionais, con-
itos prolongados e expectativas inalcançáveis são barreiras para as Op
Paz da atualidade. As recomendações contidas no Relatório visam a
um melhor preparo das Op Paz da ONU para enfrentar esses e ou-
tros desaos do futuro. Essas recomendações representam a sabedoria
coletiva de grande alcance de parceiros e patrocinadores das Op Paz a
quem o Painel consultou ao longo dos últimos sete meses. Elas reetem
as vozes das pessoas onde as Op Paz estão desdobradas para servi-las e
78
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
protegê-las; a experiência e aspirações de parceiros regionais com quem
a ONU deve trabalhar de forma mais próxima para, coletivamente,
enfrentar as ameaças do presente e do futuro; e o comprometimento
da comunidade de nações na manutenção da paz e da segurança inter-
nacionais (HORTA, 2015).
As palavras acima, transcritas das partes nais do Relatório, bem
sintetizam muito do que foi exposto em suas páginas, de melhor capaci-
tação do Organismo, fortalecimento de parcerias e da importância a ser
dispensada aos povos.
referências
HORTA, J. R. Reunião de encerramento do Painel de Alto Nivel. Nova Iorque: [s.n.],
2015.
MOON, B. K. Terms of reference. New York: [s.n.], 2014.
UN – United Nations. HIPPO Report. High-Level Independent Panel on Peace
Operations. New York, 2015.
____. Statement of Under-Secretary-General for Peacekeeping Operations Hervé Ladsous
Debate of the Fourth Committee on Peacekeeping. New York, 28 October 2014.
Disponível em: >https://peacekeeping.un.org/sites/default/les/usg-ladsous-4c-
statement28102014.pdf>. Acesso em: 12 Mar. 2017.
79
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Roberta Holanda Maschietto
1 – introDuction
Over the past decade, the number of ethnographic studies
in the domain of peacebuilding has rapidly increased (MILNE, 2010;
MILLAR; VAN DER LIJN; VERKOREN, 2013; AUTESSERRE, 2014;
DENSKUS, 2014; BRÄUCHLER, 2015). is increase can be explained
by several factors. First, the critical ‘local turn’ in the analysis of peacebuilding
has opened doors to a deeper questioning of how peacebuilding activities
were conducted over the 1990s and 2000s — which is mostly from the
top-down. Consequently, new interest has emerged in academia for a
better understanding of local dynamics of peace, as well as how local and
80
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
international actors interact in the context of such interventions (e.g.,
MAC GINTY, 2010; RICHMOND, 2011; MILLAR; VAN DER LIJN;
VERKOREN, 2013). Second, several authors have started to question the
very assessment of peacebuilding activities, pointing to the contradictions
between ocial reports that often highlight the positive outcome of external
actions, and the everyday local experiences of peace (SANDOLE, 2010;
MILLAR, 2014; MASCHIETTO, 2015; ROBERTS, 2015). ird, and
as a consequence of the latter, an increased interest in Anthropology and
its methods has emerged as an alternative and complementary way to
understand the limitations of peacebuilding activities.
ere is no doubt that the rise of ethnographic studies has
contributed to a profound rethinking of peacebuilding ecacy. Besides
pointing to the many contradictions between institutionally top-down-led
reforms and the everyday social dynamics of post-violent conict contexts,
these studies have paved the way for the emergence of new theoretical
thinking, new concepts and new practical approaches that have, to a
certain extent, also inuenced the policy discourse (PAFFENHOLZ,
2015). At the same time, though with rare exceptions (e.g., MILNE;
2010; MILLAR, 2014), the increase in these kinds of studies has not been
accompanied by a particularly systematised methodological discussion on
the use of ethnography in peacebuilding contexts. Partly, this may be due
to the nature of said studies, which focus on small, individualised cases.
Yet given the specic nature of post-violent conict settings and the recent
epistemological debates in the study of peacebuilding, such an agenda is
crucial at this stage.
is paper aims to contribute to this reection by contemplating
the challenging task of analysing the subjective aspects of peacebuilding
contexts. To do so, it rst presents an overview of the epistemological
and methodological choices that have dominated peacebuilding research
over the years, culminating in the widespread use of ethnographic studies.
Next, it discusses two interrelated aspects that are deemed fundamental to
the process of grasping subjectivities. e rst is becoming familiar with
the local social grammar. e second is the practical process of translation
of local subjectivities, which, I argue, must be informed by the social
grammar. e paper then oers some examples of these processes in the
81
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
analysis of the concepts of peace and power, before concluding with some
nal considerations on the next steps in improving this research agenda.
2 – researcHing PeaceBuilDing: an overview
e way peacebuilding has been analysed in academia has largely
been inuenced by how the term has been dened and dealt with in the
policy realm. Whereas the term ‘peacebuilding’ existed before the 1990s
(see GALTUNG, 1976), its popularity and centrality in the policy domain
was directly linked to its introduction in the United Nations (UN) milieu,
following the publication of the 1992 Secretary General’s report An
Agenda for Peace. In the report, peacebuilding indicated an “[…] action to
identify and support structures which will tend to strengthen and solidify
peace in order to avoid a relapse into conict […]” (UN, 1992, par. 21).
In 1995, e Supplement to An Agenda for Peace further elaborated this
concept, highlighting the need for interventions to be long term, in order
to help reestablish “eective government” (UN, 1995, par. 13). Eorts to
this end would include “[…] the building up of national institutions, the
promotion of human rights, the creation of civilian police forces and other
actions in the political eld.” (UN, 1995, par. 13). is document paved
the way for what would become the mainstream view of peacebuilding
in the policy realm, where this concept became associated with what was
later commonly referred to as the ‘liberal peace’ — i.e., building peace
in post-conict states entailed pushing for democracy and development,
which would, in turn, help address the root causes of conict, such as
social injustices, and facilitate the process of reconciliation.
is agenda proved extremely ambitious with a very low rate
of success throughout the 1990s. After 9/11, a stronger call emerged for
the institutional reform of what were then labeled ‘fragile’ and ‘failed’
states. e general thinking was that stability and functional state
institutions were paramount for peace, and should, therefore, precede
other reforms aiming at liberalization. us peacebuilding became
strongly associated with statebuilding (FUKUYAMA, 2004; PARIS,
2004; SABARATNAM, 2011).
82
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
roughout the 1990s and early 2000s, peacebuilding was
generally assessed through the lens of policy eciency in a fairly positivistic
and problem-solving way, following the mainstream epistemological
approaches that dominated International Relations research. As there was
a general concern with the ecacy of peacebuilding operations, and with
how to improve their ability to promote stability in war-torn countries,
several comparative studies were conducted in order to identify variables
that could, in turn, explain and be inuenced so as to increase such
activities’ ecacy (e.g., PARIS, 2004; PAFFENHOLZ, 2005; DOYLE;
SAMBANIS, 2006; CALL; COUSENS, 2007; SANDOLE, 2010).
One of the key studies from 2004, At War’s End, by Roland Paris,
for example, compared eleven countries that had hosted peacebuilding
missions in order to assess the extent to which political and economic
liberalisation had contributed to lasting peace in those countries. While
critical, in the sense that it problematised the way that liberal peace was
implemented, Paris’ work reinforced the call for intervention in “war-
shattered states” and emphasised the need for democracies to be liberal
in order for peace to last. At the same time, he proposed a review of
how this should be carried out – in this case, by applying the formula of
“institutionalization before liberalisation”.
A 2006 publication from Doyle and Sambanis also built on
comparisons to understand “[…] how the international community, and
the UN in particular, can assist the reconstruction of peace in civil war-
torn lands.(DOYLE; SAMBANIS, 2006, p. 4). Discussing theories
about the origins of and solutions to civil wars, the authors proposed a
peacebuilding triangle” to help understand how much international
assistance was needed in each post-war context. is model was then
applied to various cases, and lessons were drawn into a plan to improve the
success rate of peacebuilding missions.
While unique in highlighting the need to focus on each country’s
specic context, the work of Doyle and Sambanis was, like Paris’, framed
by a positivistic perspective. is was reected in their methodology, which
included both the statistical analysis of all civil wars since 1945, as well
as the empirical analysis of dierent case studies, using mostly secondary
sources while testing their models. More generally, both works (as well
83
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
as other publications at the time) were very much guided by a problem-
solving perspective, with the common goal of nding ways to improve
peacebuilding as a general activity.
By the end of the 2000s, the continuously low success rate of
peacebuilding missions attracted harsher critiques. is time the focus
was not only on the way those missions were being conducted, but, more
fundamentally, on their very role within the more structural international
context. It seemed clear that changing technical features or focusing on
xing institutions was not good enough. e ‘local turn’ in peacebuilding
represented a shift in the literature where aspects such as culture and power
became central to understand the limitations of peacebuilding.
2.1 tHe ‘local turn anD tHe call for etHnograPHic
stuDies in PeaceBuilDing
e ‘local turn’ in peacebuilding can be dened as a general shift
in perspective where local actors are given priority both in the analysis as
well as in the practice of peacebuilding. We can identify two key moments
in which this local shift took place (PAFFENHOLZ, 2015). In the early
1990s, the important work of peacebuilding and conict resolution
practitioners, such as John Paul Lederach and Adam Curle, called for
the need to prioritize local empowerment during peace processes. is
approach focused on reconciliation and peace in the long-term, and
the only way perceived to facilitate this was by enhancing local actors
capacities and ownership of the process.
e second local turn took place in the mid-2000s, driven by
a more direct critique of the international peacebuilding/statebuilding
apparatus, in particular its authoritative and ethnocentric character. From
this perspective, it entailed a dierent kind of critique, based mostly on the
epistemological and ontological domains of the mainstream peacebuilding
agenda (MAC GINTY; RICHMOND, 2013; PAFFENHOLZ, 2015). A
key feature of this turn is the understanding that power is a central element
that needs to be taken into consideration in the analysis of peacebuilding,
in particular the power asymmetries that exist between external and local
actors in the design and implementation of policy agendas. Related to
84
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
this is the call for emancipation and the revision of power relations in
peacebuilding, where the concept of resistance is particularly important
(RICHMOND, 2011). us whilst the critical turn has a clear agenda
of promoting change – by unveiling the power relations embedded in
international activities and by recognising and stimulating local solutions
for peace – it is very dierent from the rst local turn in that, ultimately,
the main critique is directed towards the very constitution of knowledge
surrounding peacebuilding. Ideas of north-south, post-colonialism and
post-structuralism are thus at the very base of this critique.
Methodologically, the critical local turn calls for a multidisciplinary
approach to peacebuilding analysis, relying extensively on Anthropology
and ethnographic approaches, as well as action-related methodologies and
therefore a considerable change in the way ‘eciency’ is assessed. Moving
towards a micro-level of analysis, where the everyday gains prominence,
the local turn praises localised studies and everyday practices of peace,
providing space for a dierent kind of engagement with local actors.
From this perspective, the latter are not mere ‘objects of study’, but agents
who manifest dierent forms of power, often resisting international
practices of peacebuilding. us, peace becomes hybrid (MAC GINTY;
RICHMOND, 2013).
e implication of these assumptions in peacebuilding is that the
prospects for top-down social engineering – such as ‘exporting’ Western
institutions of governance – are weak, to say the least. Instead, what is
needed is a better understanding of how local dynamics work. at is, peace
needs to be contextualised, not only in terms of history and its materiality,
but also, if not more importantly, from the subjective point of view of the
actors that are agents of said peace. In other words, peacebuilding practices
can only be improved as long as there is a better understanding of how
local dynamics work. is, in turn, requires direct engagement with those
who are supposed to be the beneciaries and main actors of peace, i.e.,
national and local actors.
It is in this context that ethnography gains relevance.
Methodologically speaking, this is one the best instruments to reach
local actors and engage with their realities. More generally, the case for
ethnographic studies is made against the very limitations of traditional
85
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
studies in pointing out the reasons for the failures of peacebuilding. As
noted by Millar (2014, p. 15), the overall trend in peacebuilding has led
to “[…] increasing standardization, professionalization, and evaluation
but with little focus on how any of this is experienced by local people on
the ground in transitional states.” is is problematic for several reasons.
First, what constitutes ‘success’ and ‘eciency’ may mean dierent things
for international agencies and local actors. Many recent empirical studies
have shown that often the very indicators used to measure the success of
peacebuilding have not the same relevance or even meaning to those who
are supposed to be the beneciaries of such activities (ROBINS, 2013;
MILLAR, 2014; ROBERTS, 2015; MASCHIETTO, 2015). It is no
wonder that often the many positive evaluations of peacebuilding activities
do not add up once a researcher reaches the local level and asks ordinary
people about their own views of such processes.
ere is in fact a basic problem of translation, where the language
used by internationals, as well as many of the givens that are at the base of
peacebuilding activities and ideology, often do no match local reality. It is
with this in mind that Millar (2014), in his call for more ethnography in
peacebuilding, suggests that before proposing any ‘solutions’, practitioners
and academics should make a step back and rst understand local actors
perspectives. e premise here, often unacknowledged in the peacebuilding
agenda, is that the phenomenon of study is in fact culturally variable.
In contradiction, most practices start from the premise that the values
underlying peacebuilding and the experiences lived through this process
are somehow universal (MILLAR, 2014; RICHMOND, 2011).
A key point stressed by Millar is the fact that peacebuilding
is experiential, that is, the way peacebuilding is lived and understood
is contingent on how dierent actors experience it. At the same time,
capturing such experiential variations is a challenging task that cannot
fully be accomplished by means of quantitative methods, such as surveys,
one of the reasons being that the language used in such instruments is
framed by external actors and development agencies (see also MAC
GINTY; FIRCHOW, 2016). Words and variables are predened, so they
cannot capture the elements which, in practice, may be more relevant for
local agents, but are not envisioned in the paradigm that frames these
86
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
interventions in the rst place. In order to truly understand how local
actors experience these interventions, it is necessary to provide space
for alternative concepts and local transcripts to be produced. So far
ethnography seems the best instrument for this purpose. is entails
engaging with dierent types of local actors, as expectations about peace
and experiences vary. In other words, it entails dealing with the more
subjective aspect of peace, while acknowledging that subjectivities directly
impact objective outcomes, inuencing actions and responses towards
peacebuilding activities.
e following sections discuss two challenges related to the
task of understanding the subjective aspects of peacebuilding settings. I
begin with the premise that if the main purpose of the ‘local turn’ is to
correspond with local actors, identify their priorities and contribute to
a peace agenda that fosters emancipation, it is crucial that a platform of
communication is well established. As straightforward as this may seem,
in practice this ability depends on a complex process of translation that
is inuenced by elements such as empathy, power dynamics, as well as
structural factors that the researcher cannot control. In this regard, the
rst challenge is related to the acknowledgment and identication of
what I call the social grammar, which shapes the world of the researcher as
well as the world of the actors attempting to be understood. e second
challenge, closely linked to the rst, is mastering the process of translation
of local subjectivities. is challenge is more practical, in the sense that
it entails both decoding the language of the researched actors as well as
problematizing ones own language and, nally, nding the best way to
improve communication between the two systems.
3 acknowleDging Different social grammars anD
suBjectivities
e social grammar refers to the set of principles and implicit
and explicit rules that inuence social behavior in a given society. is
includes the broader historical, cultural and spiritual frames that shape
the way actors understand the world; it is what helps an actor make sense
of the world.
87
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Other terms have been used to express this general idea. Johan
Galtung speaks of social cosmologies, where ‘cosmology’ stands for “[…]
certain motivational syndromes that are embedded in [actors’] collective
subconscious (in contrast to their consciously present ideology)” and aects
behaviour (GALTUNG, 1997, p. 188). By referring to social cosmology,
Galtungs intention is to assert the primacy of culture or civilization in
contrast to approaches that stress the primacy of the economy or political
institutions, for example. Accordingly, “Cosmology is the code, or program,
of a civilization, usually better seen from the outside than by insiders who
will typically nd it too normal and natural, like the air around them, to
be able to verbalize it.” (GALTUNG, 1997, p. 188–189).
In a dierent fashion, Pierre Bourdieu (1977) uses the term
doxa to refer to the sense of limits (or sense of reality) that each
individual has and takes for granted (in particular, the implicit set of
rules that govern social action). In his theoretical sociological approach,
Bourdieu states that a doxa is fundamental in shaping and perpetuating
what he calls habitus, that is, the structures that shape and limit (or
regulate) actors’ behaviours over time. Dierent to the idea of social
cosmology, understanding the doxa entails a critical assessment of both
material and symbolic aspects of a society. In fact, changing a doxa is
extremely dicult, because general patterns of behaviour and the current
distribution of resources (material and symbolic) tend to validate the
existing taxonomies that classify people and, therefore, reinforce the
doxa. When it is possible to see the doxa as a system of representation,
as opposed to an absolute reality, then it is possible to have a competing
alternative doxa and contestation may take place.
e idea of social grammar as used in this paper is closer to
the concept of doxa than social cosmology, but it is not attached to the
more general theory of Bourdieu. While acknowledging the crucial role
of culture, the idea of social grammar is not exclusively focused on it, not
least because the assumption here – especially considering peacebuilding
settings where international eorts aim to expand Western values and
institutions – is that culture is in constant motion, and is also framed by
historical and economic factors. Moreover, the social grammar does not
88
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
refer exclusively to either formal or informal (or even subconscious) rules,
but encompasses both reective and non-reective action.
In practical terms, the idea of social grammar shares some general
assumptions of situated theory. Situated theory stems from the premise
that “e ability to discern what may be intelligible and legitimate in
some social system requires some knowledge of local understandings about
action.”, which, in turn, “[…] form the basis for the design of local action.
(MILLER; RUDNICK, 2010, p. 65). Accordingly, these understandings
are generated from the analysis of local systems of practice, premise and
meaning that animate social life in some place” (MILLER; RUDNICK,
2010, p. 65). It is through the analysis of these cultural understandings
that it is possible to identify what the local strategies used for daily matters
in a given community are.
When I refer to social grammar, I am referring specically to
the general system of local practices which may include explicitly and
implicitly recognised rules, and which guide local attitudes and behaviours.
It comprises, therefore, the broader frame of socially accepted beliefs and
rules. e idea of subjectivities, on the other hand, points to the multiple
ways each actor or group(s) of actors perceive and experience the dierent
processes they engage with in their daily lives, including, in this case,
any peacebuilding related activity. While using the term ‘subjectivities’,
I subscribe to the idea of “[…] multiple interpretative horizons [that]
give actors an ability to adapt to social context and [that] are a source of
autonomy.” (HAUGAARD, 1997, p. 187). Such interpretative horizons
inuence both the practical consciousness knowledge, i.e., the tacit
knowledge that the actor is not able to formulate discursively, as well
as the discursive consciousness knowledge, that is, the behaviour that
results from a conscious reection of an actor (GIDDENS, 1979). In
other words, any behaviour, be it ‘automatic’ or ‘rational’, is inuenced
by the broader context preceding it – the social grammar in place – as
well as by how each actor understands their own position in this broader
setting. e idea of subjectivities focuses, therefore, on interpretation
and meaning. Understanding the social grammar of a society is key to
grasping local subjectivities, as it provides the general context that is the
starting point for interpretation. e implication here is that for the
89
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
researcher to interpret local action in the way local actors themselves
understand it, they must rst be familiar with the social grammar, which
often changes dramatically across cultures.
But how can we capture the social grammar and the actors
subjectivities in a particular peacebuilding setting? It should be stressed that,
while social grammar and subjectivities are interrelated, identifying both
may entail dierent objectives and processes. Identifying local subjectivities,
as in recognising the dierence between the dominant international view
of local dynamics and local views of the same processes, has been, in fact,
one of the main concerns of several studies within the local turn (e.g.,
MAC GINTY, 2008; ROBERTS, 2011, 2015; RICHMOND, 2011;
HELLMÜLLER, 2013; MILLAR; VAN DER LIJN; VERKOREN,
2013). Many of these studies have focused on the need to acknowledge
friction, hybridity and local resistance, by diving into empirical cases and
building an ethnographical base with which to illustrate the dierent local
experiences and interpretations of peacebuilding.
While most of the referred research has focused on single in-
depth case studies, recent times have witnessed an eort towards the
systematic expansion of the understanding of local subjectivities of peace.
In 2013, Roger Mac Ginty and Pamina Firchow started an ambitious
project called the Everyday Peace Indicators (EPI). Based on the premise
that “[…] outside actors can ever fully understand the experiences of
others […]” (MAC GINTY; FIRCHOW, 2016, p. 7), the project aims
to identify indicators of peace that are constructed by the communities
themselves, from the bottom-up, instead of being previously chosen
by the researcher. e EPI has been piloted in South Africa, Uganda,
Southern Sudan, Zimbabwe and, more recently, in Colombia, oering a
comparative domain that is rarely present in ethnographic studies. While
not using the term ‘local subjectivities’, ultimately the project shares the
concern with providing local voices with agency, having identied what
might be considered ‘unconventional’ indicators of peace and security that
are extremely meaningful to local actors, but which have never appeared
in the lists of international agencies (MAC GINTY; FIRCHOW, 2016).
As one of the purposes of the local turn is precisely to unveil
the discrepancies between international planning for peace and local
90
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
experiences, identifying such incongruences (the dierent subjectivities) is
a key step. But understanding the social grammar entails asking not only
how local actors experience peacebuilding, but also why they experience
it in the way they do. In his framework for peacebuilding ethnography,
Millar (2014) refers to this as he speaks of the importance of ethnographic
preparation. In practical terms, grasping the social grammar of a specic
society would entail pursuing an in-depth study of local culture and history.
Millar refers specically to the reading of the available anthropological
literature on the country/society under study, is, however, may be more
complicated than it sounds. In some cases, the researcher may be lucky
enough to have access to a wide range of publications of that society.
Nevertheless, in other cases information is not so easily accessible, either
because not much has been written, or because the material available is
in a language that the researcher does not speak. Additionally, not only
is culture dynamic and ever changing, but also, and particularly in
peacebuilding contexts, there may be important variations across time and
space, even within the same country, especially in the way actors relate
to violence and the state. e point to be stressed here is that, ultimately,
some social dynamics may be observable only in loco, which means that
ethnography may need to be conducted for an extended period of time
before the researcher can understand the local culture and social dynamics
in order to make sense of the very data they want to analyse.
While conducting eldwork, it is also important to consider
a series of factors that aect the researchers ability to apprehend social
grammar. In this paper, I would like to focus on three specic factors. e
rst one is reexivity. Reexivity has been widely discussed in Sociology.
Bourdieu, for instance, advocated that a reexive practice is imperative
in order for an academic to produce good science (SWARTZ, 1997). A
reexive practice means that researchers need to be constantly aware of
three major biases while conducting research: rst, they need to control
the values and practices that are brought from their own social background
to the object of inquiry; second, they need to be aware of their eld
location, that is, the position they hold in their specic eld of production;
third, they need to constantly examine their epistemological and social
conditions in order to assess their own ability to make scientic claims. For
91
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Bourdieu, a reexive practice will not fully eliminate the problem of bias,
nevertheless, it may signicantly reduce the bias as it places the researcher
under as much critical analysis as the object of research (SWARTZ, 1997).
Reexivity has been a widely mentioned topic in the critical local
turn, but it has not always been explicitly discussed, perhaps because it is
considered a given in the context of cultural and post-colonial studies. In
this literature the call for reexivity usually appears alongside the critique
to the universalist appeal of the liberal peace and its cultural insensitivity
(RICHMOND, 2011; MILLAR, 2014). e very base of the critique,
after all, is that the researcher calls into question their own epistemological
assumptions and opens up to local values that may be dierent.
Stepping out of ones own value system, and acknowledging that a
‘Western’ perspective of science and social order exists is vital. Nevertheless,
quite often the critical turn moves to another problematic pattern, which
is the tendency to dichotomise ndings in terms of ‘otherness’. As noted
by Meera Sabaratnam (2013), even critics of the liberal peace are often
trapped into several “avatars of Eurocentrism”, that is, often the most
fundamental aspects related to how we do research remain uncontested.
One of the ways this takes place is by researchers constantly opposing the
‘West’ and ‘the rest’ (or the ‘North’ and the ‘South’), and so ultimately the
point of departure of analysis is still Eurocentric. In her book Decolonizing
Methodologies, Linda Smith (1999, p. 13–14), makes a similar point when
she notes that “Many indigenous intellectuals actively resist participating
in any discussion within the discourses of post-coloniality. at is because
post-colonialism is viewed as the convenient intention of Western
intellectuals which reinscribes their power to dene the world.
is leads to the second factor that needs to be taken into
account in the process of grasping a dierent social grammar: the need
to move beyond a dichotomist view of the world. As I have argued
elsewhere, an emphasis on dichotomies obscures alternative ways of
talking about peace which move beyond the idea of peace as opposed to
violent conict, but which make more sense locally (MASCHIETTO,
2017). By dichotomising things we risk leaving aside anything that does
not relate to one of the two extremes we are considering. So, while some
dichotomies such as North/South may help make sense of our standing
92
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
point, they may be counterproductive if the point is to embrace the
diversity that exists within the ‘other’. at is, our sense of ‘otherness
is not only still centred around ourselves, but it also tends to unify the
other’, even though they may be as dierent (if not more dierent)
among themselves than they are from ‘us’.
Recalling the argument of Stuart Hall, Smith (1999) reminds us
of how the concept of the West functions. First, it allows ‘us’ to characterize
and classify societies into categories; second, it condenses complex images
of other societies through a system of representation; third, it provides
a standard model of comparison; and, nally, it provides criteria of
evaluation against which other societies can be ranked (SMITH, 1999).
Moving beyond dichotomies and choosing to start a reection beyond the
very critique of the ‘West’ is thus an important exercise to move away from
our ingrained epistemological training.
is leads me to the third factor that can help us grasp dierent
social grammars: the constant comparison of narratives. Comparing
narratives helps the researcher become familiar with the local social
grammar by allowing the identication of commonalities and dierences
in the discourses, interpretations and understandings of specic events.
While the commonalities may reveal the more general rules of the
social grammar, variations can point out the dierent places in which
each actor places him or herself within that set of rules. For example, in
some countries, such as Mozambique, party politics play a key role in
dening the distribution of power in a society, regardless of where one
stands in the social structure. Yet, being a woman in a rural area places
additional constraints and aects an actor’s ability to navigate through the
social system. Both aspects are important and complementary but most
likely they will appear with dierent intensities depending on who is the
researcher talking to.
While as a general rule critical peacebuilding studies have
emphasised the need to reveal the voices of the marginalised, I argue that
the full understanding of the social grammar requires the comparison across
a wide range of dierent actors, including those in higher positions of
power. In my own experience, certain narratives proliferate from the top to
the bottom in such a powerful way that they may often obscure or become
93
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
superposed upon other narratives. Other times, they may be reinterpreted;
partially altering the way the social grammar is experienced. Such nuances
are important for the process of translation, as will be discussed next.
4 – tHe Process of translating suBjectivities
e online Merriam-Webster dictionary denes ‘translation’ as
an act, process, or instance of translating: such as (a) a rendering from
one language into another; also the product of such a rendering; (b) a
change to a dierent substance, form, or appearance (conversion); (c) (1)
a transformation of coordinates in which the new axes are parallel to the
old ones (2) the uniform motion of a body in a straight line”. In a nutshell,
the idea of translation entails comparison as well as an important degree of
transformation. In the case of language, the transformation occurs so that
content is rendered understandable to an audience that is not familiar with
the original form of the information.
In translation theory there are two dierent assumptions about
the use of language. On the one hand, there is an instrumental view, where
language is perceived as a means to capture “[…] objective information,
expressive of thought and meanings where meanings refer to an empirical
reality or encompass a pragmatic situation.” (RUBEL; ROSMAN, 2003,
p. 6). On the other hand, there is a hermeneutic view, where emphasis is
given to interpretation, that is, thoughts and meanings, where the latter
ultimately shapes reality (RUBEL; ROSMAN, 2003).
Competing models of translation have also developed. While
some perceive translation as a natural act, being the basis for the
intercultural communication where common and universal aspects
of human experience may be shared, others see this process as rather
unnatural. e latter view emphasises cultural dierences and the
foreignization” of translation, where the translator has to come to terms
with “otherness” (RUBEL; ROSMAN, 2003). From this perspective,
translation can also be perceived as a tool for the expansion of ideological
and political agendas. As noted by Cronin (1996 apud RUBEL;
ROSMAN, 2003, p. 6), “Translation relationships between minority
and majority languages are rarely divorced from issues of power and
94
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
identity, that in turn destabilize universalist theoretical prescriptions on
the translation process.” Ultimately, the language to be translated may be
informed by dierent values from those of the language of the researcher,
so these dierences must be taken into account.
In social sciences, the process of translation goes beyond
the mere interlingual translation; it also entails ‘translating’ observed
events into reliable information. is in turn requires an exercise of
interpretation. When it comes to ethnography, the divergent views of
translation mentioned above are extremely important. e way the
researcher deals with the information gathered will be framed by the
above challenges, and one of the key issues to keep in mind is ‘how to
deal with the dierent values and meanings of each language and make
it all clear to the nal audience?’
is is even more challenging in the analysis of peacebuilding,
where, despite the rise of ethnographic studies, there still exists pressure
to produce and develop generalizations and theory (MILNE, 2010). is
inuences the research design of most academic works, including the
denition of variables to be studied as well as the concept of development
used. How to reconcile the particularism embedded in ethnography with
the more general analytical and policy goals of peacebuilding?
As Milne (2010, p. 79) observes, this choice is related to the
exercises of ‘understanding’ (a feature at the core of ethnography) and
explaining’ (a feature at the core of theory development), where “[…]
explanation’ entails absorbing the observable phenomena into ones own
terms of discourse, while ‘understanding’ presupposes acceptance of
multiplicity of positions and broadening, if not transcendence, of ones
own perspective.
Ultimately, researching peacebuilding entails navigating both
these aspects of explaining and understanding, as well as perceiving the
process of translation as a delicate exercise of identifying when meanings
are similar or diverge between the two systems of communication – the
language of the researcher and the language of the actors under analysis.
is means that while conducting research, a reexive posture entails the
recognition of two dierent processes taking place at the same time: on the
95
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
one hand, the researcher is trying to understand a set of mostly predened
concepts, for instance, how peacebuilding (as a pre-dened activity) has
been implemented or experienced by dierent kinds of local actors; while
on the other, the researcher is trying to grasp local understandings and
experiences that may be obliterated by the very theories and concepts that
inform the research. Not doing so may lead to unreliable ndings that
neither ‘explain’ nor help ‘understand’ peacebuilding and its success or
failure. In the remainder of this section I explore the challenges of this
translation process by discussing the concepts of peace and power.
4.1 – unDerstanDingPeace
It seems ironic that while peace is a core element pursued in the
international agenda, very rarely, if at all, are those who are supposed to be
its beneciaries – the victims of a violent conict – asked how they unders-
tand what peace is or should be. On the contrary, what usually takes place
is that a certain denition of peace is ‘agreed upon’ or implicitly assumed
in international reports, which, in turn, is used to guide policy action. As
noted in the critical literature of the local turn, this is problematic in many
ways. e universalising appeal of peace is not only culturally insensitive,
but, more practically, it aects the very expectations and responses of local
actors towards the new state of peace.
Responding to this critique, many recent studies have made an
eort to move beyond the methodological framework whereby a concept
is pre-dened, to one where local actors have the opportunity to provide
their own inputs to the peace they live in. Dierent country studies have
revealed that, more often than not, there is a huge discrepancy between
assessments from peacebuilders and assesments from local actors, one of
the factors to this being the variables used to evaluate the peace achieved.
In Mozambique, for instance, a country long considered a suc-
cessful case of peacebuilding, it was noted that the views of many actors li-
ving in rural areas were far less optimistic about the achievements of peace
compared to most international assessments. In 2012, when asked about
what had changed in their daily lives over the 20 years following the Gene-
ral Peace Agreement, many villagers stated that, while they no longer had
96
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
to run away and could nally produce their own crops and begin families,
the scenario was still dire, as many did not have access to drinking water
and other basic services. Rarely did any of the villagers refer to the benets
of democracy and multiparty elections. On the contrary, their focus, while
thinking of peace, was on issues related to development and the need for
jobs and basic conditions to be able to sustain their own families and de-
velop their communities (MASCHIETTO, 2015).
Discussing Southern Sudan, Roberts (2013) found similar dis-
crepancies between the views of the local population and peacebuilders,
where the latter placed emphasis on democratic reforms, while most local
actors were more concerned with basic needs. Moreover, as also noticed
in the case of Mozambique, the very understanding of what democracy
entailed varied considerably, as local actors often perceived democracy as
extremely connected to development.
Referring to Timor Leste and Nepal, Robins (2013) stressed how
the international emphasis on rights (framing the concern with human
rights as one of the pillars of peace) does not resonate with the more domi-
nant emphasis on needs present at the local level. Problems such as the lack
of nearby schools to which children could be sent, lack of resources to buy
food, and even lack of resources to pay for rituals for those who had died
in conict were the main ones identied by the participants. In Timor this
problem was particularly heightened by the local understanding that not
performing rituals for the dead has numerous consequences, such as brin-
ging sickness and death to other family members.
Studies in Sierra Leone (MILLAR, 2014) and Indonesia (BRÄU
CHLER, 2015) have highlighted the problems related to the concepts of
justice and reconciliation imbued in the peacebuilding agenda. In Sierra
Leone, for example, the way the Truth and Reconciliation Commission
(TRC) was experienced was often the opposite of what international actors
expected, with many local actors claiming that the hearings only reopened
old wounds by reminding them of the violence that took place without
oering anything concrete in terms of how to improve the ongoing lives of
the current population (MILLAR, 2014).
97
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
e list of examples of discrepancies in terms of understandings
and expectations of peace could go on. e point to highlight here is that a
peacebuilding assessment will lead to very dierent conclusions depending
of the variables used to dene its success. In the cases illustrated, local ac-
tors were given the chance to provide direct input of what they understood
as the most important aspects of peace, which, in turn, shaped their ex-
pectations regarding change and their responses towards the peacebuilding
activities that took place. e intellectual exercise in the cited works was
focused on comparing narratives between those that initially framed the
researchers starting point (i.e., the dominant meanings of peace and pea-
cebuilding in policy practice and the assumptions behind these paradigms)
and the experiences and understandings of local actors.
As noted earlier, however, the complete process of translation ne-
eds to be set in the specic social grammar in order to be more thorough.
e discrepancies noted in each of these studies can only be fully unders-
tood in light of the history and cultural context that shape each of these
societies. For example, in a country like Mozambique, which has a long
history of political centralisation, and where tradition plays a strong role
in the everyday lives of most of the population, the relationship between
the citizens and the state is of a very dierent nature than that of Western
Europe. More than the view that the state should be accountable to the
population it serves, there is a predominant view that the state is like a
father’, or a ‘provider’ (AFROBAROMETER, 2012). is, in turn aects
the understanding of what peace entails.
Dynamics of clientelism and patronage have also been widely
discussed when it comes to Africa (although they are certainly not ex-
clusive to this continent). From this perspective, the expectations related
to peace are intrinsically related to the dynamics that shape such social
mechanisms, and stand in contrast to the idea of meritocracy prevalent
in the West. As Millar (2014) explains, while discussing the case of Sier-
ra Leone, many people became highly frustrated with the TRC because
they expected that some kind of material compensation would arise, es-
pecially following the sensitization campaign and the message that the
TRC was going to ‘help’ Sierra Leoneans. is was more than just a
dierent understanding of what ‘help’ means. It was a friction between
98
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
the values imbued in the very idea of the TRC and the everyday social
dynamics of the communities in Sierra Leone.
In the case of Indonesia, Bräuchler (2015) observed that some
of the challenges of pursuing justice were related to the dierent logics
that shape traditional justice and the formal judiciary system: while justi-
ce tribunals and criminal courts are usually based on a retributive justice
model and seek the guilt of and sanctions for individual perpetrators,
this is often a shock to traditional justice perspectives where the aim is to
restore social relationships and reintegrate society. is causes a clash in
terms of expectations and explains some of the shortcomings embedded
in peacebuilding reforms.
e above examples show that the issue at stake is not only a mat-
ter of translating ‘words’, but understanding their meaning in that specic
(cultural, political, historical, etc.) context. In other words, it is the social
grammar that helps researchers makes sense of the meaning of local sub-
jectivities and their raison d’être.
Still, looking at the examples presented, there is one further is-
sue that needs to be critically assessed. Looking at the two-way process of
translation referred to above, the key issue here was making sense of local
experiences with the starting point of pre-dened concepts of a broader
peacebuilding agenda. For instance, if ‘justice’ is imbued in the idea of
peace fostered by international actors, then the contrast is set between how
‘justice’ is interpreted and understood in the peacebuilding agenda and the
local experiences of the implementation of this agenda. at is, the star-
ting point is still the language of the researcher. is may seem logical from
the standpoint of Western dominant methodology, but a practical concern
related to this must be pointed out. As peacebuilding has become a wides-
pread international enterprise, the increasing engagement of international
actors and NGOs in peacebuilding activities has as a direct eect the in-
ternalisation of specic terms at the very local level. is means that unless
the researcher reaches a community that has been mostly isolated (which
is increasingly more rare), chances are that local actors will be very familiar
with terms that inform peacebuilding activities, even if they ascribe to such
terms a dierent meaning. is has several consequences when it comes
to translation. More often than not local actors will have a general idea of
99
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
what the researcher is ‘looking for’ or ‘expecting to hear’. So, for example,
even if local understandings of peace may be eminently related to spiritual
aspects, the fact that many people have been exposed to a range of agencies
that work with peace as a fairly liberal concept (i.e. peace = democracy +
markets + human rights), there is a great chance that while addressing the
researcher, participants will switch their register to the language they know
the researcher is familiar with.
Noticing such variation in the use of language is extremely im-
portant. It may reveal that in many scenarios the participants are actually
more familiar with the cognitive world of the researcher than vice-versa.
Here is where reexivity becomes particularly important: is the researcher
ultimately just listening to what she or he is expecting to hear? Once more,
it is the previous knowledge of the social grammar that will allow the rese-
archer to question the very use of language, or make additional questions
that may shift the course of the interaction to a less ‘Western-centric’ lan-
guage. e case may be the opposite when the terms used by the researcher
are not as commonly used, as discussed below.
4.2 – translatingPower
While specic terms (e.g., ‘peace’, ‘participation’, ‘local
development’) have become extremely popular in the peacebuilding policy
agenda, having been subject to wide discussions and several denitions,
others have simply been hidden here and there, appearing in some
documents and literature, but far less discussed and problematised.
e concept of ‘power’ is perhaps one of the most debated in
social theory (Sociology, Anthropology, Political Science, etc.), and yet
when it comes to peacebuilding it has rarely been addressed in a more
systematic way. When it is, it usually refers to ‘power-sharing’ or, more
recently, in the critical literature, it implies the problems linked to post-
colonialism. However, not only does power have many dierent meanings
within the ‘Western’ literature (e.g., HAUGAARD, 2002), but it also has
dierent connotations to local actors.
100
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
I would like to refer here to my own experience while
conducting eldwork in Mozambique in 2012 and 2013. While studying
empowerment in a rural district, one of my initial objectives was to
understand how power dynamics had changed since the end of the war
in 1992. In particular, I wanted to see if local actors felt that their own
power had increased in any way since the end of the war. I had no strict
pre-denition of power, but my general purpose was to understand how
people felt about their own ability to control their lives and/or inuence
local and/or national dynamics.
In my initial guideline for the focus groups, a few of my
questions were related to power in the broadest possible way. I wanted
to identify in the participants’ views of things such as ‘who has power in
your community?’, ‘do you feel you have any power to change things [in
x’ domain]?’, and so forth. Soon it became clear that, while the idea of
peace – and its dierent connotations – were a fairly easy topic to engage
with – the idea of ‘power’ was much more confused and disperse. Two
were the main reasons for such confusion. First, at this level I was dealing
with groups of people who spoke a local language and the interpreter
had obvious diculties in translating ‘power’ as a general word. Second,
the responses were also very dierent in nature: while some participants
immediately alluded to the local governance structure to indicate who
had positions of power locally, in other situations there was a clear eort
by participants to check what exactly I was looking for (what power?
power for what?).
I eventually gave up asking some of the original questions, as they
brought about more confusion than clarication. At the same time, other
questions allowed me to grasp the dynamics I was trying to understand.
On the one hand, it became clear that one important power dynamic was
indeed related to the very hierarchical way the government is structured,
including at the local level, that is, power was understood largely in terms
of authority and ability to control and inuence. On the other hand, other
stories illustrated other dynamics of power – or feeling of powerlessness –
in the case of local actors’ perceived ability to change things that aected
their daily lives.
101
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
It is beyond the purpose of this paper to propose an agenda
to investigate power in the context of peacebuilding. What I would
like to stress here, in the context of the process of translation, is
the contrast between the study of peace and power. It is not that
peace has a more consensual or universal connotation than power
(on the contrary, many studies show how complex and various the
interpretations of peace are, (e.g., GALTUNG, 1981; RICHMOND,
2005; DIETRICH, 2012). Nevertheless, in the particular context
of peacebuilding, it seems that the widespread use of ‘peace’ and
peacebuilding’ in the policy agenda has largely influenced the
prospects of communication in the realm of ethnography.
is is not necessarily good or bad. In fact, it can be argued that
the popularization of the concept of peace, while apparently facilitating the
process of communication between the researcher and local participants,
obscures the researchers access to other interpretations and meanings
of peace that are not necessarily related to the mainstream pillars of the
international peacebuilding agenda. We may see, in fact, a process of
foreignization (RUBEL; ROSMAN, 2003), whereby the connotation of
the concept has become more aligned with the language of the external
actor, distancing itself from more endogenous interpretations, which, in
turn, become more dicult to access. Put under perspective, this very
process also reects broader dynamics of power involving the way the
research is conducted and the many ways in which the researcher is also
limited by its mode of communication.
Whilst presenting more challenges in the process of translation,
concepts that are openly more contested and less popularised in the policy
realm, such as ‘power’, also facilitate the reexive process by forcing the
researcher to move away from her own social grammar.
5 – conclusion
This paper has reflected on the challenging task of analysing
subjective aspects in peacebuilding contexts. While there have
been a growing number of ethnographic studies expanding our
understanding of local subjectivities in peacebuilding settings, much
102
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
less has been written regarding the methodological steps to conduct
such an endeavour.
With the aim of contributing to this agenda, I focused on the
specics of two interrelated aspects of this process, respectively (1) the
need and means to understand the local social grammar and (2) the
process of translation of local subjectivities. e point made is that an
eective process of translation needs to be accompanied by a thorough
understanding of the social grammar that frames the language, actions and
attitudes of the society being studied.
e paper further oered two concrete examples of the process
of translation by discussing the concepts of ‘peace’ and ‘power’ and their
subjective interpretation at the local level. In the case of ‘peace’, the examples
show important contrasts between the dominant Western views and local
views. In the case of ‘power’, I highlighted the diculty of translation
as this concept is far less popular in the policy realm of peacebuilding as
compared to peace, justice and reconciliation. Reecting on these dierent
cases, I suggested that the exercise of understanding subjectivities is also
informed by the very expansion of peacebuilding worldwide and the
respective popularisation of some concepts at the local level. As local actors
become more familiar with the internationalised mainstream version of
some concepts, the researcher needs to be particularly reexive in order to
avoid (or at least, minimise) a biased narrative.
Moving beyond a ‘Westernised’ epistemological position requires
a constant exercise in reexivity. Whereas this paper has pointed to some
of the challenges related to this process, it is worth stressing that many of
the concepts that are imbued in the very way ‘we’ see the world may also be
completely dierent in other cultural spaces. e conceptions of ‘time’ and
space’, for example, which inform peacebuilding research, may make no
sense locally and so how they inform the researchers process of translation
should also be assessed.
In conclusion, I would like to add that while the turn towards
Anthropology and the increased use of ethnography has brought
numerous contributions to the analysis of peacebuilding, engaging in
dialogue with other elds such as Translation Studies (as this paper has
103
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
tried to do), Linguistics and Psychology, may further contribute to the
eld’s development and the researchers’ ability to better understand and
explain peacebuilding, as well as to the development of a more solid
methodological agenda for research in peacebuilding.
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T   R C
  U  D
H  M
ayná Gava Borges
1 – introDução
Considerando-se que os direitos não são dados, tampouco nas-
cem de uma só vez, mas sim de maneira gradual, sendo, portanto, frutos
de processos históricos e não naturais (BOBBIO, 2004), é preciso de-
monstrar brevemente como foram construídos os direitos humanos das
mulheres no plano internacional. Sendo assim, utiliza-se como marco do
início da teoria internacional dos Direitos Humanos o período após a
Segunda Guerra Mundial.
Nesse período constatou-se a necessidade de reconstruir o valor
da dignidade humana e de se rearmar os Direitos Humanos não apenas
108
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
no plano nacional, mas também no internacional. Assim, tem-se a inten-
sicação do processo de internacionalização dos Direitos Humanos, que
teve seu início no período entre guerras, mas consolidou-se apenas após
a criação da Organização das Nações Unidas. Sendo assim, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, sustenta a ideia de
que todos os seres humanos são “livres e iguais em dignidade e em direitos
independentemente de qualquer outro fator, seja etnia, raça, sexo, religião
ou nacionalidade. Convém ressaltar que o texto da Declaração não adota
a palavra “homem” como termo genérico para se referir aos seres humanos,
como outros documentos já zeram no passado, além de expressamente
listar o sexo como possível causa de discriminação
1
.
Documentos legais que proclamavam direitos criados antes de
1948, com destaque para a Constituição Norte Americana (UNITED
STATES, 1789) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(DECLARAÇÃO..., 1789) por exemplo, representaram importantes con-
quistas, na medida em que reconheceram que os indivíduos são, desde o
nascimento, livres e iguais em direitos. No entanto, focaram principalmen-
te no status social e econômico, sem mencionar o sexo ou gênero como
fontes de discriminação a serem combatidas. Sendo assim, mesmo após
terem desempenhado importantes papéis nas revoluções, principalmente
na Francesa, as mulheres continuaram impedidas de gozar dos mesmos
direitos previstos aos homens de forma igualitária, além de não serem con-
sideradas plenamente como sujeitos de direito. Ademais, embora se diga
comumente que a palavra “homem” nos documentos deste período deve
ser interpretada como termo genérico para se referir a todos os seres hu-
manos, essa armação não se conrma, visto que, por exemplo, nos Es-
tados Unidos, a emenda XIX, que trata do direito ao voto sem qualquer
discriminação com base em sexo foi editada apenas em 1920 (UNITED
STATES, 1789, Amendment XIX)
2
. É válido também lembrar de Olym-
Artigo 2º da Declaração Universal Dos Direitos Humanos: Todos os seres humanos podem invocar os direitos
e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor,
de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de
nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto
político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território
independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania (UNITED NATIONS, 1948).
Amendment XIX (1920). e right of citizens of the United States to vote shall not be denied or abridged by
the United States or by any State on account of sex. Congress shall have power to enforce this article by appropriate
legislation.” (UNITED STATES, 1789).
109
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
pe de Gouges, ativista que participou da Revolução Francesa e que criou
em 1791 a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (DECLARA-
ÇÃO..., 1791), como forma de alcançar a igualdade entre homens e mu-
lheres e, por isso, foi guilhotinada em 1793, o que demonstra claramente
que o termo “homem” presente na carta de direitos francesa não se pro-
punha a ser universal, mas destinava-se especicamente às pessoas do sexo
masculino (ZAPATER, 2015).
Assim, convém adicionar que a Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos cria um conceito contemporâneo sobre tais direitos, esta-
belecendo que, além de universais, são também indivisíveis e interdepen-
dentes. A referida universalidade deve ser compreendida em três planos: o
plano da titularidade, que pertence aos seres humanos, independente de
qualquer condicionante; o plano temporal, sendo universais, pois os seres
humanos os possuem em qualquer período histórico; plano da cultura,
pois são transversais a todas as culturas humanas (GONÇALVES, 2013).
A questão da indivisibilidade diz respeito à impossibilidade de se considerar
os direitos de forma isolada, prevalecendo uma ideia de complementação:
A conjugação dos direitos civis e políticos aos direitos econômicos,
culturais e sociais fez com que a fruição de um estivesse atrelada à do
outro, consolidando, portanto, a concepção contemporânea de direitos
humanos, que os dene como uma unidade interdependente e indivi-
sível (GONÇALVES, 2013).
Desta forma, a partir desse período foram criados diversos trata-
dos e convenções internacionais, engendrando um sistema normativo de
proteção internacional que tornou possível, inclusive, que o Estado fosse
responsabilizado por suas ações e omissões em relação ao dever de proteção
dos direitos de seus cidadãos (PIOVESAN, 2015). A preocupação primor-
dial da teoria dos direitos humanos naquele momento recaía sobre a rela-
ção entre Estado e indivíduo, portanto, questões consideradas de âmbito
privado, como a violência doméstica, não eram abordadas.
Piovesan (2015) destaca que, ao lado do sistema geral de prote-
ção aos direitos humanos, surgiu o sistema especial, que visou tratar mais
especicamente das particularidades de alguns grupos vulneráveis, como,
por exemplo, as mulheres, crianças, minorias étnicas e pessoas com deci-
110
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
ência. Isso porque, tratar o ser humano de forma abstrata não oferecia uma
resposta suciente para as violações peculiares que referidos grupos sofrem
em decorrência de suas características, as quais não são compartilhadas en-
tre todos os seres humanos. Nesse caso, o tratamento igualitário acentuaria
tais disparidades, sendo mais prejudicial do que benéco. É nesse cenário
que surge a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dis-
criminação contra a Mulher (1979) e a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), frutos de
Conferências realizadas pela Organização das Nações Unidas, foram os pri-
meiros documentos a abordar o tema dos direitos humanos das mulheres.
Assim, a universalidade dos direitos humanos passa a ser ques-
tionada e alguns armam tratar-se de uma imposição da cultura ocidental
sobre as demais, nas quais o conceito de direitos inerentes à condição hu-
mana não lhes é familiar em termos históricos. Nesse contexto, o discurso
do relativismo cultural ganha força na forma de uma autocrítica à cultura
ocidental (ALVES, 2013), com a nalidade de abrir os olhos para o mul-
ticulturalismo e promover o respeito ao diferente, contudo, passou a ser
utilizado como argumento para justicar violações de direitos humanos.
2 – Direito Das mulHeres como Direitos Humanos
Conforme já referido, entende-se atualmente que os Direitos
Humanos são historicamente construídos, conforme Bobbio (2004, p.
26): “[...] nascem quando devem ou podem nascer [...]”, processo que
ocorre de forma gradual e de acordo com as necessidades do momento,
acompanhando as mudanças sociais que trazem novas ameaças e, portanto,
novas necessidades. Sendo assim, por muito tempo as demandas e direitos
que diziam respeito especicamente às mulheres, tais como direitos repro-
dutivos, matrimônio, violência doméstica, entre outros, caram de fora
da agenda dos Direitos Humanos Internacionais, os quais foram pensados
exclusivamente à luz de uma perspectiva masculina.
Historicamente, observa-se que homens e mulheres assumiram
espaços diferenciados na sociedade e que isso lhes propiciou situações e vi-
vências também distintas, que foram aos poucos se traduzindo em direitos
garantidos, denidos de acordo com violências que já foram anteriormente
111
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
experimentadas. Em decorrência da maior inserção dos homens nos espa-
ços públicos de debate, de formulação e de organização estatal (conside-
rando-se especialmente a denição de direitos e garantias), verica-se que
o desenvolvimento político e losóco dos direitos humanos se deu a par-
tir de uma perspectiva masculina, considerando-se as especicidades desta
parcela da população e partindo-se do pressuposto de que as violações dos
direitos humanos ocorrem nos espaços públicos (GONÇALVES, 2013).
Assim, é impossível falar em direitos das mulheres sem abordar o
movimento feminista, ator importante na história da aquisição e consoli-
dação desses direitos. A origem do movimento pode ser situada no m do
século XIX e início do século XX, com demandas inicialmente relaciona-
das à igualdade de fruição de direito civis, políticos e educativos, os quais
eram restritos aos homens (NARVAZ; KOLER, 2006). Nesse sentido des-
tacam-se os movimentos sufragistas, que objetivavam principalmente o di-
reito ao voto e tiveram muita força na Inglaterra, Estados Unidos e França
(NARVAZ; KOLLER, 2006).
Como marco da segunda onda do movimento, aponta-se a publi-
cação do livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, em 1949, o qual
consolidou o conceito de gênero, como algo diferente de sexo: enquanto
este é condicionado por questões biológicas, o outro se refere às funções
e comportamentos socialmente construídos sobre tais aspectos biológicos.
Tal conceito permitiu que as teorias feministas levassem as relações pri-
vadas para o âmbito político. Assim, Alves (2013, p. 96) arma que foi a
partir da década de 60 que o movimento das mulheres ganhou força, com
reivindicações por igualdade de direitos “[...] em todos os aspectos da vida
social, econômica e institucional.” Vale lembrar que o referido período nos
Estados Unidos, era de muitas mobilizações sociais por Direitos Civis e
contra diversas modalidades de discriminação, de forma que os Direitos
Humanos ingressaram no discurso político, com eminente caráter emanci-
patório de minorias historicamente subjugadas.
As demandas feministas ajudaram a incluir as questões concer-
nentes às mulheres no debate internacional de direitos humanos por meio
da Organização das Nações Unidas, que declarou o ano de 1975 como o
Ano Internacional das Mulheres”, data em que ocorreu a Primeira Con-
ferência Mundial sobre as Mulheres, na Cidade do México. Porém, foi
112
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
apenas em 1995 que os direitos das mulheres foram reconhecidos expres-
samente como direitos humanos, na Declaração de Beijing (UNITED
NATIONS, 1995), criada no âmbito da Quarta Conferência Sobre as
Mulheres organizada pela ONU. O documento, que não admitia reservas
foi, portanto, aprovado por consenso, de forma que os países comprome-
teram-se a empregar esforços para alcançar diversos objetivos relacionados
à causa feminina, a qual passou a ter relevância global.
Ademais, no mesmo evento foi criada também a Plataforma de
Ação de Beijing, que consiste em uma série de objetivos e compromissos
assumidos pelos Estados, dentre eles, o de adotar medidas urgentes para
combater e eliminar a violência contra a mulher, reconhecida a partir de
então como uma violação de direitos humanos, decorrente de práticas
tradicionais nocivas, preconceito cultural e extremismo (UNITED
NATIONS, 1995).
Assim, por todo o histórico de subjugação, ainda que a igualdade
e os direitos especícos delas sejam plenamente reconhecidos atualmente,
ainda são muito contestados. Tal armação pode ser comprovada a partir
de uma análise da CEDAW, a Convenção para Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra as Mulheres, criada no âmbito da Orga-
nização das Nações Unidas em 1979. O documento tem um número alto
de raticações: 189 Estados consentiram com seus termos, número que
representa aproximadamente 97% dos membros das Nações Unidas. No
entanto, é alto também o número de países que deram sua aquiescência
mediante reservas: 79, embora 18 já tenham retirado as restrições, demons-
trando um pequeno avanço acerca do tema (UNITED NATIONS, 2017).
Cumpre destacar que não existe um perl especíco em relação
aos países que apresentaram reservas, portanto, a lista contou com Esta-
dos mais e menos democráticos, do ocidente, do oriente e também de
diversas orientações religiosas. Disso decorre que o desrespeito aos direitos
das mulheres e a desigualdade entre os gêneros não são exclusividades de
um modelo de governo, de uma religião, etnia ou região, mas são ques-
tões que afetam a todos os países em maior ou menor grau. Essa arma-
ção é corroborada também pelo relatório do Fórum Econômico Mundial
(WORLD..., 2014), o qual traz um ranking das desigualdades de gênero
em 144 países: nenhum deles atingiu a pontuação máxima.
113
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Uma parte das reservas feitas aos termos da CEDAW recai sobre
o artigo 29, parágrafo 1º, o qual estabelece que eventuais controvérsias
entre os Estados-parte referentes à interpretação ou aplicação dos termos
do documento que não forem resolvidas amigavelmente, serão submeti-
das a arbitragem. Tal restrição é plenamente compatível com o texto da
Convenção, cujo parágrafo 2º do referido artigo prevê a possibilidade dos
Estados, no momento da assinatura ou raticação, declararem que não se
consideram obrigados por essa regra.
Por outro lado, os artigos 2º e 16º, considerados essenciais à
Convenção, também são muitas vezes citados nas reservas (UNITED
NATIONS, 1998). O artigo 2º trata da discriminação contra a mulher
de forma geral, instando os Estados a adotar expressamente em suas
Constituições o princípio da igualdade entre homens e mulheres, assim
como adotar medidas legislativas e de outras naturezas, efetivas no com-
bate à discriminação, garantindo a proteção jurídica das mulheres em
base de igualdade com os homens entre outras previsões. Por sua vez, o
artigo 16 aborda a igualdade da mulher no casamento e perante a família,
exigindo que os Estados adotem medidas para assegurar, por exemplo, o
direito de escolher livremente o cônjuge, mesmos direitos e responsabi-
lidades durante o casamento e em caso de eventual dissolução, direito
de decidir quantos lhos deseja ter, igualdade nas responsabilidades re-
lativas à tutela, curatela, guarda e adoção dos lhos, mesmos direitos de
propriedade de ambos os cônjuges.
Em relação aos dois artigos, tais reservas não são admitidas pelo
Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulhe-
res, uma vez que tanto a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
como o próprio texto da CEDAW impedem que sejam feitas reservas in-
compatíveis com os objetivos e princípios centrais do Tratado (UNITED
NATIONS, 1998). Não obstante tal proibição, grande parte dos países
impõem reservas alegando que aceitarão tais disposições na medida em
que não conitarem com as legislações internas. Este cenário releva que em
algum grau, diversos países admitem algum tipo de discriminação contra a
mulher em seus ordenamentos jurídicos.
Além disso, em relação à Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher, convém destacar a crítica
114
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
feita por Zapater (2014) ao que ela chama de “mulher convencional”, que
é aquela descrita no documento.
É necessário reetir o quanto a pretensão de universalizar os Di-
reitos Humanos pode trazer o risco potencial de essencializar seus sujeitos
de direitos, construindo estereótipos aos quais se garantirá a titularidade
de tais direitos, enquanto excluem de seu pretenso âmbito de proteção aos
indivíduos inadequados ao modelo hegemônico eleito (ZAPATER, 2014).
Desta forma, a “mulher-convencional” tem a garantia do direito
de escolher com quem quer casar-se, é heterossexual, tem lhos e quer
trabalhar fora de casa. Sendo assim, o documento acaba excluindo aque-
las que vivem em locais culturalmente diversos, em que estes não são os
anseios das mulheres e, portanto, impõe-se esse estilo de vida, tendo-o
como o mais adequado, ignorando eventuais particularidades (ZAPATER,
2014). Portanto, o fato de alguns países apresentarem reservas aos termos
da Convenção pode reetir uma disparidade entre as concepções referentes
ao papel das mulheres em cada comunidade, o que não necessariamente
signica que elas sofrem restrições de direitos nesses locais.
É possível notar que os documentos internacionais que tratam
dos direitos das mulheres habitualmente fazem menção a práticas e tra-
dições culturais, sempre sob o viés da universalidade, fazendo-se entender
que os direitos humanos devem prevalecer sobre costumes nocivos. Tal
referência foi identicada na Declaração e na Plataforma de Ação de Bei-
jing de 1995, e também na Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979. No plano regional, a
Convenção de Belém do Pará, de 1994, estabelece ainda que é direito da
mulher ser “valorizada e educada livre de estereótipos de comportamento
e costumes culturais fundados em conceitos de inferioridade e subordina-
ção”, indicando como dever do Estado mudar tais padrões sociais. A Con-
venção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, também conhecida como
Convenção de Istambul, também aborda a questão cultural de forma bas-
tante especíca, estabelecendo que os Estados se comprometerão a tomar
medidas necessárias para evitar que a cultura, costumes, religião, tradição
ou a “honra” sejam justicativas para violar os direitos das mulheres, além
de proibir expressamente a mutilação genital.
115
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Assim, mostra-se adequada uma visão intermediária entre o ex-
tremo relativismo cultural e o radical universalismo, pois ambos podem ser
caracterizados como abuso aos direitos humanos. É preciso ter em mente
as diretrizes universais estabelecidas nos documentos internacionais como
pressupostos mínimos, sem deixar de considerar, no entanto, a visão de
cada sociedade, pautada por seus elementos culturais, a respeito delas. Isso
não signica, no entanto, admitir que sejam perpetrados abusos contra os
Direitos Humanos em nome da manutenção de tradições consideradas no-
civas, assim consideradas não apenas aos olhos da comunidade internacio-
nal, mas levando em conta também a voz dos cidadãos daquela sociedade.
3 – relativismo cultural: um DeBate necessário?
É necessário reetir sobre o efetivo impacto que as questões cul-
turais têm sobre os direitos das mulheres: apenas países não ocidentais vio-
lam tais direitos? O problema recai unicamente sobre a cultura dos Estados
ou este é apenas um argumento utilizado por violadores para perpetuar as
práticas violentas e exclusivas? Curiosamente, tal alegação apenas é invo-
cada para justicar práticas que, muitas vezes, nem os próprios membros
daquela comunidade aceitam completamente. Não existem respostas fáceis
para estes questionamentos e, por isso mesmo, não se pretende no presente
artigo estabelecer uma solução para as questões levantadas, mas apenas
propor o debate sobre elas.
Quando se fala em relativismo cultural, surge a dúvida acerca
do que deve ser considerado como cultura. No entanto, mais importante
do que conceituar o termo, é entender como ele opera nas sociedades.
Segundo Laraia (2001) a cultura funciona como uma espécie de lente pela
qual as pessoas enxergam o mundo, condicionando a forma de pensar, as
práticas sociais, os valores morais, o modo de viver de forma geral. Sendo
assim, uma mulher que vive nos Estados Unidos terá uma noção diferente
sobre o caracteriza uma violência ou discriminação em relação a uma chi-
nesa ou uma brasileira, por exemplo. Essa herança cultural, transmitida
desde os primeiros segundos de vida, é tida como natural, como uma regra
universal para aqueles que se encontram imersos em determinada comuni-
dade e, diante de práticas e pensamentos diversos, os indivíduos tendem a
116
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
considerar que detém as “lentes” mais adequadas. É comum, portanto, o
etnocentrismo, ou seja, a ideia de que sua sociedade, e consequentemente,
sua cultura, está acima das demais, visão que acaba por causar conitos.
O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem
como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o
mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é
responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conitos
sociais (LARAIA, 2001).
Ademais, é importante ressaltar que a cultura não é estática, os
padrões comportamentais de determinado grupo social se alteram, ain-
da que lentamente. Laraia identica dois tipos de processos de mudança
cultural: o primeiro ocorre no interior da comunidade, como resultado
da dinâmica do sistema cultural, geralmente se dá de forma lenta e quase
imperceptível para um observador externo; a segunda, por sua vez, decorre
da interação entre sistemas culturais diversos e pode ser mais rápido em
relação ao outro processo (LARAIA, 2001). No cenário atual de globaliza-
ção é quase impossível impedir que inuências culturais de um local sejam
transportadas para outros, dado o grau de interação e integração entre os
povos. Convém destacar também que é essencial o reconhecimento das
incompletudes das culturas, que torna possível o diálogo, permitindo que
uma comunidade inuencie outras, sem que isso necessariamente signi-
que uma imposição, sendo um processo natural de transformação social.
Assim, o relativismo cultural é uma corrente sobre Direitos Hu-
manos que defende a supremacia dos elementos culturais para determi-
nação da validade de uma norma moral, sendo impossível a construção
de uma moral universal. Para seus defensores, os direitos são denidos de
acordo com as circunstâncias históricas, econômicas, sociais e culturais de
cada local. Entre os dois extremos do relativismo e universalismo radicais,
existem vários graus de variação, de forma que uma visão que alie as duas
perspectivas é possível. O relativismo cultural forte defende que a cultura é
a principal fonte de validade de uma regra moral, servindo os direitos hu-
manos universais como uma espécie de vericação, para impedir eventuais
abusos. Por outro lado, o relativismo cultural fraco (universalismo forte),
assevera que a cultura é uma fonte importante de validação de uma norma
117
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
moral, no entanto não é a única, servindo, nesse contexto, como scaliza-
dor de eventuais abusos do universalismo (DONNELLY, 1984).
Desta forma, percebe-se que os conceitos apresentados por
Donnelly diferem em relação ao ponto de partida, naquilo que se coloca
como mais importante, sem, no entanto, excluir completamente o seu
outro extremo: mesmo o universalista radical admite variações baseadas
em fatores culturais. Constata-se a existência de uma espécie de sistema
de checagem, cujo objetivo é sempre o de evitar abusos. Portanto, é
válido reiterar que, embora o relativismo cultural tenha sido utilizado
constantemente como argumento para justicar violações de direitos, não
se presta a esse papel. Assim, o debate sobre o tema se torna relevante
nos casos em que determinada prática é defensável dentro de uma dada
cultura, à luz de suas concepções morais e, no entanto, é considerada
nociva segundo uma avaliação externa (DONNELLY, 1984).
Destarte, em um mundo multicultural, é inevitável certa variação
em relação aquilo que é considerado ideal ou universal. O direito, como
produto cultural, não pode ser compreendido dissociado dos aspectos cul-
turais que o inuenciam, seja na fase legislativa, seja na de interpretação
ou aplicação das normas. Tanto o legislador, quanto o Juiz, aplicador do
direito, encontram-se imersos na cultural local e irão aplicar as disposições
de acordo com a lente cultural adotada. Assim, as referidas distinções po-
dem relacionar-se não apenas ao rol de direitos reconhecidos, mas também
acerca da sua forma de implementação, interpretação ou extensão, por
exemplo. Percebe-se, portanto, que não se trata de um cenário de “preto
no branco”, existindo uma variação grande de tons entre os dois extremos.
Nessa lógica, o papel do Direito Internacional é denir as diretrizes gerais,
que, invariavelmente, serão absorvidas pelos Estados signatários de Tratado
Internacionais adaptando-se às suas particularidades.
Ademais, segundo Goldsmith e Posner (2005), os Tratados In-
ternacionais são, na verdade, resultado da busca dos Estados por seus in-
teresses no cenário internacional. Nesse sentido, portanto, eles somente
são observados na medida em que há uma coincidência de interesses e o
respeito aos seus termos não lhe são prejudiciais, inclusive em relação aos
direitos humanos (GOLDSMITH; POSNER, 2005). Desta forma, não
foi por altruísmo ou preocupação com os direitos das mulheres que muitos
118
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
países raticaram a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra as Mulheres, mas porque não lhes era custoso, até
porque o descumprimento não implica em consequências graves.
Portanto, tem-se que nem sempre a cultura é, de fato, a razão
principal pela qual determinados Estados opõem-se a resguardar os Di-
reitos Humanos, de forma que outros elementos devem ser levados em
conta. Esse embate, para Santos (2001) é “[...] intrinsecamente falso, cujos
conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emanci-
patória de direitos humanos [...]”, posição aqui defendida.
4 – em Busca Do Diálogo
O desao que se coloca nesse cenário apresentado é: como aco-
modar o caráter universal dos direitos humanos das mulheres e os argu-
mentos de relativismo cultural sem que isso acarrete abusos de direitos
como consequência, sem imposições ou permissividade exagerada?
Donnelly (1984) menciona a sugestão feita por Rhoda Howard
em um debate sobre direito das mulheres na África: ela defende que as
legislações permitam às mulheres e suas famílias a opção de não participar
dos costumes tradicionais. No entanto, essa solução que, a princípio parece
ideal, pois privilegia o poder de decisão daquelas envolvidas, dando-
lhes opção, na prática, nem sempre é possível de ser implementada. O
próprio autor arma que em muitos casos há incompatibilidade entre a
opção por valores ditos modernos e a permanência naquela comunidade
(DONNELLY, 1984). Vale reetir também acerca de todas as consequências
que a eventual decisão pode acarretar para a mulher, como a rejeição por
parte de seus pares, até mesmo da própria família, correndo risco de ser
colocada à margem de seu grupo, o que lhe causaria um novo problema.
A separação física entre os “aderentes dos novos e dos velhos
valores” (DONNELLY 1984), muitas vezes é a via adotada em muitos
casos. No Brasil, em relação às comunidades indígenas, é a esta separação
que comumente se recorre. No entanto, com o crescimento das zonas
urbanas e a interligação cada vez maior com as áreas rurais, tal distinção
também vai se tornando cada vez mais difícil, exigindo, assim, uma con-
119
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
vivência harmoniosa entre os costumes. Ademais, essa solução traria tam-
bém novos problemas: qual critério deveria ser utilizado para determinar
se uma comunidade tradicional ou um indivíduo está ou não integrada
ao Estado moderno?
Cardoso (2007) aponta ainda outro caminho. À luz da “Ética do
Discurso” de Habermas, ele defende a construção de um consenso acerca
da verdade e dos valores, a partir de um processo argumentativo, voltado
à problematização da “[...] justeza e a validade das normas que afetam a
convivência de todos os envolvidos no contexto.” (CARDOSO, 2007, p.
115). Nesse sentido, a validade de uma determinada norma dependeria de
ter sido criada em um processo “dialógico, racional e democrático” (CAR-
DOSO, 2007, p. 115). O autor defende que o atual período de crise da
universalidade é ambiente favorável para o desenvolvimento do diálogo
entre os Estados e, assim, entre os povos e as culturas de diferentes origens,
já que o cenário até o momento vem sendo, na verdade, um monólogo
(CARDOSO, 2007).
Vale destacar que a negação dos Direitos Humanos de forma ge-
ral não se restringe aos países não ocidentais, de forma que o debate so-
bre o relativismo cultural é apenas um dos aspectos a serem analisados no
contexto atual. Há uma descrença generalizada em relação a estes direitos
inclusive em países Ocidentais e também naqueles tidos como plenamente
democráticos e que respeitam os direitos humanos. Com a ascensão de
partidos conservadores e de extrema direita ao redor do globo, com discur-
sos que beiram a xenofobia e que rechaçam a ideia de direitos humanos,
de forma geral, torna-se nítido que o cenário é bastante cinzento para a
promoção do diálogo e para a formação de consensos. Ademais, é digno de
nota que tal contexto é relevante não apenas pela mera retórica de políti-
cos, mas pela aceitação que tais discursos vêm obtendo da sociedade civil.
Portanto, a visão que privilegia o meio termo e o diálogo em
detrimento das intervenções, imposições e da omissão parece ser a mais
adequada para lidar com as questões apresentadas neste artigo. Sendo as-
sim, “[...] nem as chibatadas, mutilações e segregações, nem a imposição
de valores exterminando práticas culturais e homogeneizando o mundo,
nem a ausência total de proteção dos direitos.” (HONÓRIO, 2007, p.
66), o respeito à diferença não implica em passividade perante violência
120
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
contra as mulheres. Contudo, o diálogo e o efetivo respeito no cenário das
relações internacionais exige, necessariamente, o enfrentamento de ques-
tões relativas aos interesses dos Estados, o que torna tal solução muito mais
complexa e difícil de ser solucionada, quase utópica.
5 – consiDerações finais
O presente artigo apresentou, de um lado, o discurso dos defen-
sores da universalidade dos direitos humanos, do outro, os argumentos de
uma visão pautada pelo relativismo cultural, especicamente em relação
aos direitos das mulheres. Verica-se que a questão cultural é habitual-
mente abordada em Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos das
Mulheres, pois a crença em sua inferioridade ainda se encontra fortemente
arraigada em praticamente todas as culturas do globo. Identicou-se que a
posição adotada é a de que os direitos humanos das mulheres sobrepõem-
-se em relação às práticas e comportamentos considerados nocivos. No en-
tanto, apesar da ampla adesão dos Estados a tais termos, verica-se que na
prática, muitos o fazem mediante a imposição de reservas que desvirtuam
o objetivo do Tratado, conforme se vericou no caso da Convenção sobre
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
Ademais, conclui-se que os dois extremos serão capazes de levar
a abusos e, consequentemente, a violação de seus direitos. Por um lado, a
universalidade exacerbada pode excluir do âmbito de proteção uma série
de mulheres que não se adequam ao padrão idealizado, por viverem em
locais culturalmente diversos ou por possuírem características e vivências
diferentes e, portanto, não se sentem alcançadas pelos Direitos Humanos
assegurados em Tratados Internacionais. Nesse contexto, o etnocentrismo
se revela na forma de um discurso de salvação daquelas que não reprodu-
zem os valores tidos como ideais. De outra lado, o relativismo cultural ex-
tremo, por defender uma ideia de não intervenção e passividade perante o
multiculturalismo, torna-se o argumento perfeito para justicar violações,
sob a máscara de manutenção de práticas tradicionais.
Sendo assim, o diálogo, a busca do consenso e do meio termo
demonstram ser as posturas mais adequadas para lidar com as tensões
apresentas neste artigo. Desta forma, entende-se que os direitos humanos
121
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
devem ser tidos como universais, porém, não etnocêntricos, sua interpre-
tação e aplicação deve ser sensível às particularidades das culturas locais.
Destarte, toda e qualquer tentativa de combater práticas tradicionais que
representam abusos de direitos humanos deve ser realizada de forma pa-
cíca, por meio do diálogo e, principalmente, com a plena participação
das pessoas por elas afetadas. Contudo, reconhece-se a diculdade de se
encontrar um denominador comum tendo em vista o atual cenário políti-
co internacional, do qual o debate acerca dos Direitos Humanos faz parte.
Tais direitos vêm sendo rechaçados não apenas por chefes de Estados de
países não ocidentais mas também pelos representantes ocidentais, além
da sociedade civil de forma geral. Nesse sentido, infelizmente, o diálogo
parece um objetivo quase utópico.
Defende-se, portanto, uma “universalidade relativa”, com vistas
à promoção da aceitação do “outro”, sem, no entanto, admitir exageros,
reconhecendo também que as culturas e práticas tradicionais, conforme
já mencionado, não são estáticas, encontram-se em constante movimento
e o contato com comunidades culturalmente diversas interfere bastante
nesse processo, o que não representa, necessariamente, uma imposição,
mas uma contribuição.
referências
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Forças Armadas
127
F A,
M  R, A
  C N  V –
M  D
Eduardo Heleno de Jesus Santos
1 – introDução
Abordaremos nesse breve artigo a maneira como as Forças Arma-
das e os militares da reserva, formando grupos de pressão política inseridos
ainda na lógica anticomunista da guerra fria, marcaram posição na batalha
da memória antes, durante e após a atuação da CNV. Em um primeiro
momento, analisaremos os documentos de grupos de pressão política for-
mados por militares da reserva que se colocavam contra a ideia de revisão
do passado. Logo após, mostraremos as ações desses grupos e de institui-
ções como o Clube Militar e as próprias Forças Armadas em torno dessa
batalha da memória. Por m, apresentaremos alguns documentos e ações
128
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
feitas por essas entidades durante e após a aprovação da CNV. Para melhor
empreender esse trajeto é necessário ter como base algumas constatações: a
existência de um grande período de autonomia política
1
das Forças Arma-
das, que antecede à redemocratização, e sua diminuição; forte tendência
ao anticomunismo no seio militar e a um ressentimento evidente nos mi-
litares da reserva a respeito das políticas de memória e reconhecimento ao
longo da redemocratização.
2 – a autonomia Política Das forças armaDas
A república brasileira de 1946 se insere em um contexto em que
os militares e as Forças Armadas tem, perante a sociedade, um papel am-
pliado. Veteranos e vencedores da Segunda Grande Guerra no plano ex-
terno; foram, no plano interno, suporte da ditadura do Estado Novo e
promotores de seu m. Representam valores que, em termos democráticos,
se colocam acima do jogo político e, em termos republicanos, como base
das demais instituições do país.
Essa construção é em parte feita com o apoio que Vargas dá ao
fortalecimento das Forças Armadas, em especial o Exército, por meio de
dois generais de conança: Eurico Gaspar Dutra e Pedro Aurélio de Goés
Monteiro; esse fortalecimento, feito com o expurgo de correntes internas
contrárias, com o enfraquecimento das polícias estaduais e com a moderni-
zação das doutrinas, técnicas e equipamentos, com a ampliação do número
de militares em setores burocráticos, trouxe à instituição maior poder de
atuação política.
Em uma sociedade pouco acostumada às lides democráticas e
afeita a tendências autoritárias até mesmo dentro dos partidos políticos e
movimentos sociais, a imagem dos militares acaba ganhando o papel não
apenas de defender o território de uma ameaça externa, o que acontece
Eliezer Rizzo Oliveira considera autonomia a condição do aparelho militar de implementar seus próprios inte-
resses com grau elevado de autogerenciamento, decorrente do caráter ditatorial do regime político (OLIVEIRA,
2005). Samuel Alves Soares observa dois tipos de autonomia militar. A autonomia orientada para o poder polí-
tico, como a existente no período entre 1946 e 1964 no Brasil e a autonomia autárquica, de cunho institucional,
observada após a redemocratização (SOARES, 2006).
129
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
apenas na Segunda Guerra, mas o de atuar internamente, como já ocorrera
em diversos episódios, em especial nas crises políticas.
2
Dentro da instituição, essa imagem é reforçada pela vitória do te-
nentismo na década de 1930, pelos ideais legados das tradições positivistas,
das ideologias do soldado-cidadão e do soldado-corporação. Essa última
previa a possibilidade de atuação política das Forças Armadas em bloco,
algo que se cristaliza na fala do general Berthold Klinger: "o posto supremo
de direção (do país) é problema do Estado-Maior" (CARVALHO, 1997,
p.233). Em uma conhecida obra, A Revolução de 1930 e a nalidade po-
lítica do Exército, outro general importante nesse período, Pedro Aurélio
de Goés Monteiro, ressalta o papel político da instituição “[...] sendo o
Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva
deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército e não a política no
Exército.” (COELHO, 2000, p. 115–116).
Essa diferenciação supõe uma instituição forte que guie não so-
mente seus integrantes para a preparação para guerra, mas que incuta no
cidadão valores nacionais e organize a sociedade, nos campos político, eco-
nômico e moral. Nessa linha de raciocínio, alguns dos papéis das Forças
Armadas, para Goés Monteiro, são apoiar governos fortes, pois “só com a
força é possível construir” e disciplinar o povo, para obter o máximo de
rendimento em todas as atividades.
Diante das concepções de disciplina e organização social, nada
mais perturbador para os militares que comungam das ideias de Goés
Monteiro que a atividade sindical. Em 1942, quando Getúlio Vargas se
aproxima dos sindicatos, a sustentação dada pelas Forças Armadas ao Es-
tado Novo sofre o seu primeiro baque. Para José Murilo de Carvalho, foi a
razão para o divórcio entre os militares e Vargas (CARVALHO, 2005). A
separação completar-se-ia com a participação brasileira na Segunda Guerra
Mundial, quando há a percepção da ambiguidade de lutar contra o fascis-
mo no campo externo e apoiar o Estado Novo, com seu perl autoritário
cada vez mais voltado para o trabalhismo, no campo interno.
Sobre essa tendência autoritária, vale lembrar pesquisa realizada em 2017 pela ONG Latinobarómetro. Dos
entrevistados em 18 países da América Latina, os brasileiros são o povo que menos cona na democracia
(CARMO, 2017).
130
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
A partir de 1945, as Forças Armadas detém uma forte imagem es-
tabilizadora. Seguindo a tendência militarista vista em outros países, como
a Argentina, os dois candidatos com grandes possibilidades de vencer as
eleições daquele ano vieram do meio militar: os generais Eurico Gaspar
Dutra (PSD–PTB) e Eduardo Gomes (UDN). Para Edmundo Campos
Coelho, se acentua nesse período a fase institucional do Exército baseada
na política laudatória, ou seja, o período de aumento de autonomia da
instituição e da perda de autonomia do meio civil, no qual a sociedade bra-
sileira “passa a ser dependente de um centro especico de decisão”, que é o
Exército. Coelho destaca que a política laudatória, baseada na exaltação das
virtudes reais e imaginadas do Exército, na semântica pobre que formula
um Poder Moderador “[...] é a expressão do oportunismo político, que se
manifesta no cálculo de custos e ganhos do de uma adesão prematura – ou
demasiadamente tardia – às correntes de opinião militar que venham a
prevalecer no Exército em momentos críticos” (COELHO, 2000, p. 139).
É nesse ambiente marcado pela autonomia política das Forças
Armadas que será formada boa parte dos ociais que atuarão na repressão
no regime cívico-militar de 1964 e que se colocarão, durante a redemo-
cratização, contra as iniciativas em torno das políticas de memória e con-
ciliação. Além da autonomia política, que faz os militares entenderem sua
identidade como construtores da nação, organizadores do tecido social,
árbitros das crises políticas, há de se conjugar os efeitos do anticomunismo
e das novas sintaxes sobre a ideia de inimigo interno que são elaboradas e
difundidas no período.
3 forte tenDência ao anticomunismo e a visão orientaDa
contra o inimigo interno
O projeto de fortalecimento das Forças Armadas estabelecido
no governo Vargas reveste-se também de uma visão extremamente negati-
va do comunismo. Embora entre 1930 e 1938 tenham ocorrido mais de
90 quarteladas, revoltas e rebeliões nos quartéis; em 1932, São Paulo e a
União tenham entrado em guerra civil; são as quarteladas ocorridas em
novembro de 1935, conhecidas como Intentona Comunista, que marcam
ideologicamente uma nova concepção sobre o inimigo a ser repelido pe-
131
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
los militares. A imagem negativa associada aos comunistas se tornou mais
inuente e permanente do que a imagem dos integralistas, embora ambos
tenham sido vistos como ameaça à unidade das Forças Armadas.
Após o controle das rebeliões ocorridas em Natal, Recife e Rio
de Janeiro, o governo Vargas procurou fazer propaganda contra a irradia-
ção do comunismo dentro das leiras, criando o culto aos mortos na In-
tentona que contou com a presença em suas cerimônias, até a década de
1990, do presidente da República. Foi criado também o primeiro livro
da então Biblioteca Militar, Em Guarda Contra o Comunismo, obra em
que foram reunidos diversos discursos de autoridades à época em crítica
tanto a ideologia quanto em relação à Intentona (ESTADO MAIOR
DO EXÉRCITO, 1938).
O anticomunismo nas Forças Armadas e na sociedade brasileira
tem início logo na Revolução Russa, porém, reaparece, como aponta Mot-
ta, em ondas (MOTTA, 2002). Se, na década de 1930, o uso político da
intentona comunista é instrumento para fortalecimento da instituição, na
década de 1950, em um ambiente marcado pela bipolaridade das super-
potências, o anticomunismo ajuda reforçar nova identidade para as Forças
Armadas: serem promotoras do desenvolvimento, para evitar a inuência
dos movimentos de esquerda, e da segurança, para reforçar o papel de atu-
ação nacional e regional contra o inimigo interno, privilegiadas em relação
às demais autoridades ou órgãos civis.
A Escola Superior de Guerra (ESG), criada à luz do National War
College em 1949, mas com percepção própria de sua função, busca formar
nova elite no meio militar e civil, irradiando não somente o binômio de-
senvolvimento e segurança, mas suas interpretações sobre a maneira como
o velho império francês e a ascendente superpotência norte-americana li-
dam com os processos revolucionários. As exegeses da doutrina de Guerra
Revolucionária e de Segurança Nacional reforçam a ideia do inimigo inter-
no, orientando os estudos militares e as articulações no alto ocialato em
torno de uma agenda de ação incisiva e ampliada do Exército na política.
Ao longo da década de 1960, sua vinculação com o meio civil
acaba se inserindo não somente na ESG, mas em diversos grupos ligados
aos militares esguianos e ao empresariado, como o Instituto de Pesquisas
132
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD). Esses grupos vão reforçar a visão dos militares como árbitros da
política em 1961 e 1964, como contraponto ao governo de João Gou-
lart. Para o público em geral, ademais de serem os interventores diante
da irresolução política, os militares viram o instrumento necessário para a
contenção do comunismo.
Além de servir como ideologia contra o governo João Goulart, o
anticomunismo funda as bases para o discurso do golpe de 1964. O Ato
Institucional cita que a revolução foi necessária para destituir o governo
que se dispunha a bolchevizar o país” e que seriam realizadas medidas
destinadas para drenar o bolsão comunista”. A tônica está presente nos
atos, nos decretos, nos discursos e documentos, na propaganda do regime
militar. Mais importante ainda, o anticomunismo e as doutrinas de guer-
ra revolucionária e segurança nacional dão legitimidade à perseguição da
oposição política de esquerda.
O conceito maleável sobre o que é o inimigo interno e sobre a
esquerda dão margem ao assédio generalizado. A perseguição acontece
não somente no meio civil como também nos quartéis. Em diferentes
pesquisas Paulo Cunha (2014) e Marcus Figueiredo (1978 apud MA-
CHADO, 2006) convergem na conclusão que, em relação ao número de
atingidos, os militares são a categoria mais afetada pelo golpe de 1964
(CUNHA, 2014).
No governo Costa e Silva, o endurecimento do regime via
AI–5 em 1968, dissemina a aplicação sistemática da repressão estatal
nos mais diversos campos da sociedade brasileira. Tal inserção alimenta
o papel crescente e cada vez mais autônomo da comunidade de segu-
rança e informações.
Embora o discurso anticomunista tenha se mantido, a autonomia
política das Forças Armadas passou por um longo e controverso processo
de redução. Dentro do alto-escalão, mesmo que não fosse de forma
imediata, a nova lei de promoções aprovada ainda no governo Castelo
Branco viria a reduzir a inuência dos generais que permaneciam muito
tempo no posto – denominados por Oliveiros Ferreira como totens
133
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
dentro dos quartéis, diminuindo em longo prazo a politização no alto-
comando (FERREIRA, 2000).
A distensão no governo Geisel, permeada entre a necessidade de
conter a comunidade de informações e segurança e de controlar os grupos
políticos da oposição é feita de maneira lenta e gradual. A autonomia da
comunidade de informações e segurança constitui-se um fardo para as For-
ças Armadas, uma vez que os grupos que representavam o inimigo interno
estavam desmantelados ao nal de 1973. A inuência dessa comunidade
e seus efeitos na hierarquia e disciplina poderiam ser desgastantes para a
instituição, embora alguns militares a vissem ainda como necessária para
conter a “ameaça” comunista.
No governo Figueiredo, essa comunidade de informações e
segurança agiria, junto à extrema-direita, em uma série de atentados
à bancas de jornais, à sede do Ordem dos Advogados do Brasil, entre
outros. O anticomunismo se mantém ao longo da redemocratização,
alimentando a paranoia contra a esquerda e sendo em muitos casos um
freio à abertura democrática. Episódios já bem documentados como
o caso Baumgarten, o atentado ao Rio Centro e outros menos citados
como a Operação Bruxos revelam como a prédica anticomunista afeta-
va o processo político de distensão.
4 – ressentimento entre os militares Da reserva
A redemocratização opera em diversos aspectos da autonomia po-
lítica das Forças Armadas. No campo do discurso, a identidade dada aos
militares por uma crescente articulação de grupos políticos civis em prol
do retorno à democracia, é marcada pela visão negativa das Forças Arma-
das, muito diferente aquela observada ao nal de 1945. Se eram vistos
como nacionalistas no pós segunda guerra, não raro eram taxados de cúm-
plices dos norte-americanos em 1985. Se ao m do Estado-Novo eram os
porta-vozes da democracia, quarenta anos depois representavam o entulho
autoritário na voz dos políticos. Os 21 anos de regime cívico militar, com
seus acertos e equívocos, haviam criado uma percepção no campo político
de que os militares não eram mais conáveis como éis da balança e, por
isso, não eram mais um instrumento que se poderia contar em uma inter-
134
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
venção. No campo econômico, a administração civil-militar da economia
havia gerado crescimento não sustentável, o que era notável na fragilidade
do país a crises externas e na galopante inação.
A redemocratização tem como efeito a continuação da tendência
de redução da autonomia política das Forças Armadas, em que pese certa
resistência do alto comando. Se, no governo Sarney, a literatura a respeito
retrata o período como de tutela dos militares, no governo Collor, essa
autonomia é mitigada em diversos aspectos, entre elas, a redução da inu-
ência da comunidade de informações e segurança, com a revisão do status
ministerial do Estado Maior das Forças Armadas e a extinção do Serviço
Nacional de Informações.
5 – reações à PossiBiliDaDe DerevancHismo
A saída das Forças Armadas do centro do poder e o novo equi-
líbrio político motivam a reação dos militares ligados à repressão que se
aliam, por laços corporativos, a ociais que não atuaram na repressão, mas
que mantinham a congruência de valores institucionais e ideológicos do
regime militar. Eles se organizam em grupos de pressão política, motiva-
dos pelo ressentimento que tinham da sociedade (que não lhe dava maior
status e reconhecimento) e pelo receio de serem julgados pelos crimes co-
metidos nos anos autoritários.
Esses grupos de pressão política buscam o apoio da sociedade
para manter uma agenda positiva ao regime militar e vão, numa disputa
de corações e mentes, fazer palestras e lançar documentos, jornais e livros
com as suas versões da história em quartéis e clubes. Ao longo do período
de redemocratização, esses grupos se desdobram em publicar artigos na
revista do Clube Militar, na confecção dos jornais Letras em Marcha e Om-
bro a Ombro e, em uma série de atividades correlatas, entre elas o envio de
cartas a jornais de grande circulação. Distribuídos em cidades como o Rio
de Janeiro, Fortaleza e Belo Horizonte, são constituídos muitas vezes com
estatutos formais, por militares da reserva, em geral coronéis e generais.
A presença desses grupos se torna mais notável na imprensa
quando entidades civis, especialmente as ligadas aos Direitos Humanos,
135
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
reivindicam nova memória sobre o regime militar e a punição dos agentes
envolvidos em crimes de lesa-humanidade. Em 1985, quando o relatório
Brasil: Nunca Mais foi lançado, setores dentro e fora das Forças Armadas
começaram a reagir. Nesse aspecto, a denúncia que a atriz Bete Mendes fez
do adido militar no Uruguai, coronel Carlos Alberto Ustra, de ter sido o
doutor Tibiriçá, torturador do Doi-Codi, abriu caminho para um longo
processo em que a sociedade civil e setores do Exército tentaram ncar
posições sobre o regime militar.
Houve também ações isoladas: em 1986, Marco Pollo Giorda-
ni, militar e ex-agente do Doi-Codi, publicou o livro Brasil Sempre, um
contraponto ao relatório Brasil Nunca Mais. Se esse último, elaborado
pela Arquidiocese de São Paulo, listava uma série de crimes e agentes
envolvidos na repressão, a obra escrita por Giordani, com base em do-
cumentos sigilosos, mostrava as vítimas dos movimentos armados de es-
querda. (TENENTE..., 1986).
Em 1987, para se contrapor ao relatório Brasil: Nunca Mais, foi
feito levantamento por parte de ociais do Centro de Informações do
Exército (CIE), entre eles o general Agnaldo Del Nero Augusto, o tenente
coronel Lício Maciel e o tenente José Conegundes, que resultou no projeto
Orvil –tentativa de tomada do poder. O livro acabou sendo vetado pelo mi-
nistro do Exército Leônidas Pires Gonçalves. Nesse mesmo ano, o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra lançou o livro Rompendo o silêncio, para
responder as acusações feitas contra ele.
6 – nova ProDução De memória
Em 1995, por exemplo, alguns ociais pertencentes a esses gru-
pos de pressão política, receosos com a política de memória do governo
Fernando Henrique Cardoso, começam a trocar cartas com a inscrição
“Terrorismo Nunca Mais”, para se contrapor ao grupo Tortura Nunca
Mais. Três anos depois, eles se constituem como um novo grupo de pressão
política, o Ternuma, utilizando para isso as instalações no Clube Militar.
A reação não era gratuita: lembremos que o governo Fernando Henrique
Cardoso criaria naquele ano a Comissão Especial sobre Mortos e Desapa-
recidos Políticos.
136
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Ainda em 1995, é notável nas edições do jornal Ombro a Ombro
artigos que versavam em temas ligados à violência política como os as-
sassinatos do empresário Henning Albert Boilesen (DUMONT, 1995a)
e do capitão Chandler (DUMONT, 1995b), o governo Médici (NEGA-
LHA, 1995), a atuação de militantes do Partido Comunista Brasileiro
(DUMONT, 1995c) e do capitão Carlos Lamarca (DUMONT, 1995d),
entre outros. Também nesse período, mais precisamente em 1996, o gru-
po Estácio de Sá, liderado pelo general Hélio Ibiapina de Lima, vence as
eleições do Clube Militar. Uma das metas da nova presidência é trazer
as memórias do regime de 1964 para a revista do Clube, assim como
apoiar eventos a respeito. E embora o Clube Militar seja uma entidade
civil, ele não está isolado: Ibiapina recebe uma carta do então ministro do
Exército, general Zenildo de Lucena, apoiando seus esforços em manter
a versão institucional:
Caro Ibiapina,
Tem chamado a atenção o posicionamento de alguns autores moder-
nos, cujos livros apresentam uma visão totalmente parcial da realidade,
no que diz respeito ao movimento de 1964. Exemplo disso é o livro
“Viagem pela História do Brasil”, de Jorge Caldeira e outros. Nele, são
ressaltados apenas os aspectos negativos da Revolução.
Minha sugestão é que os sócios do Clube Militar, particularmente nos-
sos ociais da Reserva, tomem a peito a tarefa de apontar aos autores e
à imprensa as distorções, sejam elas intencionais ou não. Acredito ser
essa uma tarefa nobre e que constituirá um desao à inteligência e à
cultura dos companheiros, que assim podem prestar importante cola-
boração para o restabelecimento da verdade histórica.
Com um forte abraço,
General de Exército Zenildo de Lucena
Ministro de Estado do Exército. (SANTOS; ALVES, 2009, p. 7).
O apoio do ministro a essa produção de memória na revista do
Clube Militar decanta nos anos seguintes na criação da Coleção de His-
tória Oral do Exército, instituída em março de 1999, no último ano de
funcionamento do ministério do Exército. Dividida em 15 tomos, reúne
247 depoimentos de militares e civis sobre o regime cívico militar. Lançada
em 2003, ou seja, 66 anos após o livro Em Guarda Contra o Comunismo,
137
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
mantém na maior parte de suas entrevistas a visão anticomunista sobre o
processo político brasileiro que deu base ao golpe de 1964. Embora com
opiniões discordantes até mesmo entre os militares consultados, a Coleção
de História Oral acaba fortalecendo o discurso institucional até então pre-
sente nas ordens do dia sobre o dia 31 de março: as Forças Armadas teriam
sido convocadas pelo povo para livrar o país de uma ameaça comunista.
No verso de cada um dos tomos, são reproduzidos editoriais dos jornais
que emprestam, sob a lógica da Política Laudatória, o papel de árbitros da
política aos militares. Na contracapa do tomo 1, por exemplo, consta o
editorial Julgamento da Revolução, publicado em O Globo, em 7 de outubro
de 1984, no qual o jornal arma que:
Participamos da Revolução de 1964, identicados com os anseios
nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas
pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção ge-
neralizada... Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso, desde
os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de
abertura que deverá consolidar-se com a posse do futuro presiden-
te.... Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um ‘pronuncia-
mento’ ou ‘golpe’ com o qual não estaríamos solidários (MOTTA,
2003, contra capa).
Na mesma contracapa, outro editorial, publicado no Jornal do
Brasil em 1º de abril de 1964, citando indiretamente as relações entre João
Goulart e os praças, arma que
desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade... Legalidade
que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais funda-
mental ela tem: a disciplina e a hierarquia militares. A legalidade está
conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas (MOTTA, 2003,
contra capa).
O anticomunismo e a busca por manter padrões de produção de
memória institucional dentro das Forças Armadas autônomos ou, na me-
lhor das hipóteses, dissociados do governo federal, tiveram continuidade
no governo de Luís Inácio Lula da Silva. Em seus dois mandatos, a política
de memória avançou, mas com resistência dentro das Forças Armadas. A
busca por informações sobre dois episódios conhecidos ocorridos no regi-
me militar, a guerrilha do Araguaia e o caso Herzog, suscitaram acirramen-
138
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
to entre o ministro da Defesa, José Viegas, e o comandante do Exército,
general Francisco Albuquerque. O jornal Correio Braziliense publicou em
17 de outubro de 2004 três fotos inéditas que seriam supostamente de
Vladimir Herzog na cela, momento antes de sua morte no Doi-Codi em
São Paulo.
3
O Exército, por meio do CComSEx, publicou uma nota sobre
o período, no qual era patente o discurso anticomunista, e no qual “as me-
didas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta à violência
dos que recusaram o diálogo” (DUALIBI; SCOLESE, 2004). Ao saber do
teor, Viegas solicitou ao presidente Lula a saída do comandante do Exér-
cito e, sem sucesso, acabou pedindo demissão do cargo. Em sua carta de
renúncia, armou que:
É incrível que a nota original se rera, no século 21, a “movimento sub-
versivo” e a “movimento comunista internacional”. É inaceitável que
a nota use incorretamente o nome do Ministério da Defesa em uma
tentativa de negar ou justicar mortes como a de Vladimir Herzog. É
inaceitável também, a meu ver, que se apresente o Exército como uma
instituição que não precise efetuar “qualquer mudança de posiciona-
mento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período
histórico”. (VEJA..., 2014).
Como vimos, desde a redemocratização, ainda há ecos do dis-
curso anticomunista nas Forças Armadas que se conjugam com certo grau
ainda existente de autonomia política e que repercutem contra as ações
orientadas para a construção de uma nova memória social. Não se trata de
um fenômeno oriundo do regime cívico-militar de 1964, suas raízes são
mais profundas, e se misturam tanto com a história republicana do Exér-
cito quanto com sua modernização e fortalecimento realizados no gover-
no Vargas. A inércia desses fatores, anticomunismo e autonomia política,
mesmo que reduzidos, operaram contra as ações da Comissão Nacional
de Mortos e Desaparecidos (1995), da Comissão de Anistia (2002) e vão
operar na resistência ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade.
As fotos eram na verdade do padre canadense Leopoldo d’Astous, que havia sido preso por agentes do SNI e
que foi liberado tempos depois.
139
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
7 – a comissão nacional Da verDaDe
Criada pela lei nº12528, de 18 de novembro de 2011, a Comis-
são Nacional da Verdade passou a funcionar em maio do ano seguinte no
âmbito da Casa Civil, tendo, como principais objetivos, efetivar o direito à
memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. A pro-
posta de criação da CNV foi recomendada por 1200 conselheiros nacio-
nais e se fundamenta no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988 e no 3º Programa Nacional
de Direitos Humanos–III, de 2009.
A CNV selecionou como intervalo histórico o período entre 1946
e 1988, recorte que abrange a república de 1946, o regime cívico-militar de
1964 e uma parte da redemocratização. O período escolhido é tanto funda-
dor, por oposição, da Nova República, quanto do Estado de Direito vigente.
A violência do Estado no período tem algumas características: não é inédita,
reete a tradição de uso intensivo da repressão. Basta lembrar os primeiros
anos da república, durante os governos de Deodoro da Fonseca, Floriano Pei-
xoto e Prudente de Moraes; ou o nal da república Velha, no governo Arthur
Bernardes, assim como as várias fases da Era Vargas. Outra característica dessa
violência do Estado é que ela se insere na dualidade da Guerra Fria, no qual
houve encarniçados conitos entre as esquerdas e as direitas ao redor do globo,
sendo seus subprodutos a lógica do anticomunismo e do inimigo interno.
A Comissão terminou o seu trabalho em dezembro de 2014, co-
letando mais de mil depoimentos, que resultaram em três densos relatórios
dos quais sobressai uma lista com 377 nomes de agentes, militares e civis,
que teriam cometidos crimes durante o período de análise (1946–1988).
Entre os militares ouvidos pela CNV estão os coronéis Carlos Alberto Bri-
lhante Ustra e Paulo Malhães.
A CNV também fez 29 recomendações ao governo que vão desde
a punição dos agentes citados à abertura dos arquivos militares. Cabe lem-
brar que a Comissão não tinha o poder de punir os agentes listados em seu
relatório e tampouco mudar a Lei de Anistia.
As descobertas feitas pela Comissão abrem novos campos para
melhor compreensão daquele período. Os relatos de tortura abrangem não
somente aos militantes da esquerda quanto também os indígenas, cuja
140
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
narrativa sobre esse tempo histórico é praticamente ausente. O relatório
também mostra que a perseguição política vai além das organizações da
esquerda armada, e se insere dentro das Forças Armadas: os militares
foram a categoria, em número, mais afetada pela repressão – 7500 mi-
litares sofreram algum tipo de perseguição. Além disso, trouxe valiosas
informações sobre os casos Riocentro, Rubens Paiva, JK, sobre a Casa da
Morte, entre outros.
Podemos armar que a CNV deu importantes passos em termos
do direito à memória para incorporar narrativas até então não ouvidas
sobre a repressão estatal e sobre a violência política, em especial no regime
militar. Com a sua efetividade, foram também estabelecidas outras 81 co-
missões, de alcance mais limitado, mas não menos importantes.
Porém, em dois de seus objetivos, que se relacionam diretamen-
te à batalha pela memória e às disputas políticas conjunturais, ou seja,
o direito à verdade histórica e a promoção da reconciliação nacional, a
Comissão sofreu uma série de resistências seja no meio militar, seja no
âmbito jurídico. A CNV não foi poupada de críticas até mesmo por se-
tores mais à esquerda.
8 – reações à comissão nacional Da verDaDe – Dentro Das
forças armaDas
De acordo com o jornal O Globo, em 25 de fevereiro de 2014, o
Comandante do Exército, general Enzo Peri, teria determinado que qual-
quer pedido de informação feito pelo Poder Executivo (nos níveis federal,
estadual e municipal), Ministério Público e Defensoria Pública sobre as-
suntos relacionados ao período entre 1964 e 1985 fosse encaminhado dire-
tamente ao seu gabinete. A determinação, enviada para unidades militares,
acabou virando notícia em agosto daquele ano, quando a reportagem de O
Globo mostrou as diculdades que a CNV estava tendo, no Hospital Cen-
tral do Exército no Rio de Janeiro, em apurar as condições em que havia
morrido Raul Amaro Nin Ferreira, engenheiro e militante do Movimento
Revolucionário 8 de Outubro. Sergio Suiama, um dos promotores que
participavam do caso, criticou a ordem do general, alegando ir de encontro
à lei 75/93, que permite aos promotores solicitar informações diretamente
141
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
nas unidades. A decisão também foi criticada por integrantes da Comissão
Estadual da Verdade (OTAVIO, 2014). Como reação ao ofício do general,
em setembro, 21 grupos de Direitos Humanos e 105 ex-presos políticos
enviaram uma carta à presidente Dilma Rousse pedindo a demissão do
comandante do Exército. Respondendo às críticas, o general Peri enviou
nota à imprensa no qual explicava que a determinação de centralizar os
pedidos de informações era uma forma de “padronizar procedimentos,
contextualizar os fatos, evitar o fornecimento de informações incompletas
e atender o mais rápido possível às demandas” (BRASIL, 2014). E ainda
buscou esclarecer que a determinação havia sido realizada em novembro de
2010. A polêmica não terminou por aí.
Em dezembro de 2014, o general Sérgio Etchegoyen, na ativa,
criticou abertamente o relatório da Comissão Nacional da Verdade, cha-
mando-o, em nota, de “leviano” e armando ser “patético” o esforço de
reescrever a história”. O ocial, integrante do alto comando do Exército,
é lho de Léo Guedes Etchegoyen, um dos 377 civis e militares citados no
documento da CNV. Ele reclamou o fato de ninguém da família ter sido
consultado pela Comissão, e que a entidade teria investido contra um cida-
dão sem possibilidade de ampla defesa (MONTEIRO, 2014). O comando
do Exército tratou a questão como pessoal e não puniu Etchegoyen. No
âmbito civil, líderes do governo evitaram contrastar as declarações do ge-
neral, receosos em criar indiretamente um mártir (GOVERNO..., 2014).
9 reações à comissão nacional Da verDaDe - entre os
militares Da reserva
Como vimos, os militares da reserva organizados em grupos de
pressão política reagiram das mais diversas formas às políticas de memória
e direitos humanos ao longo da redemocratização. Quando Dilma Rous-
se foi eleita, a apreensão desses militares com um provável recuo da lei de
anistia é visível nas críticas que tecem ao governo. Tal preocupação tam-
bém transparecia no Clube Militar. Em março de 2012, os presidentes dos
clubes militares das três forças lançaram nota no qual desacreditavam o
discurso de conciliação da presidente:
142
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Dirijo-me também aos partidos de oposição e aos setores da socie-
dade que não estiveram conosco nesta caminhada. Estendo minha
mão a eles. De minha parte, não haverá discriminação, privilégios
ou compadrio. A partir da minha posse, serei presidenta de todos
os brasileiros e brasileiras, respeitando as diferenças de opinião, de
crença e de orientação política. No dia 31 de outubro de 2010, após
ter conrmada a vitória na disputa presidencial, a Sra Dilma Roussef
proferiu um discurso, do qual destacamos o parágrafo acima transcrito.
Era uma proposta de conduzir os destinos da nação como uma verda-
deira estadista.
Logo no início do seu mandato, os Clubes Militares transcreveram a
mensagem que a então candidata enviara aos militares da ativa e da
reserva, pensionistas das Forças Armadas e aos associados dos Clubes.
Na mensagem a candidata assumia vários compromissos. Ao transcre-
vê-la, os Clubes lhe davam um voto de conança, na expectativa de
que os cumprisse. Ao completar o primeiro ano do mandato, paulati-
namente vê-se a Presidente afastando-se das premissas por ela mesma
estipuladas. Parece que a preocupação em governar para uma parcela
da população sobrepuja-se ao desejo de atender aos interesses de todos
os brasileiros. (MANIFESTO..., 2012, grifo do autor.).
Ao longo da nota, os autores mostram inquietude em relação às
falas das ministras Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos e
Eleonora Menicucci, da Secretaria de Promoção de Políticas para a Mulher,
sobre a vigência da lei de Anistia e o regime militar. Esse pronunciamento
seria uma prévia de uma série de reações que estavam por vir com a criação
da Comissão Nacional da Verdade.
Logo da aprovação da CNV, o coronel da reserva Pedro Ivo
Moézia Lima protocolou ação popular em um juizado de Brasília contra
a Comissão (LIMA, 2011). Em Belo Horizonte, o grupo Incondência
lançou uma edição do seu jornal criticando a Comissão, com vários ar-
tigos sobre o regime militar sob o ponto de vista favorável à intervenção
política das Forças Armadas naquele período, aos militares e aos agentes
da repressão (JORNAL INCONFIDÊNCIA, 2011). Na mesma linha do
grupo Incondência, o grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma) do Rio
de Janeiro, lançou em seu site uma série de artigos criticando os propósitos
e o trabalho da CNV (PEREIRA, 2011). Outros artigos com o mesmo
teor foram publicados ao longo do funcionamento da Comissão.
143
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Em março de 2013, os clubes militares das três forças lançaram
nota conjunta em que chamam os integrantes da CNV de “democratas
arrivistas” e “arautos da mentira”, no qual “disfarçados de democratas”, são
os “totalitários de sempre”. Na nota, ainda, eles declaram que:
Ao arrepio do que consta da Lei que criou a chamada “Comissão da
Verdade”, os titulares designados para compô-la, por meio de uma re-
solução administrativa interna, alteraram a Lei em questão limitando
sua atividade à investigação apenas de atos praticados pelos Agentes do
Estado, varrendo “para debaixo do tapete” os crimes hediondos pra-
ticados pelos militantes da sua própria ideologia. (MILITARES DA
RESERVA..., 2013).
Em julho de 2013, os clubes militares entraram com represen-
tação conjunta contra a Comissão na Procuradoria Geral da União. Sem
sucesso, no ano seguinte, protocolaram ação na Justiça Federal em Brasília.
Em 2014, o Clube Militar continuou se colocando contra a Comissão
Nacional da Verdade. A edição trimestral de sua revista correspondente
aos meses de fevereiro a abril de 2014 foi concebida tendo como assunto
principal o regime cívico militar de 1964. As 144 páginas e os 34 artigos
escritos por civis e militares exploraram, sob o ponto de vista favorável ao
regime, os motivos para a conagração do golpe e análises sobre o governo.
Nos artigos, há também a reprodução de documentos ociais e de trechos
da obra Orvil, tentativa de tomada do poder. Embora tivesse sido escrito em
1987 como um contraponto ao relatório Brasil Nunca Mais, o livro acabou
sendo lançado em 2013, agora como resposta à Comissão Nacional da
Verdade (MAYRINCK, 2013).
Quando do lançamento do relatório da Comissão, os clubes se
manifestaram novamente. Em reportagem da BBC Brasil, o vice-almirante
Paulo Frederico Soriano Dobbin, presidente do Clube Naval, criticou o
viés da CNV, ao alegar que:
As famílias dos 124 brasileiros mortos por essas ações merecem que a
história de seus lhos e parentes sejam contadas também. Só assim a
nação estaria pacicada. A dor de uma mãe que perde seu lho para a
tortura ou para o terror é exatamente igual (...) Assim como os excessos
eventualmente praticados por agentes do Estado, não se podem varrer
para baixo do tapete crimes de morte, sequestros, justiçamentos (jul-
gamentos e execuções cometidos por guerrilheiros contra os próprios
144
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
colegas) praticados por aqueles que se confrontavam com forças do
governo (KAWAGUTI, 2014).
No mesmo tom, se posicionou o presidente do Clube Mili-
tar, general Gilberto Pimentel, “de forma nenhuma nós pretendemos
defender excessos, de que forma for. Tanto violações de direitos huma-
nos por tortura, terrorismo, e também aqueles outros crimes chamados
hoje de hediondos [...]” (KAWAGUTI, 2014).
Segundo a reportagem, os militares da reserva se queixavam de
que a Comissão, que tinha como objetivo apurar os fatos ocorridos entre
1946 e 1988, concentrou seus dados nos crimes cometidos por agentes do
Estado a partir do regime de 1964, o que para eles se caracterizaria por re-
vanchismo. Os ociais do alto-escalão consultados pela reportagem diziam
manter postura legalista e armaram que as recomendações e acusações da
CNV não se traduziriam em punições mais severas. Um desses, general da
ativa, destacou, sob condição de anonimato, que “criar confrontos ideoló-
gicos em pleno século 21 não é produtivo, é preciso olhar para a frente, não
para o passado” (KAWAGUTI, 2014).
10 – outras reações
No Poder Judiciário, o Superior Tribunal Militar se colocou con-
tra alguns apontamentos do relatório nal da CNV. Em nota, o órgão se
posicionou contrário à armação de que o STM teria sido “[...] retaguar-
da judicial [...] para a repressão [...] conivente ou omissa às denúncias de
graves violações de direitos humanos [...]” (MARTINS, 2014). Algumas
entidades de Direitos Humanos também criticaram o trabalho da CNV.
Ainda em 2012, a Comissão foi alvo de críticas por manter o sigilo e pela
falta de autonomia em punir os acusados (TOSTA, 2012).
11 – consiDerações finais
Ao longo desse artigo, analisamos documentos de grupos de
pressão política formados por militares da reserva que se colocaram con-
tra a ideia de revisão do passado. Mostramos ações desses grupos e de
145
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
instituições como o Clube Militar e as próprias Forças Armadas em torno
dessa batalha da memória. Por m, apresentamos alguns documentos
e ações feitas por essas entidades durante e após a aprovação da CNV.
Relacionamos essas ações e reações com duas características que permea-
ram por muito a identidade das Forças Armadas brasileiras: a autonomia
política e o anticomunismo.
Essas duas características ainda são expressas nos discursos dos gru-
pos de pressão política de militares da reserva e em algumas fontes das Forças
Armadas. De certa forma são empecilhos à melhor adequação da instituição
ao ambiente contemporâneo, no qual se demanda à democracia a incorpo-
ração das mais diversas pautas, das mais dissonantes vozes. No que tange
à autonomia política, embora tenha se reduzido com o tempo, ainda há
um longo caminho para um melhor controle civil objetivo sobre as Forças
Armadas, no qual, além da subordinação, esteja implícita a assunção de res-
ponsabilidades por parte do poder civil no tocante à Defesa. No que se refere
ao anticomunismo, não oferece mais base alguma para entender a comple-
xidade da sociedade brasileira e do mundo atual, marcado por movimentos
políticos multifacetados. São ecos de outra época, que resistem e impedem o
diálogo denso e profundo entre a sociedade e suas Forças Armadas.
Processos relacionados à política de memória são complexos e
sem uma solução comum. Em alguns países como a África do Sul, a con-
ciliação foi possível. Em outros, como a Argentina, o julgamento dos prin-
cipais responsáveis foi realizado. No Brasil, nem conciliação nem julga-
mento foram possíveis. Mas isso não quer dizer que a Comissão Nacional
da Verdade deixou de cumprir seu papel. Cada ambiente e cada momento
oferece uma série de resistências ao processo de construção de memória e
conciliação. Após 53 anos do golpe cívico militar, após 32 anos do primei-
ro governo civil, há uma série de lacunas abertas. As descobertas oriundas
do trabalho da Comissão Nacional da Verdade podem ser úteis para o me-
lhor entendimento dos processos políticos nacionais, para a compreensão
da tradição autoritária, para a reexão sobre a conciliação, a impunidade e
a cultura da violência no Brasil.
O relatório nal da Comissão Nacional da Verdade aponta que
434 pessoas morreram ou desapareceram devido à repressão estatal. Lista
377 civis e militares envolvidos na repressão. Coleciona mais de mil depoi-
146
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
mentos. Um acervo considerável para a memória da nação. Os relatos, os
dados colhidos pela CNV mostram em detalhes o grau de crueza levado
por agentes do regime, violência com desdobramentos ainda presentes.
Não podemos dizer que, a despeito das doutrinas e técnicas im-
portadas, a violência política se resuma no regime inaugurado em 1964. A
República Velha apresentou episódios cruentos, com guerras civis, como
a Revolta Federalista e a Revolta de Canudos, com milhares de mortes
contabilizadas. No período Vargas, a guerra civil de São Paulo vitimou
centenas; em um ano e meio de funcionamento do Tribunal de Segurança
Nacional, cerca de 1400 pessoas foram sentenciadas.
A diferença do regime de 1964 em relação a outros períodos repu-
blicanos se dá pela proximidade da construção de uma agenda de Direitos
Humanos em escala global e pela construção de um Estado Democrático
de Direito mais inclusivo. E nesse aspecto a criação das comissões (Desa-
parecidos, Anistia e Verdade), a despeito de todas as limitações dadas pela
conjuntura política, e pela resistência oriundas da cultura de autonomia
política e de anticomunismo, cumpre importante papel no fortalecimento
do conceito contemporâneo de democracia.
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Vivien Fialho da Silva Ishaq
1 – introDução
Uma das nalidades da justiça de transição é o julgamento crimi-
nal dos autores de graves violações de direitos humanos durante os regimes
ditatoriais. Segundo os estudos produzidos nesta temática, os países que
julgaram os perpetradores da violência do Estado obtiveram efeitos po-
sitivos para efetivação dos demais direitos considerados como pilares da
justiça de transição: à memória e à verdade, à reparação e à reformas ins-
titucionais. Entretanto, as diferentes experiências das transições nos países
da América Latina pós-regimes ditatoriais, demonstram que são muitos os
desaos e obstáculos para a responsabilização penal das pessoas envolvidas
nessas violações na América Latina.
150
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Desde a década de 1990, países da América Latina que supera-
ram suas ditaduras, como Argentina, Chile
1
, Peru
2
e Uruguai
3
, criaram
comissões da verdade, revogaram leis de anistias ou atualizaram suas ju-
risprudências de acordo com as normas internacionais, para julgar crimes
contra a humanidade cometidos no período. Esse processo político de
contestação de anistia para os perpetradores de graves violações de direi-
tos humanos, como a tortura, execução extrajudicial, sumária e arbitrá-
ria, e o desaparecimento forçado, se inserem em um contexto jurídico
internacional, no qual se rejeita a adoção de leis de anistia incompatíveis
com os tratados internacionais sobre o respeito aos direitos humanos,
uma vez que “violam direitos não derrogáveis reconhecidos internacio-
nalmente” (CIDH, 2001, p. 15), conforme preconiza a Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos (CIDH).
A Comissão Nacional da Verdade (Lei nº 12.528/2011) iniciou
suas atividades em 16 de maio de 2012, vinte e nove anos depois do m
da ditadura militar no Brasil. Nesse mesmo dia, a Lei de Acesso à Infor-
mação (LAI) (Lei nº 12.527/2011) entrou em vigor, ambas rearmando
que o pleno exercício dos direitos do cidadão envolve, obrigatoriamente,
o direito de saber o que o Estado e seus agentes zeram e fazem. Impor-
tante destacar, que a LAI veda a restrição de acesso a informações e ou
documentos que tratem de violações de direitos humanos. A Lei de Aces-
so vem armar o dever do Estado de disponibilizar as informações que
Em 1990 com a volta dos civis ao poder, o presidente Patrício Aylwin, criou Comissão para a Verdade e a
Reconciliação (CNVR) que visava investigar as violações de direitos humanos ocorridas no período de 1973 a
1990, que reconhecia ocialmente 2.279 mortes nas mãos de agentes do Estado durante o regime de Pinochet,
contabilizando apenas os desaparecimentos e execuções. Em 2003 foi criada, mediante decreto, a Comisíon
Nacional sobre Prisón Política y Tortura. A Comissão identicou 28.459 casos qualicados como vítimas
ociais e os resultados dos trabalhos resultaram no desencadeamento de processos contra militares e indenização
aos familiares e às vítimas do regime.
Em 2001, o Peru aceitou ocialmente sua condenação, em audiência diante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso denominado Bairros Altos, em que houve a execução sumária de 15 pessoas, em 3 de
novembro de 1991. Em abril de 2009, o ex-presidente Alberto Fujimori que governou o Peru, de 1990 a 2000,
foi condenado a 25 anos de prisão pela Justiça de seu país, por crimes cometidos durante seu governo, que foi
marcado por forte repressão sobre a guerrilha de inspiração marxista, realizada por grupos como o Movimento
Revolucionários Tupac Amaru e Sendero Luminoso.
O processo de redemocratização iniciado com a eleição do presidente Julio Maria Sanguinetti, levou
o Parlamento uruguaio a sancionar uma lei de anistia com imunidade parcial aos militares e policiais (Lei
nº 15.737, de 22 de março de 1985). Esta anistia foi revogada por uma segunda lei (Lei nº 15.848, de 28
de dezembro de 1986), que deixava o Estado livre para não punir crimes cometidos pelas Forças Armadas e
pela polícia. Este impasse político terminou com o plebiscito nacional ocorrido em 16 de abril de 1989 que
referendou a anistia prevista pela segunda lei.
151
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
estão em seu poder e que auxiliem no esclarecimento de graves violações
de direitos humanos, a m que sejam conhecidos os fatos violatórios e a
identidade de seus autores.
Cabe então perguntar por que o Brasil demorou tanto para criar
uma Lei de Acesso à Informação e uma comissão da verdade e por que é
um dos únicos países latinos americanos que passaram por uma ditadura a
não fazer julgamentos penais para cumprir com suas obrigações de inves-
tigar, processar, punir e reparar as violações de direitos humanos ocorridas
no período ditatorial?
O caminho do Brasil foi muito diferente, por exemplo, do tri-
lhado pela Argentina. Na Argentina, o presidente Raul Alfonsín criou por
decreto apenas cinco dias após sua posse, em 15 de dezembro de 1983, a
Comissão Nacional sobre Desaparecidos (CONADEP), que é considerada
uma iniciativa pioneira no tocante à justiça de transição. No ano seguin-
te, a publicação do relatório Nunca Más em 1984 mostrou ao mundo as
atrocidades vividas pela população argentina, revelando que, além dos 30
mil desaparecidos, a ditadura argentina contou com 340 campos de con-
centração e extermínio, que funcionaram de 1976 a 1982, em diversas
províncias do país, cujos números revelam que entre 15 e 20 mil pessoas,
tenham passado por esses centros, das quais 90% foram assassinadas. Um
ano após a publicação do Relatório Nunca Más, em 1985, iniciaram-se os
julgamentos dos membros das Juntas Militares: o general Jorge Videla e
o almirante Emilio Massera receberam pena de prisão perpétua. As pres-
sões dos militares acarretaram em recuos em 1986 e 1987, quando foram
aprovadas as leis de Ponto Final e de Obediência Devida, com o objetivo
de diminuir as penalidades aos agentes do terror de Estado. Em 2003, as
leis de Obediência Devida e Ponto Final foram revogadas pelo Congresso
Nacional argentino.
Voltando ao Brasil, a dinâmica da negociação política no Brasil
explica, em parte, o longo processo de redemocratização no país e seus
limites. Importante destacar que as ações do Estado ditatorial irão mol-
dar todo o futuro da Justiça de Transição no Brasil, cujos limites estão
contidos pela Lei de Anistia, (Lei nº 6.683) promulgada em 28 de agosto
em 1979 pelo último general-presidente da ditadura militar, João Baptis-
ta de Oliveira Figueiredo. A Lei de Anistia, em vigor há exatos 38 anos,
152
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
impede os julgamentos dos agentes que deram causa às graves violações
de direitos humanos.
O governo ditatorial também organizou a transição: o processo
eleitoral de escolha do primeiro Presidente da República do regime demo-
crático se daria por meio de eleições indiretas. Outro ponto importante foi
cuidadosamente planejado: os arquivos dos órgãos de informações, como
o poderoso serviço secreto da Presidência, Serviço Nacional de Informa-
ções, o temido SNI, assim como os serviços secretos das Forças Armadas
continuariam ocultados da sociedade brasileira, com o objetivo de impedir
o acesso aos documentos que registraram as graves violações de direitos
humanos cometidas pelo Estado e seus agentes públicos.
Nesse contexto de controle da transição democrática, as Forças
Armadas declararam, desde o primeiro momento, que todos os documen-
tos dos serviços secretos militares Centro de Informação do Exército (CIE),
Centro de Informação da Marinha (CENIMAR) e Centro de Informação
da Segurança da Aeronáutica (CISA) tinham sido destruídos, de acordo
com a legislação vigente à época, e que os termos de destruição também
tinham sido eliminados. Para os familiares de mortos e desaparecidos, a
Lei de Anistia, a ocultação dos arquivos, a ausência de informações dos
governos sobre o destino de cada um das vítimas fatais da ditadura, signi-
cou a necessidade de se lutar contra este quadro imposto de impunidade
permanente, cristalizando a certeza de que a luta pelos direitos à memória,
à verdade e à justiça no Brasil seria longa e difícil.
Um ano depois da publicação do Relatório Nunca Más da CO-
NADEP e apenas quatro meses após o m da ditadura militar, em 15
de julho de 1985 foi lançado no Brasil a publicação livro Brasil: Nunca
Mais, revelando a face cruel da repressão na luta contra a oposição po-
lítica. O livro contém denúncias contidas nos processos que chegaram
à esfera do Superior Tribunal Militar, com nomes de torturadores, de
centros de sevícias, de presos políticos assassinados e de desaparecidos, e
forma um conjunto incontestável de testemunhos, que mostraram, pela
primeira vez, o legado de terror promovido pelo Estado ditatorial no
país. O trabalho de cópias dos processos foi feito clandestinamente sob
a coordenação do Reverendo Jaime Wright e do Arcebispo de São Paulo,
Dom Evaristo Arns. A iniciativa teve como um dos objetivos evitar que
153
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos com o m
da ditadura militar (THIESEN, 2014).
Quando da promulgação da nova Constituição em 1988, o qua-
dro de impunidade dado pela vigência da Lei de Anistia estava próximo de
completar uma década. Foi com a nova Constituição que foi nalmente
abolida a censura política como serviço público. No rol dos direitos e ga-
rantias individuais (art.5º), houve avanço na agenda de direitos humanos
ao ser declarado que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamen-
to desumano ou degradante (BRASIL, 1988, inciso III, grifo nosso); bem
como que a lei considerará “crimes inaançáveis de graça ou anistia a prática
da tortura (BRASIL, 1988, inciso XLIII, grifo nosso). A Constituição re-
conheceu também a responsabilidade do Estado pela violência perpetrada
durante a ditadura militar, garantindo, pela primeira vez, a anistia devida
às pessoas atingidas, “[...] em decorrência de motivação exclusivamente
política, por atos de exceção, institucionais ou complementares [...]”, no
período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Cons-
tituição (BRASIL, 1988, Art. 8º). Não obstante, esta disposição consti-
tucional só viria a ser regulamentada treze anos depois, em 2001, com a
criação da Comissão de Anistia na estrutura do Ministério da Justiça, com
mandato para reparar economicamente os atos de exceção praticados pelo
Estado durante o período de 1946 a 1988
4
.
O ano de 1995 foi especialmente marcante para o direito à me-
mória e à verdade. Foi publicado o Dossiê de mortos e desaparecidos políticos
a partir de 1964, que reúne informações sistematizadas pelos familiares
sobre 339 casos de assassinatos e desaparecimentos, no Brasil e no exterior,
decorrentes de perseguição política. No mesmo ano, a Lei n° 9.140/1995
deu o primeiro passo para o processo de reconhecimento da responsabili-
dade do Estado brasileiro no cometimento de graves violações de direitos
humanos durante a ditadura militar, instituindo a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
5
Até fevereiro de 2017, segundo informações da página institucional foram apresentados à comissão mais de
75 mil requerimentos. Desses, mais de 60 mil já foram apreciados e, em seguida, submetidos à decisão nal do
Ministro da Justiça. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia/sobre-a-comissao/sobre-a-
comissao>. Acesso em: 20 ago. 2017.
A CEMDP possui poderes para identicar aqueles que, em razão de participação ou acusação de participação
em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, faleceram em dependências
policiais ou assemelhadas, por causas não naturais. Em seu anexo I, a lei identica os nomes e os dados de 136
154
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
A criação da CEMPD ocorreu após intensas negociações políticas
entre o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça, conforme relatou
ex-ministro da Justiça Nelson Jobim (JOBIM, 2014). Importante lembrar
que até 1999 havia ainda cinco ministros militares ocupando pastas no
Poder Executivo: Marinha, Exército, Aeronáutica, Casa Militar da Presi-
dência da República e Chefe do Estado Maior das Forças Armadas e que
somente em 1999 foi instituído o Ministério da Defesa no Brasil, que
seria, doravante, ocupado por um ministro civil, cando os antigos minis-
térios militares transformados em comandos subordinados à nova pasta.
Algumas das críticas apontadas pelos familiares dos mortos e
desaparecidos vieram a ser contempladas por duas importantes altera-
ções na Lei n° 9.140/1995, ocorridas nos anos de 2002 e 2004. A Lei nº
10.536/2002 reviu a questão temporal, ao ampliar o termo nal de sua
aplicação de agosto de 1979 para 5 de outubro de 1988, data da promul-
gação da Constituição, restando reaberto o prazo para a apresentação de
requerimentos em 120 dias. Por sua vez, a Lei no 10.875/2004 ampliou a
atribuição da CEMDP para que ela pudesse proceder ao reconhecimento
de pessoas que tivessem falecido em virtude de repressão policial sofrida
em manifestações públicas ou em conitos armados com agentes do poder
público, bem como das que tivessem falecido em decorrência de suicídio
praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de sequelas
psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes públicos.
Em novembro de 2005, ou seja, vinte anos depois do m da dita-
dura militar, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda em seu primeiro
mandato presidencial, publicou o Decreto nº 5.584/2005 determinando
o recolhimento ao Arquivo Nacional dos acervos dos órgãos do regime
militar (1964–1985), que até então, estavam sob a guarda da Agência Bra-
sileira de Inteligência (ABIN). Foram recolhidos os acervos dos extintos
Serviço Nacional de Informações (SNI) (1964–1990), da Comissão Geral
de Investigações (CGI) (1964–1979) e do Conselho de Segurança Nacio-
nal (CSN) (1964–1980). Nos anos seguintes, outros acervos dos órgãos de
informações e repressão foram sendo recolhidos ao Arquivo Nacional. Em
decorrência destes recolhimentos, podemos dizer que o Brasil hoje é de-
tentor do maior acervo sobre a repressão política da América Latina, alcan-
desaparecidos, a partir do trabalho realizado pelos familiares.
155
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
çando a marca de 20.000.000 (vinte milhões) de páginas de documentos
integralmente acessíveis aos cidadãos brasileiros e estrangeiros.
O ano de 2006 inaugurou, portanto, um intenso atendimento
por parte do Arquivo Nacional às vítimas sobreviventes e aos familiares de
mortos e de desaparecidos que, de posse da documentação produzida pelo
SNI e demais órgãos de informação e repressão da ditadura, recorreram aos
órgãos competentes, como CEMDP, Comissão de Anistia, Ministério Pú-
blico Federal, entre outros, para a busca de justiça e reparação. Nesses anos,
são retomados os debates sobre a necessidade de localização dos acervos
dos serviços secretos das Forças Armadas, do acesso universal aos acervos
recolhidos ao Arquivo Nacional, da localização dos corpos dos desapareci-
dos na Guerrilha do Araguaia, entre outros pontos da agenda de justiça de
transição no país.
Em 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao apre-
sentar o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH–3),
armou a relevância da criação de uma comissão da verdade, enfatizan-
do que apenas
Se conhecendo inteiramente tudo o que se passou naquela fase lamen-
tável de nossa vida republicana o Brasil construirá dispositivos seguros
e um amplo compromisso consensual – entre todos os brasileiros – para
que tais violações não se repitam nunca mais (BRASIL, 2010, p. 14).
Na contramão desse processo, o Supremo Tribunal Federal
(STF) em 2010 considerou a Lei de Anistia compatível com a Consti-
tuição Federal de 1988, no julgamento da Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental – ADPF nº 153, proposta pela Ordem dos Advo-
gados do Brasil (OAB), colocando um ponto nal nas ações de responsa-
bilização daqueles agentes do Estado que deram causa às graves violações
de direitos humanos.
Alguns meses após a decisão do STF, em 24 de novembro de
2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)
6
profe-
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sede em São José, capital da Costa Rica, e faz parte do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Ela é um dos três Tribunais regionais de proteção dos Direitos
Humanos, ao lado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos
Povos. Sua primeira reunião foi realizada em 1979 na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA),
em Washington, EUA. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/relacoes-internacionais/corte-
156
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
riu sua decisão no caso dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia, na qual
considerou que a Lei de Anistia brasileira constitui um ilícito internacional
que perpetua a impunidade
7
. Esta foi a primeira vez que a Corte IDH jul-
gou caso de desaparecimento forçado no Brasil. Dos setenta desaparecidos
durante a guerrilha, somente foram localizados os restos mortais de Maria
Lucia Petit em 1996, e em 2009, os restos mortais de Bergson Gurjão Fa-
rias puderam ser sepultados em Fortaleza, na presença de sua mãe, Dona
Luíza, de 94 anos de idade.
Em 18 de novembro de 2011, o Congresso Nacional fez história
ao aprovar as leis nº 12.527 e nº 12.528, que criaram respectivamente a
Lei de Acesso à Informação – LAI e a Comissão Nacional da Verdade.
2 – a comissão nacional Da verDaDe
A Comissão Nacional da Verdade iniciou suas atividades três
décadas depois do m da ditadura militar no Brasil, em 16 de maio de
2012, em um contexto de impunidade, onde os agentes do Estado que
praticaram as mais graves violações de direitos humanos estão protegidos
de consequências penais em função da interpretação dada pelos tribunais
brasileiros aos dispositivos da Lei de Anistia.
Após 32 meses de trabalho, no dia 10 de dezembro de 2014, Dia
Internacional dos Direitos Humanos, a Comissão Nacional da Verdade en-
tregou à ex-presidente Dilma Rousse seu Relatório nal. Nele explicitou
quatro conclusões de ordem geral: a ocorrência de graves violações dos di-
reitos humanos; a comprovação do seu caráter generalizado e sistemático; a
ocorrência de crimes contra a humanidade no período por ela investigado
e a persistência do quadro de graves violações de direitos humanos nos dias
de hoje, o que resulta em grande parte da impunidade pelos atos cometi-
dos durante a ditadura militar (BRASIL, 2014).
interamericana-de-direitos-humanos-corte-idh>. Acesso em: 10 ago. 2017.
Segundo o jurista Doc Camparato, continuam pendentes no STF o julgamento do recurso de embargos de
declaração à sentença de 2010 na ADPF 153, assim como o julgamento da ADPF 320, ajuizada pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL), que novamente questiona a constitucionalidade da Lei de Anistia, com base
na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Araguaia e suas implicações
para a punibilidade daqueles que cometeram crimes contra os direitos humanos em nome da ditadura militar
(OSMO; SANTOS, 2016).
157
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Em resposta à complexa questão da identicação da autoria das
graves violações investigadas, o Relatório conrmou 434 mortes e desa-
parecimentos de vítimas da repressão política, que se encontram iden-
ticados de forma individualizada no Volume III do Relatório, sendo
191 os mortos, 208 os desaparecidos e 35 os desaparecidos cujos corpos
tiveram seu paradeiro posteriormente localizado, 3 deles no curso do
trabalho da CNV. A CNV defendeu que não se aplicassem em relação a
esses agentes os dispositivos legais concessivos de anistia, e recomendou
a determinação pelos órgãos competentes da responsabilidade jurídica,
criminal, civil e administrativa dos agentes públicos que deram causa a
essas violações (BRASIL, 2014).
O Coordenador da CNV, Pedro Dallari, perguntado em entrevis-
ta sobre essa recomendação disse:
O que a Comissão propôs? Que haja a responsabilização daqueles
que deram causas às graves violações, Para mim, foi óbvio, isso. Por-
que a Comissão não era uma comissão jurídica, ela era uma Comis-
são de apuração de fatos. Ela apurou. O que ela tem que recomendar
diante de um quadro de ocorrência de crimes muito graves? Que
aqueles que deram causa sejam responsabilizados. Foi o que ela fez
(DALLARI, 2016, p. 313).
A Lei da CNV permitiu a investigação de casos de graves viola-
ções de direitos humanos ocorridos em outros países, autorizando um caso
raro de limite extraterritorial dentre as comissões da verdade, pois foi aceita
a constatação de que a repressão do Estado ditatorial brasileiro ultrapassou
as fronteiras do país. A Operação Condor (Plan Condor, Operativo Cón-
dor) foi o nome atribuído a rede secreta de informações criada na década
de 1970 formada pela união dos aparelhos repressivos das ditaduras aliadas
da América Latina – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
A cooperação repressiva incluía o compartilhamento de dados produzidos
pelos serviços de inteligência e a realização de operações conjuntas extra-
territoriais de sequestro, tortura, execução e desaparecimento forçado de
opositores políticos exilados, refugiados ou banidos.
Essa rede repressiva internacional era complexamente articulada e
promoveu operações com nalidades criminosas para cometer violações de
direitos, em clara situação de terrorismo de Estado. Desde abril de 1964,
158
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
com a chegada do presidente deposto João Goulart ao exílio no Uruguai,
o auxo de exilados brasileiros aumentou no país, levando a ditadura bra-
sileira pressionar o Governo de Montevidéu em busca de cooperação para
restringir a liberdade de expressão e a locomoção dos brasileiros exilados.
O Ministério das relações Exteriores (MRE) contava com duas estruturas
que integravam a comunidade de informações do Sistema Nacional de In-
formações (Sisni): a Divisão de Segurança e Informações (DSI) e o Centro
de Informações do Exterior (CIEX). A CNV identicou bases do CIEX
em capitais do Cone Sul (Assunção, Buenos Aires, Santiago,), da Europa
Ocidental (Paris, Lisboa e Genebra), e da Europa do Leste (Praga, Moscou,
Varsóvia e Berlim Oriental).
8
As pesquisas conduzidas pela CNV compro-
varam a atuação direta do Ministério das Relações Exteriores (MRE), em
graves violações de direitos humanos de brasileiros no exterior e a existên-
cia de uma rede de informantes pagos. Foram identicados telegramas e
ofícios que registram partir de 1970, solicitações das autoridades brasileiras
para detenção de brasileiros em território uruguaio, chileno e argentino.
9
Cumprindo os dispositivos legais estabelecidos na Lei nº
12.528, a CNV recomendou ao Estado brasileiro um conjunto de vinte
e nove iniciativas com o intuito de prevenir graves violações de direi-
tos humanos e assegurar sua não repetição. Embora algumas áreas do
poder executivo federal tenham avaliado, durante o segundo mandato
de Dilma Rousse, a possibilidade de implementação do conjunto das
recomendações do Relatório da CNV, inclusive mediante a proposta de
criação de um órgão permanente de seguimento, prevaleceu no governo,
de modo geral, a falta de sentido de urgência na aplicação das medidas
recomendadas pela Comissão
10
.
Após o m da CNV, alguns conselheiros se pronunciaram em en-
trevistas, sobre a recepção do Relatório, suas recomendações e perspectivas
sobre o pós–CNV. O Coordenador da CNV, Pedro Dallari, comentando
sobre a Recomendação n. 26, que trata do estabelecimento de órgão per-
manente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da
CNV, registrou que para ele,
 Ver capítulo 5 “A participação do Estado Brasileiro em graves violações no exterior” (BRASIL, 2014).
Ver capítulo 6 “Conexões internacionais: a aliança repressiva no Cone Sul e a operação Condor” (BRASIL, 2014).
10
Sobre a recepção do Relatório da CNV, ver Martins; Ishaq, 2016.
159
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
[...] é um mistério por que até agora o Brasil não tem uma comissão
de seguimento, já que a própria Comissão Nacional da Verdade foi
instituída pela Presidente da República atual, o relatório foi entregue
a ela, e a comissão de seguimento é uma comissão que existe quase
no mundo todo. E é um governo que tem compromisso com os di-
reitos humanos. Para mim, até agora não é claro porque não houve
essa decisão de criação de uma comissão de seguimento, que faz falta,
não é? Na verdade, se houvesse uma comissão de seguimento, ela
seria referência natural para a continuidade do trabalho que zemos
(DALLARI, 2016, p. 311).
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, a conselheira Rosa Car-
doso, não isentou a presidenta afastada de responsabilidade na ausência
de envolvimento do Executivo para que o Relatório da CNV fosse levado
adiante, mas creditou sua hesitação à fragilidade política de seus últimos
anos no poder (FERNANDES, 2016).
A ex-presidente Dilma Roussef perguntada sobre o papel da Co-
missão Nacional da Verdade (CNV), declarou que
[...] primeiro, diziam que ela não ia sair. O que a gente fez? Estru-
turou uma comissão e botou todos os presidentes juntos. A nossa
transição não pode ser desse jeito. Porque ou pune torturador ou...
A CNV é outra coisa, é para deixar registrado o que aconteceu.
Conseguiram muita coisa. Mas 30 anos depois,... Eu fui presa em
1970. A CNV foi 42 anos depois. Não houve uma transição adequada
no Brasil. Mas há que punir! Quem cometeu os crimes tem de ser
punido. Ou é punido ou alguém vai lá ao Congresso e vota como
votou o Bolsonaro, homenageando o maior torturador de São Paulo
(ROUSSEFF, 2017, p. 47).
Sobre a questão da Lei da Anistia e a CNV explicou:
Ela [CNV] foi no limite do que ela podia. Por quê? Porque tem um
erro básico nessa história. A tal transição da ditadura para a democra-
cia, teve, ali, no nal do [governo] Fernando Henrique, um acordão
entre segmento das Forças Armadas e segmento do Governo, levando à
teoria da anistia recíproca. Quando zeram a anistia recíproca, no nal
do governo Lula a gente tentou ser contra, apesar de ter uma briga feia.
De um lado, eu e o Franklin [Martins], e do outro o [Nelson] Jobim.
E eles ganham porque um deles que a gente achava que ia dar a nosso
favor, deu contra [na votação do Supremo Tribunal Federal]. Quando
160
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
acontece isso, não existe um processo correto de transição para a demo-
cracia, baseado nisso. Não tem. Ou seja: na hora em que o Supremo
decide que a anistia é recíproca, ele acaba com a base da punição. Por-
que tinha que ter punição do torturador. É isso que estou discutindo,
não estou querendo saber a verdade. Vamos ser concretos? Alguém tem
que ser punido! Como aconteceu na Argentina, Uruguai e Chile. Aqui
no Brasil, esté e o momento mais difícil da questão da anistia. E aí va-
mos fazer a CNV. Neste quadro (ROUSSEFF, 2017, p. 46).
3 – Painel De ões no Brasil e no exterior, aPós–cnv
Passados dois anos e oito meses do m da Comissão Nacional da
Verdade, temos um quadro de estagnação no que se refere à implementa-
ção pelo Estado das recomendações da CNV. Na atual conjuntura política,
algumas iniciativas como a própria Mesa Redonda; “Memória, Justiça e
Comissões da Verdade: Impasses de uma transição na América Latina”,
vem a se somar a outras iniciativas, que vem discutindo o alcance e a recep-
ção das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade
11
.
No Poder Executivo, a CEMDP continua funcionando e apesar
da reestruturação da Comissão de Anistia
12
, noticia-se de que os processos
de reparação continuam sendo julgados.
13
Recentemente, a CEMDP organizou entre os dias 28 de agosto
a 01 de setembro de 2017, uma diligência de campo na cidade de Palmas
do Monte Alto, Bahia para exumar restos mortais que podem pertencer ao
desaparecido político João Leonardo da Silva Rocha
14
. Este caso também
foi objeto de investigação pela Comissão Nacional da Verdade. O irmão
mais velho de João Leonardo, o advogado Mario Rocha Filho, de 76 anos,
foi ouvido pela CNV e autorizou a exumação dos restos mortais de seu
11
Podemos citar o livro publicado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) (WESTROP, 2016).
12
A Comissão foi criada a para reparar economicamente os atos de exceção praticados pelo Estado durante o
período de 1946 a 1988. Em 2007 a sua atuação foi ampliada de maneira a empreender também políticas de
reparação simbólica e promoção da memória das graves violações de direito humanos, realizando projetos como
Caravanas da Anistia, Marcas da Memória, Clínicas de testemunho e Memorial da Anistia Política do Brasil e
Revista Anistia.
13
Até agosto de 2017, segundo informações da página institucional, foram apresentados à comissão mais de
75 mil requerimentos. Desses, mais de 60 mil já foram apreciados e, em seguida, submetidos à decisão nal do
Ministro da Justiça. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia/sobre-a-comissao/sobre-a-
comissao>. Acesso em: 2 ago. 2017.
14
Professor e estudante de direito João Leonardo da Silva Rocha, militante da Molipo, foi morto na cidade de
Palmas de Monte Alto, no sertão da Bahia, em suposto confronto com policiais militares em junho de 1975.
161
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
irmão desaparecido. Em 18 de março de 2014, foi coletado material gené-
tico no Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília, para o banco de
DNA de familiares de mortos e desaparecidos, para ser usado caso ocorra
a exumação.
15
A CNV não concluiu a investigação, mas recomendou em
seu Relatório “a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do
caso, para a localização de seus restos mortais”.
16
O “Mapa fotográco ela-
borado pela CNV com a indicação da possível área de sepultamento de
João Leonardo da Silva Rocha
17
, foi utilizado na diligência de exumação
realizada pela CEMDP
18
.
Em recente entrevista publicada, o Procurador da República, Ivan
Cláudio Marx
19
informou que os Grupos de Trabalho “Justiça de Transi-
ção” e de “Memória e Verdade” do Ministério Público Federal organizaram
reuniões para debater com a sociedade em audiências públicas “[...] o que
fazer com o relatório da Comissão Nacional da Verdade.” e discutir os en-
caminhamentos do relatório nal (MARX, 2016, p. 69). Segundo Marx,
existem 290 investigações abrangendo 320 vítimas, entretanto, das treze
ações criminais em curso, todas estão suspensas com base na decisão do
STF (MARX, 2016).
Em agosto de 2017, o Ministério Público Federal ajuizou uma
ação civil pública na Justiça Federal do Amazonas contra a União e a Fun-
dação Nacional do Índio (Funai) pela qual requer uma indenização de R$
50 milhões e pedido ocial de desculpas aos índios vaimiri-atroari por
danos sofridos pela etnia durante a ditadura militar.
20
Os procuradores da
República também pedem a criação de um centro de memória para divul-
gar informações sobre “as violações aos direitos dos povos indígenas no
país e no Amazonas” e a inclusão, no conteúdo programático das escolas
do ensino médio e fundamental, de estudos sobre as violações dos direitos
15
Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/outros-destaques/450-cnv-busca-restos-mortais-de-joao-leonardo-
-no-sertao-da-bahia.html>. Acesso em: 12 ago. 2017.
16
Relatório da CNV, Volume III, Recurso eletrônico, p. 1805. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.
gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf>
17
Arquivo Nacional. Fundo CNV, 00092.003368/2014-51.
18
Até a conclusão deste artigo, não tinham sido divulgados os resultados alcançados pela CEMDP.
19
Procurador da República, Coordenador do Grupo de Trabalho “Justiça de Transição”(criado em 2011) da 2ª
Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e é Membro Titular do Grupo de Trabalho
“Direito à Memória e à Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão”(craido em 2010).
20
O pedido de abertura da ação foi acolhido em 22 de agosto, pela juíza da 3ª Vara Federal de Manaus (AM)
Raaela Cássia de Sousa, ordenando a citação dos réus para apresentação de defesa.
162
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
humanos dos indígenas durante a ditadura, “com destaque ao genocídio
do povo vaimiri-atroari”.
21
Em anexo ao relatório nal divulgado em 2014,
a CNV calculou que 2.650 índios vaimiri-atroari tenham morrido em
consequência das obras de abertura da rodovia BR–174, que liga Manaus
(AM) a Boa Vista (RR). A obra foi realizada pelo Exército de 1968 a 1977
No exterior, se realizou na cidade de Buenos Aires nos dias 31
de maio e 1º de junho de 2017, a reunião ordinária da Comissão per-
manente Memória, Verdade e Justiça, no âmbito da 29ª Reunião de Altas
Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul e Estados
Associados (RAADH), com a presença de representantes das delegações da
Argentina, Brasil, Paraguai, Bolívia e Chile. A RAADH é considerada, não
somente uma das principais iniciativas para coordenar políticas públicas
em memória, verdade e justiça em nível intergovernamental na região, mas
também, um organismo capaz de contribuir para o avanço das agendas na-
cionais em direitos humanos, assim como para consolidar a institucionali-
dade do tema no âmbito do Mercosul. Uma dessas iniciativas foi a criação
do “Guia de Arquivos sobre Graves Violações aos Direitos Humanos co-
metidos pelas Coordenações Repressivas do Cone Sul”. Desenvolvido em
cooperação entre o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos
do Mercosul (IPPDH) e o “Grupo Técnico de obtenção de dados, infor-
mação e levantamento de arquivos das coordenações repressivas do Cone
Sul e, em particular, da Operação Condor”, o Guia foi constituído junto
a instituições públicas, privadas e pessoais da Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai e se constitui em uma ferramenta de investigação que revela,
organiza e difunde informação sobre documentos da repressão cometida
pelos regimes ditatoriais desses países. Na reunião em tela, foi aprovado
Memorando de Entendimento sobre o intercâmbio de documentação para
o esclarecimento de graves violações aos direitos humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
anunciou em agosto uma ampliação de sua estrutura, com a criação de
secretárias adjuntas especícas para a execução das funções essenciais de
proteção, monitoramento e cooperação técnica em matéria de direitos
21
Disponível em: <ww1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1912279-procuradoria-quer-indenizacao-e-des-
culpas-a-indios-por-violacoes-na-ditadura.shtml>. Acesso em: 25 ago. 2017.
163
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
humanos na América
22
. O sistema interamericano de direitos humanos,
através de seus órgãos, tem intervindo a favor das vítimas e seus familia-
res, velando para o cumprimento das obrigações dos Estados conforme
aos princípios de justiça transicional. O Plano Estratégico da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos para os anos 2017–2021 envolveu
a participação de 530 pessoas e 343 entidades, proporcionando a CIDH
identicar os temas relevantes e as propostas efetivas para enfrentar os
desaos nos diferentes contextos para os direitos humanos nas Améri-
cas, com o objetivo de garantir um impacto transformador da situação
dos direitos humanos para as populações das Américas. A CIDH vem
acompanhando o processo de reparação de violações massivas de direitos
humanos, pois persiste o desao de implementação de medidas judiciais
e políticas em diversos países, como o Brasil.
No dia 21 de agosto de 2017, o governo boliviano constituiu
uma comissão da verdade para investigar as violações dos direitos humanos
durante as ditaduras militares no país. A comissão foi criada por decreto
presidencial, e vai investigar prisões arbitrárias, torturas, violência sexual,
assassinatos e desaparecimentos ocorridos durante as ditaduras de direi-
ta que governaram o país entre 1964 e 1982. O presidente Evo Morales
apontou no Twitter que, segundo dados coletados, entre 1964 e 1982, há
registros de “ao menos 1.392 políticos assassinados, 486 desaparecidos e
2.868 exilados e presos”.
23
O ministro de Defesa, Reymi Ferreira, decla-
rou que sua pasta e os militares abrirão os arquivos que estiverem em suas
mãos. Contudo, os militares negaram várias vezes que possuam documen-
tos secretos relevantes sobre as ditaduras e a repressão política exercida.
4 – consiDerações finais
A criação da CNV foi uma oportunidade signicativa para con-
tribuir para a consolidação da democracia brasileira, esclarecendo os fatos
mais dolorosos de seu recente passado histórico. As vinte e nove recomen-
dações apresentadas com vistas a assegurar a não repetição de graves vio-
lações de direitos humanos orientam para reformas legais e institucionais
22
Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2017/123.asp>. Acesso em: 22 ago. 2017.
23
Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2017/08/21/interna_mun-
do,619494/bolivia-vai-procurar-torturadores-da-ditadura.shtml>.
164
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
que são ainda esperadas pela democracia brasileira. Na medida em que a
impunidade encontra-se na raiz da persistência do quadro de graves vio-
lações de direitos humanos, a CNV não poderia deixar de se manifestar
sobre o alcance da anistia concedida em 1979. A Comissão Nacional da
Verdade não signicou ser uma medida alternativa à justiça no Brasil, ao
contrário, a CNV demonstrou que a verdade e a justiça constituem hoje as
duas faces de uma mesma moeda, instrumento necessário para o aprofun-
damento do Estado democrático de direito.
Nesse sentido, a CNV foi inovadora ao incorporar, de maneira
expressa, o direito à memória e à verdade histórica ao ordenamento jurí-
dico brasileiro. Conforme enunciado no capítulo 1 do Relatório da CNV,
tratando-se de um direito, há de se ter por certo que o encerramento dos
trabalhos da CNV não implica revogação do direito à memória e à verdade
histórica que será, sem sombra de dúvida, incumbência de outros órgãos e
sujeitos aptos a realizar os desdobramentos do seu exercício.
A despeito de condições desfavoráveis relacionadas à atual situa-
ção de grave crise política e econômica, a experiência de países vizinhos no
plano do reconhecimento judicial do direito à verdade e da realização da
justiça de transição sugere que os atores da sociedade civil brasileira e do
poder público, comprometidos com a proteção dos direitos humanos e o
combate à impunidade, não devem renunciar à tarefa de levar adiante pro-
cessos de investigação criminal e de reparação civil, como muitos já vem
fazendo, observando as conclusões do Relatório da CNV.
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de Direitos Humanos (PNDH-3). Ed. rev. e atual. Brasília, DF, 2010.
165
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
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Altos Vs. Peru: sentença de 14 de março de 2001(Mérito). Brasília, DF, Conselho
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OSMO, C.; SANTOS, S. M. P. Justiça e arquivos no Brasil: perspectivas de atores
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167
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aiane Caldas Mendonça
Frederico Carlos de Sá Costa
1 – introDução
A partir dos anos 1980, pode-se começar a observar um movi-
mento no campo de estudos das Relações Internacionais que passa a com-
preender a ideia de Segurança de forma mais ampla e afastada do foco do
Estado como ator principal desta questão. Despontou desde essa época en-
tão um grupo de intelectuais que passou a dedicar-se a esta nova perspec-
tiva conhecido como Escola de Copenhagen, que tem este nome devido
ao Copenhagen Peace Research Instiute (COPRI), fundado em 1985. Esta
escola propôs com trabalhos como o de Buzan, Wæver e de Wilde (1998),
a ideia de processos de securitização que amplia o espectro de questões
168
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
que podem ser consideradas como questões de Segurança. Além disso, é
possível notar também maior preocupação com a pergunta “segurança para
quem?” que desvia-se um pouco da ideia de segurança estatal e caminha
para o que se entende hoje como segurança humana.
Não é recente a percepção de que rígida distinção entre trabalho
militar (sinônimo de atividades de segurança strictu sensu) e trabalho civil
(atividades subsidiárias ou atividades-meio) deve ser abandonada. De fato,
é muito comum observar o trabalho de civis na condução direta da guerra,
bem como o trabalho de militares em áreas como infra-estrutura (PERL-
MUTTER, 1977). É possível que o senso comum tenha sido conduzido
ao erro de enxergar distinções rígidas entre trabalho militar e civil na área
de segurança devido a uma interpretação um tanto restrita do conceito de
prossão, que envolve: a) especialização; b) espírito de corpo; c) respon-
sabilidade com o cliente (HUNTINGTON, 1996). Nesse último tópico,
a palavra “cliente”, se bem que dada a interpretações diferentes a partir
da experiência brasileira, conota, nas atividades de segurança, a responsa-
bilidade para com o Estado. A interpretação unidimensional oriunda da
perspectiva huntingtoniana aponta para a prossionalização militar como
aquela única e decisiva em termos de administração da violência. Se bem
que problemática, essa interpretação tornou-se lugar-comum. Entretanto,
é preciso rearmar que setores civis também se especializam e se especiali-
zaram na administração da violência, bem como setores militares se espe-
cializaram em atividades de suporte de política.
Atualmente, uma corrente considerável da literatura refere-se de
forma mais ampla ao Setor de Segurança que implica a ideia de que ques-
tões de segurança não são mais exclusivas do domínio militar, mas envol-
vem atores dos mais diversos, como as forças policiais, as agências de in-
teligências, organizações não-estatais e setores da sociedade civil (OECD,
2007). Além disto, nota-se que desde o nal da Segunda Guerra Mundial,
as situações nas quais as Forças Armadas devem atuar afastam-se cada vez
mais da guerra regular entre Estados e passa a ser mais provável sua atuação
em situações como missões de paz, intervenções humantárias e combate
ao crime organizado, por exemplo. Assim sendo, é possível perceber uma
necessidade de mudança nas Forças Armadas tanto de sua relação com a
sociedade e o Estado bem como na forma de seu treinamento e na compre-
169
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ensão de qual deve ser sua missão. A intenção inscrita nessa necessidade é
compreender a crescente perda de delimitação entre as tarefas dos diversos
setores responsáveis pela segurança: trabalho policial, militar, de inteligên-
cia, nanciadores, etc, todos realizam atividades cada vez mais próximas e
com cooperação cada vez mais íntima, no limite do comando conjunto de
operações de diversas naturezas.
Feitas estas considerações sobre o cenário atual, o presente artigo
tem como objetivo aproximar esta concepção contemporânea de Seguran-
ça de forma mais ampla que compreende cada vez mais uma similaridade
entre as ações próprias da polícia e as atividades próprias dos militares e as
concepções de doutrina do Exército Brasileiro que compreende que apenas
ações militares defensivas e ofensivas não são mais sucientes para alcançar
o que chamam de Estado Final Desejado. Ao considerar as operações de
pacicação, para dentro e para fora, e as de Garantia da Lei e da Ordem
como situações mais prováveis de atuação militar, e os esforços do Exército
nesse sentido será possível propor a identicação de uma atualização da
Doutrina de Segurança Nacional.
Para se alcançar o objetivo aqui proposto, o artigo está dividido
em três seções além desta introdução e das considerações nais. A seção a
seguir é dedicada ao entedimento do que é o Setor de Segurança e como
sua compreensão atual envolve aspectos que vão além da visão tradicio-
nal voltada para questões somente militares e passa a preocupar-se prin-
cipalmente com situações como missões de paz, assistência humanitária
e crime organizado. A segunda seção dedica-se a uma análise das Forças
Armadas brasileiras e da sua constante atuação para dentro do país, cuja
preocupação com missões de pacicação e Garantia da Lei e da Ordem
(GLO) tem incentivado a produção de Manuais especícos sobre o tema
como é o caso do Manual sobre Garantia da Lei e da Ordem de 2013
e o do Manual de Pacicação de 2015. Na terceira seção será feita uma
análise do que se compreende como doutrina de segurança nacional e
como no Brasil a ideia de Segurança ainda se mantém atrelada à ideia de
segurança do Estado, apesar de haver o reconhecimento das mudanças
consideráveis sobre o tema, e as implicações disto para o Brasil e a atua-
ção de suas Forças Armadas.
170
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
2 setor De segurança: a segurança além Do comPonente
militar
Estados são instituições que, por denição, fornecem segu-
rança. Não se trata, certamente, de uma instituição que tem vida inde-
pendente da comunidade política, pelo contrário, o Estado dela nasce
com a tarefa precípua de, dispondo do poder oriundo da totalidade do
ecumênico político, garantir condições para a continuidade e perpetui-
dade de seus constituintes.
Assim, sempre que se tratar de Estado neste artigo, deve-se le-
var em conta raison d’être: a segurança. Não é difícil perceber, portanto, a
importância das relações entre a instituição armada e a condução política
do Estado da qual se origina. Uma instituição com poder suciente para
defender o Estado de seus inimigos também tem poder suciente para
assumir o controle absoluto da polis. Nesse contexto assume grande rele-
vância o estudo da teoria política das relações entre civis e militares, tendo
em vista ser aquela que proporciona as melhores ferramentas para explicar,
com poder de causalidade, todos os resultados de poder relativos às políti-
cas de segurança estatal (SÁ COSTA, 2014).
A literatura referente às relações políticas entre civis e militares
está concentrada nas análises das condições necessárias para a obtenção
do controle civil sobre os militares. Na tipologia huntingtoniana (1957)
controle civil signica a capacidade da polis em exigir com sucesso a obe-
diência das Forças Armadas, obediência esta impessoal e racional (não se
trata de obedecer um governo, ideologia ou partido, mas ao Estado). O
controle civil seria conquistado, ainda segundo Huntington, na medida
em que se prossionalizasse o militar nas atividades relativas à guerra
externa: quanto maiores a expertise militar relativa à guerra, a responsabi-
lidade para com o Estado e o espírito de corpo, mais estéreis os militares
seriam no domínio político.
Muito cedo a teoria huntingtoniana foi criticada e superada (ape-
sar de ter se tornado uma espécie de literatura ocial das relações civis
militares, pois Huntington advoga elementos muito preciosos para os mi-
litares, principalmente sua autonomia prossional). Huntington assume
implicitamente (já que não problematiza) que a prossionalização militar
171
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
é um fenômeno que tem, ou deveria ter, seus procedimentos alinhados
segundo a experiência anglo-saxã. Vários outros autores discutiram como
a prossionalização, pelo contrário, é contingenciada por diversos fato-
res: cultura política, perl social (moderno, pretoriano ou revolucionário),
concordância em termos de origem social, perl militar e recrutamento,
educação/treinamento e, mais contemporaneamente, a partir da tríade
controle/ecácia/eciência (COSTA, 2015).
Muito brevemente: Samuel Finer (2002) oferece uma taxonomia
da cultura política, que poderia ser compreendida como madura,
desenvolvida, baixa e mínima. Essa taxonomia deve ser utilizada em
conjunto com a armação de que as Forças Armadas sempre interferem
na política, restando saber como se dá essa intervenção. Quanto mais
desenvolvida a cultura política (no limite, madura), mais a intervenção
militar na política se dá através dos meios constitucionais da inuência.
Quanto menos desenvolvida a cultura política (no limite, mínima) mais a
intervenção militar na política se dá através da violência e do golpe. Num
caso ou no outro, o militar é prossional. A prossionalização, assim,
transige com o grau de cultura política. O militar se prossionaliza de um
jeito em países de cultura política alta (ameaças externas) e de outro jeito
em países de cultura política mínima (inimigo interno). Perlmutter (1977)
arma que todo militar contemporâneo é corporativo, por ser o produto
de dois movimentos convergentes: o perl propriamente bélico/guerreiro e
o perl de funcionário do estado/burocrata. Este personagem, corporativo,
habitando um ambiente político racional-legal prossionalizar-se-
ia segundo as diretrizes do inimigo interno. Habitando um ambiente
pretoriano prossionalizar-se-ia segundo as diretrizes da moderação ou
do messianismo. Habitando um ambiente revolucionário o militar se
prossionalizaria segundo ações e lealdades devotadas a uma causa ou
liderança carismática. Rebeca Schi (1995) indica que a prossionalização
militar (no contexto da busca pelo controle civil) deve ser empreendida
a partir da concordância entre os setores civis e militares em termos da
origem social do ocialato (não é incomum observar-se a preferência
pelas classes médias como extrato social pretendido), do perl militar (os
valores abraçados pela corporação, ethos) e o dos critérios de recrutamento
(voluntariado ou conscrição, por exemplo). Em termos de educação, a ideia
172
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
é conseguir fazer com que a prossionalização militar espelhe diretamente
às demandas da comunidade política, expressas na capacidade civil de
determinar os conteúdos ministrados nos cursos oferecidos aos militares.
Não é objetivo deste artigo discutir cada uma das contingências
acima, mas, discutir, a partir da tríade controle/ecácia/eciência, uma ex-
pansão dos estudos das relações políticas entre civis e militares. Bruneau e
Matei (2013 apud COSTA, 2015), indicam que as possibilidades de em-
prego de força no século XXI seriam: guerra, guerras internas, terrorismo,
crime organizado, assistência humanitária e missões de paz. Dessas possi-
bilidades, as mais prováveis são as operações de paz e assistência humani-
tária. A ênfase exclusiva no controle civil não seria suciente para o bom
desempenho militar em termos de operações de paz e assistência humani-
tária. Faz-se necessário acrescentar a capacidade de cumprir a missão dada
(ecácia) com custo mínimo (eciência)
1
.
E, precisamente, como o Manual de Pacicação admite, os pro-
cedimentos tradicionais, ofensivos e defensivos, não são mais os únicos
responsáveis para o sucesso dessas novas missões, pois requerem o concurso
das forças policiais e das agências de inteligência. Esse cenário diminui
drasticamente a diferença entre o trabalho policial e o trabalho militar,
conduzindo à constatação de que não é mais suciente falar de Forças Ar-
madas, mas de Setor de Segurança.
Discutir o Setor de Segurança exige que se leve em conta holistica-
mente os agentes de segurança, públicos e privados, inteligência, policiais,
judiciais, político-parlamentares e até mesmo organizações civis, todos or-
ganizados de forma consistente em função de normas democráticas de boa
governança e preservação dos direitos humanos (EDMUNDS, 2013) Há
uma mudança signicativa de ênfase, pois a teoria política das relações
entre civis e militares deixa de ser estadocêntrica para se fundamentar na
segurança humana: assume-se que em muitos Estados o maior inimigo das
populações é o próprio Estado. O cerne da discussão é o incremento da
capacidade estatal em prover segurança para seus habitantes, ao invés de
promover segurança para si mesmo, às expensas da população.
Não se perde de vista que ecácia e eciência também são necessárias para as missões clássicas das Forças
Armadas, certamente.
173
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
O novo alcance do controle civil ultrapassa as Forças Armadas
e abrange as ações necessárias para o desenvolvimento de uma estrutura
institucional inclusiva (e que benecie os mais vulneráveis), bem como
o fortalecimento da governança e da transparência, avalia e promove a
prossionalização das forças de segurança e exige provimento equânime de
justiça (EDMUNDS, 2013).
Como se discutirá ao longo deste artigo, os Manuais de Paci-
cação (2015) e Garantia da Lei e da Ordem (2013), à primeira vista,
apontam para um movimento de modernização do Exército Brasileiro,
que reconhece a necessidade de ampliar suas responsabilidades para além
dos limites da defesa externa convencional, e, assim, admite que o cená-
rio dos conitos contemporâneos é complexo e de difícil delimitação, o
que exige novas doutrinas, educação e treinamento especializado:
Esta publicação estabelece a doutrina de Operações de Pacicação vi-
sando a orientar as atividades e o emprego dos elementos da F Ter
[Forças Terrestres] em operações singulares, conjuntas, combinadas
e/ou multinacionais necessárias à cooperação ou coordenação militar
com as agências civis, em ambiente interagências. Proporciona, ainda,
ferramentas ao exercício da autoridade pelos comandantes militares
dos elementos da F Ter e subsídios para a confecção adequada dos seus
planos (BRASIL, 2015, p. 1–2).
O ponto de desvio está na ênfase que o Manual de Pacicação
coloca nas ações internas de controle da ordem pública, apesar de se querer
apresentar como doutrina para ações externas. O cerne do manual não
está no olhar para fora, mas para dentro, não na segurança da população,
mas na segurança estatal ou, pior, na segurança e preservação do status
quo cristalizado numa ordem social de acesso restrito. Se, à primeira vista,
o Manual seria uma representação da convergência entre o pensamento
militar brasileiro e o debate internacional sobre o Setor de Segurança, um
olhar mais atento indica que o Manual adota, do debate sobre o Setor de
Segurança, apenas a abrangência das atribuições militares, agora alcançan-
do, inclusive doutrinariamente, o domínio das ações policiais de controle
da ordem pública.
Tendo em vista este aspecto do documento brasileiro sobre paci-
cação, a próxima seção será dedicada a uma análise do Exército Brasileiro
174
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
e sua atuação em Operações de Garantia da Lei e da Ordem a partir dos
Manuais de 2013 e 2015, sobre GLO e Pacicação, respectivamente.
3 o exército Brasileiro em oPerações De garantia Da lei e
Da orDem e o setor De segurança
A formação da primeira Força de Pacicação do Exército Brasilei-
ro com o objetivo de realizar uma operação de pacicação nos Complexos
do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro em 2010, incitou uma discussão
com maior atenção para a atuação das Forças Armadas brasileiras para den-
tro do país. Apesar de a ideia de setor de segurança e a maior probabilidade
de emprego das forças do Estado ser em operações de pacicação ou assis-
tência humanitária serem consideravelmente recentes, o Exército Brasileiro
tem historicamente atuado para dentro do país. Como aponta Rodrigues
(2016, p. 76), “[o] propósito da pacicação está inscrito na história e no
ethos das Forças Armadas brasileiras, principalmente na do Exército.
A ideia de pacicação para o Exército Brasileiro está presente
até mesmo em suas guras emblemáticas como é o caso de Luiz Alves de
Lima e Silva, o Duque de Caxias (1803–1880), e o marechal Cândido
Mariano Rondon (1865–1958). Duque de Caxias era conhecido como
“O Pacicador” devido à sua atuação na pacicação de diversas revoltas
durante o período regencial no Brasil como a Cabanagem (1835–1840),
no Maranhão, e a Guerra dos Farrapos (1835–1845), no Sul do país.
Já marechal Rondon cou conhecido pelo seu trabalho de pacicação
com povos indígenas e por defender a ideia de que estes deveriam ser
incorporados à comunidade nacional e não eliminados. De acordo com o
autor, estas guras do Exército Brasileiro passaram para a História como
símbolos da pacicação e da ideia de integração nacional, cada um à sua
maneira (RODRIGUES, 2016). Nota-se que em ambos os casos, a ideia
de uma ordem nacional especíca está implícita e o propósito da atuação
das duas guras era o de manter a ordem nacional compreendida como
um modo de vida especíco (VALENTE, 2016).
Um outro momento relevante da História do país que ressalta a
atuação das Forças Armadas para dentro foi o período da Ditadura Mili-
tar (1964–1985). O período durante o qual ocorreu a Ditadura no Brasil
175
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
foi pautado pela lógica da Guerra Fria, da oposição entre comunismo e
capitalismo e do medo generalizado de grupos guerrilheiros, geralmente
comunistas, cuja intenção era a de tomar o poder. Dentre outras, foi sob
a justicativa do fortalecimento do movimento comunista no Brasil que
as Forças Armadas brasileiras tomaram o poder em 1964. A necessidade
de “manter a ordem”, por mais vaga que seja a expressão, identicou à
época na gura do comunista subversivo um inimigo interno que preci-
sava ser combatido.
Esta percepção de inimigo interno não era exclusividade do Bra-
sil. Ao redor do mundo, potências como Estados Unidos e a França enfren-
tavam inimigos que não se encaixavam no modelo tradicional de guerra
interestatal, como foi o caso dos conitos no Vietnã e na Argélia. O novo
conito era irregular e o combate ocorria em meio à população civil entre
os exércitos regulares dos Estados e um grupo insurgente/guerrilheiro, que
geralmente tinha grande apoio da população. Este novo modo de fazer a
guerra exigia uma adaptação do adestramento das Forças Armadas a partir
de uma doutrina chamada de contrainsurgência. Primeiramente formu-
lada por franceses e norte-americanos, a contrainsurgência se propunha a
aliar práticas militares tradicionais com práticas de inteligência e de paci-
cação a m de reconquistar o território.
No Brasil, a doutrina de contrainsurgência e a prática de paci-
cação chega durante o período da Ditadura principalmente por inuência
francesa, através da presença de adidos militares franceses no Brasil bem
como do material produzido por eles, e passa a ser incorporada à doutrina
e ao treinamento das Forças Armadas brasileiras. A partir disto, é possível
perceber a incorporação de táticas de pacicação, táticas para serem usadas
quando o inimigo encontra-se em meio à população, no treinamento das
Forças brasileiras desde este período.
Em 1988 é promulgada a nova Constituição Federal e em seu
texto consta que é atribuição das Forças Armadas a Garantia da Lei e da
Ordem e o apoio à órgão governamental em seu artigo 142, ou seja, o
emprego interno das Forças Armadas. Além da Constituição, há uma série
de legislação complementar que regulamenta o uso das forças do Estado
para dentro: Lei Complementar nº97/1999, Decreto nº3897/2001 e Lei
Complementar nº117/2004, são alguns dos exemplos mais relevantes. A
176
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
primeira dispõe sobre normas gerais para a organização, o preparo e o em-
prego das Forças Armadas e em seu primeiro artigo é denido que uma das
funções das Forças Armadas brasileiras é a garantia da lei e da ordem, sem,
contudo, denir o que se entende por “ordem”. A segunda diz respeito
especicamente às diretrizes que orientam o preparo e o emprego da força
em operações de Garantia da Lei e da Ordem. Por m, a terceira tem o
objetivo de alterar e complementar as normas estabelecidas pela primeira
Lei Complementar de 1999.
Além deste aparato legal, quando as Forças Armadas são chama-
das para atuar dentro do país em operações de GLO outras leis comple-
mentares ou decretos são formulados para respaldar a missão e detalhar as
atribuições das Forças Armadas durante a operação, como foi o caso da
Diretriz Ministerial nº15/2010 que cria a Força de Pacicação que atuou
dentro dos Complexos do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro.
É importante não subestimar a força do projeto nacional de or-
dem pública, projeto tributário de crenças avoengas na superioridade da
elite nacional e em seu papel pedagógico em relação ao restante da popula-
ção. Em 1935, com a tentativa de levante comunista, surge a oportunidade
de consolidar esse projeto na Lei de Segurança Nacional, que vai sendo
renovada e reeditada de tempos em tempos, até a edição atualmente em
vigor, que data de 1983:
[...] em todas as versões da LSN se prevê como crime a perturbação
da ordem ou sua incitação. Em 1935 esta preocupação constados ar-
tigos já citados, em 1967 fala-se de subversão à ordem político social,
desobediência coletiva às leis, luta de classes, animosidade entre as For-
ças Armadas, greve de servidores públicos e privados, ódio racial. Nas
outras versões mantém-se o texto com poucas alterações signicativas
(COSTA, 2013, p. 46).
Daí é possível compreender a ênfase perene da preocupação
brasileira da segurança como um sinônimo de prevenção contra tentati-
vas, abruptas ou não, de transformação da ordem social em função das
demandas dos setores populares. Esses setores têm sido historicamente
contidos, em nome da manutenção de uma ordem social de acesso li-
mitado, “caracterizada pela centralidade das relações pessoais e pelo cer-
177
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ceamento de oportunidades para os indivíduos formarem organizações
(COSTA, 2013, p. 50).
Como aponta Rodrigues (2016), as primeiras demandas para
intervenção militar para dentro ocorreram na cidade do Rio de Janeiro
durante a Conferência sobre o Meio Ambiente da Organização das Nações
Unidas (ECO–92) em 1992. A principal atribuição das Forças Armadas
para a missão era a proteção de delegações internacionais ociais e demais
civis que estivessem participando do evento. Foi, contudo, em 1994 que
ocorreu a primeira grande operação de Garantia da Lei e da Ordem na
cidade que cou conhecida como Operação Rio. Esta operação foi organi-
zada com o objetivo principal de combater o crime organizado e as facções
narcotracantes, que começaram a ganhar força na cidade a partir dos anos
1980. A sensação de maior segurança com a presença das Forças Armadas
na cidade em 1992 e a percepção de que as forças de segurança pública
não eram mais sucientes para conter a onda de violência serviram como
argumentos de legitimação para o retorno das tropas para a cidade.
Durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003–2011),
foi aprovada a Lei Complementar nº117/2004, que concede às Forças Ar-
madas atribuições conhecidas como “poder de polícia”, ou seja, a capaci-
dade de apreender veículos e pessoas na fronteira ou em águas territoriais,
por exemplo. Além desta lei, em 2010 foi aprovada a Lei Complementar
nº136/2010 que ampliou os termos da lei de 1999 ao detalhar os “[...]
procedimentos para a convocação, planejamento e execução das operações
de GLO.” (RODRIGUES, 2016, p. 72).
É importante remarcar, contudo, que a Força de Pacicação for-
mada em 2010 não foi a primeira experiência das Forças Armadas bra-
sileiras em um cenário de conito irregular de maior expressão. Com a
grave crise política e de segurança pela qual passava o Haiti, em 2004 foi
criada pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas a
MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti)
com o objetivo de solucionar o conito armado que se instaurou no país
com a saída forçada do presidente eleito Aristide no mesmo ano (SOU-
ZA NETO, 2012). Atento à situação no Haiti e já com experiências mais
curtas em Missões de Paz da ONU anteriores, o então presidente Lula
encaminhou ao Congresso um pedido de envio de tropas para compor
178
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
a MINUSTAH reforçando os preceitos de solidariedade e de não-indife-
rença a m de justicar a participação do Brasil na Missão. A participação
brasileira atenderia tanto ao interesse político de projetar a imagem do país
no cenário internacional como um país conciliador quanto ao interesse
militar de servir como um treinamento para as tropas e também como
forma de conseguir maiores investimentos para a modernização das Forças
Armadas (PINHEIRO, 2015). O processo decisório que levou ao envio de
tropas brasileiras para a MINUSTAH, contudo, não ocorreu de forma su-
ave, já que o presidente comprometeu-se a enviar tropas para o Haiti antes
de consultar o Congresso Nacional (PINHEIRO, 2015).
Além da Força de Pacicação no Alemão e na Penha que come-
çou em 2010 e só foi encerrada em 2012, em 2014, uma outra Força de
Pacicação foi criada dessa vez com o objetivo de pacicar o Complexo
da Maré, também na Zona Norte do Rio de Janeiro, e que foi encerrada
em 2015. Nos mesmos moldes que a Operação Arcanjo, a Operação São
Francisco, como foi chamada esta última Força de Pacicação, tinha como
objetivo garantir a pacicação na região do Complexo da Maré durante
um tempo limitado e, após concluída a missão, devolver o controle da re-
gião para as forças de segurança pública do estado. Em ambos os casos, foi
usado como justicativa para a chamada das Forças Armadas o argumento
de que as forças de segurança pública da cidade não eram mais capazes
de lidar com o crime organizado dentro das favelas do Rio de Janeiro.
Além disso, a intervenção era legítima aos olhos da população dos bairros
formais cariocas que consideram as favelas como locais de desordem, imo-
ralidade e principal fonte de insegurança da cidade (LEITE, 2012, 2014).
Nota-se por parte dos moradores dos bairros formais cariocas uma percep-
ção de que as favelas e seus moradores atentam contra a ideia tradicional
de “cidadão de bem”, muito defendida pelas elites nacionais. O estigma
das favelas como território de imoralidade e de ilegalismos não é recente
e pode ser observado desde o surgimento das primeiras favelas na cidade
no nal do século XIX, mas foi acrescentado, a partir dos anos 1980, ao
problema do comércio ilegal de drogas que tem a violência entre facções e
a necessidade do controle territorial como características intrínsecas ao seu
varejo (RODRIGUES, 2006).
179
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Apesar de desde 2004 estarem envolvidas em operações de pa-
cicação fora do país e desde 2010 dentro do Brasil, as Forças Armadas
brasileiras ainda não possuíam documentos especícos que orientassem
o treinamento das tropas para este tipo de missão. Somente em 2013 foi
publicado pelo Ministério da Defesa o Manual de Garantia da Lei e da
Ordem (MD33–M–10) que tem como nalidade “[...] estabelecer orien-
tações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas (FA) em Ope-
rações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO)” (BRASIL, 2013, p. 1).
No Manual constam importantes informações sobre o planejamento para
o emprego das Forças Armadas em operações de GLO e denições especí-
cas que auxiliam no entendimento do que as Forças compreendem como
o maior problema para o Estado brasileiro.
Dentre as informações do Manual, pode-se destacar aquelas per-
tinentes ao preparo das tropas para a atuação em GLO. Segundo o Manual
é da responsabilidade de cada uma das três Forças o desenvolvimento de
uma doutrina especíca para o adestramento e instrução das tropas. No
que diz respeito ao Exército, o documento prevê o “[...] acompanhamen-
to permanente e contínuo das situações com potencial para gerar crises.
(BRASIL, 2013 p. 35). Isto signica que os setores de inteligência do Exér-
cito estão constantemente preocupados com situações de ordem pública,
mesmo quando não há uma Força de Pacicação atuante dentro do país.
O documento especica ainda não haver a caracterização de um
“inimigo” como no caso de uma guerra regular sendo preferido o termo
forças oponentes”. Segundo o documento, os seguintes agentes podem ser
considerados como Forças Oponentes:
a) movimentos ou organizações; b) organizações criminosas, quadri-
lhas de tracantes de drogas, contrabandistas de armas e munições,
grupos armados, etc; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atu-
ando na forma de segmetnos autônomos ou inltrados em movimen-
tos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou
instingando ações radicais e violentas; e d) indivíduos ou grupos que se
utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em
função da ausência das forças de segurança pública policial (BRASIL,
2013, p. 29).
180
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
A partir desta denição, é possível observar que as Forças Ar-
madas podem ser chamadas para atuar tanto em conitos contra grupos
criminosos, como facções tracantes de drogas, como movimentos so-
ciais que ameacem de alguma forma a ordem estabelecida. O foco está,
portanto, relacionado à manutenção de um dado ordenamento especí-
co que pode ser ameaçado tanto por uma organização criminosa quanto
por grupos organizados da sociedade civil que proponham pautas de mu-
danças. Além disto, é importante ressaltar que ao incluir como primeiro
ponto os termos “movimentos e organizações”, o documento deixa ex-
plícito o caráter vago e impreciso de algumas de suas denições e, como
consequência, o grande poder de arbitrariedade das forças que estarão em
contato com a população.
Estão especicados no Manual também as “Operações Tipo Po-
lícia” na seção sobre as ações que podem ser realizadas em operações de
GLO. As Operações Tipo Polícia compreendem ações como o combate à
criminalidade, controle de distúrbios e realização de patrulhamento osten-
sivo com o objetivo, dentre outros, de “proporcionar segurança à tropa, às
autoridades, às instalações, aos serviços essenciais, à população e às vias de
transportes” (BRASIL, 2013, p. 30). Considerando o teor geral do docu-
mento e sua evidente preocupação com a manutenção da ordem do Estado
mais do que com a população, é possível compreender que a ordem dos
objetivos inseridos no Manual não é aleatória. Há claramente maior pre-
ocupação com os instrumentos do Estado do que o componente humano
do ambiente político.
Além deste Manual de 2013, foi também produzido em 2015 o
Manual de Campanha de Operações de Pacicação pelo Exército Brasilei-
ro (EB20–MC–10.217) voltado para operações de GLO para dentro, mas
também para operações de assistência humanitária internacionais. Este
Manual estabelece a doutrina básica para o planejamento, a preparação e a
execução de operações de pacicação. Em suas partes iniciais, o documen-
to reconhece a necessidade de uma visão atualizada sobre a pacicação em
razão da “[...] complexidade dos ambientes operacionais contemporâneos,
marcados pela evidência de novas demandas legais e morais que recaem
sobre os comandantes militares de todos os níveis.” (BRASIL, 2015, p. 1).
O documento atenta ainda para a transnacionalidade de diversos crimes,
181
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
como o comércio de drogas ilícitas, a longa duração dos conitos atuais,
sua natureza crônica e aspecto difuso (Idem, p.15). Além disso, mencio-
na-se a questão da opinião pública, tanto nacional quanto internacional,
que, segundo o documento, está “menos disposta a aceitar o emprego da
força nas situações para as quais o Estado aplicava suas Forças Armadas
(Idem, p.16). É importante também o reconhecimento no documento da
necessidade imprescindível de integração e sincronização entre as ações
militares e das outras esferas do Poder público para que o Estado Final
Desejado (EFD) seja alcançado. Fica clara, através da leitura do documen-
to, a ideia de que as questões de segurança do Estado não podem mais ser
tratadas como questões exclusivamente militares. Especialmente em mis-
sões de pacicação, foco do Manual de Campanha aqui exposto, vetores
civis e militares precisam fazer trocas constantes a m de que se garanta a
segurança do Estado.
Nota-se a partir da publicação destes dois manuais uma crescente
preocupação das Forças Armadas brasileiras, e principalmente do Exército,
de compreender e de se preparar para o cenário complexo dos conitos
atuais que envolvem, mais comumente, conitos internos, da ordem da
segurança pública e de assistência humanitária internacional. De modo
geral, estes são conitos relacionados à necessidade de manutenção de uma
ordem especíca, cujas implicações serão discutidas mais adiante. Atual-
mente, no caso brasileiro, uma das principais preocupações é o crime or-
ganizado, especialmente aquele envolvendo o tráco de armas e o tráco
de drogas ilícitas (RODRIGUES, 2006, 2016). Sendo considerado um
dos principais problemas de segurança para o país atualmente, seguindo
a lógica de Buzan, Waever e de Wilde (1998), tem-se um processo de se-
curitização do tráco de drogas que passa a ser considerado como uma
ameaça existencial, requerendo medidas emergenciais e justicando ações
fora dos limites normais do procedimento político”. A partir da lógica da
securitização de um problema é possível compreender a chamada cons-
tante para intervenção das Forças Armadas. A intervenção militar é um
medida excepcional utilizada para lidar com situações emergenciais frutos
de processos de securitização.
Apesar de tentar transparecer com o Manual de Pacicação uma
maior preocupação com questões de assistência humantária para fora, a
182
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
essência do Manual está preocupada com as ações de pacicação para den-
tro do país. Há, aparentemente, uma alusão ao que se discutiu na segunda
seção sobre Setor de Segurança da volatilidade do ambiente operacional
contemporâneo e da necessidade de contato interagências, de incluir em
variados aspectos da operação militar componentes e atores de diversas
áreas como a social e a econômica, além da política, a m de se resolver
o problema de segurança e promover o desenvolvimento de determinada
sociedade. Contudo, principalmente no Manual de Pacicação, a preocu-
pação com o adestramento militar está mormente voltada para dentro do
país e para questões que afetam mais diretamente a segurança do Estado
e de seu modo de vida especíco do que a segurança humana da forma
como o termo é compreendido pela literatura, o que difere também dessa
tendência mais recente que compreende o Setor de Segurança mais interes-
sado na proteção das pessoas que do Estado propriamente.
4 – uma atualização Da Doutrina De segurança nacional
A história dos signicados assumidos pelos termos “doutrina”,
segurança” e “nacional” é densa e atravessa dimensões históricas, bem
como normativas, que ultrapassam as intenções deste artigo. O conjunto
que se forma, “doutrina de segurança nacional”, igualmente possui uma
história de cerrada urdidura. Assim, cabe delimitar, mesmo que sumaria-
mente e em nome da clareza conceitual, que: a) “doutrina” será compreen-
dida como conjunto de princípios ordenados entre si em função de algum
aprendizado pretendido; b) “segurança” é uma sensação, uma percepção
que uma comunidade desfruta de estar segura em relação a alguma amea-
ça publicamente percebida e/ou construída; c) “nacional” é termo que se
referirá a um sentimento difuso de pertencimento a uma dada comunida-
de política que construiu em torno de si um Estado que tem por função
proteger-lhe e garantir-lhe a sobrevivência. Nesses termos, “doutrina de
segurança nacional” pode ser compreendida como um conjunto de princí-
pios que orienta a edicação da compreensão que uma dada comunidade
política tem das ameaças existenciais em relação às quais quer usufruir da
sensação de segurança.
183
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Em termos mais estritamente políticos, a “segurança nacional”
pode ser apresentada como:
a) estabilidade e inviolabilidade dos limites fronteiriços do Estado; b)
capacidade de se traduzir a soberania nacional, bem como a capaci-
dade nacional de projetar poder no exterior, em um conjunto de me-
didas que proporcione ganhos sociais e econômicos para a população
nacional; c) solidez e impessoalidade do sistema constitucional, assim
como sua impermeabilidade em relação a pressões externas; d) garantia
da previsibilidade legal das relações político-eleitorais e econômicas.
(COSTA, 2009, p. 124).
Essa primeira apresentação coloca-se como tipo ideal e, assim, é
útil para uma análise comparativa do fenômeno em questão, que não é a
segurança nacional”, mas a “doutrina de segurança nacional” em seu viés
especicamente brasileiro.
No Brasil, a segurança nacional é atividade, via de regra, pensada
e executada internamente, mormente traduzida em termos de manutenção
da ordem social e frequentemente associada ao exercício do poder militar
sobre as instituições políticas e a sociedade civil. Nesses termos, a “seguran-
ça nacional” se transforma em “doutrina de segurança nacional” na medida
em que um dado projeto de ordem social, oriundo de um posicionamen-
to anti-liberal das elites brasileiras e de uma missão civilizadora assumida
pelas Forças Armadas, se articula logicamente para a perpetuação de um
status quo que pretende congelar os movimentos por transformação social,
quer sejam esses movimentos de origem liberal ou socialista. Edmundo
Campos Coelho (2000, p. 179) sintetiza:
1. Os indivíduos só valem pelo que realizam em conjunto, em benefí-
cio do conjunto e sentindo em conjunto. 2. Uma comunidade em que
o bem coletivo está acima dos interesses de indivíduos e grupos possui
vida moral mais elevada. E a moralidade dos indivíduos e grupos é
função da moralidade do sistema inclusivo. 3. O Estado é o instru-
mento de mobilização da ação coletiva. E a lealdade para com o Estado
deve ter precedência sobre as demais. 4. A centralização do poder é
indispensável como garantia da unidade nacional. Evitam-se, por esta
forma, o individualismo desagregador e as preferências clientelísticas
[...]. 5. As áreas de consenso devem superar por larga margem as do dis-
senso para que a sociedade nacional seja viável. O controle e a redução
do dissenso é fundamental para que não o explorem os diversos tipos
184
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de “irracionalidade” [...] dos demagogos e radicais. 6. A função da elite
dirigente é educativa por excelência. [...] À elite dirigente cabe ainda
denir os interesses da coletividade, já que aos indivíduos faltam as
condições para identicá-los. 7. O desenvolvimento econômico é um
objetivo fundamental. A expansão das áreas de dissenso e antagonismo
está associada à ampliação do hiato entre aspirações e sua satisfação.
[…] 8. A tarefa de promover o desenvolvimento econômico cabe à
Nação como um todo. E requer disciplina, austeridade, sacrifícios e
renúncias por parte de indivíduos e grupos.
A ênfase está mais na ordem e sua manutenção. Pode-se armar,
muito genericamente, que ordem interna é vivência de um acordo que
permita a vida em comum. Sempre de forma vaga, ainda temos como o
Ministério da Defesa (BRASIL, 2015, p. 198) compreende a ordem:
Conjunto de regras formais que emanam do ordenamento jurídico da
nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis do
interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa
e pacíca, scalizado pelo poder de polícia e constituindo uma situação
ou condição que conduza ao bem comum.
A autoridade responsável, em última instância, pela preservação
da ordem interna (ou pública ou social) não dene com clareza qual é seu
objeto, a menos que se pretenda extrair algo preciso de expressões como
convivência harmoniosa e pacíca” ou “condição que conduza ao bem
comum”. A rigor, essas expressões podem signicar qualquer coisa, estan-
do sua scalização pelo poder de polícia aberta à discricionariedade do
agente estatal, ainda que se considere a repressão da violência ilegítima por
alguma organização impessoal necessária para que exista a possibilidade de
uma vida em comum aceitável e o desenvolvimento social.
No âmago da manutenção da ordem está a necessidade de obe-
diência, restando saber a que se deve obedecer, ou com que motivo. Em
termos ideais, e recorrendo às formas impessoais de repressão da violência
ilegítima, típicas das sociedades complexas e industriais, deve-se obedecer à
lei porque ela é legítima e racional, estatuída por agentes imbuídos por um
poder publicamente instituído e constituído. Em termos historicamente
determinados, o Brasil oferece motivos de obediência distintos, marcados
por um passado imperial, rural, oligárquico e, depois de 1930, um con-
185
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
luio entre elites e burguesia. Nesses termos, obedecer signica perpetuar
a “uência suave da vida comum” como sempre se deu. Assim é possível
compreender elementos tão importantes apontados por Coelho (2000).
Elementos como a centralização do poder, a repulsa ao indivíduo e ao dis-
senso, o elogio da elite pedagoga e a centralidade do Estado.
Os Manuais de Pacicação e Garantia da Lei e da Ordem trazem,
a partir do exposto acima, vivo desconforto a quem pensa a Doutrina de
Segurança Nacional em perspectiva histórica, pois oferece demasiadas áre-
as de contato com práticas de repressão aos movimentos, quaisquer que
sejam, de transformação social. Vejamos duas denições do Manual de
Garantia da Lei e da Ordem:
Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou orga-
nizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública
ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio. – Ameaça são atos
ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preserva-
ção da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patri-
mônio, praticados por F Opn previamente identicadas ou pela
população em geral (BRASIL, 2013, p. 15).
É nítido que o oponente ou a ameaça podem ser traduzidos
como qualquer coisa, pessoa ou grupo, dependendo sua identicação
apenas da discricionariedade da autoridade pública. Não é difícil en-
tender que essa elasticidade conceitual não preserva nenhum sentido
de racionalidade pública, legitimidade ou previsibilidade jurídica, nem
mesmo sensação de segurança. É desconcertante a proximidade com o
pensamento do Gen. Golbery do Couto e Silva (2003, p. 189), que ima-
ginava a segurança nacional como o “[...] o grau relativo de garantia
que o Estado proporciona à coletividade nacional, para a consecução e
salvaguarda de seus objetivos, a despeito dos antagonismos internos ou
externos, existentes ou presumíveis.
O Manual de Pacicação arma que suas operações já são par-
te do Conceito Operativo do Exército Brasileiro, em outras palavras, as
ações de pacicação (que podem ser realizadas em território nacional, caso
haja decretação de estado de exceção, mesmo que haja uma imensa zona
cinzenta entre a pacicação e a GLO) são, ocialmente, parte do trabalho
militar brasileiro e objeto de educação e treinamento.
186
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
No Manual de Pacicação, as menções ao emprego interno da
força aparecem 38 vezes, contra 15 vezes em que é apontado o uso externo.
O contexto nacional é mencionado 110 vezes, contra 48 vezes em que é
apontado o contexto internacional. A expressão “ordem pública” surge 25
vezes. Esses números são marcantes, pois ajudam a constituir doutrina, no
caso, uma nova doutrina de segurança nacional.
Em suma: esses documentos e dispositivos apresentam coerência
entre si, bem como são encadeados numa direção especíca, a direção da
contenção dos movimentos, pessoas ou situações que possam promover
mudança social (brusca ou não). Aos manuais de Garantia da Lei e da
Ordem e de Pacicação unem-se as concepções de segurança presentes no
Livro Branco de Defesa (que tem um tópico que trata exclusivamente do
emprego das Forças Armadas na garantia da Lei e da Ordem) e os artigos
constitucionais que possibilitam interpretações quanto ao emprego mili-
tar em atividades internas. Essa estrutura interna encontra sustentação (se
bem que de claudicante) nas preocupações internacionais de segurança,
voltadas para o controle e repressão de ameaças não-estatais, que exigem
ação contra inimigos predominantemente internos, ações essas que abra-
çam o conhecido binômio segurança e desenvolvimento.
5 – consiDerações finais
O artigo pretendeu identicar o que é considerado atualmente
Setor de Segurança e de que modo o Exército Brasileiro está se adaptan-
do a esta forma mais recente de se compreender um tema historicamente
concebido como de responsabilidade exclusivamente militar. Foi possível
perceber que a tendência atualmente é de compreender a Segurança como
Setor de Segurança de forma ampla por envolver agentes como forças po-
liciais, setores de inteligência e atores da sociedade civil.
Ainda que não exista um consenso sobre todos os aspectos dos
estudos de Segurança, o debate internacional sobre o tema reconhece a
complexidade dos cenários de conitos contemporâneos e, de certa forma,
de uma alteração da resposta para a pergunta “segurança para quem?” na
medida em que a segurança humana passa a ter cada vez mais relevância
do que a segurança do Estado. Além disso, já está também bem estabele-
187
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
cida pelo debate a ideia de que as situações mais prováveis para o uso das
Forças Armadas atualmente são assistência humanitária, missões de paz,
terrorismos e crime organizado. Nota-se ainda as considerações feitas nas
discussões sobre o tema sobre a ideia de desenvolvimento econômico e boa
governança para a garantia de um ambiente seguro e estável.
Atento a esta tendência e aos recentes episódios de atuação para
dentro das Forças Armadas brasileiras, estão começando a ser produzidos
no Brasil manuais que tem como objetivo informar para o adestramento
militar as novas preocupações do país com conitos diferentes da guerra
regular, como os Manuais de Pacicação (2015) e o de Garantia da Lei e
da Ordem (2013), expostos neste artigo. É possível observar a preocupação
do país com a complexidade do contexto atual de atuação militar e seu
esforço para incorporar estas mudanças em sua doutrina e adestramento,
seguindo de certo modo a tendência mundial de se pensar o Setor de Segu-
rança. Contudo, a partir de uma análise mais atenta do teor dos documen-
tos, nota-se ainda que as questões de Segurança para o Brasil ainda estão
muito ligadas à ideia de segurança do Estado e da manutenção da ordem
interna, diferente do que poderia esperar à primeira vista.
Esta preocupação com a segurança nacional, contudo, é reexo
de um ethos presente na corporação militar brasileira que é comumente
compreendida como manutenção da ordem social e relaciona-se com o
exercício do poder militar sobre os componentes do âmbito da política e
da sociedade civil. Há, com isso, a formação de uma doutrina de seguran-
ça nacional que privilegia um projeto de ordem social em detrimento da
transformação social de qualquer ordem que seja.
Diferente, portanto, da tendência mundial de se pensar a Segu-
rança de forma mais ampla e considerando os aspectos transformadores
de um mundo mais conectado, as Forças Armadas brasileiras, a partir das
recentes publicações aqui expostas, permanecem engessadas em uma con-
cepção de segurança que prioriza a manutenção de uma dada ordem social
interna. Apesar da tentativa de propor uma alteração mais profunda e ali-
nhada ao debate internacional no início de seus documentos e, no caso do
Manual de Pacicação, apresentar uma perspectiva mais internacional, as
Forças Armadas brasileiras parecem estar mais preocupadas em constituir
188
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
uma atualização de uma doutrina de segurança nacional do que incorporar
grandes alterações em seu modo de compreender o cenário atual.
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R  S  S:
 C   A
L-A
Ana Maura Tomesani
1 – introDução
A violência latino-americana vem chamando a atenção de várias
organizações internacionais desde meados da década de 1980. A maioria
dos países da região está nas categorias críticas de 10 a 80 homicídios por
100.000 habitantes (United Nations Oce for Drugs and Crime – UNO-
DC, 2013). A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera 10 homi-
cídios por 100.000 habitantes como o limite da violência epidêmica, o que
signica que a maior parte do continente está assolada por uma epidemia
de homicídios. De acordo com dados do relatório UN Childs Hidden in
Plain Sight publicado em 2014 (United Nations Childrens Fund – UNI-
192
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
CEF, 2014), o homicídio é a principal causa de morte de crianças e jovens
entre 10 a 19 anos em sete países da América Latina e do Caribe. O rela-
tório State of the Cities of Latin America and the Caribbean, divulgado pelo
Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU–
HABITAT, 2012), enfatiza que a violência na América Latina e no Caribe
é a principal preocupação de seus cidadãos.
Neste contexto, não seria de se estranhar que as agências de
cooperação internacional sediadas nos países desenvolvidos – e por pa-
íses desenvolvidos entenda-se, para efeito desta investigação, aqueles
que fazem parte do CAD/OCDE
1
– estejam nanciando programas de
reforma do setor de segurança na região desde meados dos anos 90, ain-
da que estes uxos tenham sido monitorados apenas a partir de 2004
2
.
Apesar do fato de que há bem poucos estudos que examinam o papel
e o desempenho dessas agências neste campo, os que existem apontam
para tendências como a importação de soluções generalizadas de pa-
íses doadores para países receptores (TUCHIN; GOLDING, 2003;
ZIEGLER; NIELD, 2002) ou a imposição de agendas desconectadas
com as especicidades e deciências organizacionais, institucionais e
culturais locais (BAYLEY, 2005; BLAIR, 2014; DONAIS, 2012; PE-
AKE; MARENIN, 2008; RICHMOND, 2006). Alguns deles também
salientam a existência de uma certa resistência por parte dessas agên-
cias para lidar com questões diretamente relacionadas às organizações
policiais (BAYLEY, 2006; BRZOSKA, 2003; HAMMERGREN, 2003;
LEEDS, 2007), que são as instituições legalmente responsáveis pela
prevenção e supressão do crime.
Para vericar se os programas do setor de segurança implemen-
tados por Agências de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
(doravante ACIDs) estão desconectados das especicidades locais, enten-
demos que nossa primeira tarefa deveria ser descobrir se há uma agenda lo-
cal no setor. De acordo com Fuks (2000), existem diferentes movimentos
Comitê de Assistência para o Desenvolvimento (em inglês Development Assistance Committee (DAC)) da Or-
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Há registros difusos de programas nanciados na década de 90, mas foi apenas a partir de 2004 que a rubrica
security sector management and reform” foi criada e os uxos de ajuda ocial para o desenvolvimento (em
inglês Ocial Development Assistance (ODA)) neste campo passaram a ser monitorados sistematicamente pela
OCDE (TOMESANI, 2017).
193
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
que podem conformar uma agenda pública. Em geral, as agendas emergem
de disputas entre grupos organizados em arenas públicas que atingem a
mídia e pressionam atores políticos, mas também podem ser forjadas por
governos quando estes criam novos órgãos ou políticas para lidar com as-
suntos que respondem e/ou catalisam exigências que estavam latentes e/ou
difusas anteriormente.
Neste caso especíco da agenda latino-americana sobre a RSS,
não pretendemos descrever a genealogia da emergência da questão da
segurança como uma agenda pública dentro da arena dessas organizações
regionais – se foi uma resposta direta à sociedade civil organizada ou se
apareceu primeiramente como uma preocupação das autoridades locais/
nacionais que reivindicaram o tratamento do assunto dentro dessas or-
ganizações. Seria trabalho para uma outra investigação. Nossa intenção
neste estudo esteve limitada a identicar a existência de uma agenda re-
gional sobre o tema liderado por essas organizações, agenda esta enten-
dida como um conjunto de compromissos latino-americanos nos quais
países acordam sobre suas deciências, elegem prioridades e formulam
planos de ação coletiva.
Se não há uma agenda para o setor de segurança organizada por
lideranças na região, talvez esta desconexão entre os programas implemen-
tados pelas ACIDs e as condições locais possa ser um reexo da falta de in-
terlocutores, da ausência de demandas organizadas no setor, o que poderia
justicar a importação de programas genéricos baseados no diagnóstico de
consultores contratados por estas agências
3
.
Analisamos o perl de três organizações regionais no tocante às
questões de segurança – a Organização dos Estados Americanos (OEA), a
União dos Estados da América do Sul (UNASUL) e o Mercado Comum
do Sul (MERCOSUL). Os documentos coletivamente produzidos que
poderiam listar desaos e prioridades no campo da segurança pública
para a região foram buscados de modo a construirmos uma proxy das fra-
gilidades latino-americanas nesta área e vericarmos se poderíamos falar
de uma agenda regional para o setor. Numa etapa seguinte de pesquisa,
Hammergren (2003) e Peake e Merenin (2008) salientam para os riscos de formular programas baseados
exclusivamente no diagnóstico de consultores sediados nos países doadores.
194
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
isso torna possível vericar se os programas nanciados por ACIDs na
região atenderiam a esta agenda.
É importante mencionar que priorizamos as organizações políti-
cas/econômicas regionais em vez das organizações da sociedade civil. Sabe-
mos que já existem algumas iniciativas para construir uma agenda regional
sobre segurança cidadã na região latino-americana organizada por ONGs
e universidades
4
. Estas são mais difíceis de mapear à medida que estão mais
pulverizados nos territórios e as informações sobre elas não estão totalmen-
te disponíveis ou acessíveis. Essa é a única razão pela qual preferimos ma-
pear organizações regionais em lugar dessas iniciativas da sociedade civil,
mas encorajamos fortemente uma investigação sobre elas, pois constituem
outros potenciais pontos de interlocução local sobre o tema que podem
porventura estar sendo ignorados pelas ACIDs.
O artigo está dividido da seguinte forma: uma Introdução; uma
seção para apresentar as organizações e documentos dedicados à reforma
do setor de segurança na América Latina e uma seção que analisa a existên-
cia de uma agenda no setor. Este artigo é o resultado de uma investigação
em curso, então algumas conclusões parciais são elaboradas ao nal, apon-
tando para futuros desenvolvimentos.
2 – reforma Do setor De segurança: origens e Definições
É importante esclarecer que a denição de “reforma do setor de
segurança” varia muito segundo autores que trabalham com o conceito. O
termo apareceu pela primeira vez em meados dos anos 90 e esteve restrito
aos debates da comunidade internacional de doadores (BRZOSKA, 2003),
que discutiam o processo de transição política e econômica dos países do
leste europeu e qual seria o formato das novas instituições de segurança
e justiça destes países. Até então, a provisão de um ambiente doméstico
Várias organizações latino-americanas organizaram eventos e publicações sobre o assunto. Como exemplo
podemos citar o Diálogos de Segurança Cidadã, organizado pela ONG brasileira Igarapé entre 2013-2015. O
projeto reúne lideranças e estudiosos do Brasil, México, Colômbia e África do Sul (mais informações: <https://
goo.gl/jnt1Ey>, acesso em 17 ago. 2017). Mais recentemente (2017), o lançamento da campanha latino-ameri-
cana “Instinto de Vida” reuniu várias organizações e estudiosos da sociedade civil na região e propôs políticas a
serem seguidas pela administração pública para reduzir os crimes - mais especicamente as taxas de homicídios
(mais informações: <https://goo.gl/ytCSoM>. Acesso em: 17 ago. 2017).
195
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
seguro era considerada pela comunidade internacional de doadores como
responsabilidade primordial dos países receptores (OECD, 2008).
O tema é controverso desde então pelo fato de que uma gama
enorme de questões foram sendo pouco a pouco incorporadas ao concei-
to, o que contribuiu para torná-lo vago e confuso. Atualmente, a maior
parte da bibliograa que trabalha especicamente com o termo é prove-
niente da literatura sobre operações de paz (uma vez que programas de
RSS constituem uma etapa do protocolo de operações de paz das Nações
Unidas), sendo que de modo geral os programas de RSS são criticados
por sua abordagem top-down por esta literatura, o que gera um gap en-
tre a formulação dos programas e a implementação prática dos mesmos
(TOMESANI, 2017).
Alguns, como Chuter (2006, apud AGUILAR, 2014) sugerem
que o uso do termo seja limitado às organizações responsáveis pela segu-
rança interna e externa (que inclui o exército, as organizações policiais e
seus órgãos administrativos). O Centro de Controle Democrático de For-
ças Armadas de Genebra trabalha com um conceito ampliado do termo,
abrangendo sistema de justiça e prisão, bem como organizações da socieda-
de civil (DCAF, s/d, lição I, p. 6, apud AGUILAR, 2014). Enquanto isso,
outra(o)s autora(e)s e organizações permanecem num nível “intermediá-
rio” no que tange à denição do termo – atribuindo ora mais peso e pro-
tagonismo às forças responsáveis pela defesa e manutenção da ordem, ora
enfatizando a importância de muitos outros atores no processo de reforma
do setor de segurança.
Para o propósito deste artigo, esclarecemos que estamos traba-
lhando com a denição da OCDE para a reforma do setor de segurança
(RSS). O motivo dessa escolha foi pragmático – os dados que serão levan-
tados posteriormente sobre os programas de RSS nanciados pelas ACIDs
serão extraídos do banco de dados da OCDE e estão armazenados sob o
rótulo “Gestão e Reforma do Setor de Segurança” (“Security Sector Mana-
gement and Reform”).
A denição da OCDE de programas de RSS compreende nan-
ciamento para “órgãos policiais e judiciários para assistir, analisar e refor-
mar o sistema de segurança de modo a melhorar a governança democrá-
196
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tica e o controle civil”
5
. O nanciamento de organizações militares não
é considerado “ajuda/assistência para desenvolvimento” (development aid)
para a OCDE (e por isso não entra nas estatísticas referentes à cooperação
internacional), mas o apoio à supervisão civil e ao controle democrático
das forças militares é.
Em outras palavras, programas nanciados pelo CAD/OCDE
em áreas como reforma da polícia, reforma do sistema judiciário, segu-
rança cidadã ou segurança pública, a prevenção do crime, o policiamento
comunitário e o controle externo e democrático das atividades policiais são
declarados pelos países doadores da OCDE ao órgão estatístico da insti-
tuição sob o rótulo de “Gestão e Reforma do Setor de Segurança”. Por esta
razão, esclarecemos que quando utilizarmos a expressão “reforma do setor
de segurança” (ou RSS) ou simplesmente “segurança”, é a este conjunto de
ações características que estaremos nos reportando.
3 – unasul, oea e mercosul
A m de localizar as demandas regionais organizadas sobre a re-
forma do setor de segurança para o continente latino-americano (de modo
a posteriormente cotejá-las com os programas nanciados pelas ACIDs
no setor), selecionamos três organizações regionais, já citadas na introdu-
ção – a UNASUL, a OEA e o MERCOSUL. Ferreira (2016) arma que
a UNASUL e a OEA são muito inovadoras em sua visão de questões de
segurança. Independentemente do fato de representarem estados, sua ar-
quitetura institucional demonstra que estão preocupadas com a violência,
mas não dentro de uma visão estatocêntrica e tradicional, e sim conside-
rando ameaças internas à segurança humana e à necessidade de promover
a paz positiva
6
.
É importante atentar para a natureza distinta dos documen-
tos analisados, o que nos obrigou a diferentes formas de sistematiza-
ção dos mesmos – buscou-se localizar em cada uma destas organiza-
Informação retirada (e traduzida pela autora) da Lista de Códigos para uxos de ODA da OCDE de 2016,
página 9, disponível no link: <https://goo.gl/V8D2xs>. Acesso em: março de 2017.
Aqui, Ferreira (2016) refere-se ao conceito de paz positiva de Galtung (1969), que signica não apenas a
ausência de guerra e violência direta (paz negativa), mas também a superação da violência estrutural e cultural
(GALTUNG, 1990) dentro das sociedades.
197
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ções primeiramente se havia órgãos específicos para lidar com o tema
da segurança. OEA e UNASUL atendiam a este requisito. A UNA-
SUL possui o Conselho Sul-Americano de Segurança Cidadã, Justi-
ça e Coordenação de Ações contra Crime Organizado Transnacional
(CSSCJDOT), em operação desde 2012. A OEA dispõe da Secretaria
de Segurança Multidimensional, dividida em quatro outros órgãos:
a Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Controle do
Abuso de Drogas, a Secretaria do Comitê Interamericano contra o
Terrorismo, o Departamento de Segurança Pública e o Departamen-
to Contra o Crime Organizado Transnacional. O passo seguinte foi
selecionar para análise documentos trabalhados no âmbito destes ór-
gãos. O Mercosul não atendia ao requisito de possuir um órgão exclu-
sivamente dedicado à questão de segurança. Neste caso, analisamos
os temas trabalhados nas normativas da organização para verificar se
questões de segurança eram tratadas no âmbito do bloco e que peso
teriam para os estados-membros desta organização.
A análise meticulosa desse material permitiu um mapeamen-
to detalhado dos itens que necessitam ser repensados no campo da
segurança para estes países. Nas três organizações, procuramos docu-
mentos produzidos coletivamente que pudessem listar fragilidades e
desafios de segurança pública na região, para que pudéssemos mapear
esses pontos e usá-los como proxy das demandas e prioridades latino-
-americanas no campo. Estes seriam aqueles pontos para os quais os
países membros destas organizações acordaram sobre a necessidade de
reformas e melhoramentos.
3.1 – unasul
A UNASUL foi criada no Encontro de Presidentes da Améri-
ca do Sul em 2004 em Cusco, Peru, para integrar os processos regionais
iniciados com o Mercosul e a Comunidade Andina e pensar uma agenda
para a região, tendo a Comunidade Européia como modelo. Intitulado
inicialmente Comunidade Suramericana de Naciones (CSN), recebeu -
nalmente o nome de UNASUL (ou UNASUR, em espanhol – Unión de
Naciones Suramericanas) em 2007 e seu Tratado Constitutivo foi assinado
198
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
em 2008. Formada por 12 países, a UNASUL é liderada por três conselhos
diretores, mais a Secretaria Geral, e conta com outros 12 conselhos consul-
tivos setoriais que se reúnem regularmente.
O CSSCJDOT é um desses conselhos consultivos setoriais. Foi
criado primeiramente como um grupo de trabalho resultante da Declara-
ção de Cartagena assinada durante a Reunião de Ministros da Defesa, Jus-
tiça, Segurança e Relações Exteriores da UNASUL e da Resolução 19/2012
do Conselho de Ministros das Relações Exteriores
7
. O “Grupo de Trabalho
do Conselho para o Fortalecimento da Cooperação em Segurança Cidadã,
Justiça e Coordenação de Ações contra Crime Organizado Transnacional”
reuniu-se quatro vezes em 2012 antes da criação ocial do Conselho. Essas
reuniões estabeleceram o estatuto do futuro conselho, seu mandato e um
Plano de Ação a ser implementado e monitorado por seus membros, cuja
coordenação deveria ser integrada com a coordenação do Conselho Sul-A-
mericano do Problema Mundial das Drogas, também ligado à UNASUL.
O documento fundacional do CSSCJDOT foi nalmente lançado em 1º
de março de 2013
8
.
O CSSCJDOT/UNASUL é formado por representantes dos Mi-
nistérios da Justiça, Segurança e Defesa de cada um dos países membros e
contabiliza 11 reuniões ordinárias até agora
9
, mas devemos acrescentar a
estas as reuniões setoriais dos grupos de trabalho do conselho – o conselho
é dividido em três grupos de trabalho (GT Segurança Cidadã, GT Justiça
e GT COT – Crime Organizado Transnacional) e esses grupos também se
reúnem periodicamente. Há ainda as reuniões dos ministros do conselho
– realizaram-se até o momento quatro reuniões de ministros responsáveis
por justiça e segurança dos Estados membros do conselho.
Essas reuniões produziram uma grande quantidade de documen-
tos visando ações coletivas – como a criação de redes entre policiais, cam-
A Declaração de Cartagena (maio de 2012) salienta a necessidade de fortalecer a cooperação entre os Estados
membros contra o crime organizado transnacional, recomenda a criação de um conselho para lidar com o
assunto e, antes disso, de um grupo de trabalho para pensar em um Plano de Ação para este futuro Conselho,
bem como a sua burocracia e regras de funcionamento. A Resolução 19/2012 (junho de 2012) cria o grupo de
trabalho e propõe a criação do Conselho ao Conselho de Chefes de Estado.
É importante mencionar que a UNASUL conta com dois outros conselhos que trabalham com questões
relacionadas à segurança - o Conselho Sul-Americano do Problema Mundial das Drogas e o Conselho Sul-
Americano de Defesa.
 A última foi registrada em março, 2017.
199
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
panhas transnacionais contra o tráco humano, seminários para troca de
informações, publicações sobre boas práticas, workshops para alternativas
de reabilitação de ex-presidiários, discussões sobre a possibilidade de um
Tribunal Penal Regional para crimes transnacionais. Infelizmente, os do-
cumentos não esclarecem se as decisões tomadas foram realmente imple-
mentadas ou permanecem no papel – assim, não temos o controle sobre
o cumprimento dos compromissos assinados. De qualquer forma, nosso
foco não depende da ecácia do conselho – depende, na verdade, da capa-
cidade que tem para fomentar discussões e organizar uma pauta comum
de segurança entre os estados-membros. Para o nosso propósito aqui, não
importa se os planos formulados foram executados, mas se eles conformam
uma agenda para o setor.
Entre os vários documentos mapeados, o Plano de Ação 2012
– 2017 é, sem dúvida, o mais importante deles e o que mais claramen-
te lista desaos e soluções para problemas de segurança dos países da
América do Sul. Foi produzido pelo grupo de trabalho que precedeu
a criação do CSSCJDOT/UNASUL e contou com a participação de
representantes de todos os Estados membros no campo da segurança
e justiça. Ele orienta todo o conjunto de discussões e atividades do
conselho e guiou a divisão dos membros nos três grupos de trabalho
citados anteriormente, já que o Plano de Ação está dividido em três áre-
as – Segurança Cidadã, Justiça e Coordenação de Ações contra Crimes
Organizados Transnacionais (COT).
Para cada uma dessas áreas do Plano de Ação foram pensados
quatro eixos temáticos e para cada eixo, vários desaos estratégicos. Os
desaos estratégicos foram desdobrados em ações a serem desenvolvidas.
Nós sistematizamos abaixo três quadros com as áreas e respectivos eixos
temáticos, tentando resumir os desaos estratégicos e as ações denidas
pelo conselho. Quando o Plano de Ação foi elaborado, alguns campos
foram deixados incompletos para serem completados pelos membros ao
longo de suas discussões e implementação. É provável que o preenchimen-
to destes campos tenha ocorrido informalmente durante as reuniões, mas
o documento ocial do Plano de Ação disponível no repositório digital
da UNASUL nunca foi atualizado – por esta razão ele segue com lacunas,
200
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
como se verá. O Plano abrangeu o período 2012–2017, então é possível
que estejam considerando uma atualização.
a) Plano da Ação CSSCJDOT/UNASUL 2012 – 2017 por área
SEGURANÇA CIDADÃ
Prossionalização
e especialização
de policiais
(desenvolvimento
de capacidades
especícas de
acordo com o
trabalho na polícia),
modernização
tecnológica
para prevenção
da violência e
intercâmbio
de tecnologias,
conhecimento
de criminologia,
intercâmbio de
boas práticas e
modelos de gestão
bem-sucedidos,
fortalecimento
do controle
interno e externo,
responsabilidade e
transparência.
Promoção da
participação
e colaboração
dos cidadãos
na formulação,
implementação e
avaliação de políticas
de prevenção do
crime e da violência,
organização de
concursos sul-
americanos para
que a população
apresente propostas,
estímulo ao
intercâmbio de boas
práticas com relação
à participação
social nas políticas
de segurança
e organização
de seminários
para disseminar
conhecimento sobre
como a sociedade
civil pode contribuir
para o planejamento
das políticas de
segurança.
Fortalecimento
das instituições
responsáveis pelo
desenvolvimento
de políticas de
segurança pública
com perspectiva de
direitos humanos
e igualdade de
gênero, promoção
de políticas
para prevenir a
violência contra
grupos vulneráveis,
fortalecendo o
conhecimento de
policiais sobre os
direitos humanos e o
uso racional da força,
estímulo à igualdade
de gênero dentro
das corporações,
fomento à cultura
de paz através do
desencorajamento de
posse e uso de armas.
Capacitação
institucional de
governos locais
nas comunidades
fronteiriças para
questões relacionadas
à segurança cidadã,
fortalecimento da
cooperação e troca
de informações
entre policiais e
departamentos de
segurança em zonas
fronteiriças.
Fonte: elaborado pela autora com dados do Plano de Ação do CSSCJDOT/UNASUL
(https://goo.gl/Ww2Xxc), disponível no repositório digital da (https://goo.gl/J327WP),
consulta realizada em 16 de agosto, 2017.
201
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
JUSTIÇA
Fomento e
ampliação da
capacidade dos
serviços públicos
e dos serviços
judiciais gratuitos;
melhoramento da
gestão dos sistemas
de informação,
fortalecimento
da cooperação
judiciária entre os
países; promoção de
melhorias no sistema
de internação/
prisão para jovens
e adolescentes em
conito com a lei
com perspectiva de
direitos humanos
Criação de
mecanismos para
acelerar processos;
treinamento de
mediadores para
atuar localmente
e aumentar o
acesso à justiça,
principalmente
entre as populações
mais vulneráveis;
promoção do
intercâmbio de
experiências bem-
sucedidas na redução
da burocracia e
meios alternativos
para resolver
conitos.
Fomento à cultura
da paz, organização
de campanhas que
desencorajem a posse
e uso de armas,
fortalecimento
da luta contra a
impunidade de
crimes contra a
humanidade; apoio
à implementação
de políticas para
proteger grupos
vulneráveis e
combater a violência
sexual e familiar.
Desenvolver políticas
penitenciárias com
perspectiva de
direitos humanos
e fortalecer as
existentes.
Fonte: Elaborado pela autora com dados do Plano de Ação do CSSCJDOT/UNASUL
10
COORDENAÇÃO DE AÇÕES CONTRA O CRIME ORGANIZADO
TRANSNACIONAL (COT)
Reforço à prevenção;
criação de
mecanismos para
o intercâmbio de
informações sobre
crimes transnacionais
como lavagem de
dinheiro, tráco
humano e tráco de
armas/munições/
explosivos; elaboração
de um diagnóstico
sobre a situação atual
e novas formas de
crimes transnacionais,
mapeamento de rotas
e modus operandi do
COT.
Elaboração de protocolos
operacionais, treinamento
e métodos de investigação
padronizados para agentes
de segurança nas fronteiras, a
m de facilitar o intercâmbio
de informações e aumentar
a eciência das ações
integradas. Criação de um
concurso sul-americano de
monograas sobre Políticas
de Segurança Fronteiriças
para envolver a sociedade
civil, acadêmicos e agentes
de segurança das localidades
fronteiriças.
vazio vazio
Fonte: Elaborado pela autora com dados do Plano de Ação do CSSCJDOT/UNASUL
11
10
(https://goo.gl/Ww2Xxc), disponível no repositório digital da (https://goo.gl/J327WP). Acesso em: 16 ago.
2017.
11
(https://goo.gl/Ww2Xxc), disponível no repositório digital da (https://goo.gl/J327WP). Acesso
em: 16 ago. 2017.
202
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Como podemos ver, as ações estão concentradas nas duas
primeiras áreas – segurança cidadã e justiça, e algumas ações sobre-
postas podem ser observadas em ambas as áreas. De maneira bastan-
te resumida, o foco principal do documento é: 1) transparência e
participação social no planejamento, implementação e avaliação de
políticas públicas, 2) colaboração entre países para o intercâmbio de
informações, tecnologias e referências de boas práticas; 3) treinamen-
to conjunto de agências de segurança e justiça para lidar com gru-
pos vulneráveis e presidiários na perspectiva dos direitos humanos;
4) prevenção da violência e o desencorajamento da posse de armas e
armas pela população.
A terceira área, COT, é a menos desenvolvida no Plano de
Ação – dois eixos aparecem em branco no documento original (co-
operação contra o COT e capacitação institucional para lutar contra
o COT). Algumas discussões que aparecem na documentação deste
grupo de trabalho mostram que estudos e diagnósticos sólidos sobre
crimes transnacionais na região são necessários para formular políticas
efetivas. É provavelmente a área em que há menos informação dis-
ponível, então as ações planejadas são limitadas. De qualquer forma,
as informações disponíveis até agora indicam a necessidade de criar
mecanismos para compartilhar informações criminais entre as polícias
dos países membros e também a elaboração de protocolos regionais e
métodos de treinamento e investigação padronizados para polícias de
regiões fronteiriças de modo a facilitar ações integradas.
3.2 – oea
A OEA promove desde 2008 a Reunião de Ministros Respon-
sáveis pela Segurança Pública nas Américas (MISPA) e as reuniões já
produziram documentos sobre as fragilidades dos países participan-
tes, com foco na cooperação e intercâmbio de conhecimentos e as-
sistência técnica entre os Estados membros. O evento é organizado
pelo Departamento de Segurança Pública da Secretaria de Segurança
Multidimensional da OEA, que também é responsável pela criação da
203
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
AMERIPOL
12
que conduziu, em 2014, o Diagnóstico sobre Necesidades
de Conocimiento Policial para la Planeacion Curricular de la Red Inte-
ramericana de Desarollo y Profesionalizacion Policial. Esses documentos
(compromissos da MISPA e o Diagnostico) são interessantes porque
apresentam uma lista de áreas onde esses países entendem que preci-
sam fortalecer sua capacidade institucional e técnica. Resumindo, são
documentos que nos permitem notar que os países participantes cons-
truíram e vem monitorando metas estabelecidas por eles próprios para
melhorar sua capacidade de oferecer bons serviços de segurança à sua
população. Os compromissos das MISPAs, juntamente com o Diagnos-
tico, fornecem um quadro amplo de desaos a serem enfrentados no
campo da segurança pública na América Latina, bem como um esboço
de soluções possíveis reetidas em compromissos acordados entre os
membros. As MISPAs e o Diagnostico são analisados abaixo.
a) as misPas
A primeira Reunião de Ministros Responsáveis pela Segurança
Pública ocorreu na Cidade do México, de 7 a 8 de outubro de 2008, e
foi concluída com a adoção do Compromisso de Segurança Pública das
Américas, documento que estabelece os cinco pilares de apoio para a con-
cepção e implementação de uma resposta abrangente aos desaos da segu-
rança pública na região, dentro de um quadro democrático. O documento
propõe ações a serem implementadas por cada país visando melhorar as
condições de segurança no continente. Em resumo, os principais pontos
abordados no Compromisso de 2008 (OAS, 2008) são sistematizados nos
cinco eixos abaixo:
12
A Associação das Polícias das Américas (AMERIPOL) - foi formada em 14 de novembro de 2007 em Bogotá,
Colômbia, com uma composição original de 18 corporações policiais e apoio da OEA. Quinze entidades poli-
ciais nacionais, regionais e internacionais são observadoras da AMERIPOL, incluindo corporações da Alema-
nha, do Canadá, da Itália e da Espanha, bem como órgãos da OEA e a INTERPOL, entre outras.
204
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Quadro 1 – Sistematização dos cinco eixos acordados no Compromisso
para a Segurança Pública das Américas em 2008.
Criação e for-
talecimento das
políticas pú-
blicas de longo
prazo, com
pleno respeito
pelos direitos
humanos; refor-
ço à segurança
fronteiriça; cria-
ção de padrões
para a regulação
da segurança
privada, moder-
nização dos sis-
temas peniten-
ciários e criação
de modelos
sustentáveis de
reintegração
social para os
ex-presidiários,
especialmen-
te os jovens;
criação de
ferramentas de
gestão padroni-
zadas, fortaleci-
mento de re-
cursos técnicos
e materiais de
operadores de
segurança.
Criação
de ações
transversais
para a
prevenção da
criminalidade;
promoção de
programas nas
escolas para
conscientizar
e prevenir
o crime e a
violência
Criação de
mecanismos de
transparência
e accountabi-
lity de ações
policiais, pro-
ssionalização
da polícia;
promoção das
condições de
vida e de traba-
lho da polícia;
criação de
observatórios
governamentais
do crime e da
violência para
apoiar planos
operacionais de
segurança.
Incentivar e
fortalecer a
participação
social e a res-
ponsabilidade
na segurança
pública; criação
de políticas
para aumentar
a conança nas
instituições de
segurança.
Criação de me-
canismos para
o intercâmbio
de informações
entre os países
membros;
sistematização
e produção de
dados compa-
ráveis entre os
países, a m
de melhorar os
parâmetros de
esforços coope-
rativos; consoli-
dação da comu-
nidade ameri-
cana de polícia
(AMERIPOL);
promoção do
intercâmbio
de experiências
entre as orga-
nizações da
sociedade civil
dos países sig-
natários.
Fonte: Elaboração da autora com informações da MISPA 2008, coletadas de OAS, 2008.
A segunda reunião, realizada na República Dominicana no nal
de 2009, resultou no Consenso de Santo Domingo sobre Segurança Públi-
ca nas Américas, ou a Carta de Santo Domingo. Este documento reforça
o compromisso das partes de abordar as questões da segurança pública de
forma cooperativa, atentando-se sempre aos direitos humanos e liberdades
fundamentais e à promoção concomitante de outras áreas como saúde,
cultura e educação. O documento faz várias referências à solidariedade e ao
compartilhamento de experiências e informações entre os Estados mem-
bros (OAS, 2009). A Carta parece ter sido criada para garantir que os Es-
205
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
tados signatários não recorressem a estratégias violentas e autoritárias para
lidar com o crime.
Nas reuniões que se seguiram
13
, os países assinantes relataram
suas atividades relacionadas ao Compromisso para a Segurança Pública das
Américas, que segue sendo o documento norteador das discussões que
ocorrem durante as MISPAs. O documento fornece informações sobre
pontos estratégicos de segurança que os governos devem melhorar para
poder oferecer um ambiente seguro em seus respectivos países. Esses pon-
tos são expressos e organizados pelos próprios países e representados por
seus ministros de segurança. A cada nova reunião, a situação de cada país
com relação aos pontos do Compromisso é monitorada e atualizada numa
matriz que permite ao Departamento de Segurança Pública da Secretaria
de Segurança Multidimensional da OEA ter um quadro comparativo dos
avanços na região.
B) o “Diagnostico
O Departamento de Segurança Pública da Secretaria de Segu-
rança Multidimensional da OEA está atualmente realizando um projeto
intitulado “Red Interamericana de Desarrollo y Profesionalización Policial
(Rede Interamericana de Desenvolvimento e Prossionalização Policial). A
“Red” pretende criar um espaço para a troca de conhecimentos e a pros-
sionalização constante dos membros das polícias nas Américas, através da
AMERIPOL. Vale ressaltar que a AMERIPOL é constituída de corpora-
ções policiais e a Polícia de Porto Rico e dos Estados Unidos – por meio de
sua Agência de Controle de Drogas – possuem cada uma sua própria ade-
são. Em 2014, a AMERIPOL realizou uma pesquisa com instituições poli-
ciais e especialistas sobre os desaos das corporações policiais nas Américas,
a m de produzir novas estratégias para redesenhar e subsidiar a educação
policial. Este esforço resultou no documento Diagnóstico sobre Necesidades
de Conocimiento Policial para la Planeacion Curricular de la Red Interameri-
13
A primeira MISPA foi realizada na Cidade do México, México, de 7 a 8 de outubro de 2008; A II MISPA
foi realizada em Santo Domingo, República Dominicana, de 4 a 5 de novembro de 2009; III MISPA foi rea-
lizada em Porto de Espanha, Trinidad e Tobago, de 17 a 18 de novembro de 2011; A MISPA IV foi realizada
em Medellín, Colômbia, de 21 a 22 de novembro de 2013; A MISPA IV foi realizada em Lima, Peru, de 19 a
20 de novembro de 2015; MISPA VI foi realizada em San Pedro Sula, Honduras, 10-11 de outubro de 2017.
206
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
cana de Desarollo y Profesionalizacion Policial
14
. A elaboração do documen-
to contou com a sistematização das respostas de um survey em que foram
consideradas quatro dimensões: a dimensão social (como o corpo policial
se prepara para a diversidade social do continente), a dimensões geopolíti-
ca (como imaginar o corpo policial no contexto das Américas), a dimensão
institucional (como considerar os corpos de polícia em relação à comuni-
dade, à sociedade e ao país) e a dimensão da segurança (como pensar em
órgãos policiais em contextos de alta criminalidade e novas ameaças).
Depois de várias entrevistas com especialistas, consultas docu-
mentais e sistematização e análise dos dados resultantes do survey, foi
elaborada uma lista de deciências do corpo policial das Américas, com
foco na necessidade de fortalecer esses pontos e trabalhá-los nas grades
curriculares de formação policial do continente. As deciências foram
consideradas à luz das quatro dimensões citadas acima. Segue a sistema-
tização deste material:
14
Tive acesso a uma cópia em papel do Diagnostico. As informações contidas neste documento não foram
publicadas pela OAS.
207
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Quadro 2 – Sistematização das quatro dimensões trabalhadas no survey
com policiais relatadas no Diagnostico.
Dimensão Social
Dimensão
Geopolítica
Dimensão
Institucional
Dimensão da
Segurança
Formação especíca
para lidar com
mobilizações
sociais e mudanças
sociais; treinamento
sobre violência de
gênero; liderança
aplicada ao corpo
policial; aprendizado
de técnicas de
interação com os
cidadãos, de gestão
e negociação de
situações de conito
e crise e técnicas
coleta de dados
e sistematização
e análise da
informação policial;
gestão de meios
de comunicação;
inteligência
associada às redes
sociais; métodos
e técnicas para
a investigação
social; prospecção
estratégica;
Fundamentos
de Sociologia;
Direitos Humanos;
caracterização de
fenômenos sociais.
Conhecimento
sobre mecanismos
de identicação
de risco de
ameaças globais;
comportamento do
crime organizado
transnacional;
concepção
de estratégias
conjuntas nas
áreas fronteiriças;
Cibercriminalidade
e ciber-terrorismo;
mecanismos
de proteção e
sustentabilidade
ambiental; normas
internacionais sobre
crime transnacional;
migrações.
Ferramentas
modernas de
gestão policial;
administração do
talento humano:
gestão de recursos
humanos de
acordo com as
competências;
concepção de
sistemas de gestão
de conhecimento
policial; prevenção
de crime; concepção
e construção de
Observatórios do
Crime; instrumentos
e indicadores para
medir a ecácia e
o desempenho da
polícia; técnicas de
controle interno
e auto-avaliação;
inovação e
desenvolvimento
tecnológico aplicado
ao desempenho
policial; design
de reforma
organizacional;
normas sobre
padronização
e gestão da
polícia; métodos
para melhor
responsabilização,
integridade e
transparência;
modernização
e reforma dos
sistemas policiais
de educação e
formação; ética e
deontologia policial.
Consolidação de
parcerias estratégicas
com sociedade
civil e governos;
concepção e
avaliação de políticas
públicas e estratégias
policiais; habilidades
para o estudo
de fenômenos
associados à
insegurança cidadã;
novas abordagens
e fundamentos
de segurança;
prevenção do
crime, detecção de
violência emergente,
gestão de gangues
de rua; concepção
de sistemas de
informação
policial; elaboração
de projetos de
inovação.
Fonte: Elaboração da autora com base em informações concedidas
pela OAS em 2014 (ver nota 14).
208
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Como podemos observar, o Compromisso para a Segurança Pú-
blica das Américas e o Diagnostico são muito semelhantes em vários pon-
tos – ambos enfatizam a necessidade de melhorar habilidades técnicas,
gerenciais e sociais do trabalho policial. Contudo, é preciso ressaltar que
se tratam de documentos com objetivos e focos distintos – o Compromis-
so é produzido e voltado para governos, representantes do poder público
dos países membros da OEA que estejam envolvidos com a política da
segurança pública no âmbito nacional. Já o Diagnostico foi elaborado pela
AMERIPOL com o objetivo de mapear deciências dos corpos policiais
da região das Américas que poderiam ser trabalhadas através da educação
policial. O m último do Diagnostico seria a elaboração de um curso para
lideranças policiais do continente americano.
Por esta razão, não é de se estranhar que o Compromisso insista
mais signicativamente na questão da cooperação regional, o que é com-
preensível dada a natureza política do documento e os eventos que antece-
deram e prenunciaram sua criação. O Diagnostico se destaca pelo foco na
questão técnica da gestão policial, seja esta gestão relacionada aos proble-
mas sociais, aos recursos humanos, ao gerenciamento de informações ou ao
controle interno e autoavaliação das atividades policiais.
3.3 – mercosul
O Mercosul foi criado em 1991 pelo Tratado de Assunção como
um bloco comercial regional formado pelo Brasil, Paraguai, Argentina
e Uruguai. Adiante, Venezuela (2006) e Bolívia (2015) foram incluídos
no bloco e, recentemente (agosto de 2017), a Venezuela foi suspensa. As
decisões sobre o processo de integração comercial do bloco são tomadas
por três conselhos especícos – Conselho do Mercado Comum, Grupo
do Mercado Comum, Comissão para o Comércio no Mercosul, nesta or-
dem de relevância. Ao longo da sua existência, foram criados outros órgãos
para dar sustentabilidade às políticas regionais implementadas pelo bloco,
como o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH), o
Instituto Social do MERCOSUL (ISM) e a Unidade de Apoio à Participa-
ção Social (UPS).
209
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
No que diz respeito aos documentos que compõem os regula-
mentos do Mercosul, as decisões, resoluções e diretivas estão diretamente
ligadas aos três conselhos mencionados anteriormente, sendo que as deci-
sões são da alçada do Conselho do Mercado Comum, as resoluções podem
ser emitidas pelo Grupo do Mercado Comum e a Comissão para o Comér-
cio no Mercosul ca responsável pela construção e debate das diretrizes.
Outras normativas possíveis são os “acordos, tratados e protocolos” e as
recomendações”. Tratados, acordos e protocolos são assinados pelos países
membros no âmbito do Conselho do Mercado Comum e podem compre-
ender países que não fazem parte do Mercosul bem como organizações in-
ternacionais. As recomendações não têm caráter obrigatório e são emitidas
também pelo Conselho do Mercado Comum.
Após uma revisão desses documentos, concluímos que as nor-
mativas que são de nosso interesse e possuem conteúdos outros que não
apenas os relacionados exclusivamente ao comércio comum entre os países
do bloco são os acordos, tratados e protocolos (cuja documentação está
organizada dentro de um mesmo repositório) e as recomendações. Em
seguida, vericamos todos estes documentos disponibilizados pelo Mer-
cosul desde a sua criação em 1991 e selecionamos aqueles que trataram de
assuntos relacionados à segurança pública e justiça. A organização assinou
143 acordos/tratados/protocolos, e emitiu ao menos 45 recomendações
até o momento
15
– destes, 21 acordos e 12 recomendações foram selecio-
nado(a)s para nossa análise. Os resultados podem ser vericados nos dois
quadros abaixo:
a) Acordos, Tratados e Protocolos do Mercosul no campo da Segurança
e Justiça
15
É importante esclarecer que até a data de 29/10/2017 os acordos, tratados e protocolos estavam atualizados até
2017 – o último acordo assinado data de 20/07/2017. O mesmo não ocorre para com as recomendações – estas
estão atualizadas apenas até o ano de 2015, sendo que a busca apresenta problemas para os anos de 2008 e 2009.
Desta forma, não é possível saber se houve ou não recomendações emitidas nestes dois anos. Por isso preferimos
dizer que “ao menos 45 recomendações” foram emitidas neste período.
210
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Quadro 3 – Sistematização dos Acordos, Tratados e Protocolos no campo
da Segurança e Justiça assinados no âmbito do Mercosul (1991 – 2017).
ACORDOS, TRATADOS E PROTOCOLOS DO MERCOSUL – SEGURANÇA E
JUSTIÇA (1991 – 2017)
Título do Tratado Assunto Ano
Protocolo de Cooperação e Assistência Jurídica em matéria
civil, comercial, trabalhista e administrativa
Cooperação Jurídica 1992
Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais
Cooperação Jurídica 1996
Acordo Complementar ao Protocolo de Cooperação e
Assistência Jurídica em matéria civil, comercial, trabalhista e
administrativa
Cooperação Jurídica 1997
Acordo sobre o Benefício de Litigar sem custos e a
Assistência Jurídica Gratuita entre os Estados membros do
Mercosul
Cooperação Jurídica 2000
Acordo sobre o Benefício de Litigar sem custos e a
Assistência Jurídica Gratuita entre os Estados membros do
Mercosul, Bolívia e Chile
Cooperação Jurídica 2000
Acordo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais
entre os Estados membros do Mercosul, Bolívia e Chile
Cooperação Jurídica 2002
Acordo de Cooperação e Assistência Jurídica em matéria
civil, comercial, trabalhista e administrativa, Bolívia e Chile
Cooperação Jurídica 2002
Emenda ao Protocolo de Cooperação e Assistência Jurídica
em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa entre
Estados membros
Cooperação Jurídica 2002
Acordo Complementar ao Acordo de Assistência Jurídica
Mútua em Assuntos Penais entre os Estados membros do
Mercosul, Bolívia e Chile
Cooperação Jurídica 2002
Acordo Complementar ao Protocolo de Assistência Jurídica
Mútua em Assuntos Penais entre Estados membros
Cooperação Jurídica 2002
Acordo de Cooperação para Assuntos Regionais de
Segurança entre Países Membros do Mercosul
Segurança Regional
2004
Acordo de Cooperação para Assuntos Regionais de
Segurança entre Países Membros do Mercosul, Bolívia e
Chile
Segurança Regional 2004
Acordo Contra o Tráco Ilegal de Migrantes entre Países
Membros do Mercosul
Tráco Humano
2004
Acordo Contra o Tráco Ilegal de Migrantes entre Países
Membros do Mercosul, Bolívia e Chile
Tráco Humano
2004
Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a
Promoção e Proteção dos Direitos Humanos do Mercosul
Direitos Humanos 2005
Acordo de Cooperação para Assuntos Regionais de
Segurança entre Países Membros do Mercosul, Bolívia,
Chile, Equador, Peru e Venezuela
Segurança Regional 2006
211
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Acordo para a Implementação de Bases de Dados
Compartilhadas de Crianças e Adolescentes em Situação de
Vulnerabilidade do Mercosul e Estados Associados
Proteção de Crianças
e Adolescentes
2008
Acordo entre os Estados parte do Mercosul e Estados
Associados sobre a Cooperação Regional para a Proteção
dos Direitos e Crianças e Adolescentes em situação de
Vulnerabilidade
Proteção de Crianças
e Adolescentes
2008
Acordo de Cooperação entre Países Membros e Estados
Associados para a Criação de Equipes Regionais de
Investigadores
Investigação
2010
Memorando sobre o Intercâmbio de Documentação para o
Esclarecimento de Graves Violações aos Direitos Humanos
Direitos Humanos 2017
Acordo entre Estados Membros e Estados Associados
para o intercâmbio de informações sobre a Manufatura e
Tráco de Armas de Fogo, Munição, Explosivos e Materiais
Relacionados
Armas de Fogo
2017
Fonte: Elaboração da autora com base em informações extraídas
repositório digital do Mercosul
16
A lista acima demonstra preocupação do Mercosul com o crime
organizado transnacional, sobretudo com o tráco humano e de armas.
Ressalta a necessidade de cooperação policial e jurídica entre os países,
além do estabelecimento de marcos jurídicos no âmbito do Mercosul em
matéria de segurança criminalidade como forma de “avançar na denição
de uma política comum de segurança, mediante o estabelecimento de me-
tas claras e instrumentos de implementação ecazes
17
.
Nota-se ainda que foram assinados 10 acordos de cooperação ju-
rídica entre os países membros e também entre estes e outros países sul-
-americanos, como Bolívia (antes que esta zesse parte do bloco) e Chile.
Estes acordos dizem respeito à assistência mútua tanto para assuntos de
ordem comercial, civil, trabalhista, administrativa como também penais. E
é interessante observar que eles se concentram na primeira década de vida
do Mercosul, momento em que os países precisaram alinhar seus ordena-
mentos jurídicos para planejar ações conjuntas.
16
(https://goo.gl/kbHYuP), em “Tratados, Protocolos e Acordos” (https://goo.gl/4uJbVc), links visitados em
29 out. 2017.
17
Trecho retirado do Acordo de Cooperação para Assuntos Regionais de Segurança entre Países Membros
do Mercosul de 2004, tradução da autora (do espanhol para o português). Disponível em: <https://goo.gl/
TC2Yei>. Acesso em: 29 out. 2017.
212
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Chama ainda a atenção os documentos assinados no âmbito dos
direitos humanos (um protocolo e um memorando) e para proteção de
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade (dois acordos as-
sinados). No Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e
Proteção dos Direitos Humanos do Mercosul, salienta-se a necessidade dos es-
tados membros respeitarem os tratados internacionais de Direitos Huma-
nos e a Carta Democrática Interamericana sob pena, em última instância,
de suspensão do país do bloco. Já o Memorando sobre o Intercâmbio de Do-
cumentação para o Esclarecimento de Graves Violações aos Direitos Humanos
busca facilitar os meios de troca de documentos e informações referentes às
ditaduras militares ocorridas no Cone Sul, sobretudo aqueles relacionados
à Operação Condor, de modo a subsidiar as Comissões da Verdade dos
estados membros.
Quanto aos dois acordos assinados relativos à proteção de crian-
ças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, um deles requer a cons-
trução de uma base de dados conjunta entre os países com dados deste
público e o outro solicita justamente que esta base seja acessada quando
houver suspeita de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade
atravessando as fronteiras dos países membros. Nos documentos, parte-se
do pressuposto de que crianças e adolescentes em situação de vulnerabili-
dade estão mais sujeitas a serem vítimas de tráco de pessoas, o que justi-
ca a preocupação.
Esclarece-se que foram excluídos da seleção aqueles acordos que
lidavam com questões mais burocráticas e relativas a solução de contro-
vérsias ou casos omissos, como procedimentos conjuntos para lidar com
veículos apreendidos nas fronteiras, extradições, ordens de prisão e traslado
de pessoas condenadas entre países membros. Entendemos que se tratam
de acordos para solucionar questões imediatas, mas não conformam uma
agenda para o setor no sentido como denimos o termo na Introdução
deste trabalho.
b) Recomendações do Mercosul no campo da Segurança e Justiça
213
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Quadro 4 – Sistematização das Recomendações no campo da Segurança
e Justiça no âmbito do Mercosul (1991 – 2017).
18
RECOMENDAÇÕES DO MERCOSUL – SEGURANÇA E JUSTIÇA (1991 – 2017)
Recomendações Assunto Ano
Recomendação para tratamento integral à violência de
Gênero
Violência contra a
Mulher
2010
Recomendação para a realização campanhas de TV visando
à prevenção, sensibilização e luta contra o tráco humano
para exploração sexual ou comercial e trabalho forçado de
crianças e adolescentes
Tráco Humano
2010
Recomendação sobre a necessidade de Defensoria pública
ocial e autônoma para garantir o acesso de pessoas em
situação de vulnerabilidade à Justiça
Acesso à Justiça 2012
Recomendação para tratamento integral à violência de
Gênero
Violência contra a
Mulher
2012
Recomendação para que se faça uso do Guia do Mercosul
para atender mulheres vítimas de tráco humano para ns
de exploração sexual
Violência contra a
Mulher
2012
Recomendação para lidar com mulheres em situação de
restrição de liberdade por causa de delitos relacionados com
drogas
Mulheres Detentas
2014
Recomendação sobre mulheres migrantes em contextos de
violência doméstica
Violência contra a
Mulher
2014
Recomendação para a prevenção e erradicação do trabalho
infantil e a proteção do trabalho juvenil doméstico no
Mercosul
Trabalho Infantil
2015
Recomendação para a prevenção e erradicação do trabalho
infantil para ns artísticos no Mercosul
Trabalho Infantil 2015
Recomendação para a articulação entre governos, empresas
e sindicatos para a prevenção do trabalho infantil no
Mercosul
Trabalho Infantil
2015
Recomendação sobre mortes violentas causadas por razões
de gênero – feminicídio
Violência contra a
Mulher
2015
Recomendação para a criação do Dia Sul-americano para o
Desarmamento Voluntário
Desarmamento 2015
Fonte: Elaboração da autora com base em informações
extraídas repositório digital do Mercosul
19
18
Informamos que este quadro pode estar incompleto porque, nas datas em que ocorreram as consultas, entre
agosto e outubro de 2017, o repositório digital do Mercosul apresentava problemas técnicos para fornecer dados
sobre as recomendações emitidas nos anos de 2008 e 2009. Estes dados foram solicitados também por e-mail
para a Secretaria do Mercosul, mas até o fechamento deste trabalho, não obtivemos resposta.
19
(https://goo.gl/kbHYuP), em “Recomendações” (https://goo.gl/8p1hoF). Acesso em: 29 out. 2017.
214
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
É interessante observar que, embora o repositório digital do Mer-
cosul disponibilize as recomendações desde o ano de 2002, é apenas a
partir de 2010 que questões mais claramente relacionadas à segurança apa-
recerão nesta categoria de normativas. E a quantidade de recomendações
no campo é respeitável – veja que foram 12 (ou 26% do total de recomen-
dações visualizáveis no repositório) apenas entre 2010 e 2015, sendo que o
site não atualizou ainda os anos de 2016 e 2017. Comparativamente, o vo-
lume de recomendações do Mercosul no campo da segurança é maior que
o volume de documentos nas categorias de acordo, tratado ou protocolo
(21 de 143 ou pouco mais de 14%). Curiosamente, não há recomendações
que possam ser classicadas propriamente no campo da justiça.
As preocupações que aparecem nos acordos estão presentes
também entre as recomendações – crime organizado transnacional, so-
bretudo o tráco humano e de armas. Porém, a preocupação com o
trabalho infantil e com a violência contra a mulher é bastante eviden-
ciada entre as recomendações, o que surpreende pelo fato do Mercosul
constituir um bloco econômico, uma organização que busca exatamen-
te facilitar as trocas comerciais entre os países membros, o que em tese
sugeriria que estas questões não estariam no cerne das preocupações do
bloco ou que ao menos não constituiriam prioridades. Contudo, são
temas bastante recorrentes.
A questão da ênfase em coibir o trabalho infantil talvez seja de
mais fácil compreensão do ponto de vista da lógica comercial, uma vez que
o trabalho infantil, seja mal remunerado ou forçado, coloca certos estabe-
lecimentos em situação de concorrência desleal com relação a aqueles que
trabalham dentro dos padrões legais e tributários vigentes, prejudicando o
comércio na região. O mesmo se pode dizer com relação ao tráco de pes-
soas para ns de exploração laboral. Contudo, dentre as 12 recomendações
selecionadas na área de segurança, metade diz respeito à proteção de mu-
lheres e não há questões comerciais envolvidas nestas recomendações – ao
menos não explicitamente.
Em um dos artigos da Recomendação para tratamento integral à
violência de Gênero de 2010
20
, lê-se:
20
Artigo 3 da Recomendação 001/2010. Disponível no repositório digital do Mercosul, <https://goo.gl/
CPkyUV>. Acesso em: 30 out. 2017.
215
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
“Promover a elaboração progressiva de um sistema regional de infor-
mação de casos de violência de gênero sob todas as suas formas, a partir
da construção de indicadores comparáveis. Os trabalhos poderão ini-
ciar-se com o indicador de ‘violência doméstica’.
Aliás, é notável a preocupação do Mercosul com a construção de
bases de dados compartilhadas e indicadores padronizados e comparáveis.
Esta preocupação está presente em vários dos acordos e recomendações da
área. O que é bastante compreensível dado que a consolidação e fortaleci-
mento do bloco depende, entre outras coisas, da capacidade de reunião e
sistematização de informações do bloco para a realização de diagnósticos
precisos que possibilitem a proposição de ações conjuntas entre os países-
-membros. A ausência de transparência no fornecimento de informações
por parte de quaisquer países membros acaba colocando em xeque a credi-
bilidade do bloco como um todo.
4 – segurança na américa latina: uma agenDa em execução?
As seções anteriores nos mostraram que essas três organizações
têm preocupações com questões de segurança em seu território de ação. A
sua dedicação ao assunto varia, bem como a natureza das questões de se-
gurança que consideram mais sensíveis. Nota-se que os documentos traba-
lhados têm muitos pontos em comum – a preocupação com as regiões de
fronteira, exaltando a necessidade de cooperação policial e intercâmbio de
informações nestas áreas, aparece tanto no Plano de Ação do CSSCJDOT
da UNASUL, como no Compromisso e no Diagnostico da OEA, além de
gurar também nos acordos e recomendações do Mercosul. O mesmo se
pode dizer com relação à necessidade de construção de dados padronizados
e indicadores comparáveis no campo da segurança para subsidiar ações
integradas entre os países membros – ponto que aparece recorrentemente
em todos os documentos analisados.
A necessidade de estimular a participação social nas políticas de
segurança aparece nos documentos da UNASUL e da OEA. Estas duas
últimas também têm uma preocupação maior com o trabalho das corpo-
216
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
rações policiais – prossionalização, modernização das práticas, controle
interno e externo das ações policiais, padronização e intercâmbio de da-
dos criminais. Os documentos do Mercosul não demonstram preocupa-
ções especícas com a melhora da qualidade do serviço policial, muito
embora entendam que a cooperação policial e jurídica é importante para
a segurança regional.
A preocupação com o tráco de pessoas e de armas aparece nos do-
cumentos da UNASUL e do Mercosul – e, sobretudo no caso deste último,
é marcante a preocupação com o tráco de mulheres e crianças. Da mesma
forma, a questão do acesso à justiça aparece de maneira bastante destacada
na UNASUL e de forma tímida (uma recomendação) no Mercosul, mas não
aparece nos documentos trabalhados da OEA. Vale ressaltar que o respeito
aos direitos humanos e à igualdade de gênero perpassa os documentos das
três organizações analisadas, tendo sido citados em todos eles.
Apesar dessas diferenças, o que ca claro é que a segurança é, sem
dúvida, parte integrante e relevante de uma ampla agenda regional condu-
zida por estas organizações. Órgãos foram criados para tratar de questões
relacionadas à segurança, dando visibilidade ao problema e monitorando
o desenvolvimento de ações para atendê-lo. O Mercosul foi a única das
organizações que não criou órgão especíco para lidar com questões de
segurança, mas percebe-se que o tema ganhou força sobretudo na última
década, tomando-se por base os acordos rmados e as recomendações emi-
tidas pela organização.
Os documentos analisados demonstram que os países latino-ame-
ricanos foram capazes de apontar suas fragilidades e prioridades no campo,
possibilitando o mapeamento e o diagnóstico destas deciências. Soluções
foram esboçadas coletivamente (seja no formato de plano de ação, com-
promissos ou acordos) e vêm sendo implementadas e monitoradas. Há
um grande acúmulo de informação sobre o tema nas três organizações
analisadas, ainda que elas possuam interesses e focos distintos. O material
documental trabalhado no âmbito destas três organizações revela que exis-
te uma agenda para a reforma do setor de segurança sendo administrada e
conduzida pelos estados-membros destas organizações.
217
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
5 – conclusões Parciais e investigações futuras
Toda a exposição feita neste trabalho buscou responder à ques-
tão: há uma agenda regional para a reforma do setor de segurança na
América Latina? Chegamos à conclusão de que sim, esta agenda existe e
está em construção há cerca 15 anos, sendo que há pelo menos três or-
ganizações que respondem por ela. Como dito anteriormente, as ACIDs
nos países desenvolvidos estão nanciando programas de RSS no con-
tinente há mais de duas décadas. A pergunta que nos fazemos agora é:
estariam elas cientes das agendas locais no setor? Será que essas agências
consideram de alguma forma as prioridades expressas pelos países recep-
tores de ajuda externa para formular seus programas e em que medida?
Seriam as organizações analisadas no presente trabalho consultadas neste
processo? Senão elas, quais então?
Mapear organizações regionais e suas demandas no campo foi im-
portante para demonstrar que estas informações existem e estão disponí-
veis, não havendo razão para que as ACIDs ignorem este acúmulo impor-
tante de informações e de esforço coletivo na formulação de programas de
RSS para a região. O próximo passo desta investigação é mapear e analisar
os programas de RSS nanciados por ACIDs na América Latina e vericar
o perl e as prioridades destes programas, de modo a efetuar uma compa-
ração mais detalhada com as agendas locais aqui descritas sobre o tema.
Com as agendas destas organizações em mãos, juntamente com
o levantamento dos programas de RSS nanciados pelas ACIDs, teremos
condições de vericar se estas agências atendem à agenda regional no cam-
po da segurança ou se estão de fato desconectadas da realidade e das de-
mandas locais como supõe a literatura da área, ofertando programas gené-
ricos e pouco adaptáveis a ambientes diversos daqueles que caracterizam os
países de origem dos programas nanciados.
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Desafios dos Processos de
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O M: H, A N
I, D D 
A E
Augusto Zanetti
1 – introDução
No período colonial, durante o processo de independência e no
hiato temporal denominado nacional-imperialismo (1840–1884), se es-
tendendo até o entre guerras (1919–1939), a América do Sul foi palco
dos mais violentos e sangrentos conitos do continente americano. Tal
constatação representa uma continuidade na lógica do enfrentamento e do
contexto belicoso. Desde a chegada dos espanhóis e portugueses à porção
sul da América, a bacia do rio da Prata foi o cenário de disputas luso-espa-
nholas (o que hoje é o Uruguai já foi sucessivamente português, espanhol,
tornando-se brasileiro, com a vinda da família real ao Brasil, em 1808, até
ganhar sua independência em 1828). É nessa unidade territorial, formada
por Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, com acréscimo da Venezuela,
224
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
em 2012, que estão situados os principais sócios do Mercado Comum do
Cone Sul, o denominado MERCOSUL.
No século XIX, o processo de emancipação política da América
do Sul aprofundou as fricções existentes entre os países da região. Nesse
período ocorreram importantes capítulos da história do Brasil, da Argenti-
na, Paraguai e Uruguai. Os exemplos mais relevantes são a Guerra da Cis-
platina, a Independência da Banda Oriental do Uruguai (1828), a Grande
Guerra Uruguaia (1851–1852), a Revolução Farroupilha (1835–1845), as
disputas entre unitários e federalistas na Argentina (1850–1880), além da
Guerra no Uruguai (1864) e por m o mais sangrento conito do Cone
Sul, a Guerra do Paraguai (1865–1870). Todos esses acontecimentos ocor-
reram no contexto das alianças (Brasil, Colorados e uma parte da Argenti-
na, contra Blancos e a outra parte da Argentina), intervenções e conitos
envolvendo as Províncias Unidas do rio da Prata, a Argentina atual, Uru-
guai, Brasil, Uruguai e Argentina contra o Paraguai, que forjaram o con-
texto histórico no interior do qual ocorreu à formação dos Estados platinos
e a formação do corpo da pátria brasileira.
Durante o governo de Campos Sales, no decorrer da longa chan-
celaria do Barão do Rio Branco (1902–1912) e, mais tarde em 1935,
na administração Getúlio Vargas foram encaminhadas negociações no
sentido de instituir a integração de três países economicamente mais im-
portantes na América do Sul. Essa tentativa assumiu a denominação de
Pacto ou Bloco do ABC e se pautou pela iniciativa de unir a Argentina,
o Brasil e o Chile, nos quadros de uma hegemonia compartilhada com
um objetivo fundamental: criar as condições ideais para que os países do
Cone Sul pudessem resolver de comum acordo suas disputas sem intro-
missões externas. A iniciativa fracassou mais pela desconança argentina
em relação ao Chile e ao Brasil e, por este país pretender, no auge do
sucesso da atividade agropecuária exportadora, assumir uma posição de
liderança na parte sul do continente.
Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial pela primeira vez
Brasil e Argentina tentaram criar uma União Aduaneira. Todavia, esse pro-
jeto não se concretizou devido às diferenças diplomáticas que aigiam os
dois países, no que respeita o projeto de alianças com o Eixo (Alemanha,
Itália e Japão), uma vez que o governo brasileiro, embora se identicas-
225
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
se com o corporativismo italiano e retomada do crescimento econômico
perpetrado pelo governo nazista, queria manter sua independência no que
respeita a cultura nacional, não permitindo a instalação de estruturas parti-
dárias fascistas ou nazistas. Ademais, havia também o conito envolvendo
o sistema interamericano de segurança coletiva, que os EUA desejavam
estender a todos os países do continente, enquanto a Argentina, manten-
do sua tradicional neutralidade, preferia assegurar sua independência. A
manutenção da neutralidade Argentina até o nal da 2ª guerra mundial,
enquanto o Brasil, após barganhar muito, resolve aliar-se aos EUA, foi um
dos fatores que geraram o fracasso da iniciativa de união comercial.
O projeto de integração regional tornou-se relevante, assumin-
do uma importância central no pensamento sul-americano logo depois
da 2ª Guerra Mundial, em função das repercussões desse conito no que
tange as diculdades de importação e, por outro lado pelos superávits
comerciais da balança de pagamentos que algumas economias latino-
-americanas tinham acumulado nesse período. Este projeto no âmbito
da política industrial, que visava, sobretudo, a superação do atraso, so-
freu forte inuência da Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe (CEPAL); que desde sua criação em 1948 projetava promover
a integração regional mediante um modelo de preferências comerciais
baseadas no planejamento, visando impulsionar os uxos de intercâm-
bio intrarregional. O fortalecimento dos mercados internos dos países
da região, no entender dos teóricos cepalinos, eliminaria a dependência
tecnológica, bem como a ausência de um parque industrial em condições
de produzir bens industrializados duráveis e de capital.
A integração era vista como o melhor caminho para o desenvolvi-
mento regional, porquanto por meio dela era possível incrementar o mer-
cado interno e impedir a deterioração da base de trocas: a relação desigual
entre quem exportava matérias primas e importava manufaturados que
agregavam valor e tecnologia. Em outro sentido, um dos principais fatores,
apontados pela CEPAL, responsável pela baixa eciência dos investimen-
tos em grande número de países subdesenvolvidos, era reconhecidamente
a insuciência das dimensões dos mercados locais, uma vez que estes não
conseguiam sustentar um desenvolvimento regional. Avaliava-se que à me-
dida que a ampliação desses mercados fosse alcançada, ter-se-ia uma maior
226
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
diversicação industrial, uma mudança produtiva e ao mesmo tempo ga-
nharia intensidade a concorrência externa e investimentos expressivos em
tecnologia, atraindo consequentemente novos investimentos.
Foi a partir dessa percepção que em 1956 começou-se a falar em
uma unidade econômica latino-americana. E no interior da CEPAL foi
criado um comitê para identicar os meios para a intensicação do co-
mércio visando esse objetivo. Pensou-se que um mercado comum impul-
sionaria a industrialização e seria a base sólida para o desenvolvimento
regional independente e em 18 de fevereiro de 1960, Argentina, Brasil,
Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai assinaram o Tratado de Mon-
tevidéu que criou a Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(ALALC), com o intuito de estabelecer uma zona de livre comércio que
fortaleceria os mercados internos mediante a industrialização. Nos anos
seguintes, deu-se a adesão da Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela a
esse mesmo processo de integração.
Com o fracasso da ALALC, foi criada, na década de 1980, a As-
sociação Latino-Americana de Integração (ALADI) e, em função dela, o
Mercado do Cone Sul (MERCOSUL), que muito embora esteja atravessa-
do de ponta a ponta por inúmeras limitações, constitui-se, até nossos dias,
no processo de integração mais bem sucedido da América do Sul.
2 as organizações sinDicais e o mercosul: a nova
Política externa e o Déficit Democrático
As centrais sindicais no quadro institucional do Cone Sul, ga-
nham espaços de atuação com a Declaração Sociolaboral que conui na
formação da Comissão Sócio Laboral do MERCOSUL (CSLM) aprova-
da em 1999 pelo Grupo do Mercado Comum (GMC). Ela é um órgão
auxiliar do GMC com uma composição tripartite (um representante do
governo, um do setor dos empregados e um dos empregadores), que exa-
mina questões laborais do MERCOSUL. A CSLM recebe o auxílio de
órgãos de composição tripartite como as Comissões Nacionais (CN),
criadas pela Res. 85/00.
227
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
O documento que a constituiu satisfaz muitas demandas das
organizações sindicais, mas, também, dos movimentos sociais da região,
como a não discriminação, a promoção da igualdade de gênero, no que
respeita não apenas ao salário, a ajuda aos trabalhadores imigrantes e fron-
teiriços e a busca da eliminação do trabalho forçado e infantil, entre outras
questões relacionadas ao mundo do trabalho. Ela advoga que tais direitos
não possuem apenas uma dimensão regional, mas mundial e não deveriam
estar atrelados somente às leis de seus respectivos países, mas serem respei-
tados em todos os Estados membros do MERCOSUL.
Assim sendo, uma legislação trabalhista única passou a ser apoia-
da pelas centrais sindicais. No entender delas, ela poderia promover uma
maior integração de aspectos vinculados à esfera do trabalho e, por outro,
facilitaria a situação da imigração inter bloco. O problema central susci-
tado por tal iniciativa é a diculdade de sua execução derivadas das restri-
ções que acompanham a noção de soberania dos Estados, uma vez que os
governos dos países membros julgam que institucionalizar, harmonizar ou
ainda melhorar uma legislação trabalhista comum, no âmbito do bloco,
poderia implodir a própria denição de Estado soberano aceita e apoiada
por cada um deles.
A CSLM como articuladora das centrais sindicais dos países do
Cone Sul conquistou, apesar disso, um espaço de participação importante
no MERCOSUL, levando a discussão dos temas de caráter trabalhista às
instâncias institucionais do bloco. A sua atuação nos últimos tempos foi
facilitada, uma vez que a maioria das centrais sindicais que integram o
CCSCS terem relações de proximidade com seus respectivos governos. No
entanto, a bibliograa sobre esta temática reconhece que tal desempenho
sindical não resultou em avanços concretos no MERCOSUL.
Tullo Vigevani (1998, p. 23) assevera que
[...] da forma como se encontram organizados hoje, os sindicatos não
tem condições de interferir, com capacidade real de interlocução e le-
gitimidade de representação, em um processo tão complexo como a
abertura da economia, com a liberalização e a globalização.
No que respeita à atuação do empresariado e dos trabalhadores
nas instâncias consultivas do MERCOSUL tais canais de participação fo-
228
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
ram criados mediante o Protocolo de Ouro Preto, rmado em 17/12/1994
e homologado pelo Grupo do Mercado Comum (GMC), com base na Re-
solução nº. 68/96, o Fórum Consultivo Econômico-Social (FCES). Este
órgão de representação dos setores econômicos e sociais – as confederações,
federações e as centrais dos trabalhadores do empresariado e organizações
não governamentais – dos Estados-Parte do bloco está incluído na estrutu-
ra institucional do MERCOSUL.
O FCES é composto pelas respectivas Seções Nacionais de cada
Estado Parte do MERCOSUL e sua estrutura institucional abrange o ple-
nário do Fórum, que reúne nove delegados titulares e seus respectivos su-
plentes. Cada Seção Nacional tem autonomia para elaborar sua própria
estrutura no plenário doFórum, devendo observar a paridade na indicação
dos delegados das Organizações dos trabalhadores e do empresariado.
A coordenação administrativa do Plenário é exercida por uma
Seção Nacional pelo período de seis meses, em sistema de rodízio. O
plenário doFórumse reúne, ordinariamente, no mínimo uma vez por se-
mestre e, extraordinariamente, quando necessário. Participam do FCES
a Comissão Temática II emprego, migrações, qualicação e formação
prossional; o Subgrupo de Trabalho do MERCOSUL SGT, relações
trabalhistas, emprego e seguridade social, grupo de alto nível para a es-
tratégia de estímulo a oferta de trabalho e, por m, a Comissão Temática
de Relações Trabalhistas.
As organizações empresariais e sindicais somente tiveram acesso
aos órgãos de trabalho que são os subgrupos de trabalho (SGTs). É nes-
tes subgrupos que se efetua toda tarefa técnica relacionada ao processo
de negociação do bloco. Cada um dos SGTs avalia: 1) comunicações; 2)
aspectos institucionais; 3) regulamentos técnicos e avaliação de conformi-
dade; 4) assuntos nanceiros; 5) transportes; 6) meio ambiente; 7) política
industrial e tecnológica; 8) política agrária; 9) política energética e minera-
ção; 10) assuntos trabalhistas, emprego e seguridade social; 11) saúde; 12)
investimentos; 13) comércio eletrônico; 14) acompanhamento da conjun-
tura econômica e comercial. Eles se reúnem trimestralmente com mudan-
ças rotativas dos locais das reuniões combinadas entre os países.
229
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Os SGTs assumiram o encargo de analisar e comparar os dife-
rentes sistemas nacionais e elaborar propostas para harmonizar ou fazer
convergir às assimetrias mais relevantes. Eles têm como função cuidar de
questões especícas de cada setor e fazer recomendações ao GMC. A ra-
ticação do GMC e do CMC não seria necessária, porém, é provável em
casos em que estas propostas adquiram um caráter obrigatório. Nesses sub-
grupos, o setor privado era
[...] entendido como aquele que tem interesse direto em qualquer uma
das etapas do processo de produção, distribuição e consumo, e sua par-
ticipação se dava durante a etapa preparatória da tomada de decisões
do subgrupo. (MARIANO, 2000, p. 85).
Os subgrupos só poderiam solicitar a participação privada na for-
mulação das preparações das recomendações e não do processo de tomada
de decisões, pois a execução desta tarefa é apanágio exclusivo dos represen-
tantes de cada Estado-Parte, junto ao GMC ou ao CMC. Assim sendo, o
setor privado pode participar das negociações nos subgrupos, mas estes não
possuem poder decisório.
Não foi criado, inicialmente, um subgrupo orientado para
questões sociais, cando latente que este não teria representação alguma
no processo de integração, mesmo sofrendo diretamente suas consequ-
ências. Isto acabou provocando por parte dos movimentos sociais: “[...]
uma atitude reativa com relação à integração, ou seja, a mobilização se
deu em virtude do possível efeito negativo que a integração poderia sur-
tir.” (MARIANO, 2000).
Logo após a constituição do MERCOSUL, a incidência de as-
pectos sociais remetidos ao mundo do trabalho ganhou destaque, no âm-
bito do processo de integração graças à mobilização das centrais sindicais
e do Ministério do Trabalho dos países membros resultando na formação
do Subgrupo de Trabalho Relações Trabalhistas, Emprego e Seguridade
Social (SGT 10). Este Subgrupo trata da delicada questão laboral do
MERCOSUL, como a livre circulação de pessoas, um aspecto central na
constituição de uma Área de Livre Comércio relegado a um segundo pla-
no em decorrência da argumentação da falta de maturidade do processo
de integração em curso. O MERCOSUL não estaria sucientemente es-
230
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
truturado e, portanto, fortalecido para incorporar o deslocamento de tra-
balhadores e a concorrência salarial que esta medida liberalizante geraria,
fundamentalmente, em função das grandes diferenças de disponibilidade
e preço da mão de obra.
O SGT 10 conta com a participação de representantes da so-
ciedade, como as centrais sindicais, na emissão de suas recomendações ao
GMC. É administrado pelo GMC e tem, como os outros subgrupos, ca-
ráter meramente consultivo. Porém, de certo modo possibilitou que al-
guns temas de ordem social pudessem ser discutidos no contexto ocial do
MERCOSUL signicando, assim, um grande avanço nessa agenda.
Outro órgão que contempla a participação da sociedade civil e
teoricamente das demandas sociais é a Comissão Parlamentar Conjunta
(CPC). Criada ainda nas negociações iniciais bilaterais entre Argentina
e Brasil, a CPC tem caráter consultivo e é formada pelos representantes
dos legislativos dos Estados-Parte. Sua pouca relevância deve-se ao baixo
interesse que seus membros manifestam em discutir temas relacionados
ao bloco, preferindo concentrar suas atenções em assuntos internos de
cada país membro.
Em função dessa situação descartou-se a possibilidade de uma
abordagem mais profunda e mais ampla em âmbito dos mecanismos de
integração mesmo porque suas recomendações encontram muitas dicul-
dades para serem encaminhadas às instâncias políticas superiores do MER-
COSUL. Com isso, a participação social no processo de integração acaba
restringida, uma vez que os membros da CPC sendo referendados pelos
eleitores de cada Estado membro representariam apenas os interesses lo-
cais. Eles não fariam a ligação entre a sociedade nacional e o processo de
integração, limitando suas funções apenas as escassas, estéreis e superciais
consultas remetidas a dimensão endógena de cada membro do bloco (MA-
RIANO, 2000). Assim, a CPC não consegue deslocar o debate a respeito
dos assuntos da integração daquele social nacional, pois estes assumiriam
para ela apenas um caráter secundário em virtude de sua pouca familiari-
dade com os mecanismos institucionais do MERCOSUL e do tradicional
desinteresse dos parlamentares por assuntos externos.
231
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
O Tratado de Assunção embora previsse a criação de apenas
dez subgrupos de trabalho (SGT), por iniciativa das centrais sindicais
brasileiras se constituiu um décimo primeiro SGT, em março de 1992,
que trataria de temas inerentes às relações trabalhistas, emprego e previ-
dência social. Ainda que as organizações sindicais dos trabalhadores e do
empresariado também pudessem participar de outros subgrupos, o ope-
rariado só teve direito, durante a década de 1990, de atuar ativamente
em consultas apresentando propostas no subgrupo onze, tendo lhe sido
franqueado também ter voz ativa no subgrupo sete relacionado a política
industrial e tecnológica.
O interesse do empresariado pelo processo de integração foi
despertado quando surgiu a possibilidade de desenhar ativamente os
acordos setoriais. Estes já previstos por aqueles argentinos brasileiros de
integração de 1990 (Ata de Buenos Aires) consentiam às organizações
empresariais a cooperação e o estreitamento de laços, bem como lhes
permitiam denir uma data especica para suspensão das barreiras, assim
como das listas de exceções.
Em outras palavras, percebeu-se que os acordos setoriais pode-
riam acelerar a integração regional. O regulamento denido em 1991 pre-
via que as propostas deviam surgir das organizações setoriais dos empresá-
rios. Nesse sentido, temas do SGT sete (política industrial e tecnológica)
deviam ser examinados e as resoluções que fossem aprovadas, poderiam ser
encaminhadas ao CMC e ao GMC. No caso em que as propostas empre-
sariais contivessem normas concernentes às quotas de importação, tarifas
aduaneiras, normas técnicas ou cláusulas de origem, o consentimento do
CMC era necessário, porquanto essa regulamentação envolveria assuntos
de soberania nacional (KLEIN, 2000). No âmbito do movimento sindical,
o FCES permitiu que as entidades classicistas dos trabalhadores examinas-
sem aspectos centrais da atividade econômico-social remetidos a todos os
setores da atividade produtiva dos países que integram o MERCOSUL.
Os grupos e subgrupos de trabalhos assumiram a tarefa de avaliar
a conguração especíca dos acordos trabalhistas, no que respeita a preca-
rização, exibilização, contratos por tempo determinado e indeterminado,
bem como o processo de terceirização das atividades produtivas. Por outro
lado, coube a estes grupos se debruçar sobre os temas da harmonização da
232
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
legislação trabalhista, segurança, previsão de acidentes, saúde do trabalha-
dor e a exclusão nos locais de trabalho de substâncias comprovadamente
tóxicas, em todos os Estados-Parte.
Mas o debate em torno do espaço da produção não parou por
aí, uma vez que eles passaram a dedicar sua atenção a temas como a segu-
ridade social e as aposentadorias. Foram abordadas questões relacionadas
ao gênero, migrações, programas de incentivo ao emprego, qualicação e
requalicação do trabalhador, escolas prossionalizantes, agências de re-
colocação do agente produtivo em funções condizentes a sua formação e
habilidades. Em periódicos, boletins e publicações setoriais, foi defendida
as urgentes reformas do Banco Mundial (BIRD) e do Fundo Monetário
Internacional (FMI), associadas ao apoio do aumento da participação dos
trabalhadores em suas instâncias decisórias, por meio das entidades classis-
tas sediadas nos países participantes do processo integracionista do Cone
Sul, exigindo uma real responsabilidade social por parte do empresariado
no que tange os locais de trabalho, aumento salariais, construção de cre-
ches e prevenção aos acidentes de trabalho.
1
A propósito do FCES, Maria Silvia Portela de Castro (2010, p.
137) reconhece que:
No MERCOSUL nós temos o Fórum Consultivo Econômico e Social,
mesmo com debilidades e limitações é um fórum instituído que po-
deria desempenhar um papel maior do ponto de vista da repercussão
dos interesses da sociedade, de forma organizada, o fórum tem acesso
a uma série de negociações etc. No entanto, este papel vem se diluindo
cada vez mais, o fórum hoje é um instrumento bastante esvaziado. Por
quê? Em primeiro lugar porque acredito que há pouco interesse das
entidades em utilizá-lo como um instrumento de pressão e negociação
com os governos. Assembléias de massas e milhões são importantes
quando se está fazendo pressão para conseguir determinado objetivo,
mas não para discutir e incidir nas negociações das políticas do dia
a dia. Os presidentes tratam de temas macro políticos e raticam o
que foi negociado pelos funcionários dos diferentes ministérios, nos
inúmeros espaços temáticos do MERCOSUL. Se não houver uma ne-
gociação nas áreas especícas, não se consegue aprovar nada.
 Centro de Memória e Documentação da UNESP (CEDEM-UNESP). Acervo Oboré.
233
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Vale lembrar que as centrais sindicais dos países membros do
MERCOSUL nunca se opuseram à formação do bloco, situação muito
diferente do ocorrido em outros processos de integração. Na medida em
que a constituição do MERCOSUL na década de 1990 foi contemporânea
à abertura comercial, as organizações sindicais do Cone Sul mantiveram
em princípio algumas objeções no que respeita o processo de integração,
que parecia estar identicado com o modelo proposto pelo Consenso de
Washington, incentivador da abertura comercial, desregulamentação, pri-
vatizações e a supressão dos direitos dos trabalhadores.
O esquema tripartite preconizado pela Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT) jogou a favor da integração na medida em que
outorgava aos sindicatos locais a possibilidade de ter voz ativa em um novo
fórum de expressão institucional. É possível, por conseguinte, que a in-
uência da OIT tenha sido decisiva para delinear conteúdos especícos
inerentes às estratégias sindicais nos fóruns; em particular, a promoção de
uma carta social de direitos que incorporou os padrões laboriais mínimos
relacionados à sindicalização, a negociação coletiva, ao trabalho infantil, a
promoção da igualdade de gênero, condições de trabalho e outros (VIGE-
VANI; VEIGA, 1995).
A avaliação dos sindicatos locais em torno da integração depen-
deu, todavia, não somente de uma visão estratégica sobre seus benefícios,
mas também das experiências que emergiram nos quadros das demandas
trabalhistas registradas em cada setor da atividade produtiva. Uma e outra
perspectiva puderam ser discordantes, já que se por um lado foi impulsio-
nada a unidade de ação através das fronteiras, manifestada antes e depois
do Fórum Social de Porto Alegre (2001), ao mesmo tempo registraram-se
movimentos contrários à integração em defesa dos postos de trabalho ame-
açados por esta em cada um dos países membros do bloco.
Em suma, o que prevaleceu foi a diversidade de experiências sin-
dicais. A esta situação cabe acrescentar a dinâmica crescente das organiza-
ções da sociedade civil não sindical tanto na Argentina como nos outros
países do Cone Sul, que por um lado amplia as demandas de participação
de novos atores sociais e por outro põe em xeque as posturas sindicais que
tradicionalmente monopolizam a representação social nos foros institucio-
nais. De qualquer maneira, os sindicatos que antes do advento do MER-
234
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
COSUL estavam adaptados à atuação restrita, em larga medida, restrita
ao contexto nacional, tiveram que promover uma intensa articulação de
caráter supranacional.
É em tal contexto que se dá a criação da Coordenaria das Cen-
trais Sindicais do Cone Sul. Criada em 1986 na Argentina, antes mesmo,
portanto, que fosse rmado o Tratado de Assunção, em 1991, a CCSCS
aprovou, em 1990, como uma das suas principais prioridades a participa-
ção das centrais sindicais no projeto de integração econômica e social do
Cone Sul; destacando nesse processo a defesa da democracia e dos direi-
tos humanos
2
. Além da CCSCS, o Fórum Consultivo Econômico-Social
(FCES) constitui-se, primordialmente, em um canal de representação
das demandas sociais dentro do MERCOSUL. Seu regulamento interno
dene a representação dos setores empresariais, sindicais e organizações
não governamentais.
Dentre os temas tratados pelas recomendações do FCES ganha
destaque a integração fronteiriça e a negociação com outros blocos bem
como se faz premente mencionar aqui a abordagem voltada para temas do
emprego, defesa do consumidor e a proibição do trabalho infantil. Apesar
dessa mudança de perspectiva, a baixa adesão às recomendações do Fórum
por parte do CMC e o GMC, pode-se constatar que as questões de cunho
social têm pouca relevância na dinâmica integracionista representada pelo
MERCOSUL. Persiste, portanto, a avaliação que a bibliograa reproduz
com certa insistência de que o bloco abrigue um décit democrático. Se
atentarmos para o fato de que o FCES é uma instituição que não dispõe de
recursos nanceiros próprios, pois são as instituições sociais que custeiam
todas as atividades realizadas, pode-se concluir que promover um percurso
democrático, no qual o processo de tomada de decisões resulte na partici-
pação de todos, dando espaço e voz aos setores diretamente interessados,
continua sendo para o MERCOSUL um grande desao.
Castro et. al. (2000) critica a forma de nanciamento no Fórum,
uma vez que, os setores sociais, representados pelos sindicatos, não dis-
põem do mesmo montante de recursos das organizações empresariais. No
entanto, apesar dessa desigualdade, é possível constatar que as entidades
 Disponível em: <http//www.ccscs.org//la coordenadora/historia>. Acesso em: 19 ago. 2014.
235
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
sindicais conguram a representação mais coesa e participativa do bloco.
Ademais, o FCES assegurou uma aproximação maior entre os setores do
campo trabalhista dos países que compõem o MERCOSUL, mormente
porque permitiu que as organizações sindicais passassem a se conhecer,
tomando ciência de suas diferenças ideológicas, assim como da convergên-
cia de seus objetivos. Logo, uma das conclusões positivas acerca do Fórum
é a de que este, ao estimular o trabalho coletivo em conjunto promove o
fortalecimento da atuação sindical.
O FCES deveria articular, com vistas à dilatação contínua do
aprofundamento democrático do bloco, ações conjuntas com outras or-
ganizações da sociedade civil. O estímulo visando a um maior avanço da
integração regional sob o ponto de vista social exigiria ampliar participação
democrática no Fórum e, consequentemente, no próprio MERCOSUL.
O movimento sindical critica o FCES por seu papel mera-
mente consultivo, o que pode manter ainda mais a rejeição por parte
dos governos e empresários que outros segmentos sociais participem da
discussão, impedindo, assim, o alargamento do espaço de participação
de entidades da sociedade civil que desejam ter voz ativa nos processos
de tomada de decisões.
Por outro lado, apesar do FCES ostentar um caráter meramente
consultivo, ele representa uma conquista sob o ponto de vista dos movi-
mentos sociais dos trabalhadores. Um exemplo é o Acordo Multilateral
de Seguridade Social, que entrou em vigor nos quatro países em 2005.
Nascido a partir da convocação da Comissão do SGT10, que desenvol-
via análises dos sistemas previdenciários dos quatro países membros, ele
promoveu a elaboração de melhores modelos em matéria de seguridade
social conjunta. Hoje, encontra-se implantado entre os Estados mem-
bros e propiciará avanços substantivos nas condições de vida dos traba-
lhadores e suas respectivas famílias que queiram se deslocar por motivos
de melhores oportunidades de trabalho dentro do bloco. Mesmo que
ainda siga um modelo intergovernamental que não estabeleça regras su-
pranacionais, impondo preceitos obrigatórios em matéria de seguridade
social para todos os membros do bloco, cabe a ele regular as normas entre
os sistemas previdenciários dos países membros do MERCOSUL, garan-
tindo, assim, que os direitos e deveres dos trabalhadores e contribuintes
236
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
sejam reconhecidos de um país para outro, quando houverem desloca-
mentos humanos dentro do bloco, resultantes de mudança de emprego
ou em matéria de aposentadoria.
3 a PetroBrás no Processo De integração Do setor
energético sul-americano
Nos últimos anos, ocorreu um crescimento signicativo das re-
servas energéticas na América do Sul, principalmente no Brasil e Bolívia,
resultado do aumento do investimento em exploração, particularmente
de petróleo e gás natural, que vem adquirindo maior importância entre os
países sul-americanos. No caso do Brasil, isto se deu por conta do redire-
cionamento na estratégia de exploração, desenvolvimento da tecnologia de
prospecção de jazidas de petróleo nos oceanos, as grandes profundidades
como o pré-sal e a produção da Petrobrás, que passou a valorizar as desco-
bertas de novas fontes energéticas como a bioenergia.
O incremento de reservas está associado, principalmente, à ex-
pansão do consumo industrial, à implantação de plantas industriais de gás
natural liquefeito (GNL) (gás natural resfriado a temperaturas inferiores a
160ºC para ns de transferência e de estocagem como líquido), a projetos
de usinas térmicas a gás natural; e à expansão geométrica de frota de veí-
culos movidos a gás natural veicular (GNV) (mistura combustível gasoso
tipicamente proveniente do gás natural e biogás, destinada ao uso veicular
e cujo componente principal é o metano), que vem sendo incentivado na
Argentina e no Brasil.
Com a inclusão em novos segmentos do setor energético, a Petro-
brás pôde multiplicar seu raio de atuação, de certa maneira foi fundamen-
tal para que a empresa ingressasse no mercado sul-americano nas vestes
de um organismo de integração entre pólos energéticos, uma vez que a
questão da distribuição dos recursos, principalmente do gás natural e seus
derivados, fundamenta toda a base de discussões para o projeto do anel
energético da região.
A necessidade da contínua procura de fontes de energias alterna-
tivas mais baratas que o petróleo gerou o desenvolvimento de tecnologias
237
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
que reduziram os custos da exploração, distribuição e consumo de gás no
mundo enquanto fonte primária de energia, aumentando exponencial-
mente sua utilização ao longo da última década. Na América do Sul, até
recentemente, a utilização desta fonte de energia estava abaixo da média
mundial, mas a região vem se destacando como um dos mercados con-
sumidores mais dinâmicos e de maior crescimento do mundo (OECD/
IEA, 2013). Adicionalmente aos ativos que foram adquiridos na Argen-
tina, a Petrobras comprou direitos de exploração e produção petrolífera
na Bolívia, Venezuela e no Peru, além da associação com a empresa estatal
uruguaia na distribuição de gás natural.
As ações da Petrobrás na Bolívia iniciadas em 1996 sempre esti-
veram marcadas pelos altos investimentos na exploração de recursos natu-
rais do país, particularmente na criação do gasoduto Brasil-Bolívia entre
1997–2000. Com isso, estabeleceu-se um uxo de integração da produção
boliviana para o mercado consumidor do Brasil. A Petrobrás Bolívia logo
se tornou a principal empresa boliviana, gerenciando toda a cadeia produ-
tiva e comercial de gás natural: a produção, a compra e a venda. Porém, a
Bolívia passou por sérias turbulências políticas associadas à exploração de
suas reservas de hidrocarbonetos em 2006. A mudança no quadro político
do país com a eleição de Evo Morales para presidência, fortalecendo a pro-
posta de integração soberana entre os povos e a consequente nacionaliza-
ção do setor petrolífero, decretada em 1º de maio de 2006, colocaram em
debate o modelo de exploração das reservas de petróleo e gás natural bo-
liviano, adotado nos quadros das reformas neoliberais da década de 1990.
Por sua vez a participação da Petrobrás na Venezuela ainda está
restrita a poucos campos de exploração e produção no norte do país, em
decorrência da importância que a estatal petrolífera venezuelana PDVSA
possui para o governo venezuelano e a política fechada que este desenvolve
no âmbito da gestão dos recursos naturais. Estima-se que as reservas de gás
venezuelano são sucientes para abastecer a América do Sul e o Caribe por
mais de um século (REAL, 2006).
Por outro lado, desconsiderando as especicidades dos países,
pode-se armar que a América do Sul produz, atualmente, mais gás natu-
ral do que precisaria para abastecer a região. Não obstante esta situação,
aparentemente confortável, há um grande distanciamento regional entre
238
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
os maiores produtores potenciais e os maiores consumidores (SANTOS,
2002). A grande dimensão de negócios e gestão dos recursos que a Pe-
trobrás adquiriu no Uruguai, Equador, Colômbia e Paraguai, este último
visto como estratégico por estar localizado em uma posição central do sub-
continente, entre Brasil, Argentina e Bolívia, justica a importância da
companhia no setor energético sul-americano.
Na medida em que atua em todos os mercados dos países da re-
gião, a Petrobrás procura ampliar a produção e o comércio entre as nações
do subcontinente, aumentando a rentabilidade dos negócios, habilitando-
-se, assim, a participar, enquanto empresa energética estratégica e órgão
do denominado Estado logístico, das discussões em torno da associação
energética, que consolidam processos de integração como o MERCOSUL
(CERVO, 2007). As iniciativas de se implantar um anel energético na
América do Sul se caracterizam por ser uma resposta imediata e regio-
nal para o problema energético e adquirem relevância especial devido aos
constantes questionamentos sobre a competência do MERCOSUL.
As discussões envolvendo a integração do subcontinente ganham
força num momento em que os governos nacionais atravessam crises no se-
tor energético. E, em âmbito nacional, o empreendimento se torna neces-
sário já que implica numa importante retomada de investimentos em um
setor crucial para o desenvolvimento econômico, uma vez que é observada,
nos países membros do MERCOSUL, certa ausência de investimentos na
infraestrutura e o desenvolvimento de companhias de engenharia civil, ou
melhor, empreiteiras transnacionais. O projeto tem relevância, além disso,
assegura em cenários de elevação dos preços do petróleo (muito embora ul-
timamente, desde 2014, ocorra uma queda do preço do barril no mercado
internacional em função da autossuciência norte americana, decorrente
da produção petrolífera de xisto, o aumento da oferta e o aumento da
introdução de fontes de energia renovável), apesar do projeto do pré-sal
brasileiro, a diversicação das matrizes energéticas nos países da América
do Sul, especialmente Brasil, Uruguai e Chile e a internacionalização de
empreiteiras que iniciando sua atuação na América do Sul operam também
no continente africano.
Do mesmo modo, a importância da integração sul-americana se
torna uma realidade plausível, na medida em que fomenta a ampliação
239
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
do potencial de crescimento econômico dessas economias, diminuindo
riscos e vulnerabilidades: “[...] o aprofundamento da integração regional
de países latino-americanos emerge como contrapeso possível à univoci-
dade de diretrizes, normalmente constatada na política internacional.
(SILVA, 2004, p. 43).
Desde 2005, inúmeros debates sobre a elaboração de um projeto
para a criação de um gasoduto do sul foram incentivados na Argentina,
Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. A proposta da criação de
um anel energético torna-se um projeto ambicioso para todo esse entorno,
uma vez que demanda um investimento de mais de US$ 2,5 bilhões e um
acordo bem costurado sobre as normas a serem seguidas ao percorrer o
caminho sinuoso da integração regional, o problema energético atual não
ocorre por falta de reservas, mas é sim resultante de um décit de regu-
lação e da infraestrutura. Os contratos de fornecimento são geralmente
concluídos antes do início dos investimentos e, por conseguinte, os aspec-
tos de caráter regulatório, legais, scais e institucionais devem ser muito
bem formulados. Destarte, decorre dessa situação um forte incentivo a
obras de integração física amparada em pesados investimentos no setor da
infraestrutura, principalmente no setor de transportes, telecomunicações
e energia, que assume uma importância vital para o desenvolvimento do
processo de integração na região.
Deve-se atentar, por outro lado, para a centralidade das trans-
nacionais, incluindo-se aí as brasileiras do setor da construção civil, no
desenvolvimento desse processo de integração energética, uma vez que a
elaboração desses projetos e a implementação dos acordos, além de ser
nanciada pelo Banco Multilateral de Desenvolvimento do Sul, a Integra-
ção da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), recebe a chancela
das empresas regionais latino-americanas, particularmente das indústrias
estatais do setor petroquímico da Venezuela e do Brasil, respectivamente a
PDVSA e a Petrobras, juntamente com os bancos nacionais de desenvolvi-
mento, o venezuelano BANDES e o brasileiro BNDES.
Atualmente, a malha de gasodutos na América do Sul está em um
nível bastante incipiente, uma vez que as conexões através de dutos de cir-
culação de gás natural se circunscrevem às rotas Bolívia-Brasil, além de Ar-
gentina com Uruguai e Chile, sendo excluídos desse sistema tanto o Peru e
240
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
o Paraguai, isso porque as ligações energéticas que temos na atualidade são
binacionais, como a GASBOL entre Argentina e Uruguai. Dessa forma, a
integração regional física se for incentivada propiciaria uma situação inédi-
ta de interdependênciaentre os países da América dos Sul.
Estudos estratégicos, entretanto, que simulam cenários futuros
da região, apontam que esse projeto só seria rentável se houvesse a par-
ticipação da Venezuela, mormente porque as particularidades dos países
reservam reduzida contribuição no volume de gás envolvido no anel ener-
gético, como é o caso do Peru. Estudos da Petrobras estimam que as reser-
vas peruanas de Camiseta e Pagoreni, da ordem de 11 milhões de m
3
, não
são sucientes para abastecer a demanda dos países da região (KOZUL,
2004). Assim sendo, a entrada venezuelana no anel energético sul-ameri-
cano tornaria o projeto ainda mais ousado, com um gasoduto ligando as
ricas reservas da Venezuela ao promissor mercado do sul do continente.
A elaboração de planos de desenvolvimento para o anel energé-
tico deve ser constante e abordar uma plêiade de assuntos que englobem
as diversas questões envolvidas, a exemplo da urgência de reformas insti-
tucionais e medidas que favoreçam investimentos nesse setor. No caso bra-
sileiro, cabe empreender um exame criterioso detalhado sobre o impacto
ambiental e os prejuízos à sustentabilidade da região amazônica que esse
projeto poderia acarretar. Assim, as regras e procedimentos especícos e
consistentes que salvaguardem o meio ambiente e outros setores do con-
vívio humano devem denir as medidas corretas que serão tomadas visan-
do o desenvolvimento de práticas, cujo objetivo primordial consistiria na
integração. O fato é que estes desaos não devem ser obstáculos capazes
de anular o potencial da iniciativa integracionista, mesmo porque, ao con-
trário, manifestam a necessidade de ampliá-la, uma vez que estes podem e
devem ser superados através da iniciativa regional.
É notório que o projeto de anel energético na América do Sul
será benéco para o desenvolvimento da região, fomentando o crescimen-
to das economias nacionais e gerando dividendos positivos para todos os
envolvidos, abrindo o caminho para o processo de integração nos moldes
europeus. Nesse sentido, vale lembrar que o primeiro passo dado, logo
após o m da Segunda Guerra Mundial, para a edicação do Mercado
Comum Europeu, que daria lugar na década de 1990 a UE foi a formação
241
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
da Comunidade do Carvão e do Aço (CECA), em 1952, que colocou
atividades produtivas estratégicas essenciais geradoras de conitos (na me-
dida em que estavam localizadas numa zona de fronteiras contíguas da
Alemanha e França), sob uma autoridade comum. Essa iniciativa acabou
criando instituições e regras consensuais, que como bem explica a teoria
neofuncionalista, geraram o fenômeno dospill over: o trasbordamento
do aparato burocrático de um órgão institucional comprometido com a
integração para outro. A criação de um anel energético conectando todo o
subcontinente poderia eliminar uma série de gargalos relacionados com as
crises no campo da energia produzida a partir dos hidrocarbonetos e o dé-
cit infraestrutural. Poderia expandir o mercado de gás natural, o desenvol-
vimento de novas matrizes energéticas que produzam um menor impacto
ambiental e a ligação do setor industrial com estas últimas.
A inclusão da Venezuela e da Bolívia é fundamental para o su-
cesso desse projeto e seria nanceiramente muito interessante para todas
as partes envolvidas. Questões ideológicas e o jogo do poder político na
região devem ser afastadas. A PDVSA e a Petrobrás, maiores investido-
ras desse empreendimento, devem reduzir suas diferenças no que tange os
planos de desenvolvimento energético local. Os líderes do subcontinente
devem estar a par dos riscos de certas decisões quando o que está de fato
em jogo é a integração sul-americana. Seria inconcebível excluir a Bolívia
e a Venezuela de um plano dessa magnitude, especialmente porque cerca
de 70% das reservas de gás se encontram no Norte do subcontinente, en-
quanto é nos países do Sul – Brasil, Argentina, Uruguai e Chile – onde
vivem 70% da população da região. É no Sul do subcontinente que se en-
contra a maior demanda de energia, o mercado de gás mais desenvolvido,
dotado de um sistema de produção: gasodutos mais avançados e, ainda,
onde há uma maior dependência de importações.
As medidas pró-integração na América do Sul abrangem, por-
tanto, o desenvolvimento de políticas comuns no setor energético. A
questão estratégica central é, nesse sentido, consolidar o processo de inte-
gração de cadeias produtivas no setor energético sul-americano, no con-
texto do MERCOSUL. Os procedimentos que devem orientar a edica-
ção de um anel energético na América do Sul se assentam sobre alguns
aspectos especícos, tais como a ampliação das fontes de nanciamento
242
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
existentes, fortalecimento de organismos de fomento ao desenvolvimen-
to e integração objetivandoaumentar a coordenação de esforços entre se-
tor público e privado;harmonizar os sistemas regulatórios para os setores
de gás, energia elétrica e petróleo;incentivar a instalação de projetos que
promovam a utilização e o aproveitamento eciente dos recursosenergé-
ticos regionais e tornar mais claras e precisas às especicações das fontes
de energia, bem como as normas técnicas de construção e operação de
plantas e equipamentos. Ademais, seria utilizar os recursos provenientes
do petróleo e seus derivados para diversicar a atividade produtiva, tal
como é posto em prática, por exemplo, na Noruega, nanciando o se-
tor de estaleiros, renarias, outras atividades indústrias, projetos sociais,
educação, saúde e previdência.
4 – consiDerações finais
É no contexto do fracasso da ALALC e o advento da ALADI,
na década de 1980, no transcurso da redemocratização do Cone Sul,
do retorno do paradigma liberal ou neoliberal, das propostas do Estado
Normal ou do Estado Menor, a partir do governo Ronald Reagan e da
primeira-ministra inglesa Margareth atcher e o abandono do paradig-
ma nacional desenvolvimentista de política externa em toda a América
Latina, que é formulado o plano de constituição do MERCOSUL. Sua
constituição só foi possível porque a ALADI ao contrário da ALALC
abrigava acordos bilaterais.
O MERCOSUL nasceu se identicando com o exemplo da Co-
munidade Econômica Europeia (CEE), na implementação de um modelo
de integração que à época alcançava um enorme sucesso, posto que alavan-
cara as economias dos Estados europeus, destruídas durante a 2ª Guerra
Mundial. Ademais, a CEE representava, juntamente com o Japão, uma
alternativa ao bipolarismo, ao poderio econômico militar concentrado nas
duas superpotências: a norte-americana e a soviética.
O MERCOSUL foi criado a partir da Declaração de Foz de Igua-
çu em dezembro de 1985, elaborada pelos governos do Brasil, cheado
pelo presidente José Sarney e da Argentina, Raúl Alfonsín. Três anos depois
foi a vez dos dois países assinarem o Tratado de Integração, Cooperação e
243
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Desenvolvimento (TICD). E, em 1991, foi estabelecido Tratado de As-
sunção, mediante o qual ocorre a adesão do Paraguai e do Uruguai ao
projeto de integração iniciado pelo Brasil e a Argentina seis anos antes. A
inclusão de países que possuíam enormes assimetrias em relação aos dois
sócios maiores deu-se sem um preparo prévio, no transcurso do debate en-
volvendo a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)
e durante a vigência de governos de extração neoliberal no Brasil como o
de Fernando Collor de Mello e Carlos Saúl Menem, na Argentina.Foi por
obra do Tratado de Assunção, que de fato foi instaurado o MERCOSUL,
enquanto aliança comercial visando dinamizar a economia regional e mo-
vimentar entre os quatro países signatários: mercadorias, pessoas, fatores
produtivos e capitais.
Inicialmente essa associação operaria nos limites estabelecidos
pela Zona de Livre Comércio, no interior da qual os Estados-Membros
não tributariam ou restringiriam suas importações. A partir de 1º de ja-
neiro de 1995, tal Zona converteu-se em uma União Aduaneira, estágio
do processo de integração que permitia aos signatários cobrar a mesma
tarifa na importação de mercadorias vindas dos países membros do bloco.
A observância dessa norma tributária asseguraria a consolidação da União
Aduaneira, impondo, por conseguinte, a todos os países membros do blo-
co a adoção da Tarifa Externa Comum (TEC).
No ano seguinte ao Tratado de Assunção, o Chile, que desde a
década de setenta do século passadohaviase desligado da Comunidade
Andina de Nações (CAN) e a Bolívia, adquiriram o status de membros
associados. Outras nações latino-americanas manifestaram a intenção de
entrar no bloco, a última ingressar, em 2012; após a suspensão temporária
do Paraguai, decorrente do rápido e inusitado impeachment do presidente
Fernando Lugo, foi à Venezuela. Na atualidade, em virtude da entrada dessa
última, o MERCOSUL, é composto por cinco membros, abrangendo não
apenas o Cone Sul, a região da bacia do Rio da Prata, mas também o Nor-
te do Brasil, a região setentrional da América do Sul, a Bacia Amazônica.
Com a entrada da Venezuela no bloco poder-se-ia viabilizar a implantação
de um anel energético, pois este país dispõe de enormes reservas no âmbito
dos hidrocarbonetos, juntamente com a Bolívia, situação que sedimentaria
o processo de integração através desse item fundamental da infraestrutura,
244
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
que proporcionaria a imprescindível autossuciência sob o ponto de vista
energético dos países associados e membros do MERCOSUL.
Muitos sul-americanos veem o MERCOSUL como um órgão de
defesa contra a inuência dos EUA na região, tanto na forma de Área de
Livre Comércio das Américas (ALCA), quanto nos tratados bilaterais. De
fato, este impede que tais tratados sejam negociados em separado. Toda e
qualquer decisão no âmbito do MERCOSUL só pode ser tomada por una-
nimidade e consensualmente. Nesse sentido, ele não permite acordos bila-
terais preferindo negociá-los em conjunto, pois, só assim, em seu entender,
haveria a garantia de maiores ganhos. Contudo, alguns Estados-membros
tem a permissão com algumas restrições de implementá-los.
De qualquer maneira, há inúmeras críticas ao impedimento de
acordos bilaterais, alegando-se que as resoluções por serem consensuais
aprovadas por todos os membros do MERCOSUL, obedecendo ao es-
tatuto normativo destes, exijam um tempo maior para serem aprovadas e
aumentam as diculdades para serem concluídas. O Uruguai pediu per-
missão para fechar acordos bilaterais com os EUA, durante a chancelaria
brasileira de Celso Amorim (2003–2007); estes foram aprovados, desde
que as mercadorias importadas não fossem comercializadas com outros
membros do MERCOSUL, obrigando o Uruguai a pagar uma taxa alfan-
degária caso viesse a exportá-las.
O MERCOSUL contribui para fortalecer a democracia, median-
te a cláusula pétrea instituída pelo Tratado de Ushuaia que suspende ou ex-
pele do bloco o país membro que infrinja o Estado de direito democrático.
Assegura o respeito às normas previdenciárias, qual sejam as contribuições
que foram depositadas em um Estado Parte do bloco valem para o cálculo
de aposentadorias e pensões no país de origem. E estabelece uma série de
normas importantes sobre circulação de pessoas e de bens, educação, di-
reitos humanos e cooperação consular. Nesse sentido, embora os desaos
sejam muitos, os ganhos incentivam os países integrados ao MERCOSUL
a prosseguir no rumo da integração. Não é por outro motivo que se explica
a entrada dos associados, Bolívia primeiramente e Equador depois como
membros efetivos.
245
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
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247
A L  A  S:
 
Miriam Gomes Saraiva
1 – introDução
O regionalismo na América Latina data de muito tempo e sem-
pre articulou interesses de benefícios econômicos com ideias dos ganhos
políticos, que suas iniciativas poderiam vir a produzir. Historicamente, a
dimensão objetiva aparece misturada com a dimensão subjetiva, ganhando
mais peso uma ou outra, dependendo da época. Elementos como passado
histórico, estabelecimento de autonomia frente a estados extra-regionais e
vínculos culturais tiveram peso do ideário regional.
Nos anos 1960, os países latino-americanos viveram expe riências
importantes de integração entre si, pela primeira vez desvinculadas do
pan-americanismo defendido pelos Estados Unidos. O caso da ALALC é o
mais conhecido. Estas expe riências vieram articu ladas com fatores referen-
248
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tes tanto à inserção dos países da região no contexto internacional quanto
a insumos e per cepções internos que atua ram como elementos cau sais.
Durante a década de 1990, as iniciativas de integração regional
tomaram novo impulso com os exemplos do renascimento da Comunida-
de Andina e da criação do MERCOSUL. Devido ao fato destas iniciativas
serem orientadas basicamente para uma melhor inserção das economias
nacionais no sistema econômico internacional, estas caram conhecidas
como regionalismo aberto.
A partir de 2000 – e dos limites que frearam os avanços as ini-
ciativas de integração econômica regional – começam a se desenvolver
outros modelos de regionalismo, que foram chamados, entre outros, de
pós-liberal ou pós-hegemônico. Esse novos modelos tiraram o foco da in-
tegração comercial e buscaram expandir a cooperação nas áreas de infra-
estrutura, de defesa e em dimensões sociais como saúde e educação.
A partir de 2011, com mudanças ocorridas tanto no interior do
continente quanto no contexto internacional, esse novo perl de regio-
nalismo foi progressivamente dando lugar a iniciativas de regionalismo
difusas e diferentes entre si, levantando a indagação que perpassa esse ca-
pítulo. Que tipo regionalismo pode ser identicado na América Latina
em termos gerais e, mais especicamente, nos marcos da América do Sul?
Na América Latina o termo integração regional é usado por ato-
res políticos para se referirem a diferentes tipos de aproximação com países
vizinhos, e a serviço do discurso político (MARIANO; SUÁREZ ROME-
RO; RIBEIRO, 2015). Essa utilização político-diplomática muitas vezes
transpassa o portal dos estudos acadêmicos causando incompreensões. Por
isso, para responder à indagação central do capítulo é necessária a denição
de conceitos que são usados no seu decorrer. O regionalismo é um concei-
to amplo e identicado necessariamente com ideia de região, assim como
é composto por diferentes formas de interação que tomam lugar em seu
interior. Risse e Börzel (2016) denem o regionalismo como um processo
levado adiante por (no mínimo três) estados com vistas à construção e à
sustentabilidade de instituições e organizações regionais. Hurrell (1995)
propõe decompor o regionalismo em categorias diferentes. Seguindo essa
linha de pensamento, Hurrell (1995, p. 29) aponta a cooperação como
249
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
um conjunto de ações com vistas a estruturar acordos ou regimes interes-
tatais, formais ou informais, calcados em padrões de reuniões regulares.
A integração regional, por sua vez, seria uma sub-categoria que envolve
decisões e compromissos assumidos pelos governos com vistas a reduzir
barreiras de intercâmbio mútuo de bens, serviços, capital e pessoas. Börzel
(2016) parte de um viés construtivista. Malamud (2012) recupera palavras
de Ernst Haas que dene a integração como um processo através do qual
os Estados “se mesclam, se confundem e se fundem voluntariamente com
seus vizinhos de modo tal que perdem certos atributos fáticos de soberania,
ao mesmo tempo que adquirem novas técnicas para resolver conjuntamen-
te seus conitos”, que ajudam por sua vez a se entender a fronteira entre
integração e cooperação entre Estados.
1
O autor visa ressaltar a dimensão
deliberada de uma comunidade política deste tipo de iniciativa e de uma
construção estatal. E diferenciá-la da governança regional, que, a seu ver,
corresponderia a “mecanismos através dos quais se regulam as novas comu-
nidades” (MALAMUD, 2012, p. 13).
Nolte (2011), por seu turno, sugere uma conceitualização mais
precisa da governança regional: refere-se a um conjunto de organiza-
ções regionais e princípios e regras normatizadores do comportamento
dos Estados, assim como ao processo de criação destas organizações e
princípios, que contribuiria para a solução de problemas da região assim
como proporcionaria maiores benefícios nos padrões de relacionamento
intra-regional. Nolte (2013) aponta o conceito de governança regional
como instrumento importante para a compreensão do padrão atual do
regionalismo na América Latina. O autor também destaca a importân-
cia da iniciativa de uma potência regional na origem da formação de uma
organização regional.
Por m, a regionalização, cuja conceitualização será útil no de-
correr do capítulo, é aqui entendida como um processo de interação entre
atores econômicos e sociais da região, podendo ter ou não incentivos por
parte dos governos.
1
Citação de Ernst Haas em e study of regional integration: reections on the joy and anguish of pretheorizing, in
Lindberg, L.N. e Scheingold, S.A. (eds.). Regional Integration: theory and research. Cambridge, Harvard Univer-
sity Press, 1971, p.6, por Malamud (2012, p.10).
250
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
O capítulo será organizado a partir de duas partes. A primeira,
mais concisa e com uma perspectiva histórica, apresenta os tipos de regio-
nalismo experimentados na América Latina a partir do nal da Segunda
Guerra Mundial. Nesta, o sub-item que trata do modelo de regionalismo
da primeira década do século XIX receberá mais atenção. A segunda par-
te responde, na medida do possível devido à atualidade do tema, ao que
contribuiu para o desmonte do modelo de regionalismo dos anos 2000
e a que tipo (ou tipos) de regionalismo se desenham a partir da segunda
década do século.
2 – a evolução Do regionalismo na américa latina
A América Latina viveu três fases importantes de regionalismo,
que foi classicada por diferentes autores com termos próprios. Aqui essas
fases são identicadas como regionalismo cepalino (décadas de 1960 a
1980), regionalismo aberto (década de 1990) e regionalismo pós-liberal
(2000 a 2014, à guisa de uma data precisa)
2
.
2.1 – o regionalismo cePalino
No decorrer da década de 1950, economistas vincu lados à CE-
PAL começaram a pensar em um projeto comum para o desenvolvimen-
to regio nal. O ideá rio cepa lino introduziu a divisão do mundo entre
cen tro e perife ria e apontava para a necessidade de um desenvol vimen to
indus trial interno através do processo de substituição de im porta ções
como forma de superar a situação de periferia – o proje to desenvolvi-
mentista
3
. Segundo a visão cepalina, o de sen volvi men to indus trial preci-
sava, porém, de um mercado que seria limita do no inte rior dos países da
região vistos de forma indivi dual. Desta for ma, levantava a necessidade
de um processo de integração que levasse, sobretudo, à formação de um
mercado re gio nal e de um desenvolvi mento mais complementar das in-
dústrias nacio nais. A proposta cepalina visava, em última instância, pro-
duzir inter namente os insumos provenientes dos países industrializados
 Olivier Dabène (2012) as classica como ondas do regionalismo latino-americano.
Ver Prebisch (1966).
251
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
e, com isto, romper os traços de dependência que mantinham os países
da região na situação de periferia.
4
A partir de estudos sobre o pensamento cepalino começaram de-
bates acerca das possibilidades de se implementar um processo de inte-
gração, sobretudo nos países do sul do conti nente. Em 1958 teve lugar
uma reunião entre representantes de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai,
com vistas a debater o comércio intra-regional. Em 1960, foi criada a
ALALC, que assimi lava propos tas da CEPAL mas limitava seus obje tivos
à for mação de uma área de livre comércio. Em seus quadros in cluía paí ses
sul-ame ricanos e o Méxi co. No mesmo ano, foi criada e iniciou a desenvol-
ver-se outra expe riência sub-regio nal de integração, o Mercado Comum
Centro-Americano, baseada na mesma tônica da ALALC.
A ALALC deixou de lado itens da proposta cepalina como uma
maior articulação entre os planeja men tos industriais nacio nais, e resumiu-
-se a moti vações e obje ti vos de ordem comercial, cando circunscrita a
uma área de livre comércio e marcada pela escassez de vínculos econômi-
cos entre os países par ticipantes. Nos primeiros anos, o grupo evoluiu de
forma dinâmica, com programas de desagravação; tarifa externa mínima
comum; tratamento de investimentos estrangeiros; organismo de nancia-
mento e pro gramas setoriais de desenvolvimento industrial. Mas enfrentou
di culdades. O próprio co mércio intra-regional era reduzido e sem uma
rede de transpor tes ou serviços nancei ros que o agi lizassem. De caráter
estritamente intergovernamental, dependia, portanto, das dis po sições dos
gover nos dos países participantes.
Também enfrentou dicul dades vincu-
ladas aos Estados participantes. Por um lado, os proje tos internos de cres-
cimento econô mico, de cunho desenvo lvi mentis ta, orientavam-se para a
indus tria lização nacio nal em de trimento de parceiros externos. As indús-
trias existentes temiam muitas vezes uma compe tição de rivais mais e-
cientes de países vizinhos (DELL, 1966). Desta forma, o projeto proposto
não apresen tava uma congruência efetiva com os interesses econôm icos
domés ticos, e nem uma presença rele vante de uma interdependência entre
as eco nomias nacionais da re gião.
Neste caso, não se trata de uma questão de interde pendência, mas está mais próximo da busca de uma complemen-
tação regional até então irrelevante e uma oposição ao contexto externo.
252
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Por outro lado, politica mente duran te o período correspon dente
(1960–1980) diversos países da região tiveram governos ditato riais milita-
res que, neste momento, não mostravam dispo sição para partilhar espaços
da soberania nacional e nem identi cavam benefícios eventuais provenien-
tes de algum tipo de alian ça com os países vizinhos (SARAIVA, 2007).
Estes governos orienta vam-se por pro jetos inter nos de cresci mento econô -
mico e exter nos de projeção nacio nal.
Como elemento agravante para o desenvolvimento da ALALC,
em 1969, em função de diferentes posições acerca do comportamento es-
perado nos marcos da ALALC, os chamados países “desenvolvimentistas
(Peru, Chile, Bolívia e Equador), preocupados com políticas orientadas
para o desenvolvimento, formam um subgrupo regional em seu interior;
o Pacto Andino
5
. A divisão entre países comercialistas – Brasil, México e
Argentina –, mais preocupados em conseguir expandir os mercados para
seus produtos e os países “desenvolvimentistas”, foi fatal para a ALALC.
O MCCA, por seu turno, em seus primeiros anos de funciona-
mento criou um importante sistema de pagamentos, experimentou uma
expansão do comércio intra-zonal, viveu um aumento do comércio de ma-
nufaturados e recebeu quase o dobro de investimentos externos. Mas desde
o nal dos anos 70, em função da crise política-militar que assolou a região
e a crise da dívida externa, o processo de integração desmoronou.
Em 1980, em um esforço de dar nova vida ao proces so de inte-
gra ção, a ALALC deu lugar à ALADI, de cunho mais exível e aberta para
experiências de integração parciais ou sub-regionais. A ALADI manteve,
no entan to, a prioridade na integração através do comér cio e o cará ter
intergovernamental que haviam obtido resultados precários na ALALC.
Ademais, conviveu com uma década negra da economia latino-americana
onde os países da região tiveram que gerar superávits comerciais para en-
frentarem o problema da dívida externa. Estes proble mas de curto prazo
vieram combinados com o fracasso da estratégia de desenvolvi mento de
substi tuição de importações que havia regido a economia da região nas
décadas anteriores, assim como dado a base ao pro cesso de inte gração.
Colômbia e Venezuela entraram em 1973 e Chile saiu em 1976.
253
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
2.2 – o regionalismo aBerto
No nal da década de 1980 e início dos anos 1990, a dinâmica
das experiências de integração regional na América Latina, ganhou um
novo impulso, den tro de um cenário interna cional de supe ração de nitiva
da ordem bipolar e estruturação de uma nova ordem. No campo político
esta nova ordem em gestação assumiu um caráter ho mogêneo, apontando
para a neces si dade de todas as so ciedades partilharem de normas inter nas
comuns identi cadas com o plura lismo democrá tico como forma legítima
de orga nização. No campo econômico o para digma neolibe ral passou a ser
tanto o marco de referência da economia interna cional como o orie ntador
da refor mulação e exe cução de políticas de ajustes e mu danças estru turais
no interior dos Estados. Os estí mulos e pres sões para aber tura econômi-
ca, menor intervenção go vernamental na economia, desregu lamentação e
equilíbrio scal passaram a ser frequentes.
A ideia de economia de mercado veio acompanhada de uma in-
terna cionaliza ção crescente dos circuitos produtivos e da trans naciona-
lização do movimento de capitais e investimentos. Esta transnacionali-
zação foi marcada pela ascensão de atores que não se identicavam com
interesses estatais e operavam globalmente, em função dos quais os Estados
seriam levados a competir para atrair investimentos. Com isto, os governos
passaram a buscar, com mais vigor, corresponder às expec tativas externas;
o que limitou o grau de autono mia na gestão das políticas econômi cas
nacio nais. Schirm (1996) já aponta para a necessi dade de se estabelecer
uma “governança” regional.
O regionalismo aberto assumiu características, vinculadas ao
processo de globalização dos anos 1990, que atuaram como elementos
norteadores de seu funcionamento: medidas orientadas para a obtenção de
uma economia de mercado mais aberta e uma superação do protecionismo
histórico que marcou as economias nacionais de orientação cepalina; ex-
pectativa de articulação entre os países com vistas a construir uma econo-
mia de escala que pudesse competir em melhores condições na economia
internacional; e a defesa de regimes democráticos pluralistas ocidentais. O
novo regionalismo signicou a contraparte do neoliberalismo nos proces-
sos de integração regional e orientou as análises das experiências sul-ame-
ricanas neste período.
254
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
O MERCOSUL foi resultado da aproximação entre dois paí-
ses que, historicamen te, haviam mantido relações difíceis, mas que a
partir de meados da década de 1980 alcançaram uma convergên cia
maior nos campos político e econômico. Esta convergência impulsio-
nou um processo de aproximação entre Brasil e Argentina que culmi-
nou com a assinatura do Tratado de Assunção em 1991 por estes dois
países mais Uruguai e Paraguai
6
. No nal de 1994 completou-se a for-
mação de uma Tarifa Externa Comum que abrangia a maior parte dos
produtos comercializados com o exterior e, portanto, o bloco adquiriu
uma personalidade jurídica.
O MERCOSUL rmou-se como uma iniciativa de integração
calcada em união aduaneira incompleta de caráter estritamente intergover-
namental. A percepção predominante entre os analistas de temas regionais
é que as expectativas de evolução iniciais não se concretizaram. Durante
sua primeira década, o convívio de uma visão entre a heterodoxia e o li-
beralismo tanto no Brasil quanto na Argentina, o bloco avançou nas áreas
aonde produzia maiores ganhos econômicos – o comércio intrabloco – e
com baixa institucionalidade. Mas a desvalorização cambial de 1999 in-
terrompeu este processo por introduzir nas relações comerciais um fator
de desequilíbrio entre os dois principais parceiros – a difícil equação entre
câmbio e exportações.
O Mercado Comum Centro-Americano foi reordenado e re-bati-
zado como resultado do esforço de pacicação dos conitos na região. Em
1987, foi assinado pelos países centro-americanos um plano de paz baseado
na importância da democracia política e do desenvolvimento econômico
para a pacicação regional. O acordo previa a recuperação da experiência
de integração com o novo nome de Sistema de Integração Centro-Ameri-
cano (SICA) e a formação de um Parlamento Centro-americano. O SICA
teve um papel importante na reconstrução econômica da região no que diz
respeito às negociações com parceiros externos e na captação da ajuda para
o desenvolvimento. Atualmente encontra-se no estágio de União Aduanei-
ra, com um sistema de pagamentos organizado.
 Sobre o processo de aproximação entre Argentina e Bra sil, ver Camargo (1993).
255
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
O Pacto Andino foi reordenado em 1988 com a reformulação de
suas instituições e com a meta de formar uma UA até 1995. No princípio
dos anos 90, passou a chamar-se Comunidade Andina (CAN) e assumiu
um papel importante nas negociações coletivas com parceiros externos.
Em 1992 negociou o chamado SGP–Drogas (um Sistema Geral de Prefe-
rências orientado para favorecer as exportações resultantes da substituição
do plantio de coca). Mas no decorrer da década seus países-membros ex-
perimentaram problemas políticos internos, diferenças no que diz respeito
à posição a ser assumida na política internacional e, como mais grave, a
guerra entre o Peru e o Equador. Estes problemas atuaram com obstáculos
para uma evolução do bloco.
Desde o início dos anos 2000 algumas condições básicas do
funcionalismo do regionalismo aberto foram postas em xeque. Por um
lado, o modelo de abertura das economias nacionais não mostrou os
resultados esperados em diversos países na região e foi coexistindo cada
vez mais ou sendo substituído paulatinamente por traços de um modelo
orientado para políticas de desenvolvimento nacionais de corte mais pro-
tecionista, próximo do desenvolvimentismo, e reexões sobre a redução
da pobreza e da desigualdade. Nestes casos, vis a vis o exterior, a adoção
de compromissos próprios dos processos de integração regional de ca-
ráter comercialista foi dando lugar a preferências mais cooperativas. Por
outro lado, a ideia de se criar uma economia regional de escala nunca
chegou a ser implementada devido à resistência de agentes econômicos
nacionais que colocaram obstáculos e ao caráter defensivo dos processos
de integração na região. A construção de um cenário de interdependên-
cia se conrmou apenas em parte e os custos de uma passagem para uma
economia de escala não foram afrontados. E por m, o consenso atingido
durante os anos 1990 sobre a importância dos regimes democráticos re-
presentativos ocidentais sofreu mudanças e perdeu relevância em alguns
países da região. Alguns governos buscaram desde o início dos anos 2000
reconstruir os respectivos regimes políticos nacionais a partir de novos
padrões de inserção de setores até então marginalizados da política. As
explicações tradicionais sobre integração deixaram diversas lacunas fren-
te a estas transformações.
256
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
2.3 – o regionalismo Pós-liBeral ou Pós-Hegemônico
7
O perl do regionalismo que se desenhou a partir do fracasso do
regionalismo aberto foi se materializando no decorrer da década de 2000
em diferentes instituições que vieram a compor a governança regional.
Durante a década, ao MERCOSUL e à Comunidade Andina, somaram-se
a UNASUL, a ALBA e, na virada para a segunda década do milênio, a
CELAC (as duas últimas incluem países latino-americanos). Com exce-
ção da CAN, que se debilitou muito durante a década, em comum essas
experiências tem uma variedade de itens contemplados, entre outros, a
autonomia dos estados membros na escolha de suas respectivas estratégias
de desenvolvimento, a centralidade da política e a não centralidade da in-
tegração comercial.
Esse formato de regionalismo recebeu diversas classicações dos
acadêmicos: regionalismo pós-liberal (Pedro da Motta Veiga e Sandra
Rios), regionalismo pós-hegemônico (Pia Riggirozzi); quarta onda do re-
gionalismo (Olivier Dabène); regionalismo multi-nível e subregionalis-
mos segmentados (Andrés Malamud e Gian Luca Gardini); entre outras.
Essas reexões, desde uma ou outra dimensão, trouxeram contribuições
para se entender o sucesso das iniciativas do período, assim como o avanço
forte na regionalização na América do Sul.
a) Contribuições teórico-conceituais
Motta Veiga e Rios (2007) chamam o modelo de regionalismo
estabelecido na região durante a década de 2000 de regionalismo pós-li-
beral, que se afasta da integração comercial dando destaque ao espaço da
política, às assimetrias regionais, à integração física e a maior concertação
política entre os países da região. E aonde o Brasil estaria buscando assumir
gradativamente os custos do processo de integração. Nesse novo modelo,
as diferenças estruturais entre os países gerariam incentivos assimétricos
para se avançar no campo da integração, o que levaria ao estabelecimento
de maior margem de manobra para os Estados fornecendo às iniciativas de
integração um peso pouco relevante na implementação de suas respectivas
estratégicas púbicas.
 Essa seção teve como base o artigo de Saraiva (2010).
257
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Este modelo foi ampliado posteriormente por diversos autores.
Sanahuja (2009) destaca que o perl do regionalismo pós-liberal seria
mais orientado para servir o estado desenvolvimentista do que para a in-
serção dos Estados em um mundo globalizado, uma vez que, nele, a estra-
tégia de desenvolvimento nacional gozaria de autonomia. Sanahuja (2012)
vincula o regionalismo pós-liberal a um “trilema” vivido pelos Estados
da região entre a defesa da soberania nacional, as aspirações de uma in-
tegração regional ecaz e a busca de autonomia no plano internacional.
Gratius (2012) denomina esta onda do regionalismo como regionalismo
político-social, como consequência da ascensão de governos com novos
projetos políticos e econômicos, marcados por um maior intervencionis-
mo do estado como agente do desenvolvimento, e ressalta seu perl prio-
ritariamente político.
Riggirozzi (2012, p.139), por seu turno, explicando a “nova car-
tograa regional” recupera a ideia de um regionalismo defensivo, crítico
às ideias neoliberais, e orientado para áreas especícas de desenvolvimento
humano, para infraestrutura e energia, entre outros. Aponta a existência
de três tendências que as vezes se superpõem e dá uma denição ampla de
regionalismo pós-hegemônico.
A partir da classicação difundida das iniciativas atuais como
quarta onda do regionalismo, Olivier Dabène (2012) identica-o com
um regionalismo de novo tipo, de perl neo-estruturalista, e destaca a
heterogeneidade e tensões do modelo atual na medida em que incorpora
diversos atores com agendas diferentes.
Malamud e Gardini (2012) assinalam um cenário de regionalis-
mo de sobreposição ou regionalismo multi-nível
8
, que signica a coexis-
tência de subregionalismos segmentados. Este, seria um fenômeno pouco
frequente que conduziria ao convívio entre diferentes experiências de in-
tegração regional e que poderia produzir impasses entre as instituições
próprias destas iniciativas e as sociedades nacionais dando a cada Estado a
possibilidade de participar de mais de uma organização regional estando
sujeito à dupla lealdade e ao conito entre diferentes normas. Estas diversas
iniciativas de integração/cooperação regional esvaziariam o conceito real
 A tradução no inglês é, respectivamente, segmented subregionalisms e ovverlapping (ou multilevel) regionalism.
258
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de integração regional. Por extensão, a coexistência de diversos esquemas
de integração tornaria mais difícil se atingir um denominador comum.
b) Experiências de regionalismo pós-liberal
Dentre as experiências de integração/cooperação regional cria-
das nos anos 2000, as mais importantes fora a ALBA e a UNASUL. Consi-
derando como marco analítico a primeira década, a CELAC foi organizada
na passagem para a segunda década, podendo ser pensada aqui em sua
forma inicial e motivações de sua criação. O MERCOSUL, experiência
herdada do regionalismo aberto, viveu alguns ajustes enquanto a CAN
enfrentou mais diculdades que as demais organizações.
A ALBA surgiu como alternativa à Área de Livre Comércio pro-
posta pelos Estados Unidos para a região. Seu caráter foi pensado como
prioritariamente político e sua proposta foi de formar uma identidade en-
tre países que partilham ideais políticos e estratégias de desenvolvimento
econômico, prioritariamente anti-liberais. Seu processo de instituciona-
lização começou em 2004, de caráter intergovernamental, e o Banco da
ALBA teve um papel importante. Sua operacionalização se deu através de
tratados de comércio entre seus países membros, junto com empresas esta-
tais mistas e projetos coletivos orientados para os países de menos recursos
nanceiros e técnicos. Esta diplomacia se baseou em recursos provenientes
do petróleo venezuelano e na ação clara da Venezuela como paymaster, jun-
to com um papel central também de Cuba que entrou com contribuições
nas áreas de saúde e educação. Através do discurso da solidariedade e de
benefícios concretos para os países menores, buscou-se criar um núcleo em
torno do projeto de socialismo venezuelano. É importante destacar o viés
cooperativo de seu modelo e um tipo peculiar de integração em rede que
perpassa áreas não-econômicas que não prevê partilha de soberania.
A UNASUL tem um perl muito próximo do modelo pós-libe-
ral aproximando-se mais de um instrumento de governança regional do
que dos padrões do regionalismo aberto. Em 2000, o presidente Cardoso
organizou uma primeira reunião em Brasília com os governantes da região
com vistas à formação de uma comunidade sul-americana. A partir da
eleição de Lula, a diplomacia brasileira concentrou esforços mais diretos
259
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
na sua institucionalização. A I Reunião dos Chefes de Estado e Governo
dos países da CASA, em 2005, estabeleceu como agenda prioritária as as-
simetrias entre seus países membros, e foram tratados temas como o diá-
logo político; a integração física; meio ambiente; integração energética;
mecanismos nanceiros sul-americanos; promoção da coesão social. Isto
demonstra seu perl cooperativo que congrega iniciativas de cooperação
técnica e nanceira com países da região, assim como uma atuação impor-
tante no campo político.
Em 2008 a CASA evoluiu para UNASUL, que tem um caráter
estritamente intergovernamental. Conta, com os Conselhos de decisão,
uma secretaria geral, junto com conselhos setoriais. Em termos econômi-
cos, por não ter compromissos de uma experiência de integração regional
especíca nem se enquadrar em nenhuma das classicações de integra-
ção econômica, pode acomodar diferentes iniciativas subregionais como
o MERCOSUL, a CAN e mesmo a ALBA. Desde sua formação, a UNA-
SUL contribuiu para unicar comportamentos dos países da América do
Sul e desempenhou um papel importante frente às situações de crise no
continente. A criação do Conselho de Defesa Sul-Americano em seu inte-
rior facilitou a aproximação entre seus membros no campo militar, assim
como colocou o Brasil no centro da agenda de segurança regional. Pode ser
considerada, então, uma novidade, com um perl diferente das iniciativas
do regionalismo aberto, que acomodou diferenças e que pode dar uma
contribuição importante tanto para a consolidação de uma governança
regional quanto para a expansão da regionalização no continente.
O MERCOSUL seguiu sendo uma união aduaneira incomple-
ta de caráter estritamente intergovernamental. Mas durante a década de
2000, o bloco enfrentou, por um lado, diculdades em sua dimensão co-
mercial. E, por outro lado, experimentou uma redenição de seus objeti-
vos: as dimensões política e societal passaram a ocupar um lugar central
nos marcos do bloco. Ou seja, uma dimensão que não havia sido prevista
no Tratado de Assunção tomou corpo em relação ao modelo tradicional
de integração econômica. Foi criado o Fundo de Convergência Estrutural
do Mercosul, mostrando uma disposição brasileira de investir em países
do bloco. Atuações conjuntas contra ameaças transnacionais na região fo-
ram organizadas. Foi criado o Parlamento do MERCOSUL, junto com
260
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
organismos de acompanhamento da sociedade civil. Esse novo modelo
apoiou-se basicamente em uma articulação entre os políticos favoráveis ao
desenvolvimentismo como estratégia econômica e a comunidade epistêmi-
ca pró-MERCOSUL composta por políticos e acadêmicos, e adotou um
perl próximo ao modelo de regionalismo pós-liberal.
A Comunidade Andina cou bastante desarticulada. Em 2006
a CAN conseguiu consolidar uma área de livre comércio entre seus países
membros. Neste mesmo ano, porém, em função da ascensão de governos
de esquerda no Brasil, Argentina e Uruguai e da decisão do Peru e da Co-
lômbia de negociar um tratado bilateral de livre comércio com os Estados
Unidos, a Venezuela solicitou a saída do bloco e endereçou seu pedido de
entrada como membro pleno no MERCOSUL trazendo uma baixa no
grupo. A predominância nos governos da Colômbia e do Peru da visão
liberal obstacularizou a formação de uma união aduaneira (prevista no tra-
tado de formação) e deu lugar a uma área de livre comércio entrecortada
por tratados de livre comércio bilaterais dos dois países com os Estados
Unidos. Bolívia e Equador, por sua vez, optaram pela visão bolivariana e
fazem parte também da ALBA. E os quatro países são associados ao MER-
COSUL. Os problemas de sobreposição do regionalismo multi-nível nes-
te caso se zeram presentes.
A CELAC foi criada a partir de motivações tanto brasileiras
quanto mexicanas, sobretudo, no apagar das luzes da década. Foi um
projeto de concertação política, que buscou dar mais institucionalidade
ao que havia sido o Grupo de Rio. E procurou aglutinar em uma única
instituição os países da América Latina e Caribe. Também de caráter
intergovernamental, foi estruturada com uma institucionalidade ainda
limitada, com uma presidência rotativa e sem secretaria. Em termos de
modelo de regionalismo, tem uma contribuição mais visível na forma-
ção de uma governança regional.
3 – um novo moDelo De regionalismo?
A partir da década de 2011 alguns acontecimentos foram mo-
dicando o cenário regional. Primeiro, foi formada a Aliança do Pacíco
(AP), com um foco prioritariamente comercial e algumas características
261
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
do regionalismo aberto. A AP inclui três países sul-americanos e México.
Segundo, o cenário internacional enfrentado pelos países da região cou
mais árido: a bonança dos altos preços dos commodities exportados por paí-
ses da região recuou e os avanços em termos da formação de grandes blocos
de livre comércio e de acordos coletivos e bilaterais dicultaram a inserção
de alguns sul-americanos na economia internacional. Com isso, governos
progressistas eleitos anteriormente começaram a enfrentar diculdades nos
cenários domésticos e as novas eleições deram lugar a governos liberais e/
ou conservadores contribuindo para um desmonte da comunidade epistê-
mica pró-integração orientada por um regionalismo pós-liberal que teve
um papel importante na criação tanto da UNASUL quanto da CELAC.
Terceiro, a política externa brasileira para a região de incentivo não so-
mente à cooperação mas também à regionalização – o nanciamento de
obras de infraestrutura – reduziu fortemente. A vontade política demons-
trada pelo presidente Lula de articular visões internas e externas favoráveis
à construção de uma liderança regional não teve continuidade.
Com isso o cenário do regionalismo não somente na América do
Sul, mas na América Latina em termos gerais vem se modicando, dando
lugar a experiências difusas e para a convivência de modelos diferenciados.
3.1 PersPectivas Para o novo cenário ou um novo
regionalismo
Há um consenso entre diferentes autores que existe atualmente
uma grande variedade de projetos de integração, assim como uma so-
breposição de iniciativas. As organizações que foram estruturadas desde
os anos de 1980 não terminaram – ao contrário, se ajustaram– e novas
organizações foram criadas. O cenário externo à região tem experimentado
muitas mudanças. À ausência de uma política norte-americana estruturada
para a região, as mudanças que vem ocorrendo no multilateralismo global
a partir da eleição de Donald Trump introduzem mudanças no cenário
global modicando, entre outras, o papel que antes era atribuído aos países
chamados emergentes. A crise experimentada pela União Europeia reduziu
a margem de manobra de suas iniciativas inter-regionais (que historica-
mente tem um peso importante na América Latina). No campo político
262
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
regional, as preferências dos atores políticos também apontam para dife-
renças, assim como a forma de esses atores entenderem o regionalismo.
Essa coexistência variada é chamada por diversos autores de spaghetti bowl.
Para dar conta dessa heterogeneidade, Gardini (2015) propõe o
regionalismo modular. Como argumento, ele destaca a superação do re-
gionalismo aberto; o crescimento de iniciativas justapostas; a distância
entre as narrativas dos atores políticos e a realidade; e a clara preferência
por experiências de cooperação em detrimento de iniciativas de integra-
ção. O regionalismo modular se dá em um cenário regional de laços eco-
nômicos e culturais ente os países; declínio da potência hegemônica na
região; variedade de interesses comuns em campos como o comercial, de
estratégias de desenvolvimento, o ambiental e de direitos humanos; grande
variedade de atores estatais e não estatais; e da disparidade de poder e nível
de desenvolvimento entre os estados. Ele pressupõe, em primeiro lugar,
a existência de uma multiplicidade de atores com exibilidade de com-
portamento. Em termos analíticos, permite uma variedade de formatos
explicando, portanto, a coexistência de diferentes tipos de iniciativas desde
uma perspectiva multidimensional. Acomoda dimensões de cooperação,
integração e identidade regional.
Nolte e Comini (2016) apresentam a ideia de que o regionalismo
seria o reexo do que os agentes buscam construir, e não representam ne-
cessariamente eciência. A sobreposição de organizações, nesse caso, pode
ser vista como proveitosa por atores políticos do continente. E, no caso da
América Latina, a relação entre nação e região sempre foi singular. Dentre
as motivações manifestadas com mais frequência por acadêmicos e líderes
políticos, podem ser identicadas aspirações históricas do continente; laços
culturais e interesses econômicos de desenvolvimento produtivo; interesses
econômicos de inserção comercial na economia internacional; resposta ou
resistência ao ator externo hegemônico; inserção política internacional da
região como bloco de poder. A integração é apresentada algumas vezes
como instrumento e outras vezes como um m em si mesmo. A combi-
nação, articulação ou competição dessas motivações tem sempre impacto
importante sobre as iniciativas regionais.
263
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
3.2 – Desafios Pós-2014
Essas modicações trouxeram indagações acerca das instituições
que haviam se consolidado anteriormente nos padrões do regionalismo
aberto ou do regionalismo pós-liberal. O regionalismo que se desenha
atualmente na América Latina apresenta, então, diversos desaos que têm
que ser enfrentados por aqueles que buscam um modelo consolidado de
regionalismo e uma governança regional estável.
O primeiro desao diz respeito às diferenças em relação às prefe-
rências políticas e estratégias de desenvolvimento nacionais. A interseção
das percepções de diferentes atores políticos da região é reduzida e concep-
ções de modelo econômico e democracia guardam distâncias entre si. Exis-
te, portanto, diculdades em se criar consensos ao redor de temas aonde
não há convergências a priori. Muitas iniciativas foram sendo travadas por
essas diferenças (como no caso dos esforços da UNASUL de buscar solu-
ções frente à crise política na Venezuela) e pela falta da presença de um ator
político formador de consensos (como foi a presidência brasileira durante
o governo de Lula). Mudanças políticas próprias de regimes democráticos
podem modicar as opções nacionais relativas ao regionalismo e afetam
instituições já consolidadas. Um exemplo claro foi a eleição de Nicolás
Maduro, na Venezuela, que comprometeu a continuidade da ALBA.
Escolhas nacionais por modelos de sub regionalismo diferentes
(como a AP) também começam a ter lugar. O bloco aglutinou quatro pa-
íses cujas economias seguem uma orientação de abertura para o comércio
internacional e que, com exceção do México, são países sul-americanos
e associados ao MERCOSUL. A Aliança do Pacíco trouxe de volta à
região debates sobre a recuperação de um regionalismo aberto, que ca-
racterizou os anos 1990, assim como percepções de uma América do Sul
dividida entre duas visões diferentes de regionalismo: a UNASUL e o
MERCOSUL de caráter pós-liberal em contraposição à opção de abertu-
ra comercial e aliança com países da Ásia-Pacíco. A formação da Aliança
do Pacíco desaou a estratégia regional com o retorno do modelo do
regionalismo aberto.
O segundo desao, vinculado ao primeiro, refere-se às demandas
sociais e econômicas internas das sociedades nacionais, que conitam com
264
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
processos de integração. Além dos diversos benefícios trazidos pelos pro-
cessos de integração, estes trazem também custos, sobretudo em situações
aonde seus Estados-membros têm seus Índices de Desenvolvimento Hu-
mano e suas economias assimétricos. As eleições de governos progressistas
durante os anos 2000 abriram espaços para demandas sociais de empre-
gos, proteção a pequenos produtores e defesas do meio ambiente ligadas
a comunidades indígenas. Iniciativas de desenvolvimento de um parque
industrial por alguns países da região conviveram com ameaças de prote-
cionismo (muitas vezes materializadas). Nesses casos, houve choques entre
as dimensões nacional e regional.
Em terceiro, outro elemento que desaou a lógica regional da
América Latina diz respeito a atores externos, divididos entre a presença
crescente da China e os mega-acordos comerciais que vinham sendo nego-
ciados até 2016. Nesse caso, a Parceria Transatlântica (TTIP) e a Parceria
Transpacíco (TTP) seriam os mais importantes. No que diz respeito à
China, esta vem buscando estabelecer vínculos fortes com alguns países
da região principalmente nos campos de comércio e investimentos, e vem
construindo um seleto grupo de parceiros políticos (como o caso da Vene-
zuela e do Brasil nos marcos do BRICS). No entanto, a dependência em
relação à China vem sendo construída de forma bilateral e não existe uma
resposta regional coordenada. Muitas vezes, a parceria com a China vem se
dando em detrimento de parcerias com países vizinhos (como no caso da
parceria Argentina-Brasil).
Em relação aos mega-acordos, a TTP inclui alguns países da re-
gião que ultrapassa um acordo comercial tradicional e inclui comércio de
serviços e normas comuns relativas à propriedade intelectual e a leis tra-
balhistas. Nesse caso, padrões e normas de comércio que abrangem alguns
países da região serão solidicadas por fora dos marcos regionais limitando
a margem de manobra de acordos regionais.
O quarto desao diz respeito diretamente ao papel do Brasil na
região. Durante os anos 2000 o Brasil, através do governo de Lula, desem-
penhou um papel importante de liderança e paymaster do processo de coo-
peração regional. A liderança é entendida aqui como a capacidade do país
de inuenciar a trajetória política da região e o paymaster aquele que banca
os custos da integração regional. Nos dois casos, o Brasil não assumiu
265
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
plenamente o papel. No entanto, em um cenário internacional fragmen-
tado, o Brasil desempenhou, durante a década, um papel relevante no que
diz respeito a uma participação assertiva na política regional. Os custos da
estruturação da governança regional foram em parte divididos pelos países
da região mas, a maior parte, coube ao governo brasileiro, através de assis-
tência técnica e investimento de obras de infraestrutura. Iniciativas de co-
operação regional importantes foram idealizadas pelo governo brasileiro.
Entretanto, a ascensão de Dilma Rousse esvaziou a dimensão
política do comportamento brasileiro frente à região no que diz respeito às
ações do Brasil como ator estruturador das instituições regionais. O papel
de paymaster foi sendo interrompido progressivamente em função da crise
econômica brasileira e, a partir de 2015, também da crise política. Sem um
ator que incentive a cooperação regional e a regionalização, o movimento
na região tende a arrefecer.
O governo de Dilma Rousse, desde seu primeiro mandato, re-
duziu claramente o ritmo do ativismo em política externa tanto global
quanto regional. O governo de Michel Temer, por seu turno, é um governo
transitório que enfrenta diculdades políticas grandes e deixa os destinos
do Brasil por ora incertos. Nesse cenário, a política externa não tem rece-
bido atenção. Mas, certo é, que o regionalismo não concentra o interesse
dos dirigentes políticos.
Por m, houve mudança no comportamento de atores especí-
cos. Os Estados Unidos modicaram o comportamento, além de não te-
rem uma política externa estruturada para a região como um todo. Foram
mantidas as iniciativas de enfoque bilateral e seletivo, com a assinatura e
manutenção de tratados de livre comércio. Mas o manejo dos fortes traços
de assimetria e divergências no interior da região em termos de visões sobre
a política e políticas macroeconômicas tornou-se mais difícil. Mais recen-
temente, um fator que atuou negativamente sobre o regionalismo conso-
lidado durante a década de 2000 foi o reatamento das relações dos Estados
Unidos com Cuba, e a reincorporação do país à OEA levantou indagações
sobre o futuro de uma identidade latino-americana. Como pontua Lean-
dro Gavião (2015), o papel que uma alteridade em relação aos Estados
Unidos ocupou historicamente foi importante na construção de uma iden-
tidade regional. A expulsão de Cuba da OEA incentivou essa alteridade,
266
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
e fortaleceu as iniciativas do Grupo do Rio e, depois da CELAC. A luta
pela reincorporação de Cuba por muito tempo foi um fator de coesão de
um regionalismo latino-americano. A coexistência da CELAC com uma
OEA completa será marcada por uma sobreposição e ainda não está claro
como vai se estruturar.
A morte de Hugo Chávez, por seu turno, reduziu o ativismo da
Venezuela na construção e fortalecimento da ALBA, que começou a en-
frentar uma retração. A crise da economia e da política venezuelanas ins-
taurou no bloco uma situação de inércia, e os investimentos nanceiros do
governo de Chávez nos países foram interrompidos. Com isso, o papel do
soft power venezuelano como elemento fortalecedor de um tipo de regio-
nalismo pós (e mesmo anti) liberal foi posto em compasso de espera.
4 – consiDerações finais
A partir de meados da década de 2010 não é visto um padrão
uniforme de regionalismo na América Latina, e nem nos marcos mais
delimitados da América do Sul. As motivações diversas, preferências po-
líticas desencontradas, expectativas diferentes acerca do que se entende
por êxito ou fracasso das iniciativas regionais contribuem para a falta de
uma tipologia clara. A proliferação e a superposição de iniciativas ocor-
rida a partir de 1990 contribuíram para a ausência de um padrão único.
Iniciativas herdadas do regionalismo aberto, como o MERCOSUL, vol-
tam a se ajustar à centralidade do livre comércio. Gardini (2015) defende
que a onda atual do regionalismo não é de integração mas, sobretudo,
de cooperação. Mas prosseguem alguns elementos importantes como a
centralidade dos Estados como atores chave (e a consequente força do
intergovernamentalismo), o papel de uma integração no ideário políti-
co, e a constante busca, através do regionalismo, de melhores condições
políticas, econômicas e sociais para a região. Seria possível, por m, ar-
mar que se trata de um cenário fragmentado, com combinações ad hoc de
interesses aonde as bases do regionalismo estão sendo progressivamente
desconstruídas e re-signicadas.
267
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
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269
A E  P 
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P  P
Mamadou Alpha Diallo
1 – introDução
O tema proposto para este encontro versa sobre a experiência
dos processos de integração na África e busca compreender os proble-
mas e perspectivas desses processos. Para tanto, será necessário enten-
der em um primeiro momento, a origem histórica da Integração Re-
gional africana. Isto signica analisar a chamada solidariedade africana
antes, durante e depois a colonização. O objetivo é de mostrar a relação
que existe entre as atuais estruturas de integração regional e as formas
de organização política do continente antes da chegada do colonizador
europeu de um lado e do outro, mostrar que tais delineamentos físicos
270
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
ou/e geográcos foram em grande parte incorporados nas estruturas
coloniais em geral e francesas em particular e foram objeto de debate e
controversia no momento da independência.
Tais divergências podem ser consideradas o pontapé inicial dos
problemas da Integração Africana, certamente devido não somente ao fato
da colonização ter fragmentado o continente em múltiplas unidades polí-
ticas inviáveis, mas também (e principalmente) devido ao individualismo
egoísta da elite (ou parte dela) dirigente africana. Assim, percebe-se que
no continente africano, as unidades políticas mais importantes em termos
geo-históricos estiveram concentradas em determinadas regiões, como na
África Austral, no Chifre da África, na África Mediterrânea ou na África
Ocidental. As principais unidades políticas de grande duração histórica
nestas regiões foram impérios africanos que possuíam importantes redes
comerciais regionais com as demais regiões, e cuja delimitação político
territorial era denida muito mais em função das semelhanças e comple-
mentariedades (culturais, econômicas, climáticas e territoriais) do que das
diferenças (DIALLO, 2015).
Um quadro sintético dos reinos e impérios mais importantes para
compreender os elementos de história de longa duração e geopolítica des-
tas regiões, demonstrando as principais tendências históricas de estabele-
cimento de vínculos e conexões regionais. Vale ressaltar que a importância
da parte histórica para o entendimento tanto das experiências quanto das
perspectivas da integração, pois, os períodos pré-colonial e colonial são
fundamentais para a compreensão das forças profundas das relações in-
ternacionais africanas e são importantes para refutar a tese do isolamento
africano e para observar a contribuição europeia para a emergência de um
sistema Westfaliano de Estados na África (VISENTINI, 2011). Depois
desta breve contextualização histórica, entra-se nos principais processos
que levaram aos processos de integração regionais africanas tais como os
que conhecemos na atualidade. Quais processos são estes?
2 – contextualização Histórica
A origem dos processos de integração regional africana pode ser
atribuída entre outros ao movimento pan-africanista, que serviu de base
271
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ideológica, política e social para mobilizar os africanos e incentivá-los a
lutarem para a independência do continente, conquistada entre meado da
década de 1950, mais especicamente, a partir de 1957 com a indepen-
dência de Gana de Kwamé Nkrumah, seguida da independência da Repú-
blica da Guine de Ahmadou Sekou Touré em 1958, no âmbito da África
Subsaariana também conhecida como África Negra. A independência des-
tes dois países, o impacto da Guerra da Argélia (1954–1962), aceleram os
processos de descolonização do resto do continente e levam a criação da
Organização da Unidade Africana (OUA) em 1963, que podemos consi-
derar como o primeiro processo de integração africana, e uma concretiza-
ção do pensamento pan-africanista. No que diz respeito à OUA, Ndlovu
(2008) arma que sem este bloco continental não teríamos possivelmente,
a atual arquitetura sub-regional, por isso os feitos da OUA, não podem ser
ignoradas na avaliação dos processos de integração regional africana. Evi-
dentemente, o nascimento da OUA é resultado do engajamento dos afri-
canos em geral e principalmente as elites da independência que, baseados
nas ideias pan-africanistas, vão buscar por todos os meios a realização dos
Estados Unidos da África (NDLOVU, 2008). O engajamento dos intelec-
tuais e líderes políticos em favor da integração pode ser visualizada a través
da produção intelectual da época. Assim, tivemos a publicação do livro
Nação Negra e Cultura, do historiador senegalês Cheikh Anta Diop em
1955, no qual o autor resgata os valores negros e refuta a ideia eurocêntrica
de uma África a-histórica, assim como a tentativa das teorias racistas de
desvincular a civilização e a cultura egípcia, julgada branca, da civilização
e cultura da parte subsaariana do continente. O mesmo autor publicou,
em 1960, l´Afrique Noire pré-colonial (África Negra Pré-colonial), l Unite
Culturel de l´Afrique Noire (A Unidade Cultural da África Negra) e Les Fon-
dements politiques, économiques, culturels, industriels, tehnologiques et cienti-
ques d´un futur Ètat Federal d´Afrique Noire (Os fundamentos políticos,
econômicos, culturais, industriais, tecnológicos e cientíco de um futuro
Estado Federal da África Negra). Estas três obras têm em comum a defesa
da Unidade Africana, o resgate da história e dos valores africanos como
pilares da solidariedade africana.
Na mesma época, Kwamé Nkrumah, então presidente de Gana
lançou, em 1963, seu livro intitulado Africa must Unite, onde defende
272
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
a importância e a urgência da unidade econômica, política, social e cul-
tural do continente. Mas também militarmente para lutar contra o co-
lonialismo em todas as suas formas no continente (NKRUMAH, 1963;
OUÉDRAOGO, 2005).
Isto é a expressão do pan-africanismo, que partiu da consciência
unitária nascida na diáspora em geral e especicamente dos escravos negros
durante a travessia do Atlântico, e amadureceu na América e na Europa
antes de aterrissar em solos africanos trazido por esses intelectuais e futu-
ros dirigentes políticos (OUÉDRAOGO, 2005). Assim, o debate sobre a
independência africana do período de 1950 a 1960, foi animada pela ques-
tão da unidade africana e foi uma das principais preocupações dos líderes
políticos. Cada líder buscava uma fórmula desta unidade. No entanto, não
tinham uma mesma concepção do caminho a ser seguido para alcançar o
objetivo da unidade considerado por todos a última etapa da independên-
cia africana (ABWA, 2005).
Neste período as questões da unidade e da integração eram vistas
como uma das principais soluções do continente para se livrar da depen-
dência e da tutela do ocidente. Por esse motivo, os membros do Ressemble-
ment Democratique Africaine (RDA), um dos partidos políticos que nego-
ciavam a independência, propuseram o federalismo como quadro político
inicial. Foi esse projeto político que foi sintetizado e publicado em Les
fondement culturels et industriels d´um futur État Féderal d´Afrique Noir, ou
seja, os fundamentos culturais e industriais de um Estado Federal da África
Negra, por Cheikh Anta Diop, em 1960.
Nesta obra, o autor, lança as bases constitucionais, linguísticas,
econômicas e sociais do Estado federado da África Negra, além de mostrar
toda a fragilidade dos países africanos e da sua independência neocolonial,
caso a mesma seja consolidada fora de um sistema federal continental (GO-
MA-THETHET, 2005). No entanto, importa ressaltar que esta convicção
de Cheikh Anta sobre a importância da unidade continental, vem do seu
conhecimento cientico, sobre o passado histórico da antiga organização
política, econômica e social da África Negra como ele mesmo arma:
A antiga organização política, econômica e social da África negra desde
2000 anos, a organização administrativa, militar, jurídica, a organi-
zação do ensino, o nível universitário e técnico, o uso e o esplendor
273
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
da vida na corte, hábitos e costumes, tantos fatos que se acreditavam
serem perdido para sempre nas brumas do tempo, podemos resgata-los
a impressionante, cientico, na África Negra pré-colonial e para todo
oeste africano em particular (DIOP, 1960, p. 15).
1
Importa ressaltar a importância do resgate histórico quando se
pensa a integração africana, pois, como mostra Diop, nas linhas supraci-
tadas, as bases políticas, econômicas, socioculturais e mesmo securitárias e
cientícas deste processo podem ser vislumbradas no continente antes da
chegada da colonização ocidental no século XIX. Obviamente, isto passa
pelo resgate da verdadeira história e da identidade africana antes da che-
gada dos Europeus, o que fez Cheikh Anta Diop, ao publicar L´Afrique
Noire Pré-colonial (África Negra Pré-Colonial), em 1960. Esta obra além
de mostrar a importância das civilizações tradicionais africanas, compara
a evolução sócio-política da Europa e da África da antiguidade aos tempos
modernos, no intuito de mostrar a origem da estagnação e do atraso afri-
cano a partir da colonização. Em outras palavras, Diop, assim como outros
intelectuais, mostra que antes da colonização a África tinha suas institui-
ções, suas estruturas e, principalmente, sua própria ideia de governo e de
organização social. Igualmente, isto signica armar a relação que existe
entre o atraso africano de um lado e o avanço da Europa ocidental através
de padrões comparativos.
Neste sentido da mesma forma que Diop, Rodney (2012), ar-
ma que:
a África de hoje está subdesenvolvida em relação a Europa ocidental
e outras partes do mundo não por uma evolução separada da Europa,
mas sim, devido a exploração resultante do longo e extenso período de
contato com a Europa (RODNEY, 2012, p. 33, tradução nossa).
Na opinião deste autor, para compreender o subdesenvolvimento
(atraso) africano, é preciso: (1) reconstruir a natureza do desenvolvimento
africano antes da vinda dos Europeus; (2) reconstruir a natureza do de-
Tradução nossa do texto original en francês: L´ancienne organisation politique, économique et sociele de l´Afrique
Noire depuis 2000 ans, l´organisation administrative, militaire, judiciaire, l´organisation de l´enseignemant, le ni-
veau universitaire et technique, les usages et les fastes de la vie de cour, les moeurs et coutumes, tant de faits que
l´on croyait à jamais perdu dans la nuit du temps, nous avons pu les resussiter de façonsaisissantes, scientique dans
l´Afrique noire, pour tout l´ouest africain em particulier.
274
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
senvolvimento que ocorreu na Europa antes da expansão no exterior; (3)
analisar a contribuição da África para o presente estado europeu “desen-
volvido”; e por m, (4) analisar a contribuição da Europa para o presente
Estado “subdesenvolvido” da África. Isto reforça o argumento segundo o
qual, é necessário entender o passado histórico africano para melhor pensar
o presente e o futuro do continente, assim como justica a importância
do conhecimento do passado histórico para pensar as bases da integração
africana como sugere Diop.
Deste modo, para justicar a importância de uma África federa-
da, ele parte da demonstração da unidade histórica, da unidade física e ge-
ográca que implica ou/e justica uma unidade econômica, mas também
arma que existe um fundamento linguístico que justique a necessidade
da unidade política africana. A este respeito, Diop arma:
As línguas africanas apresentam a mesma unidade e constituem uma
mesma grande família linguística tanto homogênea quanto a das lín-
guas indo-europeia. Nada é mais fácil que de estabelecer as leis (re-
gras) que permitem a passagem de uma língua zulu (bantou) a uma
língua oeste africana como o Sèrere, Walaf, Fulani (DIOP, 1960, p.
17, tradução nossa).
Como se percebe, o pensamento de Diop, não somente mostra
a necessidade da unidade africana, mas também comprova que a mesma é
possível e, mais que isso, a coloca como condição indispensável para fazer
do continente uma região independente, autônoma, capaz de gerar um
bem-estar social adequado para sua população. Deste modo, apesar da luta
pela independência africana não levar a uma estrutura favorável a constru-
ção de uma unidade, nem regional e muito menos continental, já que os
territórios foram adquirindo independência de forma fragmentada, a ideia
desta unidade não cou esquecida. O entusiasmo gerado pela criação dos
Estados nacionais nos moldes da conferência de Berlim e das fronteiras
coloniais, consolidando desta forma a política de dividir para reinar, que
é uma das características do imperialismo europeu (ADEBAJO, 2013),
deixava distante qualquer expectativa real de unidade nas linhas defendidas
por Nkrumah, Diop e companhia.
275
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Porém, foi neste contexto em que o tema da integração regional
parecia ser ultrapassada e pouco realista, tanto pela euforia das indepen-
dências dos territórios de forma fragmentada, quanto pela pressão das po-
tências ocidentais, que a ideia de integração regional aparece como uma
solução incontornável para o continente, seguindo de certa forma a eco-
nomia política internacional, marcada pela crise do petróleo da década de
1970. As consequências e impactos desta crise colocam os jovens Estados
africanos diante da real política marcada pela Guerra Fria. Assim, se de um
lado o continente celebra o m do colonialismo português com a indepen-
dência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, em 1974, e Angola e Moçambique,
em 1975, do outro lado, o continente enfrentava como nenhuma outra
parte do mundo os efeitos da Guerra Fria (apartheid na África do Sul,
guerra civil em Angola, crise econômica e política no resto do continente).
Isto inuenciou a evolução dos processos de integração regionais na Áfri-
ca e especicamente em sua parte ocidental, onde a Nigéria, recém-saída
da guerra civil de Biafra (1967–1970), propõe a criação da Comunidade
Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), rompendo desta
forma, com a ideia de fronteira e de rivalidade entre países de ex-colônias
francesas e inglesas na região.
Em síntese, percebe-se que o surgimento de dinâmicos proces-
sos e estruturas de integração regionais no continente africano, no perí-
odo pós-guerra Fria, são resultados do processo histórico do continente
desde a era dos impérios africanos (Mali, Congo, Benim), passando pela
era da dominação colonial europeia e culminando nos processos de in-
dependência no nal da segunda Guerra Mundial (1939–1945) e iní-
cio da Guerra Fria. Deste modo, entende-se que é quase que impossível
compreender os problemas e as perspectivas da integração africana que
tomou corpo e consistência no período pós-Guerra Fria, principalmente
a partir do renascimento africano – Criação da União Africana (UA) no
lugar da Organização da Unidade Africana (OUA) e da Nova Parceria
para o Desenvolvimento da África (NEPAD).
Esta nova dinâmica, iniciada a partir da década de 1990, tornou
as organizações regionais os principais atores na gestão de conitos, mas
também atores de desenvolvimento econômico no continente. As Comu-
nidades Econômicas Regionais (CER), criadas entre meado de 1970 e iní-
276
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
cio de 1980, se destacaram desde início, por terem claros os objetivos iden-
ticados em suas diversas áreas de atuação (economia, política, segurança).
A consagração das CER como atores indispensáveis a serem levados em
conta na busca do desenvolvimento socioeconômico, político e cultural do
continente veio com a criação da União Africana (UA) em substituição à
OUA. A nova instituição tomou como pilares da integração continental as
CERs. Além disso, a implementação de mecanismos institucionais adap-
tados às questões regionais, assegurando uma coordenação continental, foi
acompanhada por um desejo de conectar a África, atormentada pela proli-
feração excessiva de organizações (SALL, 2006).
No entanto, cabe ressaltar que isto não signica que a histó-
ria da integração regional africana, iniciou com o m da bipolaridade,
pois, no caso da África Ocidental, por exemplo, a análise da evolução
do processo de integração apresentada por Sall (2006), considera três
'hipotecas': a colonial, a política e a técnica. Na primeira, o autor mostra
que a integração nesta parte do continente foi primeiro uma ação espon-
tânea do povo, que ataram os laços familiares, parentais, econômicos e/
ou culturais. Em segundo lugar vem a vontade política no âmbito dos
grandes impérios locais tais como Mali, Songaï, Fouta. Ou seja, a inte-
gração oeste africana vem bem antes da colonização e da independência
dos atuais Estados nacionais, apesar de se pensar, acreditar e armar que
a integração oeste africana é um processo recente, introduzido pelo co-
lonizador europeu como no caso da África Ocidental Francesa (AOF).
Neste sentido, Sall é bem enfático ao armar:
A África em geral e sua parte Ocidental em particular tem experimen-
tado desde muito cedo formulas federativas, o que evidentemente fa-
cilitou a implementação dos processos de integração pós-coloniais. É
verdade que de uma época a outra, as motivações mudaram. Os gran-
des impérios pré-coloniais realizaram a unidade da sub-região em uma
perspectiva hegemônica. Tratava-se na maioria das vezes para eles, não
de constituírem federações de coletividade sob uma base igualitária ou
em um conjunto gerado de benefícios distribuídos de forma igualitá-
rias, mas tratava de a sujeitar outros reinos, anexar outras terras (SALL,
2006, p. 05, tradução nossa).
2
Texto orinal em frances: L´Afrique de l´Oueste a tôt experimenté des formules fédératrices, ce qui a bien entendu
facilité les entreprises d´intégrationpost-coloniales. Il est vrai que, d´une époque à l´autre, les motivations ont changé.
Les grand empires pré-coloniaux ont réalisé l´unité de la sous région dans une perspective hégémonique; il s´est souvent
s´agit pour eux, non de fédérer des collectivités sur une base égalitaire ou dans un ensemble générateur de prosqui-
tables redustribué, mais plutôt d´assujettir d´autres rayaumes, d´annexer d´autres terres (SALL, 2006, p. 5).
277
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Desse modo, vê-se que o pensamento aglutinador, ou
integracionista não é fato novo no continente apesar dele se basear em
ambições hegemônicas. Mas, de qualquer modo, pode-se armar que neste
contexto, a chegada do colonizador constitui uma ruptura em relação aos
processos de integração política em curso. Nesta mesma linha, Barry arma
que a África tradicional era caracterizada pela unidade e diversidade, além
da existência de um fundo cultural de origem comum (ou parentesco) e
uma organização social análoga que fazem do continente uma realidade.
E esta realidade viva, larga e rica não esperou a conquista colonial para
tomar emprestado e dar aos outros grandes conjuntos do antigo mundo
mediterrâneo (BARRY, 1985). Portanto, mesmo a criação da África
Ocidental Francesa como unidade administrativa, fez de certa forma um
resgate da estrutura que ali existia antes da colonização. Obviamente esta
estrutura colonial tinha uma preocupação administrativa, não obstante,
de maneira indireta ela acaba ajudando, de certo modo, os Estados pós-
coloniais a forjar uma ideia centralizadora de um Estado oeste africano.
Assim, a 'hipoteca' colonial como quadro de integração pode se sustentar
somente quando nós pensamos no âmbito dos territórios administrados
por uma única potência colonial como foi o caso da AOF. Saindo deste
quadro essa 'hipoteca', aparece mais como fator de divisão do agrupamento.
Em suma, no caso oeste africano, onde temos colônias portugue-
sas, inglesas e francesas, a 'hipoteca' colonial não pode ser vista como fator
de união, mas sim fator de divisão e um gargalo para o atual processo de
integração regional. A América Latina passou por um processo parecido
na sua primeira onda de integração, que foi marcada por várias tentativas
frustradas de integração regional devido, de certo modo, a disputas entre
Estados Unidos e Inglaterra pela divisão da América Latina, mas também
a um desejo de integrar a América hispânica como destacaram os tratados
assinados no congresso de Panamá (SOUZA, 2012). Ou seja, a 'hipoteca'
colonial denitivamente não é um elemento que joga em favor da integra-
ção tanto na África Ocidental quanto em outras partes do continente.
O segundo ponto analisado por Sall (2006), decore direta ou in-
diretamente da primeira, pois trata da 'hipoteca' política que traz consigo
um ponto fundamental das Relações Internacionais do período pós-Se-
gunda Guerra Mundial (1939–1945), que é a rivalidade Leste-Oeste. A
278
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tentativa de integrar os países da África Ocidental através da criação de
organizações regionais se deu em pleno contexto da Guerra Fria, portanto,
fortemente impactada pelo antagonismo ideológico. A África Ocidental
é uma ilustração da rivalidade Leste-Oeste e por isto, as organizações re-
gionais constituídas foram, e continuam sendo, baseadas na crença ou no
alinhamento ideológico (SALL, 2006).
Assim, pode-se falar da bipolarização do espaço organizacional
não somente da África Ocidental, mas do continente como um todo,
como ilustra espetacularmente a rivalidade entre o grupo de Brazzaville,
moderado e francófono, e o grupo de Casablanca, revolucionário antico-
lonialista. O grupo de Casablanca criado em 1961 na capital Marroquina,
foi constituído em reação ao grupo de Brazzaville, formado por: Marrocos,
Líbia, Egito, Gana, Guiné e Mali. Ou seja, o grupo é composto por três
estados da África do Norte e três Estados do Oeste africano. O objetivo
do grupo é fazer triunfar as liberdades em toda África, realizar a unidade
do continente, em um quadro de não alinhamento, lutar para aniquilar o
colonialismo e o neocolonialismo sobre todas suas formas.
Esta luta ideológica será ganha pelo grupo moderado de Brazza-
ville, que, alêm de ganhar novos membros a partir de 1961, quando rece-
beu a adesão de Etiópia, Libéria, Serra Leoa, Líbia, Nigéria, Togo, Tunísia
e Somália, acaba ditando os desenhos de integração africana, seja em nível
continental (OUA), seja no âmbito regional, que é o caso da África Oci-
dental. Nesta parte do continente, a vitória do grupo moderado de Brazza-
ville teve uma consequência direta na evolução dos processos de integração
regionais e trouxe de volta a 'hipoteca' colonial como base do processo,
permitindo desse modo, o pioneirismo do colonizador no desenho institu-
cional com três zonas possíveis: a zona francófona, que corresponde aos an-
tigos territórios da AOF, cujo projeto de integração foi ensaiada pela cria-
ção da Federação do Mali, que visava agrupar territórios da antiga África
Ocidental Francesa (M’BOKOLO, 2011); a zona anglófona, caracterizada
por sua descontinuidade territorial, pois foi conformada pelos territórios
da Gambia, Gana, Libéria, Nigéria e Serra Leoa; e por último a zona lusó-
fona, formada por Angola, Cabo Verde, Guine Bissau, Moçambique e São
Tomé e Príncipe (SALL, 2006).
279
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
No entanto, é o grupo de Brazzaville que vai ditar as modalida-
des de integração da região, principalmente porque seus interesses se con-
fundem ou combinam aos interesses das ex-potências coloniais (França,
Inglaterra, Portugal), portanto, do campo ocidental do ponto de vista ide-
ológico, em detrimento do grupo de Casablanca, revolucionário e adepto
ao não alinhamento.
A grosso modo, percebe-se que a fase política da evolução da in-
tegração africana foi marcada pela brigada ideológica no mundo pós-se-
gunda Guerra Mundial, que resguardou a ingerência externa direta dos
Estados Unidos e de seus aliados ocidentais, em especíco, França e In-
glaterra. Nesta ótica, cabe fazer um pequeno comparativo em relação ao
que acontece em outras partes do mundo, pois ao mesmo tempo que as
potências ocidentais (França, Inglaterra e Portugal), buscavam inuenciar,
se não travar os processos de integração africanos, os Estados Unidos da
América faziam, por exemplo, a mesma coisa em relação a América Latina,
na segunda “onda” que começa com as transformações ocorridas na região
durante a grande crise – 1914–1945 – e vai até o seu esgotamento, em ns
dos anos 1960 e começo dos anos 1970 (SOUZA, 2012). Neste sentido a
diferença entre a América Latina e a África, em relação a integração, está
principalmente na linha de tempo de existência dos Estados como unida-
des políticas autônomas. Enquanto, na América Latina, a grande crise traz
como principal mudança a deagração de um processo de industrialização
em vários de seus países, na África, os países recém alcançavam a indepen-
dência política, mas, continuavam mais dependentes do ponto de vista
econômico e securitário. Sair desta dependência constituía, e continua sen-
do, um dos principais desaos cuja eliminação está depositada na unidade
africana. Esta unidade cuja necessidade fora proclamada com vigor nos
congressos e conferências de Manchester, em 1945, de Kumasi, na atual
Gana, em 1953, de Acra, em abril e dezembro de 1958, e de Cotonou,
em julho de 1958, era o horizonte proclamado da maioria das formações
e dos dirigentes políticos como testemunha, nomeadamente, a referência à
África” e não a territórios particulares, no nome de um grande número de
partidos
3
políticos (M’BOKOLO, 2011). Isto indica que a ideia da inte-
African Nacional Congress, Kenya African Union, Nyassaland AfricanUnion, Pan-Africanist Congress, Parti
Africain de l´Independance, Parti du Regroupement Africain, Parti Solidaire Africain, Ressemblement Dèmo-
cratique Africain, Tanganyka African National Union.
280
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
gração está presente nos pensamentos dos africanos antes, durante e depois
da independência. Portanto, os desaos estão historicamente presentes em
todos os processos da construção dos Estados, apesar das expectativas desta
integração continuarem alimentando os sonhos africanos.
3 Quais são os Desafios e PersPectivas Da integração
africana?
A partir do início do século XXI, o mundo assistiu a um res-
surgimento do continente africano. Ressurgimento este que os próprios
africanos denominaram do Renascimento africano, onde, com a criação
da UA, fortaleceram-se as relações interafricanas através do fortalecimento
dos blocos de integração regionais (CEDEAO, SADC, CEMAC, IGAD)
de um lado, os quais se encarregaram de resolver os principais conitos da
década de 1990 (Ruanda, Burundi, Libéria Serra Leoa, Guiné-Bissau), e
do outro, Organizações como a Nova Parceria para o Desenvolvimento da
África (NEPAD) e o Programme for Infrastructure Development in Africa
(PIDA),e o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), responsáveis por
pensar o desenvolvimento do continente.
Juntamente a estes processos, a África assistiu, como em outras
partes do mundo, o fortalecimento das instituições, a consolidação da de-
mocracia como forma de acesso ao poder, o avanço dos Direitos Humanos,
a resolução da maioria dos conitos e guerras que aigem o continente.
Enm, em pouco tempo, assistiu-se ao desaparecimento do afro pessimis-
mo devido, principalmente, à criação do Mercado Comum Africano atra-
vés das diversas organizações de integrações regionais – as CERs.
Os pilares principais da União Africana, criada em 2001 no lugar
da OUA são o reforço dos dispositivos favorecendo a livre circulação das
pessoas e dos bens no continente, possibilitada pela uniformização dos
documentos (passaporte) e supressão de vistos entre países africanos, assim
como, a criação de instituições educativas (universidades) de cunho con-
tinental, promovendo a educação da opinião pública africana em favor da
Unidade Africana (TSHIMBE, 2001).
281
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Seguindo esse raciocínio, parece fácil traçar as perspectivas
da integração africana, e prever um futuro africano de prosperidade,
desenvolvimento e bem-estar social, para este e os próximos séculos.
Tanto é que alguns analistas não hesitam a armar que estamos vivendo
o século africano (SAMB, 2010; MAMDANI, 2004; TOUNKARA,
2015). Porém, no mundo globalizado isto, por si só, parece ser um
grande desao, sem contar os novos desaos que apareceram juntamen-
te com a luta pela democratização.
Primeiro, como manter esta chama de desenvolvimento e espe-
rança, numa conjuntura internacional globalizada e cada vez mais em cri-
se, econômica, política e até cultural? Em segundo lugar, como um con-
tinente como o africano pode pretender uma autonomia, sendo bastante
debilitado em termos tecnológicos, econômicos políticos, institucionais e,
dependente totalmente do exterior, pois, nem empreendeu uma primei-
ra fase de industrialização? Em terceiro lugar, como a África, que sempre
foi fonte de abastecimento de matérias-primas e mão-de-obra barata para
o capitalismo e mercado aberto para os países capitalistas, pode de um
dia para outro se tornar autônoma? Se isso acontecer, qual vai ser a rea-
ção dos países capitalistas em geral e particularmente as antigas potências
coloniais, principalmente se aceitamos a ideia de que jamais existiu uma
ordem mundial” que fosse verdadeiramente global?. Segundo Kissinger
(2015), a ordem que conhecemos hoje foi concebida na Europa Ocidental
há quase quatro séculos numa conferência de paz realizada na região alemã
de Vestefália, sem o envolvimento, ou sequer o conhecimento, da maioria
dos outros continentes ou civilizações.
Eis algumas questões que nos permitem problematizar e reetir
os desaos e as perspectivas da integração africana, obviamente sem pre-
tender esgotá-las. Podemos discutir tomando como ponto de partida a
crise econômica mundial de 2008, seguida das crises políticas em diversos
países africanos a partir de 2010 (Costa de Marm, Líbia, Mali, República
Centro Africana), além de outros países que enfrentam o terrorismo (Ni-
géria, Argélia, Mauritânia, Mali). Diante deste cenário, parece fácil apon-
tar os desaos do continente, que seriam enfrentar as novas ameaças com
o terrorismo internacional e as questões ambientais, dentre outras, assim
como amenizar o impacto da crise econômica internacional.
282
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
A manutenção da chama do desenvolvimento e esperança africa-
na neste novo século, vai depender de fatores internos e externos até por-
que como bem observa Khanna (2011, p.78), vinte anos depois do m da
era unipolar resultante do colapso da União Soviética, não existe algo que
se possa chamar de “segurança global”. Isto signica que o mundo globali-
zado em que vivemos atualmente é um mundo caótico, onde não há nem
acordo sobre as normas balizadoras de uma ordem internacional. Portanto,
é com muito cuidado que se pode buscar uma continuidade nos processos
de estruturação e institucionalização do continente, já que isto pode ser
visto (ou é visto) como ameaça a outros atores do sistema internacional
em geral e, particularmente, aos países ocidentais que continuam muito
dependentes da exploração dos recursos africanos. A intervenção da Orga-
nização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Líbia, em 2011, ilustra
esta percepção de ameaça e possibilidade de agressão externa geradora de
estagnação, e até retrocesso, dos projetos que objetivam buscar uma maior
autonomia do continente.
Deste modo, é importante que do ponto de vista interno, a cons-
trução de um entendimento entre os países africanos, que consistiria na
resolução das diferenças e discordâncias de qualquer natureza de modo
que se possa estabelecer metas e objetivos comuns e, principalmente, traçar
estratégias pautadas na diplomacia e no diálogo para alcançá-los. Conside-
rando o contexto e a conjuntura internacional atual, considera-se impor-
tante para a manutenção continuada das estruturas integrativas do conti-
nente africano, a apropriação e defesa de ideias segundo as quais quanto
mais se permite a propagação da autonomia política, mais pacíco se torna
o mundo (KHANNA, 2011).
Segundo este autor,
De modo muito semelhante com a que ocorreu na Idade Média, o
mundo se organiza em discretos sistemas regionais, cada um com
suas regras e isso, deveria ser incentivado. A restauração de qualquer
senso de estabilidades global começa pela estabilidade regional. E,
dentro de cada região, o maior passo isolado que pode ser dado para
aumentar a segurança de todos é refazer as fronteiras mais instáveis.
As fronteiras medievais eram uidas, com milhares de entidades
políticas e econômicas navegando um mundo cada vez mais aberto
(KHANNA, 2011, p. 78).
283
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Estas palavras de Khanna, não somente reforçam a ideia de que
é importante resgatar o passado histórico do continente em termos de in-
tegração, mas também sugerem que o mundo precisa recuar para poder
avançar com maior segurança. Neste sentido, buscar a consolidação da in-
tegração africana para manter a chama do desenvolvimento e da esperança
acesa pelo renascimento, pode signicar voltar no mapeamento do conti-
nente, onde as fronteiras coloniais serviram apenas para causar problemas
(SAMB, 2010; KHANNA, 2011).
Assim, percebe-se que os desaos da integração africana não se
resumem na multiplicação dos conitos, mas, o mais importante desao
tem a ver principalmente com a natureza e a gravidade dos mesmos em ter-
mos de perda humana, de deslocamento forçado de população, de violação
extensa de direitos humanos, de danos causados ao meio ambiente e de pi-
lhagem incontrolada de recursos (M’BOKOLO, 2011). Isto signica que
os desaos são múltiplos, complexos e, seu enfrentamento não depende
somente de fatores e atores internos e muito menos de uma única vontade
da África e dos africanos. A responsabilidade de enfrentar os desaos passa
para os organismos de integração regionais e a própria União Africana, a
responsabilidade de apontar soluções. Por isto, deve-se buscar o fortaleci-
mento das estruturas e dos mecanismos de integração pela diplomacia e a
negociação no âmbito interno e internacional.
Vale ressaltar a importância da diplomacia e da capacidade de
negociação na busca pela manutenção do desenvolvimento e da esperança
africana, visto que o mundo vive um período onde todos os atores do siste-
ma estão competindo em governar territórios, controlar recursos, conquis-
tar comércio e investimento, e obter apoio popular (KHANNA, 2011).
Ora, o continente africano é conhecido por ter extensos territórios, recur-
sos abundantes e um mercado para o comércio e o investimento, por isso
vive-se uma continuada competição no continente.
Segundo Khanna (2011), ao conferir poder e autoridade às redes
terroristas transnacionais, ao crime organizado e aos tracantes de drogas,
a globalização tornou alguns países ainda mais fracos, enquanto empresas
multinacionais e ONGs crescem em poder e estrutura. Pode-se dizer que
as principais vítimas desta conjuntura são os países africanos e, mais que
isso, a intervenção ocidental na Líbia, no Mali, na Costa de Marm e em
284
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
boa parte do Sahel, desestruturou os Estados nacionais assim como as or-
ganizações de integração regionais, como a União Africana, e fortaleceu o
crime organizado e o terrorismo internacional no continente.
Porém, entendemos que se enfrentar estes fenômenos são verda-
deiros desaos para a integração africana, o maior desao continua sendo
o enfrentamento do neocolonialismo e do imperialismo ocidental, que
evidentemente se benecia destes fatos transnacionais para manter sua
agressão ao continente, assim como a exploração dos recursos energéti-
cos e geopolíticos do continente. Portanto, podemos pensar em desaos
internos que podem ser resumidos no desenvolvimento socioeconômico,
no enfrentamento dos conitos e guerras internas e a boa governança e
nos desaos externos que são entre outros, enfrentar o terrorismo interna-
cional, aquecimento global bem como fazer frente de forma coletiva aos
efeitos das crises econômicas internacionais, do imperialismo e, principal-
mente, do neocolonialismo.
Em outro momento, defendemos e continuamos defendendo,
sem negar o real perigo do terrorismo islâmico para os países africanos,
que o principal desao para os processos de integração africanas continua
sendo enfrentar estrategicamente o neocolonialismo e o imperialismo das
antigas potências coloniais, que, cinquenta anos após o m formal do co-
lonialismo, continuam defendendo e preservando seus interesses a ferro e
fogo no continente. Bastou alguns sinais de prosperidade e possibilidade
de autonomia do continente em relação a Europa, para suscitar os de-
mônios da ‘Françáfrica’ e voltar a reviver o tempo da ingerência francesa
(ocidental) nos assuntos internos dos países africanos, eliminando desta
forma, não somente os líderes do renascimento africano como Kada, mas
também afastar governos não amigos como foi o caso do presidente do
Mali, Ahmadou Toumani Touré, vítima de um golpe de Estado, abrindo
brechas para a intervenção francesa no país, como se estivéssemos ainda na
época da Guerra Fria.
Isto traz um retrocesso nos processos de institucionalização afri-
canos, assim como paralisa os avanços registrados nos últimos anos nas áre-
as econômicas, políticas e sociais, e até poderá trazer de volta os conitos
internos que foram vivenciados na década de 1990. É importante lembrar
que as guerras civis africanas dos anos noventa foram causados por um so-
285
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
matório de fatos que vão desde a mal governança dos países baseados nos
partidos únicos e nos governos ditatoriais, passando pela crise econômica
da década perdida (1980–1990), agravada pela crise de dívida resultante
dos Programas de Reajustamentos Estruturais (PAE), para culminar na
imposição de valores como a democracia ocidental, dos votos universais
enm, das eleições não transparentes, que somente aumentaram a frustra-
ção da população africana. Mas também pela disponibilização de armas
por tracantes, bem representados pelo personagem de Andrew Niccol do
lme ‘Senhor das Armas’.
Para piorar o cenário viu-se a chamada ‘primavera árabe’ varrer os
governos ‘autoritários’ do norte da África. Essa ‘primavera’ desestabilizou
os Estados daquela região, abriu caminhos para a onda de imigração de
africanos em direção, infelizmente, aos ditos países desenvolvidos, sem que
as principais organizações de integração regionais africanas (UA, CEDE-
AO, SADC, IGAD, CEMAC), pudessem fazer algo pois, esses fenômenos
paralisaram os seus funcionamentos e tendem a inviabilizar seu projetos de
unir, desenvolver e manter a segurança no continente.
Isto parece indicar que, apesar de estarmos vivendo em pleno
século XXI marcado pela globalização da economia mundial capitalista, o
ocidente busca de forma continua, evitar a emergência da periferia ou da
semiperiferia (AMIN, 2014). Portanto, da mesma forma que o projeto de
renovação do Egito de Mohammed Ali e de seus vizinhos do Maxerreque
árabe no século XIX, foi sufocada na segunda metade do reino do Khedivel
Ismail durante os anos de 1870, pela agressão externa da principal potência
do capitalismo industrial da época, a Grã-Bretanha, pode se armar que
a invasão da Líbia de Khada pelas forças da OTAN em 2011, constitui
uma ruptura do processo da renovação das instâncias africanas em busca de
uma inserção autônoma no sistema internacional vigente (AMIN, 2014).
Deste modo, pode-se considerar que os processos de integração
regionais africanos devem continuar atentos aos desaos históricos do con-
tinente desde da eliminação dos traços do passado colonial, passando pelas
indecisões, indenições ao longo do período da Guerra Fria, e as crises
de leadership enfrentadas na primeira década depois da queda do muro
de Berlim, reforçados pelos egoísmos nacionais (KAMIAN, 2007). Além
disso, lutar e vencer as agressões externas motivadas pelos interesses geo-
286
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
políticos que representam o continente africano, bem como buscar uma
melhoria das economias a m de gerar maior bem-estar, possibilitando a
abertura de espaços de atuação conjunta na defesa dos interesses da África
e dos africanos (SAMB, 2010).
Neste contexto, a luta pela autonomia do continente, se apresen-
ta como um dos desaos cujo enfrentamento passa pelo fortalecimento
das estruturas e instituições regionais bem como o controle e exploração
dos recursos na perspectiva de criação de uma indústria de transformação
local. Para isso, o inventário dos recursos e das potencialidades do con-
tinente feita por Cheikh Anta Diop, em 1960, pode ser de grande valia
para acelerar o desenvolvimento por meio da exploração e valorização do
continente. Segundo Diop (1960), a concentração simultânea dos recursos
energéticos e de matéria prima permite denir oito zonas industriais na
África subsaariana. Primeiro, a bacia do Congo, que pode ser destinada ao
desenvolvimento da indústria pesada devido a potencialidade de energia
hidráulica. Segundo, a região do Golfo do Benim, o delta do Níger, onde
se localiza atualmente Nigéria, a região do dahomey (que vai do Benin
passa pelo Togo atual e termina em Camarões), que pode e deve ser po-
tencializada na produção de indústria eletro-metalúrgica e eletroquímica
devido a abundância de urânio, ouro, alumínio mas também de madeira.
4
A terceira zona, segundo Diop, pode ser constituída no espaço ocupado
por Gana e Costa do Marm na atualidade que, além de possuir uma
potencialidade de energia hidráulica
5
, concentra grande parte da produ-
ção mundial de cacau.
6
A quarta zona seria localizada na região da atual
República da Guine, Serra Leoa e Libéria, região vista pelo autor como
uma região metalúrgica onde se pode instalar um centro para a indústria
automotiva e aeronáutica.
7
A quinta zona seria constituída na atual região
do Senegal, Mali e do Níger, podendo se especializar na produção têxtil, de
cereais, pesca, e serviria de zona de interconexão das linhas de distribuição
energética entre a terceira e quarta zona. A sexta zona se localiza no que o
Pode ser a base de uma indústria de papel, de destilação, óleo, etc.
Graças às potencialidades dos rios Volta, Bandama e Comoe.
Em 1960, quando foi publicado o livro, o autor estimava que os dois países monopolizavam mais da metade
da produção mundial de cacau.
Esta região além de possuir uma capacidade energética considerável, concentra boa parte das reservas minerais
(ferro, ouro, bauxita, uranio e diamante).
287
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
autor chamou do Sudão “Neolítico”, a região dos Grandes Lagos e Etiópia
que, além de possuir de grandes potencialidades energéticas, constitui uma
região geoestratégica, onde é possível desenvolver a indústria naval devido
a presença de grandes portos como o de Mombasa (Quênia). Por m, a
sétima e oitava zonas são respectivamente a bacia do Zambeze e a África
do Sul, vistas como propícias à instalação de uma variedade de indústrias
devido a abundância de recursos minerais energéticos, assim como a possi-
bilidade de desenvolver uma indústria agrícola.
Deste modo, a visão pan-africanista de Cheikh Anta Diop e ou-
tros, entende por autonomia africana a capacidade da África poder explo-
rar os recursos do continente em prol de um desenvolvimento socioeconô-
mico e político interno sem a ingerência de países estrangeiros ou a depen-
dência da ajuda internacional. Isto vem acontecendo devido ao revigora-
mento dos processos de integração regionais no continente neste início do
século XXI, marcado pelo que se chamou do Renascimento Africano com
a criação da União Africana (UA) no lugar da OUA e da NEPAD. Estes
processos levaram a um dinamismo dos blocos de integração regionais do
continente como CEDEAO, CEMA, SADC, IGAD e permite entrever
um futuro positivo no que tange as perspectivas do continente e de seus
processos de integração regionais.
4 – Quais as PersPectivas futuras?
Esta breve descrição panorâmica dos desaos da integração afri-
cana, coloca qualquer afro otimista em dúvida quanto as perspectivas fu-
turas promissoras da integração africana. Porém, um recuo histórico nos
anima ao armar que apesar das diculdades, dos problemas e do tamanho
dos desaos, nossa visão do futuro da integração africana é positiva. A
África é um continente paradoxal já que, apesar de estar em constantes
movimentos e mutações em busca de condições de vida melhores para
seus povos sem sucesso, continua sendo a principal fonte e reservatório de
matérias primas, um elemento geoestratégico e geopolítico fundamental
no plano internacional.
A África sempre foi, e continua sendo, palco onde se trava e se
resolve os conitos econômicos nanceiros e culturais de países e povos
288
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
estrangeiros, o que inibe a resolução dos principais problemas desta região.
Muitas vezes a literatura especializada, assim como mídia, se esquecem, ou
pelo menos deixam do lado, o elemento ingerência externa na explicação
dos porquês das crises econômicas, políticas e culturais enfrentadas pelo
continente africano em geral. Ora, nos parece inconsistente e incoerente
buscar explicar a situação econômica africana sem levar em consideração
os impactos negativos dos séculos de escravidão, seguidos de um longo pe-
ríodo de colonialismo ocidental, além de ser um dos palcos da Guerra Fria
(GF) e do neocolonialismo, que marcaram o continente tanto no ponto
político quanto socioeconômico ao longo do século XX.
Depois de ter vencido, ou parecer vencer, as agressões mais vio-
lentas e mais longas que a humanidade já conheceu, graças a seus imensos
recursos humanos e espirituais, e ter iniciado a adoção de uma estratégia
racional ecaz e voluntarista de forma a colocar todas as forças e potenciali-
dades em favor do enfrentamento dos problemas de paz, desenvolvimento,
resolução de conitos internos para, assim, se libertar da dependência e
da dominação estrangeira, somos convencidos que o surgimento do novo
fenômeno chamado terrorismo e crime organizado recolocou o continente
sobre a mira de novas ameaças. Isso pode até atrasar, mas não poderá frear
o avanço próspero dos processos de integração regionais africanos.
Isto signica que as reformas das instituições de integração re-
gionais africanas operadas a partir do renascimento africano, vieram para
car. No entanto, terão que enfrentar as diversas diculdades e desaos
tanto internos quanto externos, enm, terão que enfrentar os problemas
do mundo globalizado e nele se inserir. Ora, segundo Hobsbawm (2000):
A Globalização implica um acesso mais amplo, mas não equivalente
para todos aos recursos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avan-
çada. Do mesmo modo, os recursos naturais são distribuídos de forma
desigual. Por tudo isso, o problema da globalização está em sua aspira-
ção a garantir um acesso tendencialmente igualitário aos produtos em
um mundo naturalmente marcado pela desigualdade e pela diversidade
(HOBSBAWM, 2000, p.75).
Olhando estas linhas de Hobsbawm, parece que os problemas
africanos são idênticos aos problemas da globalização. Portanto, espera-se
que, mesmo com a impossibilidade de distribuir de forma equitativa os
289
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
recursos do continente entre sua vasta e crescente população, ocorra uma
diminuição das desigualdades sociais e uma melhor administração dos re-
cursos africanos pelos (e para os) africanos. Isto passa necessariamente, em
primeiro lugar, pela aquisição real da autonomia
8
e da independência do
continente e pelo m do neocolonialismo ocidental e, em segundo lugar,
pela denição clara das regras de acesso ao poder assim como a gestão de-
mocrática da coisa pública.
Acredita-se na recuperação da UA e de seus pilares (CERs), como
ferramentas que vão brigar para a inserção positiva do continente no siste-
ma internacional. Para tanto, será necessário contar com a colaboração dos
países do Sul em geral e particularmente os chamados países emergentes
como China, Índia, Brasil e Indonésia. O estreitamento das relações do
continente com estes países não pode ser visto como sinônimo de rompi-
mento com os países do Norte. Mas, mesmo assim, tal postura encontrará
oposição dos parceiros tradicionais (Europa e Estados Unidos), pois trata-
-se de brigar por espaços estratégicos e mercados de aproximadamente de
um bilhão de consumidores, além da África ser uma fonte inesgotável de
matérias primas e recursos energéticos.
Considerando estas variáveis (população versus recursos), pode se
armar que o grande dilema do século XXI para o continente africano tra-
çar um futuro digno para sua população que não para de crescer, passa pela
administração dos recursos, seja pelas unidades nacionais ou pelos blocos
de integração regionais, de forma que todos sejam beneciados.
Neste sentido Hobsbawm (2000), lembra que a questão em re-
lação ao crescimento da população é qual será o futuro de toda gente
que vive na terra, uma vez que, para o “Homo globalizatus”, a busca pela
Este texto está sendo escrito em um momento em que o debate sobre a autonomia é de atualidade e o ques-
tionamento dos pilares do Neocolonialismo em geral e francês em particular está no auge com protestos em
todo continente contra o uso do Franco CFA nas antigas colônias francesas de África. É importante frisar que
ainda na atualidade 14 países africano usam o CFA como moeda, sendo que para isso, é preciso depositar 50%
da liquidez dos mesmos no Tesouro francês, que controla tanto a emissão quanto a administração desta moeda.
Desde da independência dos países africanos em 1960, o questionamento desta moeda por qualquer autoridade
política africana, resulta na sua destituição do poder pelos vários meios inclusive golpe de Estado e assassinato
como foi o caso de Modibo Keita do Mali em 1965, Laurent Bagbo de Costa de Marm em 2011. Este debate
foi relançado pelos jovens pan-africanistas e liderado por um franco-Beninense chamado Kemi Seba, que de
maneira simbólica incinerou no dia 19 de agosto de 2017, uma nota de cinco mil franco CFA em Dakar na
Capital Senegalesa. Por mais detalhe consultar < http://www.jeuneafrique.com/470079/economie/kemi-seba-
-le-franc-cfa-et-le-bitafric/>.
290
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
felicidade é uma motivação geral do ser Humano na época moderna. Na
opinião do autor, o padrão de comparação histórica pelo qual o século
XXI será julgado é em que medida a criança que nasce será capaz de viver
uma vida digna, produtiva e feliz e, como o destino das crianças depende
do local onde elas nascerem (HOBSBAWM, 2000), esta deve ser uma
das principais preocupações das lideranças e da população africana em
geral. Isto signica que lutar contra as desigualdades sociais é um desa-
o da integração regional africana, mas também do mundo globalizado.
Como bem observa Hobsbawm
a desigualdade de oportunidades no mundo será um dos fatores
cruciais no futuro da humanidade, tanto enquanto coletividade
compara os indivíduos: disparidades regionais, disparidades
geográcas no interior de um mesmo país e desigualdades sociais
(HOBSBAWM,2000, p. 171).
Portanto, deve-se pensar com seriedade e engajamento no estan-
camento das desigualdades de oportunidades no continente, não somente
para resolver de forma denitiva os vários problemas (conitos, guerras,
migração e imigração) que castigaram e continuam castigando a África.
Mas, principalmente, evitar o surgimento de outros problemas como a co-
optação de jovens pelas redes do crime organizado e do terrorismo interna-
cional, assim como evitar a busca suicida pelos caminhos da imigração de
milhões de jovens. Considerando que no horizonte de 2030 e 2040, mais
de um bilhão de habitantes, ou seja, cerca de 25% da população mundial
(ECA, 2016), será africana, percebe-se que a responsabilidade da União
Africana (UA) com seus 54 países-membros é grande. No entanto, pode
ser enfrentada com facilidade, já que, ocupa na atualidade, o segundo lugar
no que tange à rapidez do crescimento do seu PIB, perdendo somente pela
Ásia. Segundo CHIRONGA, Mutsa et al (2011, p.02):
embora os problemas políticos, as guerras, os desastres naturais e as
políticas pobres possam desacelerar a África, as perspectivas para as
empresas voltadas para o consumidor são promissoras. Os africanos
gastaram US $ 860 bilhões em bens e serviços em 2008 – 35% a mais
do que os US $ 635 bilhões que os indianos gastaram e um pouco mais
do que os US $ 821 bilhões gastos do consumidor na Rússia.
291
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Isso mostra que, em relação ao futuro do continente africano e de
suas organizações de integração regionais e continental, as perspectivas são
promissoras e positivas, apesar da grandeza e da complexidade dos desaos
a serem enfrentados no caminho deste futuro.
5 – consiDerações finais
Antes de trazer as considerações nais, é importante lembrar que
o objetivo principal deste texto foi analisar os problemas, desaos e pers-
pectivas dos processos de integração regionais no continente africano. Para
isso, ele foi estruturado em torno de três pontos principais: a história dos
processos de integração regionais do continente, os desaos e as perspec-
tivas da integração africana. No que tange a parte histórica, evidenciou-se
a importância de se resgatar o passado, que se inicia com os impérios tra-
dicionais, os quais parecem moldarem as bases dos atuais blocos de inte-
gração regional, e passa pelas estruturas coloniais do século 19, que deixa-
ram suas marcas principalmente na parte da chamada África francófona,
cujos pilares ainda estão visíveis tanto no nível dos Estados independen-
tes, quanto nas diferentes fases dos processos de integração regionais. Por
isso, entre os desaos mais complexos a se enfrentar para a consolidação
da integração, tanto regional (CEDEA, CEMAC, IGAD, SADC) quanto
continental (União Africana–UA), estão aqueles atrelados ao sistema neo-
colonial ocidental no continente.
Assim do ponto de vista da segurança, por exemplo, percebe-se
que se de um lado o continente precisa da cooperação ou colaboração do
Ocidente em geral, e da França em particular, para lutar contra as novas
ameaças como o crime organizado e o terrorismo internacional, do outro
lado, entende-se que a própria presença militar do Ocidente é uma fonte
de preocupação e de insegurança. Do ponto de vista econômico-nancei-
ro, mais ainda, pois, atualmente existem quatorze países da antiga África
francesa que continuam dependente do franco CFA, moeda, emitida e
gerenciada pelo tesouro francês, constituindo um dos principais pilares
do neocolonialismo francês no continente e um dos fatores da fragilidade
econômica-nanceira destes países, sendo uma barreira para a integração
292
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
monetária entre África francófona e o resto do continente e um forte limi-
tador da autonomia dos países que o usam.
Em relação às perspectivas, mostrou-se que apesar da grandeza e
complexidade dos desaos a serem enfrentados, não há motivo para desa-
nimo ou pessimismo. Ao contrário, a evolução dos processos de integração
regional africanos, principalmente neste início do século XXI que viu o
surgimento da UA no lugar da OUA, e da Nova Parceria para o Desen-
volvimento da África (NEPAD), simbolizam o ressurgimento da ideia do
Renascimento Africano. Nesta nova fase, assiste-se a um revigoramento
dos processos de integração regionais em todo o continente, um amadu-
recimento dos processos de institucionalização dentro das unidades nacio-
nais, maior transparência da gestão pública e um avanço considerável na
democratização, além do aumento do bem-estar social, apesar do cresci-
mento da população, que de certo modo é resultado do estancamento dos
conitos e da melhoria das condições de vida da população em geral. Por-
tanto, apesar da nova fase de incertezas surgida desde da eclosão do que se
chamou de ‘primavera árabe’, em 2011, que resultou na morte de Khada,
um dos principais líderes do renascimento africano, e do fortalecimento
do terrorismo islâmico no continente, que abriu as portas para o novo
intervencionismo ocidental, o futuro da integração regional é promissor e
as perspectivas são boas.
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Kai Enno Lehmann
1 – introDuction
e European Union seems to have been in constant crisis
which has manifested itself through the so-called Sovereign Debt crisis,
the refugee crisis, Brexit or, currently, what one might call the ‘crisis of
democracy’ which has set the stage for a confrontation between the EU as
an organization and some of its new member states, particularly Poland
and Hungary. ese crises have led to a mountain of literature attesting to
the fragility of the European integration process.
Yet, despite all of this, the last year or so have seen a change of
mood within the European Union as a whole. Support for the process
296
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
of European integration is up in almost all member states and a new
spirit of political dynamism has been detected within the institutions
of the European Union. By contrast, in the United Kingdom serious
fragmentation has been entrenched as a result of its decision to leave.
is apparent revival of the European Union as a political project
whilst the United Kingdom struggles to adapt to its own decision to leave
raises a number of pertinent and interesting questions, which this article
will seek to, at least in part, answer. Amongst these questions are: What
conditions have changed over the last 12 months to justify the renewed
optimism displayed by the European Union? How does this contrast to the
conditions in the United Kingdom? What challenges remain for the EU in
order to overcome its current problems? What does all this mean for the
future trajectory of the European integration process?
In answering these questions, this work will use the conceptual
framework of Complexity to argue that, whilst, in particular, Brexit, has
given the EU new purpose and unity, it needs to work on several other of
its inherent conditions (and contradictions) to be assured of overcoming
its current challenges and reestablish itself as a credible and sought-after
international political actor. How this can be done will be discussed
towards the end of the piece.
2 tHe context: tHe multiPle crises of tHe euroPean union
at the European Union is passing through a crisis has not been
disputed, either in academic circles or by the European Union itself, for
quite some time. For instance, one EU diplomat who, at the time, was
based in Brazil, stated bluntly that ‘regionalism is in a deep crisis’ and
argued that the European Union was really quite lost: ‘e only time we
have real power is if someone wants something from us’.
1
Yet, there are signicant disagreements about what this crisis
actually is and represents. A lot of the literature discusses the economic crisis,
which has hit some of the EU’s member states hard (FEATHERSTONE,
2016; MAJONE, 2014). Others, however, have argued that this economic
 Interview in 2013, with a senior ocial at an EU Delegation in South America.
297
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
crisis – which manifested itself in fears for the future of the single currency
– was merely the symptom of a much deeper political crisis at EU level. In
very basic terms, Böll (2012) has shown that, at the EU, politics too often
trumps policy when it comes to deciding on a course of action. Along
the same lines, but going further, several other analysts have wondered
whether the very future of the European Union and its integration project
is at stake since there were now questions in many parts of Europe of
whether integration had gone too far (GIDDENS, 2014). is, in turn, is
both the consequence of, and contributes to, a weakening of key principles
that historically underpinned the European integration process. Schmitter
(2012), for instance, argues that there has been a breakdown of solidarity
between EU member states. With that, one of the fundamental pillars of
the whole European project is falling away, putting at risk the very future
of that project as a whole. In the place of shared commitments and visions,
recent years have seen the emergence of important new dierences and
cleavages within the European Union, for instance between new and old
member states, between rich and poor states, between those believing in
the necessity for further integration to tackle shared problems and those
seeking to re-empower the member states vis-à-vis the European Union. In
other words, there has been a signicant process of fragmentation which has
not allowed the European Union to act eectively or sustainably to address
the many problems it faces (OFFE, 2015). Rather, as Bittner (2010) has
argued, these many signicant dierences have led to a situation where
the European Union only does what it can, rather than what it has to. In
practice, this means that it does little things, whilst it leaves big, strategic
questions and problems unresolved.
is being the case, the EU, for several years, confronted a situation
where it became increasingly challenged from within its own member
states. Most clearly, this has manifested itself in national and European
elections, where euro-sceptic parties have scored some notable successes
and have gained widespread representation in parliaments in many EU
countries, as well as the European parliament itself (LEHMANN, 2015).
However, challenges have also come from some of the very same national
governments, which directly take part in EU decision-making. Perhaps
the two most obvious cases here are those of Poland and Hungary, whose
298
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Prime Minister, Òrban, has publicly stated his wish to implement in his
country an ‘authoritarian state’ along Russian lines, in a clear rejection of
the liberal foundations of the European Union (KELEMEN, 2015).
Within this context of a general malaise, the decision through
a popular referendum in 2016 by the United Kingdom to leave the
European Union appeared to be the ultimate expression of this crisis, with
one of the economically most important member states seeking to exit
the organization. Much ink was dispensed on the question of what this
means for the European Union, but there was a general consensus that
it represented, in the clearest form yet, the growing resentment by the
general population against the European Union (PEET, 2017; GRANT,
2016). Several commentators and politicians expressed the fear-and in
some cases the hope-that BREXIT, as it came to be known, would lead to
a chain-reaction, with other countries seeking to leave the block as well.
France and the Netherlands, with national elections in 2017 in which
euro-sceptic candidates were polling very well, were seen as the possible
next candidates, dealing a potentially fatal blow to the European Union as
a whole (SOROS, 2016).
Yet, such predictions have, at least for the time being, proved to
be premature. No other country has come forward to ask to leave the EU.
e elections in the Netherlands and France did not propel rightwing -
and anti - EU populist politicians to power. In fact, some commentators
have detected a new sense of purpose and even a little self-condence in
the EU since the BREXIT vote (STEARNS, 2017).
I will now use the conceptual framework of Complexity to both
explain the crisis through which the EU has been passing, the impact
BREXIT has had on this crisis and some future scenarios that the EU
may have to navigate. I will argue that Complexity oers a clear guide
to identify the conditions which can sustain the current equilibrium and
those that may undermine it in the future. It also allows for the drawing
of a clear contrast between the EU and the UK, pointing to actions the
UK could take to bring about a more coherent response to the challenges
posed by Brexit.
299
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
3 – tHe euroPean union as a comPlex aDaPtive system
e European Union is used to crises. In fact, some have argued
that the organizations modus of development and evolution is dialectical,
that is, periods of progress are followed by periods of regression (MONNET
1978; LINDBERG 1963). at this should be so, perhaps, is no surprise
simply because, in a descriptive sense, the organization is so complex, here
understood as complicated. In other words, so many factors play into the
question of what the EU can and cannot do at any particular moment,
that these periods of progress followed by problems are natural and, as
such, to be expected.
Yet, other authors have gone further and argued that the European
Union is in fact complex in a conceptual sense, characterized by: the
presence within the system of a large number of elements; these elements
interact in a rich manner, that is, any element in the system is inuenced
by, and inuences, a large number of other elements; these interactions
are often be non-linear; there are feedback loops in the interaction; the
openness of the system and its elements to their environment; these systems
operate in a state far from equilibrium; these systems have a history; the
elements of the system are ignorant of the behaviour of the system as a
whole (adapted from GEYER, 2003; GEYER; RIHANI, 2010).
Dooley (1997) denes this as a Complex Adaptive System,
a collection of semi-autonomous agents with the freedom to act in
unpredictable ways and whose interactions over time and space generate
system-wide patterns’. In such systems, agents ‘are constantly changing,
as are the relationships between and amongst them’ (EOYANG;
HOLLADAY, 2013, p. 16–17). As a consequence, ‘uncertainty becomes
the rule’ (EOYANG; HOLLADAY, 2013, p. 17). Yet, uncertainty does
not mean permanent instability. In fact, in most cases, changes in the
relationship between agents take place within a framework of fundamental
systemic stability. As Eoyang & Holladay (2013, p. 17) put it, interactions
simply change the conditions and relationships among the parts and
the whole; they do not change the system in any fundamental way.’ e
interaction between parts and the whole often sustains existing patterns as
parts interact to generate emergent patterns while the patterns inuence
parts and their interactions. e result is a self-generating, self-organizing
300
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
reality of human systems dynamics’ (EOYANG; HOLLADAY, 2013 p.
18), based on the interdependence between the parts and the whole of the
system. Self-organization here is dened as a process by which the internal
interactions between agents and conditions of a system generate system-
wide patterns (EOYANG, 2001).
Geyer (2003) argues that such systems are, therefore, marked
by elements of order, elements of complexity and elements of disorder
or unpredictability. ese elements interact often in, at best, partially
predictable ways. He illustrates these elements in relation to the process of
European integration through a model he calls ‘Complexity mapping’ and
which will be used here to illustrate the causes and consequences of Brexit,
both for the EU and the UK. To do so, let us rst look at the process of
European integration as a whole through complexity mapping:
Figure 1 – e range of phenomena in the international political system.
Disorder
Conscious
complexity
Organic
complexity
Physical
complexity
Order
ß-------------------------------------------------------------------------à
Time
Examples
Detailed
long-term
development of
the EU
Norms and
values at
national and
European level
Interaction
between
dierent actors
and dierent
institutions
Dierent
reasons why
countries
support EU
Basic agreement
on the
advantages of
the EU
ere was, historically, basic agreement between the member states
of the European Union about the advantages of being a member of the EU
and the common problems that may be solved through its mechanisms and
institutions (NUGENT, 2010). e corner stones of the EU in its early
incarnations were the need for Franco-German reconciliation, especially
within the context of the Cold War. ere was also basic agreement
that this highly political objective should be pursued through essentially
economic means, i.e. the creation of a common European market. ‘Model
301
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Europe’, which commits the European Union to just this promotion of
free trade as well as democracy and respect for Human Rights can also be
classed under the orderly elements of the integration process, making the
EU, for some, a ‘normative power’ (MANNERS 2002; DINAN 2004).
Yet, within this fundamental framework, what Eoyang &
Holladay (2013) call ‘containers’ which constrain the system and are a
precondition for any chance of coherent development, there have always
been key elements of complexity. Critically, the exact reasons why countries
have sought to join the EU dier. Whilst, for instance, Germany may have
seen the EU integration process as a project of peace and reconciliation
which was treated as a policy of state regardless of government, other
countries, for instance, the new member states from Eastern Europe, see EU
membership primarily as an economic instrument to ‘catch up’ with their
neighbours to the west. As a result of this so-called ‘physical complexity’,
also, their behaviour once inside the EU, even where and when they pursue
the same objectives (NUGENT, 2010). ese dierences are the result
of, and reinforce, so-called ‘organic complexity’, that is, the dierences
between member states in terms of their institutional structures, the way
they conduct politics or, indeed, the way dierent institutions within the
EU interact and often pursue quite distinct agendas and objectives in
dierent ways to one another (GEYER, 2003).
Even more complexity emerges into the process when one takes
into consideration so-called ‘conscious complexity’, i.e. the way dierent
actors interpret concepts dierently depending on their particular
circumstances and belief systems. As will be shown below, this is especially
important in relation to Brexit, where these issues have always played an
enormously important role. What, for instance, is meant by ‘integration’?
What do we understand by ‘sovereignty’? What does one understand
by ‘European citizenship’? Bearing this complexity in mind, the future
development of the EU is, and will remain, unknowable (see GEYER,
2003, for a detailed explanation of the model).
ese considerations of the various levels of complexity which
one can encounter within the dierent layers of the European Union and
the its interactions with the member states are critical to understanding
one fundamental fact about the whole process of European integration:
302
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
In considering what the EU is, what it means or what it should do,
there is hardly ever one single and ‘objective’ truth. Rather, ones view
of what is ‘right’ about and for the EU is inuenced heavily by ones
own particular circumstances and framework (EOYANG; HOLLADAY,
2013). ere are, therefore, several ‘truths’ circulating about the EU
integration process depending on what the Complexity literature calls
‘local boundary conditions’.
It is these fundamental facts which, in many ways, make one
understand what has made the EU an organization used to crises. In simple
terms, there are so many dierences present within the EU system so as
to make coherent and sustainable development very dicult. Coherence
here is dened as ‘the degree to which parts of a system “t” each other
or the external environment, and it is a necessary factor in sustainability’.
In practice that means that: meaning is shared among agents; internal
tension is reduced; actions of agents and sub-systems are aligned with
the system-wide intentionality; patterns are repeated across scales and in
dierent parts of the system; a minimum amount of energy of the system
is dissipated through internal interactions; parts of the system function in
complementary ways (EOYANG, 2001, p. 30).
Economic crises or political crises – one only has to think about the
crises of the 1970s or the Luxemburg empty chair crisis of the mid-1960s –
can hit the EU in many dierent ways whilst the ability of the organization
as a whole to inuence these crises can be quite limited. Eoyang (2001)
and Eoyang & Holladay (2013) have argued that, in social systems, such
dierences and dierent truths are normal and, indeed, are a prerequisite
to change as the tensions these dierences generate allow the possibility for
movement. However, in order for this to occur in a sustainable manner, it
is critical that a stable framework exists around which all actors can unite
and through which they can dene and pursue common objectives. Such a
stable framework, the ‘container’ already referred to above, allows tensions
to be channelled into energy and action, provided there are channels (also
called ‘exchanges’) through which these tensions can be released into the
policy-making process (ref).
In what follows, I will argue that the current crisis of the European
Union is qualitatively dierent to those that have gone before it precisely
303
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
because the elements of order (those that hold the system together) have
been weakened whilst the number of dierences within the system have
increased exponentially, meaning that the system is not able to hold the
tensions that are generated. Brexit is both factor in, and response to, this
crisis, but also, at least temporarily, is key to understanding the change in
mood within the European Union.
4 – tHe crisis of tHe euroPean union as a comPlexity maP
ere are, of course, several factors that explain what caused the
crisis of the EU and, as indicated at the beginning, there is a mountain of
literature analyzing these factors. For our purposes, what is important is to
identify the overarching themes that can explain this crisis.
Critically, the elements of order which held the European Union
together for so long have, at best, frayed. As argued above, the EU was
always seen as a project to guarantee the peace in Western Europe and
reconcile France and Germany. In many ways, this problem has been re-
solved since a conict between those two countries seems, at the very le-
ast, highly unlikely. With the Cold War at an end and, on the whole, the
countries of the former Communist bloc in Eastern Europe more or less
successfully integrated into the European Union, the EU has been lacking,
for some time I would argue, an overarching theme which could answer
the basic question of what makes this organization indispensable and what
is it still there for?
Yet, this question is all the more urgent because the number of
dierences introduced into the system has increased exponentially. With
enlargement-itself a sign of the historic success of the European Union-the
number of reasons for wanting to be part of the EU has increased and with
it the ideas about where the EU should go, how it should get there and
what, precisely, it should do and for what purpose. In short, what the EU
means for countries now diers widely, yet this is not simply a consequence
of new members joining but also of the passage of time which means that
there is now a generation of leaders in charge-as well as a new generation
of the population-for whom the old historic reference point of peace or the
Cold War, do not have the same, if any, traction.
304
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
To this one can add the fact that, under these circumstances,
nding consensus even in the more mundane day-to-day policy decisions
has become more dicult. It is hardly a surprise that 28 member states,
with all the dierent histories and contexts they bring to the table will
disagree more frequently. Whilst there have been reforms to the decision-
-making processes within the EU to, essentially, do away with the right to
national veto over many policy areas, there is still a reluctance on the part
of political leaders to use these instruments, lest they advertise division
and also because there is a culture of consensus within the organization
(CINI & BORRGÁN, 2016). However, with ever more divergence on
the key terms of European integration – What about sovereignty? Where
should power lie within the EU institutional framework? What kind of
model do we want to construct for the EU and what does this mean for
the organization?– the EU has allowed a situation to develop in which the
organization does what it can rather than what needs to be done, with
the search for the smallest common denominator dominating the political
business (BITTNER, 2010). ere is, then, plenty of tension within the
EU, but the system itself is not robust enough to hold this tension. As a
consequence, the EU has lost the ability to show leadership. It became
an organization which sought to avoid conict over policies and actions
in the name of political expediency, a tendency which far predates the
economic crisis and subsequent problems with the single currency, as the
process of admitting Greece to the single currency or the way breaches by
Germany and France of the Stability – and Growth Pact meant to govern
that single currency were handled (CINI & BORRGÁN, 2016). e EU
reacts, rather than acts.
Critically, with this increase in tension within the EU, there was
also an increase in public dissatisfaction with the organization, which
showed itself in various elections across Europe at various levels and which
led to a surge in political representatives critical, skeptical or downright
hostile to the EU (EUROPEAN COMMISSION, 2013). Whilst some
of the most expressive results of this trend occurred in so called ‘second
order elections (such as the victory of the anti-EU UK Independence Party
in the 2014 European Parliamentary elections in Britain), others directly
inuenced member-state governments, such as in Finland, Hungary or
305
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Poland, the latter two being very open about their desire to dismantle key
aspects of ‘model Europe’ (KELEMEN, 2015). is ‘popular uprising’, in
turn, would inevitably inuence what the EU can and cannot do politi-
cally. ese challenges, however, were often a response to public opinion.
It is worth visualizing this as a Complexity map again:
Figure 2 – e range of phenomena in the crisis of the European Union.
Disorder
Conscious
complexity
Organic
complexity
Physical
complexity
Order
ß-----------------------------------------------------------------------à
Time
Examples
Detailed
long-term
development of
the EU
Ever more
divergence
about Norms
and values at
national and
European level
Interaction
between
dierent actors
and dierent
institutions
both at EU-
and national
level. Dicult
decision-making
Increasing
number of
dierences
around the
reasons for EU
membership
Breakdown
of the basic
agreement on
the fundamental
principles
governing the
EU
Brexit, then, can be seen in this context which also lays bare some
of the risks and opportunities for the EU going forward.
5 Brexit as a comPlex aDaPtive system: tHe uk anD eu
PersPectives
Brexit was, no doubt, a tremendous shock to the system of the
European Union. For the rst time ever a member states decided volunta-
rily to leave the block, not because political elites had decided, but becau-
se a majority of the electorate had done so. e result prompted various
analysts and politicians to predict that other countries might well follow
the UK out of the EU and that, with it, the whole organization might
collapse (SOROS, 2016). Yet, this has not happened. In fact, since the
306
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Brexit vote, public support for the EU in the rest of Europe has generally
ticked up (EUROPEAN COMMISSION, 2017). In what follows, and
using complexity mapping as a tool, it will be argued that part of this has
to do with the fact that the UK has not considered Brexit as a complex
adaptive process and is paying the price for this failure. On the other hand,
for the time being at least, Brexit has given the EU a rallying cry around
which to unite which has stabilized the system as a whole and reduced
tensions within it. Let us start with the UK perspective.
e only thing that most British politicians agree about since the
referendum is that ‘the will of the people has to be respected’ (RENTOUL,
2017). In other words, barring a dramatic change of public opinion or
some other unforeseen dramatic event, the UK will leave the European
Union in March 2019.
However, agreement ends here. ere is absolutely no agreement
on the basic elements of complexity associated with Brexit. On a most
basic level, what prompted people to vote for Brexit? eresa May, the
British Prime Minister, for instance, interpreted the result as a mandate
to, above all, control immigration to the UK, concluding that this should
mean also the exit of the country from the European Single Market and
the customs union and therefore end freedom of movement. Whilst there
is some evidence from surveys to suggest that the issue of immigration
played a signicant role in the victory of the ‘out’ vote in the referendum,
those same surveys also show, however, that a majority of voters in the UK
prefer remaining part of the single market (MAY, 2017; MOST…, 2017)
ere has also been little to no debate about the institutional
process of leaving the EU and the impact this will have on the delicate
balance of power between the UK’s own political institutions. Two issues
demonstrate this problem clearly. On the one hand, there needs to be a
decision on how to deal with EU law applied in the UK once the country
leaves the EU. Since it is clearly impossible to repeal all EU law at once,
the government is currently proposing to incorporate all existing EU law
into UK law before deciding, essentially on a case-by-case basis, whether to
keep, replace or discard pieces of EU legislation. is has been criticized as
a massive power grab by the executive branch in some quarters, undermi-
ning the sovereignty of parliament (GRICE, 2017). A second key issue is
307
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
how to handle those policy areas, such as education or health, for instance,
which are either partially or wholly devolved to the governments of the
constituents parts of the UK, i.e. Scotland, Northern Ireland and Wales.
Who would have the nal say on dealing with the impact on those policy
areas during and after the exit process? Who and how would any future
deal regulating the relationship between the UK and the EU post-Brexit be
decided within this framework? ere are, hence, key elements of organic
complexity unresolved, without even talking about citizen rights, or the
responsibility of adjudicating these rights post-Brexit (BREXIT…, 2017).
All of these quite practical issues touch upon much deeper ques-
tions of identity which were critical to the Brexit vote (LEHMANN, 2015).
For many leavers, the vote represented not one about economic interests
but about reasserting a national, as opposed to a European, identity. e
heart ruled the head. Yet, this emphasis leaves many questions unanswered:
What does sovereignty, for instance, mean in a post-Brexit UK? How does
the country reconcile the fact that two of its 4 constituent parts (Scotland
and Northern Ireland) voted to remain, whilst two others (England and
Wales) voted to leave? What does that say about the various identities that
interplay within the UK? is is also a very practical question in Ireland
where the reemergence of a ‘hard’ border between EU-member the Repu-
blic of Ireland and soon-to-be non-EU member Northern Ireland might
well lead to a reemergence of tensions and conict between nationalists
and unionists, reminiscent of the 30-year conict on that island.
Finally, and bearing all of these questions and tensions in mind,
there is absolutely no way of telling what a Brexit-Britain will look like ten
years from now.
What we have, then, is a complex system which is marked by
enormous dierences and very few elements of order which might hold
the country together as it embarks on the most signicant political and
economic process – and it is a process rather than an event – since the
end of the Second World War. In fact, rather than clarifying some essen-
tial questions, the Brexit vote has deepened disagreements and increased
tensions: What should be the UK’s role in the world? How does it relate
itself to the European Union? How does it approach its economic de-
velopment post-Brexit? All of these questions not only do not have an
308
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
answer but have become more divisive since the referendum, exposing
deep fault-lines between the dierent parts of the UK, generational is-
sues and profound questions about the political and economic model to
be pursued by the country.
It is worth visualizing this again for more clarity:
Figure 3 – e range of phenomena of Brexit.
Disorder
Conscious
complexity
Organic
complexity
Physical
complexity
Order
ß-----------------------------------------------------------------------------à
Time
Examples
Detailed
long-term
development of
the UK post-
Brexit
Divergence
about Norms
such as
sovereignty,
nationalism,
identity; what
does Brexit
mean etc.
Interaction
between
dierent actors
and dierent
institutions both
at national- and
sub-national
level
Reasons for
Brexit
Agreement on
Brexit being the
expression of
the will of the
people
For the EU, by contrast, Brexit has acted, at least for now, as a
unifying, ordering event. For a start, it crystalized the problems through
which the EU is passing and acted as a so-called ‘gateway event’ to focus
minds. It is, in this respect, no surprise that the new French president, Ma-
cron, has used this time to set out his vision for the European Union of the
future (WALT, 2017). For the time being, it is not even the main question
whether, or to what extent, this vision can be realized and implemented.
What is crucial is that, for the rst time in a while, a coherent vision for
what the EU should be has been set out.
Secondly, for all the dierences marked out in gure 2, Brexit
has served, in two crucial aspects, as a unier: ere is a consensus that
the UK cannot be better o outside the EU than inside, lest it encoura-
ged other countries to follow suit. So, the UK has to be made to pay a
price. Related to this, the EU, as a whole, will do what it takes to save
309
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
itself and guarantee its own survival. Not only is this seen as critical by
political leaders, but there are clear institutional interests in Brussels to
preserve the EU that are being asserted.
is is not to say that there are not signicant dierences amon-
gst and between EU member states with regards to Brexit. Clearly, for ins-
tance, the interests of Ireland, as the only country with a land border with
the UK and long, and often painful, historic as well as economic connec-
tions, are dierent to the interest of Italy. Equally, the interests of Eastern
European states, whose citizens have made extensive use of the right to fre-
edom of movement to work in the UK, are dierent to the interests of Lu-
xembourg in this regard. At the same time, there are clear challenges ahead
after Brexit, for instance in relation to the budgetary framework for the
organization since the UK is one of the main net contributors to the EU’s
coers. is without talking about the clear and fundamental dierences
already touched upon above about the future development of the EU and
the question of what the EU should and, importantly, should not be.
Figure 4 – e range of EU phenomena in the context of Brexit.
Disorder
Conscious
complexity
Organic
complexity
Physical
complexity
Order
ß-------------------------------------------------------------------------à
Time
Examples
Detailed
long-term
development of
the EU post-
Brexit
e normative
foundation of
the EU post-
Brexit
Dierent
priorities and
interests set by
dierent EU
and national
institutions
Particular
interests
in Brexit
negotiations
Agreement that
Brexit needs to
act as a deterrent
to other
countries; give a
deal to the UK
which is not as
good as being in
the EU
Some of the challenges under organic- and conscious complexity
are formidable. However, my argument is that, seeing that the EU since
Brexit has found common ground on the questions of the negotiations
310
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
with the UK at least, the organization is in a better place now to address
its divergence on some of the key strategic issues under conscious com-
plexity than it was before the Brexit vote which, above anything else, has
concentrated minds. In this respect, Brexit has served as an event which
has reduced tensions. However, bearing in mind that the negotiations with
the UK will become more complex as time passes, and bearing in mind
that they will one day end, this clarifying eect may be time-limited. is
is what makes Macrons recent intervention so important: It at least begins
the process of thinking of a post-Brexit EU. Other contributions to this
debate will come and will be needed to address the issues discussed here
and there is no guarantee that they will lead necessarily to a better outcome
but, at least, a start has been made.
By contrast, far from resolving tensions, in the UK, the vote to
leave the EU has increased them simply because no-one, in any concrete
sense, asked the ‘so, what’ question, that is, the question of what does lea-
ving the European Union actually mean for the country. Since this ques-
tion has, as yet, no clear answer, the next question – now what do we
do? – can also not be answered. e UK, therefore, is negotiating from
a position of extreme weakness not because it is facing 26 other member
states and various institutions but because the internal dynamics of its ne-
gotiating process and framework are so incoherent.
6 – conclusions: now wHat?
is article sought to answer the question of what explains the
current relative optimism which has taken hold within the EU, despite
the shock of the Brexit vote. Using the conceptual framework of Com-
plexity, it was argued that, contrary to expectations, the event reduced
tensions within the EU to such an extent that leaders have, tentatively,
started talking again about the strategic future development of the organi-
zation. In other words, Brexit has actually increased the coherence within
the system that is the European Union.
Yet, it would be premature to see this as a permanent state of af-
fairs. e EU still has enormous unresolved strategic challenges ahead and
is still subject to further crises if, for instance, the refugee crisis worsens or
311
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Greece or any other given country returns to the edge of economic abyss.
As such, it is critical that the EU try to use this period of relative stability
to lay the groundwork for these debates.
In doing so, the UK should serve as a warning of what happens
when such groundwork is not laid. Having not seen its own Brexit process
as a Complex Adaptive System and, therefore, not asked the crucial ques-
tion of what Brexit should mean in a society which is deeply divided along
several cleavages, the country is now unable to act proactively in order to
secure the best possible deal for itself. Having seen Brexit as an event which
can be controlled, the government is now unable to construct, never mind
control, the narrative in order to navigate a highly complex process into
which an enormous number of actors want some say. e result is extreme
incoherence which can only harm the UK in the longer term.
As such, for the country, there is an urgent task of trying to
nd some common ground upon which to build. Such common ground,
just as in the case of the EU, might be based on what one does not want
initially. So, an agreement might be found initially between the dierent
actors that the rst key aim should be to avoid what many have called
a ‘cli-edge’ for the economy upon leaving the EU in 2019. ere are
signs that a fragile consensus on this is emerging with the distinct advan-
tage of buying the country time (THERESA…, 2017). However, what
is needed most of all in such circumstances is recognition that Brexit is
process which has to be navigated and during which one has to adapt to
constantly changing conditions.
In other words, changing the framework through which Brexit is
approached would be an important rst step to increasing its chances of
success. Since time is pressing, such change is urgent.
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317
A F  D
C
José Estanislau do Amaral Souza Neto
1 – introDução
Antes de entrar no coração do tema, ou seja, no perl que se
espera dos diplomatas no presente, convém colocar em perspectiva duas
questões: (i) o percurso da prossão de diplomata e, (ii) o contexto inter-
nacional em que os prossionais dessa área estão sendo chamados a atuar.
2 – a Profissão em PersPectiva
Começo pela evolução do ofício. E minha primeira observação é
a de que, embora se trate de uma das atividades mais antigas, a diploma-
cia prossionalizou-se de fato apenas no século XX. Uma das obras mais
 O artigo não reete necessariamente posições ociais do Itamaraty.
318
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
completas e atuais sobre a formação de diplomatas, intitulada Developing
Diplomats: Comparing Form and Culture Across Diplomatic Services e publi-
cada em maio de 2017, assinala que “a prossionalização ocorreu em todas
as áreas na sociedade do século XX (medicina, educação, direito, etc.), mas
foi especialmente pronunciada no campo da diplomacia” (HUTCHINGS;
SURI, 2017, p. 6, tradução nossa).
Diversos fatores concorreram para isso. Das duas guerras
mundiais surgiram, como se sabe, as organizações internacionais, e
com elas o multilateralismo. Por sua vez, o processo de descolonização
na África e na Ásia, na segunda metade do século XX, conduziu à cria-
ção de instituições de Estado, entre elas chancelarias, nos novos países
independentes. O resultado somado desses acontecimentos foi a reali-
zação de numerosas e grandes conferências diplomáticas, cada vez mais
especializadas, assim como a proliferação vertiginosa de embaixadas
em número de países em constante expansão. A atividade diplomática
multiplicou-se em diversos planos.
Nessa nova realidade, que em boa parte vem até os dias de hoje, já
não havia espaço para diletantes, amadores, para conversas amenas, em cír-
culos restritos. Urgia contar com prossionais, e para tanto era necessário
que os Estados investissem recursos na preparação de gente para atender a
essa demanda nova de funcionários especializados, operando no interior de
burocracias organizadas e que estivessem à altura do desao de negociar te-
mas complexos. O locus mesmo da diplomacia mudou: de intrigas palacia-
nas passou para o jogo mais sosticado de reunir informação e inteligência,
ingredientes indispensáveis tanto no processo decisório como na formula-
ção de políticas em ambientes externos em permanente mudança. Outro
fator importante nessa transição foi a passagem da chamada diplomacia se-
creta vigente no século XIX e que terminou na Grande Guerra para outras
modalidades de diplomacia, cada vez mais expostas ao escrutínio público.
Emerge assim, nos últimos 70 ou 80 anos, esse personagem que é
parte indissociável do mapa social e político do nosso tempo: o diplomata
prossional, que se dene por dois elementos centrais:
A meritocracia: o recrutamento se faz por mérito, normal-
mente em processos de seleção abertos ao público; a ascen-
319
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
são funcional igualmente está lastreada no mérito, no in-
terior de burocracias dotadas de instrumentos para aferi-lo
objetivamente;
A especialização: existem formação e treinamento especia-
lizados, normalmente disponíveis em universidades ou em
academias diplomáticas dentro dos ministérios, ou em uma
combinação de ambos. No Brasil, por exemplo, a criação
de cursos de relações internacionais em várias partes do país
proporcionou diversas vantagens indiretas ao Instituto Rio
Branco, gerando base ampliada e mais bem preparada de
candidatos em potencial à carreira diplomática. Em muitos
casos, como no do Brasil, a progressão funcional está vin-
culada à conclusão de cursos de treinamento em distintos
estágios da carreira.
O fato de que atualmente, na maior parte dos países com algum
nível de projeção internacional, os diplomatas sejam majoritariamente
prossionais não signica, porém, que o prestígio ou os atrativos da car-
rière tenham aumentado. Pode-se até mesmo argumentar que o contrário
esteja ocorrendo. Não são poucos os serviços diplomáticos cujas funções
são questionadas internamente por outros órgãos do Governo e pela opi-
nião pública em geral. Há uma percepção disseminada em muitos países,
sobretudo nos ocidentais e desenvolvidos, de que se trata de classe de pro-
ssionais com custo excessivo para a sociedade e cuja contribuição é vista,
na melhor das hipóteses, com ceticismo.
Nos Estados Unidos de Donald Trump, essa é a visão que parece
prevalecer. Num artigo recente do New York Times, o colunista Roger
Cohen assinala que:
Trump seems determined to hollow out the State Department in a strange
act of national self-amputation. e president signaled early on that
military might, not diplomatic deftness, was his thing. Soft power was for
the birds. is worldview (in essence no more than Trumps gut) has been
expressed in a proposed cut of about 30 percent in the State Department
budget as military spending soars […] (COHEN, 2017).
320
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Já no Brasil da Presidente Dilma Rousse, não são poucos os que
detectaram na então Chefe de Estado, embora em menores proporções,
atitude deliberada de desidratar o Itamaraty como instituição e de despres-
tigiar a categoria prossional de diplomatas.
É plausível que parte da responsabilidade por essa situação de
perda de poder relativo da categoria resulte de uma expectativa exagera-
da daquilo que os diplomatas pudessem ou devessem fazer num mundo
crescentemente atormentado por conitos, por sucessivas violações das re-
gras da ordem internacional, por frustrações que se acumulam em relação
a expectativas não cumpridas de prosperidade individual e coletiva. E a
verdade é que, embora reduzidos em número e exceções à regra, abusos
praticados por alguns poucos diplomatas fora de seus países de origem, em
razão dos privilégios e imunidades de que gozam, afetam negativamente a
imagem coletiva dos prossionais da área.
São numerosos no presente os desaos com que se defrontam
os serviços diplomáticos, com impacto, maior ou menor, na formação do
prossional. Alguns exemplos desses desaos são:
Gestão da crescente centralização dos processos decisórios em
política externa nas mãos dos líderes políticos;
Relacionamento com grande número de atores não-governa-
mentais e múltiplos públicos numa época de grande exposi-
ção midiática;
Comunicação externa em ambiente marcado pelo uso cada
vez mais frequente das fake news, dos chamados fatos alterna-
tivos, na época da “pós-verdade”. Nessa arena, as armas dos
diplomatas são limitadas. A voz dos representantes de gover-
no não necessariamente é portadora de credibilidade. Muitas
vezes ocorre justamente o contrário;
Administração e contenção do alargamento, que não parece
ter m, do escopo das atividades sob responsabilidade do di-
plomata, as quais passaram a incluir, entre outras, comércio,
terrorismo, segurança cibernética, governança da internet,
propriedade intelectual, mudanças climáticas.
321
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Quero ressaltar um último aspecto da prossão que convém não
esquecer ao se pensar na qualicação dos diplomatas. Apesar de atuarmos,
os diplomatas, em cenários em transformação constante, numa corrida
contra o tempo em que temos a impressão de estarmos sempre perdendo,
há uma importante força que de certo modo age em sentido inverso. É que
os diplomatas estão a serviço da política externa. E a política externa de um
país é uma política pública sui generis, tem sentido de permanência muito
maior, seus tempos não são os de outras políticas públicas e menos ainda
os da imprensa ou os das redes sociais.
Predominam, na formulação da política externa, elementos es-
táveis, em alguns casos inalteráveis, como a geograa, o lugar do país no
mundo, seus vizinhos. Outros elementos sofrem evolução gradual e lenta,
como a dimensão e a composição de sua população, o seu grau de desen-
volvimento econômico, a organização de seu sistema político, e a própria
herança diplomática do país, sua história, suas tradições.
Isso não quer dizer, evidentemente, que a política externa de um
país seja imutável. Há elementos conjunturais que têm impacto na for-
mulação da política externa, tanto os relativos à conjuntura externa como
à interna, inclusive as mudanças de Governo. Esses aspectos conjunturais
são capazes de alterar até certo ponto as prioridades da política externa de
um país, mas não de mudar-lhe radicalmente o desenho. Não se pode cair
na ingenuidade de que seja possível partir do zero em matéria de política
externa, fazer tábula rasa e ignorar completamente a trajetória histórica de
um país, achar que se possa refundar a nação e mudar a política externa
a qualquer momento. O resultado seria gerar instabilidade junto aos vizi-
nhos e falta de credibilidade perante a comunidade internacional.
Insisto nesse ponto, porque há muita gente que arma que a po-
lítica externa seria uma política pública como as demais. Ao tentar fazer da
política externa o ponto de equilíbrio, ou o mínimo denominador comum
do debate da sociedade civil, existe o perigo de perder-se a dimensão do
Estado como legítimo representante da sociedade. Cabe ao Estado ouvir
a sociedade, é certo, mas cabe ao Estado a prerrogativa de traduzir, ltrar
e elaborar demandas conitivas em políticas que sejam coerentes interna-
mente e consistentes ao longo do tempo. Convém, em resumo, estabele-
cer distinção entre políticas de governo e políticas de Estado. E a política
322
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
externa é uma política predominante, mas não exclusivamente, de Estado,
não sujeita ao varejo e às barganhas do jogo político diário.
3 – o cenário internacional
Não é minha intenção deter-me numa análise do cenário inter-
nacional. Basta o registro de que os diplomatas exercem hoje sua prossão
em momento marcado por grande instabilidade e volatilidade, por algo
que, no plano das relações políticas, pode ser ilustrado pelo título de um
curto ensaio publicado em fevereiro desse ano pelo Professor T.G. Otte, da
Universidade de East Anglia: e Waning of the Post-War Order, ou, numa
tradução informal, “O declínio da Ordem do Pós-Guerra” (OTTE, 2017).
Argumenta o referido ensaio que tentar organizar em uma expli-
cação coerente, dar um sentido aos eventos do presente, é uma tarefa difícil
mesmo em tempos fáceis. Em momentos difíceis como o atual, essa tarefa
se torna quase impossível. Na visão do Professor Otte, os eventos de 2016 e
2017 são de magnitude não testemunhada desde a ‘primavera dos povos de
1848’. Ainda que se possa conceder desconto à licença retórica do autor, o
fato é que não se podem minimizar a dinâmica dos movimentos em curso
e as incertezas que lhes são associadas.
A ordem mundial estabelecida em 1945 estaria chegando a seu
crepúsculo, fragmentando-se, e o processo de desintegração se estaria ace-
lerando, na visão de Otte. E a ironia do presente momento é a de que há
uma inversão da ordem natural das coisas. Segundo a teoria clássica, no
choque entre uma potência estabelecida que represente o status quo e outra
em ascensão, seria da segunda, ou seja, da emergente, que se poderia espe-
rar um desao à ordem em vigor. No entanto, no momento atual, são jus-
tamente os EUA que lançam ataques à ordem por eles mesmos criada em
1945, ao passo que a China, a nova potência, é quem procura mantê-la.
É um mundo de sinais trocados, difícil de entender e mais ainda de atuar.
O debate político interno em muitos países, com reexos nas suas
agendas internacionais, é também crescentemente marcado pelas políticas
de identidade, pelo que Freud chamava ‘narcisismo das pequenas diferen-
ças’, que se mescla ao retorno dos conitos étnicos, sectários, nacionalistas
323
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
em várias partes do mundo, sobretudo no Oriente Médio e nos Balcãs.
Tudo isso agravado pela política do medo. O medo tornou-se componente
essencial da dinâmica da vida política em diversos países. Medo do ter-
ror, medo do imigrante e do refugiado, medo da velocidade da mudança,
medo de perder o emprego, medo, no limite, de perder controle sobre a
rotina e a normalidade da vida quotidiana. O medo tomou o lugar da
crença inabalável no progresso.
Cidadãos amedrontados preferem buscar refúgio em identidades
mais restritas, de caráter defensivo: sunita, xiita, curdo, escocês, basco, ca-
talão, etc. Menções à humanidade, a valores universais, a bens comuns, ao
que une a todos e não ao que nos separa, são cada vez mais escassas.
Nesse mundo em desordem, permanentemente às margens de
confrontações que embutem o risco de escalada de forma descontrolada,
os diplomatas são ou deveriam ser parte da solução, deveriam ser os guar-
diões da chama do internacionalismo, da ordem internacional baseada
em regras e tão duramente conquistada depois da Segunda Guerra Mun-
dial. Assumindo-se então que cabe aos diplomatas, e especialmente aos
prossionais dentre eles, esse papel crucial no mundo de hoje, a próxima
pergunta que se impõe é seguinte: qual é o perl desejável dos diplomatas
e a formação que devem ter?
4 – formação Dos DiPlomatas
É cada vez mais comum as academias diplomáticas, quase todas
elas fundadas na segunda metade do século XX, reunirem em três grupos
distintos as características que, em diferentes combinações, comporiam
o perl do diplomata ideal, ou seja, aquele que se vai buscar no mercado
de trabalho e depois treinar. Um primeiro grupo é o de técnicas ou skills
que se podem em princípio aprender em cursos de relativa curta dura-
ção; em seguida, um segundo conjunto reuniria as habilidades, que têm
a ver mais com traços de personalidade e com o caráter das pessoas, não
necessariamente passível de aprendizado; por m, viria o conhecimento
mais acadêmico propriamente dito, que é talvez o que mais de perto nos
interesse no debate de hoje.
324
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Apenas a título de exemplo, o processo de recrutamento
para o Departamento de Estado nos EUA leva em conta seis ‘precei-
tos’ nos candidatos:
capacidade de liderança, ou seja, inovação, processo decisório
rápido, abertura para a opinião contrária ou dissidente, pres-
tação de serviços à comunidade;
capacidade de relacionamento interpessoal, ou seja, pros-
sionalismo, persuasão e negociação, percepção do meio am-
biente prossional, adaptação, exibilidade, capacidade de
representação;
técnicas de comunicação, comunicação escrita, comunicação
verbal, escuta ativa, domínio de línguas estrangeiras
técnicas de gestão, capacidade operacional, avaliação e gestão
de desempenho, gestão de recursos nanceiros e humanos;
capacidade intelectual, gestão do conhecimento e da infor-
mação, capacidade analítica, pensamento crítico, capacidade
de aprendizagem;
conhecimento substantivo, compreensão da história e
cultura dos EUA, conhecimento específico da carreira
diplomática.
Gostaria de deter-me no que é indispensável, a base mesma de
conhecimento sem a qual um diplomata não estará, em suma, plenamente
apto ao desempenho de suas funções. Para tanto, valho-me de duas cita-
ções que se complementam.
A primeira citação é atribuída a Keynes: “When the facts change, I
change my mind. What do you do Sir?”. Há diferentes variações dessa mes-
ma frase, à qual Keynes recorreria sempre que era acusado de mudar de
pensamento, o que ele fazia aparentemente com grande frequência e sem
constrangimento algum.
A frase de Keynes estabelece a primazia dos fatos sobre a ideolo-
gia, da realidade sobre correntes abstratas de pensamento. Assume que as
325
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
políticas a serem seguidas ou as decisões a serem tomadas não podem estar
desconectadas da realidade. A boa política (policy) ou a boa decisão devem
necessariamente estar ancoradas numa análise precisa dos fatos; “getting
the facts right” seria, em suma, qualidade imprescindível da boa análise e,
portanto, do ofício diplomático.
A segunda citação que tomo de empréstimo para ilustrar o que
considero necessário na formação do diplomata é de Robert Kaplan, um
autor, jornalista e teórico da geopolítica:
[…] the more the 21st century geopolitics becomes fraught with both
internal rebellions and regional clashes, the more the area expertise will
be necessary inside the foreign ministries, demanding individuals with a
19th century sense of the world: people who think in terms of geography,
local tradition and languages and indigenous cultures (KAPLAN, 2013).
Essa visão de Kaplan sobre a necessidade da area expertise encon-
tra eco, de resto, no referido livro mencionado no início dessa apresenta-
ção: Developing Diplomats: Comparing Form and Culture Across Diplomatic
Services. Encomendada à Universidade do Texas pela Embaixadora Barbara
Stephenson, na qualidade de presidente da Associação do Serviço Exterior
dos EUA, a obra faz uma análise comparativa de formação de diplomatas
nas oito chancelarias consideradas mais inuentes (Alemanha, Brasil, Chi-
na, França, Índia, Reino Unido, Rússia e Turquia). E chega à conclusão de
que o diplomata senior ideal nos dias que correm terá “[...] acquired real
expertise in one region and secondary expertise in another, developed competen-
cy in two functional areas (e.g. security, development, foreign trade, or public
diplomacy) [...]” (HUTCHINGS; SURI, 2017, p. 189).
Tendo a concordar plenamente com avaliações que indicam a
necessidade de certo grau de especialização do diplomata, seja numa área
geográca (ou mesmo num país individualmente), seja num tema espe-
cíco ou em núcleo de temas ans. O diplomata puramente generalista
tem serventia limitada em tempos de informação abundante e disponível
em tempo instantâneo. Corre, portanto, o risco de tornar-se supéruo,
de ser pouco mais do que o diletante, o amador de outrora. Os diplo-
matas prossionais serão aqueles que, ademais de conhecimento geral
do que se passa no mundo e em seu país, terão forçadamente de dispor
326
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de domínio completo de um ou no máximo alguns poucos campos de
conhecimento especíco.
Vista por outro ângulo, a observação de Kaplan de que o diplo-
mata do século XXI terá de desenvolver uma percepção ou sentido do
mundo do século XIX representa uma volta parcial às origens, ao básico, e
reposiciona o diplomata naquilo que ele tem de único e insubstituível, que
é o conhecimento aprofundado de uma cultura externa a seu país de ori-
gem. Mais do que uma prossão, a diplomacia é também um estilo de vida
que implica interação e um olhar atento e inteligente para o outro, para o
diferente, para o estrangeiro. Requer empatia em relação a outras culturas.
Nesse sentido, aprender e falar línguas estrangeiras, por exemplo,
não se limita a uma mera questão técnica. Não se trata de que cada um
de nós desenvolva uma espécie de tradutor automático ‘google’ em nossos
cérebros. Vai bem além disso. É também uma maneira de ir ao encontro
do outro, aos que não pertencem à nossa tribo de origem. É igualmente
um ato de generosidade cultural, um reconhecimento de que existe ampla
variedade de formas de expressão, cada uma delas com riqueza e nuance
próprias. Um diplomata que não se expresse uentemente em línguas es-
trangeiras é um prossional incompleto, falho, incapaz de desempenhar
plenamente suas tarefas.
O mesmo se aplica à aquisição de conhecimento de outras ver-
tentes da cultura. Tome-se como exemplo a História. Aqui entramos em
terreno reconhecidamente mais escorregadio. As narrativas sobre o passado
se prestam como poucas à manipulação, e quanto mais elevado o nível de
ignorância da história, maior o risco de manipulação do passado. Os russos
costumavam dizer, nos tempos do regime comunista, que era impossível
prever com segurança qualquer acontecimento no país, até mesmo o pas-
sado, pois os heróis de uma época eram comumente varridos do panteão
em outra. Recordo também a famosa linha de William Faulkner de que
the past is never dead. It is not even past”, a qual ilustra à perfeição o ponto
que quero sublinhar de que o presente não está desprendido do passado, e
de que em poucas áreas da atividade humana esse truísmo se evidencia de
forma mais clara do que na diplomacia.
327
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Deparei-me prossionalmente com o desao de ter de debruçar-
-me sobre a história diversas vezes durante minha trajetória prossional,
em duas delas de modo particularmente aprofundado. No curso de al-
tos estudos do Itamaraty, que z entre 2009 e 2010, elegera como tema
para minha tese um estudo de caso: a política externa contemporânea dos
Estados bálticos. Logo dei-me conta de que seria impossível empreender
minha tarefa sem um mergulho na história e na cultura, pois os próprios
estonianos, letões e lituanos delas fazem uso regular no debate público
no presente. A alusão ao passado, geralmente idealizado ou reconstruído
como mito, presta-se naquele pedaço do mundo que passou por tanta tur-
bulência tanto para embasar narrativas de identidade nacional, em oposi-
ção à visão russa (ou soviética) dos acontecimentos, como para legitimar
decisões no presente. Dei à minha tese o subtítulo ‘os usos da história’.
Posteriormente, à frente da Embaixada do Brasil em Damasco entre 2013
e 2015, deparei-me com desao similar: estudar a história da região do
levante e da Síria, sem a qual qualquer tentativa de compreender o conito
em curso (e portando de atuar) nesse país será supérua, no limite fútil.
Não é mero acaso que alguns dos maiores diplomatas foram his-
toriadores. Nos EUA, dois dos grandes diplomatas do século XX foram
também historiadores: Henry Kissinger, um especialista do concerto euro-
peu no século XIX, e George Kennan, o formulador da política de conten-
ção da URSS adotada pelos EUA no início da Guerra Fria e que passou a
maior parte de sua carreira no mundo russo, servindo na então União So-
viética três vezes, a última delas como embaixador.
A excelente biograa de
George Kennan escrita por John Lewis Gaddis e publicada em 2011 é, de
resto, leitura obrigatória para ilustrar a formação e trajetória de um diplo-
mata com expertise numa determinada área geográca. (GADDIS, 2011).
Também no Brasil isso é verdadeiro. O Barão do Rio Branco,
fundador da política externa do moderno Brasil, não foi uma exceção
do ponto de vista da valorização do conhecimento histórico e geográco
como instrumento do fazer diplomático. O Barão do Rio Branco, por sua
vez, inscreve-se dentro de uma linha diplomática que remonta longinqua-
mente aos portugueses e, mais de perto, a seu próprio pai, que já se havia
feito notar pela contribuição à doutrina brasileira sobre fronteiras. E dei-
xou vários sucessores dentro do caminho aberto por ele de uma espécie de
328
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
diplomacia do conhecimento”, termo com que um eminente diplomata
brasileiro, embaixador Rubens Ricupero, frequentemente se refere ao lega-
do de Rio Branco.
5 – formação De DiPlomatas no Brasil
Ao concluir essa palestra, menciono algumas das especicidades
da formação do diplomata brasileiro. A primeira deles tem a ver com o
lugar do Brasil no mundo. O país está na América do Sul (ou América
Latina), e esse é nosso espaço de atuação prioritária. Sempre foi assim.
Sempre será assim. É na América do Sul que o Brasil conta e tem peso. É
onde as principais iniciativas diplomáticas se articulam e se desenvolvem,
tais como o Mercosul, a Unasul e outras, sub-regionais, como os Tratados
da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica.
Diria que falta talvez ainda ao diplomata brasileiro um conheci-
mento genérico da história dos países da região. Por isso foi reintroduzida
disciplina especíca na grade curricular do Instituto Rio Branco (IRBr)
nesse ano. Em contrapartida, o domínio do idioma espanhol já faz parte
das provas do concurso de admissão na carreira diplomático há alguns anos
e seu ensino no Instituto continua a ser prioritário.
Outra especicidade da formação do diplomata brasileiro tem a ver
com a ênfase tradicional da diplomacia brasileira ao multilateralismo. Uma
diplomacia ativa nos foros internacionais, tanto econômicos como políti-
cos, é outra característica permanente da diplomacia brasileira. Muitas vezes,
tem-se mesmo a impressão de que o Brasil prefere o caminho multilateral
e muitas vezes associar-se a outros países, a outras coligações de países, em
vez de assumir um perl individual mais marcado. O Brasil pertence a uma
enorme variedade de foros restritos, alguns deles recentes, como o G–20 e
o BRICS. Mas é, sobretudo, nas Nações Unidas e na OMC, cujo Diretor-
-Geral é hoje um diplomata brasileiro, o embaixador Roberto Azevedo, que
nossa presença multilateral se manifesta de maneira mais forte.
Da perspectiva da formação dos diplomatas, o multilateralismo,
sobretudo na versão política, traz embutido em si um sentido de missão,
de idealismo, que se traduz na construção de um mundo melhor e de
329
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
preservação da paz. Em consequência, a formação do diplomata brasileiro
tem de buscar um equilíbrio entre, de um lado, a dimensão de ser um re-
alista, alguém que trabalhe com fatos, eventos, números, estatísticas, com
o conhecimento de regiões e áreas especícas, e, de outro, a perspectiva do
idealista, em grande parte lastreada no direito internacional e vinculada
à luta por uma ordem internacional mais justa e representativa, pela paz,
pelos direitos dos refugiados, pela democracia, pelo desarmamento.
Um último desao especíco do diplomata brasileiro tem a ver com
conhecimento da economia e do comércio internacional. É bom lembrar que
uma das peculiaridades do Brasil é o fato de que o Itamaraty sempre teve peso
importante na formulação e execução da política de comércio exterior e de pro-
moção de exportações. Isso não é necessariamente verdade em outros países.
Essa característica única da diplomacia brasileira impõe desaos
ao treinamento dos diplomatas, que em geral têm uma inclinação natu-
ral para as humanidades e muitas vezes desconhecem por completo como
funciona a economia real. Estamos buscando suprir essa lacuna, no IRBr,
com cursos dentro da grade curricular do curso de formação e com um
programa de visitas e viagens dos jovens diplomatas ao campo, organizado
em cooperação com a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
e com o MAPA, e às indústrias, o qual foi viabilizado e estruturado pela
Confederação Nacional da Indústria – CNI.E os alunos do IRBr passaram
a estagiar na APEX durante o curso de formação.
referências
COHEN, R. e desperation of our Diplomats. e New York Times, 28 de julho
de 2017. Disponível em: https://www.nytimes.com/2017/07/28/opinion/sunday/
trump-tillerson-state-department-diplomats.html. Acesso em: 11 ago. 2017.
GADDIS, J. L. George F. Kennan: an American Life. Nova York: Penguin, 2011.
HUTCHINGS, R.; SURI, J. Developing Diplomats: comparing form and culture across
diplomatic services. Austin: University of Texas, 2017.
KAPLAN, R. Once Upon a Time in Syria. Stratfor Worldview, 10 de abril de 2013.
Disponível em: <https://worldview.stratfor.com/article/once-upon-time-syria>. Acesso
em: 11 ago. 2017.
OTTE, T.G. e Waning of the Post-War World. ISSF Policy Series, 2017. Disponível
em: <http://issforum.org/roundtables/policy/1-5P-Otte>. Acesso em: 30 jul. 2017.
331
D V  M:
T  C 
R I
Friedrich Maier
1 – introDução
Fundamental para o desenvolvimento desse artigo é o argumento
de Kremer e Müller (2014a) a respeito do processo de “ciberização” (cybe-
rization) das relações internacionais, isto é, a crescente penetração do cibe-
respaço nas relações internacionais e a crescente dependência dos atores de
relações internacionais dos instrumentos do ciberespaço. A “ciberização
indica, portanto, crescente importância das questões relacionadas ao am-
biente cibernético.
Todavia, esse ainda é um processo que padece de teorização e
discussões de casos. Estudiosos apontam certas diculdades das teorias
332
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de Relações Internacionais em sua apreensão do novo ambiente. Alguns
apontam a necessidade de estabelecer aparatos conceituais adequados ao
novo contexto (CHOUCRI, 2012; GUIMARÃES JR, 2000; BELOW,
2014), ou preconizam a necessidade de novos vocabulários e tipologias
(CROSSTON, 2014; GREATHOUSE, 2014; KREMER; MÜLLER,
2014b). Enquanto que Choucri & Goldsmith (2012) apontam que os
estudos sobre ciberespaço padecem de lacunas de três tipos: teoria ciberné-
tica, dados empíricos e análise de políticas.
Nesse sentido, o presente capítulo intenta apresentar uma contri-
buição no debate sobre o ciberespaço e a questão dos ataques cibernéticos.
Nosso objetivo é duplo: de um lado fornecer evidências que comprovam o
processo de ciberização acima discutido e, doutro lado, apontar tendências
dos impactos oriundos do ciberespaço. Para tanto, elencamos dois casos
que, ao nosso ver, marcam pontos de inexão na discussão sobre essa temá-
tica indicando tendências futuras: 1) o ataque à usina de enriquecimento
de urânio em Natanz no Irã pelo vírus Stuxnet; 2) a interferência de ha-
ckers nas eleições presidenciais de 2016 dos Estados Unidos da América
(EUA). Os dois casos demonstram como as ações no ciberespaço adquirem
importância de dois modos bastante diferentes: o primeiro aponta como o
uso de armas cibernéticas sosticadas signica a possibilidade de danos fí-
sicos, no sentido de uma operação militar cibernética, enquanto o segundo
aponta como a Internet e o ciberespaço podem ser utilizados para inuen-
ciar processos eleitorais.
A divisão do capítulo, para além da presente introdução contem-
plará uma seção com breve discussão acerca das denições do ciberespaço
– cruciais para a compreensão desse novo ambiente –, uma seção referente
a cada um dos casos elencados e, por m, uma seção de considerações
nais, onde tenta-se uma reexão acerca da tendência de centralidade do
mundo cyber” nos próximos anos, sugerindo uma perspectiva teórica de
engajamento com tal ambiente.
2 – o ciBeresPaço: em Busca De Definições
A reexão sobre o ciberespaço deve levar em conta a relativa no-
vidade desse ambiente. Os desenvolvimentos em tecnologias de produção,
333
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
transmissão e processamento de dados eletrônicos remete às décadas de
1970 e 1980. O começo da popularização da Internet nos Estados Unidos
da América (EUA) se deu, principalmente, a partir da década de 1990; a
segunda metade dessa década marca também o início de domínios que
hoje são amplamente conhecidos e utilizados, tais como o “Yahoo.com”,
“Google.com” e “Amazon.com”. Em junho de 2017 são 3,8 bilhões de
pessoas acessando o maior componente do ciberespaço, a Internet
1
.
Desde então o desenvolvimento das tecnologias de informação
e comunicação, em conjunto com a popularização da Internet e o Com-
putador Pessoal (PC) ampliaram sobremaneira o acesso ao ciberespaço;
movimento que se intensica nas duas décadas iniciais do século XXI, no
qual o smartphone dita novos padrões de interação, cada vez mais intensa e
cotidiana. Porém, permanece a questão: como denir esse novo ambiente?
Por perpassar e inuenciar amplos aspectos da sociedade contem-
porânea, como bem observa Castells (2002) e sua análise sobre a “socie-
dade em rede”, os pesquisadores que se debruçam sobre essa problemá-
tica pertencem a campos de estudos variados, tais como a cibercultura,
as relações internacionais, a teoria da informação, a geograa e outros. A
pluralidade de perspectivas diante do ciberespaço inuenciam também a
pluralidade de suas denições.
Quanto a etimologia do conceito, concordamos com Mayans e
Planells (2002) acerca da melhor adequação do termo “ciberespaço” para
identicar o fenômeno que é objeto desse artigo
2
. A partir daí, podemos
encontrar posições que focam em determinados aspectos desse ambiente,
tal como em Kuehl (2009) que aponta a especicidade do domínio ciber-
nético na dependência dos meios eletrônicos e do campo eletromagnético
para criar, processar e transmitir informação utilizada por seres humanos.
Existem abordagens mais simplistas, tais como em Kassab (2014)
para quem as operações no ciberespaço não se distinguem em muito dos
outros ambientes de ação, empregando apenas novos moldes, eletrônicos.
De acordo com o Internet World Stats <http://www.internetworldstats.com/stats.htm>. Acesso em: 21 jul. 2017.
A palavra se forma a partir do prexo “ciber” utilizado pelos entusiastas e especialistas da informática para
se referir aos fenômenos a ela relacionados. O termo remete à “cibernética” de Robert Wiener, uma tentativa
de formação de campo cientíco no estudo da semelhança dos processos de retroalimentação informacional
(feedback eletrônico) entre homens e máquinas. Para uma recuperação histórica do conceito ver: KIM, 2004.
334
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Alguns autores apontam semelhanças entre o ciberespaço e o panorama
internacional, focando no caráter evidentemente anárquico de ambos os
sistemas (KIGGINS, 2014). As características únicas também servem para
distinção. Assim Nye Jr (2010) dene o ciberespaço como uma ambiente
híbrido, composto por uma camada estrutural (cabos, servidores, compu-
tadores) e uma camada virtual (as trocas de informações), a hibridez do
ambiente é crucial nesse autor para entender como ações podem provocar
efeitos nas duas camadas.
Já Manjikian (2010) distingue o ciberespaço de outros ambientes
de ação humana a partir de suas “qualidade únicas”, de “mobilizar usuários
[...] prover rapidamente grandes quantidades de informação de qualidade
incerta ou não-regulada [... e] diminuir distâncias entre usuários” (p. 381).
Enquanto o atual governo dos EUA dene o ciberespaço como “uma rede
interdependente de infraestruturas de tecnologia e informação, e inclui
a internet, redes de telecomunicações, sistemas de computadores e con-
juntos de processadores e controladores em indústrias críticas” (WHITE
HOUSE, 2009, p. 01, trad. nossa).
Além de muitas outras denições opta-se nesse texto por aquela
encontrada em Choucri (2012) por oferecer uma perspectiva multiface-
tada. Ao distinguir o ciberespaço em camadas, a autora permite observar
esse ambiente com atenção tanto aos recursos técnicos, quanto aos recursos
informacionais e humanos que o compõem – aspecto crucial para a dis-
cussão que desenvolveremos abaixo. Assim apreende: 1) as bases físicas, 2)
os códigos por detrás da interação entre as máquinas, 3) a informação em
suas distintas formas e 4) os atores (humanos) que interagem nesse espaço
(p. 8). Ou seja, o ciberespaço não existe apenas pelas máquinas, os códigos
que as movimentam são necessários e necessárias são também as informa-
ções trocadas entre as máquinas pelos códigos. Todavia, esse não seria um
espaço de ação sem os humanos que o operacionalizam
3
.
Cabe notar como essa denição se aproxima da visão literária de Gibson ([1984], 2002) um dos primeiros
a empregar o termo “ciberespaço”; no romance cyberpunk “Neuromancer” de 1984, escreve: “O ciberespaço.
Uma alucinação consensual, vivida diariamente por bilhões de operadores legítimos, em todas as nações, por
crianças a quem estão ensinando conceitos matemáticos... Uma representação gráca de dados abstraídos dos
bancos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz alinhadas
que abrangem o universo não-espaço da mente; nebulosas e constelações inndáveis de dados. Como luzes de
cidade, retrocedendo.
335
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Cabe ainda desfazer alguns mal-entendidos do termo. O ci-
berespaço compreende a uma multiplicidade de tecnologias de criação,
transmissão e processamento de informação e não ca restrito à Internet
(que é seu maior componente
4
). Fazem também parte do ciberespaço
redes locais (governamentais, empresariais, do terceiro setor), sistemas de
tráfego aéreo, operadoras de telefonia e processos industriais controlados
por computador (sistemas SCADA) – o que amplia sua importância.
Tendo encontrado uma denição para trabalhar com esse ambiente se-
guimos em nossa proposta de observar seus efeitos nas relações interna-
cionais. Assim, procedemos com a análise do primeiro caso elencado, o
do vírus militar Stuxnet.
3 – o stuxnet
Em 2009 uma série de defeitos nas centrífugas da usina de en-
riquecimento de urânio de Natanz colocou as autoridades iranianas em
uma situação inédita: as constantes falhas que chegaram a danicar apro-
ximadamente 1.000 centrífugas foram fruto de um sosticado ataque
cibernético por meio de um vírus especialmente desenhado para causar
esse dano: o Stuxnet.
Não se sabe o exato momento em que os engenheiros nucleares
iranianos descobriram que as falhas não tinham origem mecânica ou de
programação, mas eram devidas a um malware (malicious software). Já o
resto do mundo, conheceu o Stuxnet somente em 2010. O vírus se re-
produziu para além da usina de Natanz, se “proliferando” pela internet
graças a uma atualização em seu código por parte de seus criadores. Uma
empresa de segurança cibernética localizada na Bielorrússia foi a primeira
a reportá-lo (KASPERSKY, 2011). Logo, as empresas líderes no mercado
de cibersegurança – Kasperspy Lab e Symantec – não tardaram em emitir
relatórios que eram unânimes em um ponto: o novo vírus possuía um nível
de sosticação nunca antes presenciado (FALLIERE; MURCHU; CHI,
2011; SHAHEEN, 2014).
4
Isto é: o ciberespaço compreende a Internet e uma série de outras redes. Outra confusão comum é a utilização
de “Internet” e “Web” como sinônimos. A última é apenas uma das tecnologias que permitem a navegação
dentro da grande rede, a Internet.
336
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Esse alto padrão de sosticação do vírus levantou suspeitas, já em
2010, de que o ataque não tinha as marcas de um “cibercrime” comum e,
portanto, deveria ser fruto de alguma equipe de desenvolvimento, nan-
ciada por alguma entidade (ADHIKARI, 2010). Somente em junho de
2012 o e New York Times publicou uma extensa reportagem apontan-
do, por meio de fontes anônimas dentro do governo estadunidense, que
o Stuxnet era parte de um grande programa secreto de armas cibernéticas
desenvolvido em parceria com o governo de Israel: o Olympic Games. Ini-
ciado em 2006 pela administração Bush e continuado nas administrações
Obama, esse programa tinha por objetivo central atrasar o programa nu-
clear iraniano por meio do ciberespaço (SANGER, 2012).
Desse modo, o Stuxnet contou com uma arquitetura de progra-
mação especicamente desenvolvida para atuar na planta nuclear de Na-
tanz. Composto por duas partes, uma capaz de inserir o vírus dentro da
máquina (trojan) e outra cuja função é a inserção de códigos de programa-
ção alterados (rootkit) no sistema de comando das centrífugas, o malware
chegou a contaminar cerca de 60.000 computadores relacionados a siste-
mas industriais– 60% deles no Irã (FARWELL; ROHOZINSKI, 2010).
Empresas apontam que o vírus se aproveitou de quatro falhas no sistema
operacional Windows para se proliferar
5
(BEAUMONT, 2010). Inicial-
mente, o código foi inserido a partir de um pen drive utilizado em um dos
computadores da rede da usina (ADHIKARI, 2010). O alto nível de so-
sticação do vírus garantia a autonomia em sua capacidade de proliferação
para o resto da usina.
Após a invasão das máquinas e inserção dos códigos alterados no
sistema de controle eletrônico das centrífugas, o Stuxnet emitia comandos
para elevar a velocidade de rotação das centrífugas a m de quebra-las
6
. Ao
mesmo tempo, o vírus enviava dados aos controladores do equipamento
apontando o funcionamento normal das máquinas disfarçando, assim, sua
Esse é um dos maiores argumentos sobre a origem estatal do código: as falhas no código (ou zero-day vulnera-
bility) de sistemas operacionais de uso global são raros e, quando descobertos, prontamente corrigidos por patchs
de atualização. O número elevado de brechas aproveitadas pelo vírus demonstra que o mesmo foi fruto de um
longo processo de programação – o que suscita problemas sobre os custos de tal empreitada.
Dois documentos são essenciais para demonstrar a atuação do vírus: o dossiê sobre o Stuxnet elaborado pela
Symantec oferece dados precisos sobre o código do vírus (FALLIERE; MURCHU; CHI, 2011) e o relatório
que especica a atuação desse vírus em relação ao sistema dos controladores industriais Siemens S7-315 (AL-
BRIGHT; BRANNAN; WALROND, 2010 ).
337
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
atuação. O vírus recebeu constantes atualizações até a data de sua desco-
berta em 2010
7
(ALBRIGHT; BRANNAN; WALROND, 2010).
Mesmo após a divulgação, uma onda de novos vírus continuou
a assolar o Irã e a região do Oriente Médio. Principalmente focado na
espionagem cibernética e roubo de dados condenciais o vírus Flame
foi responsável por perdas de dados no Ministério do Petróleo iraniano
(CONSTANTIN, 2012a; 2012b). As empresas de cibersegurança supraci-
tadas apontaram em seus relatórios sobre o Flame a semelhança com o có-
digo do Stuxnet, indício de que ambos os códigos ou foram desenvolvidos
pela mesma equipe ou por equipes em cooperação (BEAUMONT, 2010;
CONSTANTIN, 2012c).
Em 2012, mais um programa de espionagem foi descoberto. De-
nominado miniFlame o malware, diferentemente dos outros vírus focados
na transmissão de informação roubada, tinha por objetivo o controle dire-
to de computadores especícos de autoridades. O miniFlame atuava assim
como um “módulo” entre os programas de espionagem Flame e uma outra
variante, o Gauss (CONSTANTIN, 2012b).
Todas essas informações apontam na direção de uma sosticada
operação militar cujo objetivo era a penetração, espionagem e sabotagem
de pontos industriais cruciais no Irã, como o setor de enriquecimento
de urânio e de petróleo. A ofensiva cibernética dos EUA em conjunto
com Israel possui, todavia, mais uma peculiaridade: a narrativa inédita
de Farwell e Rohozinski (2010) aponta que partes do código do vírus
vinham da comunidade hacker, isto é, eram “códigos de prateleira”, am-
plamente conhecidos nos fóruns “ocultos” da camada mais anônima da
Internet. Essa informação pode indicar uma colaboração dos governos
com essas comunidades de “cibercriminosos”. Os governos de Israel e
dos EUA nunca comentaram ou conrmaram ocialmente a responsa-
bilidade pelo ataque do Stuxnet, pelo projeto Olympic Games ou pelos
outros ataques (Flame, miniFlame).
A “culpa” da descoberta do vírus estaria em uma modicação do código original pela parte israelense do
projeto. Arranjos de programação que objetivavam maior rapidez na proliferação permitiram o comportamento
inesperado do vírus, que se replicou em máquinas conectadas à internet, levando à descoberta do projeto. Para
além do Irã, Índia e Malásia foram países que reportaram danos em alguns sistemas industriais causados pelo
Stuxnet (SANGER, 2012).
338
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Esse conjunto de informações demonstra algo crucial: presen-
ciamos uma crescente militarização do ciberespaço. Governos estão se
preparando para atuar nesse novo ambiente. O caso do Stuxnet é a mais
nítida representação da potencialidade das armas cibernéticas: demons-
trou a capacidade de destruição física por meio de códigos eletrônicos
(BEAUMONT, 2010). Tal capacidade – inédita até então – marca, por-
tanto, um ponto de inexão acerca do uso de armas cibernética e do
debate sobre cibersegurança
8
, inuenciado as discussões teóricas sobre
a “ciberguerra
9
. Além disso, o vírus escancarou operações que se desen-
volviam em segredo há alguns anos em países como EUA, Grã Bretanha
e Israel. No mesmo sentido, Mehmetcik (2014) aponta que “mais de 30
países já construíram ou estão construindo capacidades cibernéticas de-
fensivas e ofensivas” (p. 126, trad. nossa).
Tal panorama indica uma das múltiplas possibilidades das tec-
nologias da informação: a capacidade de ofensiva militar, com impactos
físicos por meio de armas cibernéticas. A ciberização das relações interna-
cionais indica, portanto, que armamentos cibernéticos são uma opção de
atuação dos Estados. Seus benefícios apontam para os custos – menores se
comparados com a atuação militar direta – e para a “anonimidade” desses
ataques; cabe ressaltar que a possibilidade de colaboração com grupos e
organizações hackers pode dicultar ainda mais a possibilidade de atribui-
ção. Passaremos agora para o outro caso selecionado, cujas características
especícas também marcam tendências futuras.
Recomendamos o documentário-lme Zero Days (ZERO..., 2016) para a compreensão da dimensão dos
impactos do Stuxnet na comunidade de cibersegurança. Todos os responsáveis por empresas de cibersegurança
entrevistados foram unânimes: tratava-se de algo inédito até então e altamente perigoso as infraestruturas de-
pendentes de tecnologias de controle eletrônico.
Ainda que em caráter de possibilidade, certa literatura defende a operacionalização do conceito de ciberguerra
ou “guerra cibernética” para tratar de operações militares promovidas por Estados dentro do ciberespaço (ver:
ARQUILLA; RONDFELDT, 1997; LOPES; TEIXEIRA JR, 2010; WENDT, 2011). Não defendemos esse
ponto de argumentação por compreender que o conceito de “guerra” (tanto teoricamente quanto sobre as bases
do direito internacional) necessita de certos condicionantes para ser utilizado. Estamos conscientes da possibili-
dade de uma “guerra cibernética” no futuro, mas apontamos que até então, tanto o Stuxnet quanto os casos de
Ataques de Negação de Serviço Distribuído (DDoS, em inglês) utilizados na Guerra Russo-Georgiana de 2008
tratam de operações militares no ciberespaço ou de ciberataques promovidos por Estados e não propriamente de
guerras cibernéticas.
339
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
4 – as eleições estaDuniDenses De 2016
Os efeitos do ciberespaço não se restringem aos vírus e armas
cibernéticas. A centralidade da informação, cada vez maior nas sociedades
do século XXI (NYE JR, 2010), permite uma série de ações cujos objetivos
recaem na manipulação daquilo que comumente se chama de “opinião pú-
blica
10
. As “notícias falsas” (fake news), vazamentos de documentos ocias
e campanhas internacionais de difamação são alguns exemplos. O segundo
caso elencado, que aponta para os impactos da ciberização das relações in-
ternacionais trata especicamente dessa forma de ação durante as eleições
presidenciais de 2016 nos EUA.
Em 20 de junho de 2016, um usuário da rede social Twitter,
chamado Guccifer 2.0, reivindicou a autoria de um ataque cibernético
que teria atingindo o Comitê Nacional Democrata (CND) vazando uma
série de e-mails relacionadas à campanha da então candidata à presidência
e ex-Secretária de Estado, Hillary Clinton. Em 22 de julho de 2016, o re-
conhecido site de vazamentos de documentos ociais, Wikileaks, publicou
44.053 e-mails com 17.761 anexos roubados do CND. Os vazamentos
não pararam por aí: em 07 de outubro de 2016 – algumas semanas antes
das eleições presidenciais – uma série de publicações do Wikileaks liberaria
ao público 60.000 e-mails roubados da conta de John Podesta, presidente
da campanha de Hillary Clinton (HARDING, 2016).
Em 13 dezembro de 2016, uma reportagem especial do jornal
e New York Times aponta aquilo que seria “a arma perfeita”: a invasão do
comitê democrata por hackers supostamente ligados ao governo Russo. A
notícia contou como dois grupos de hackers, ATP28 e ATP29, que agiram
ao mesmo tempo – aparentemente sem coordenação – no acesso e roubo
de informações. O grupo ATP29 teria acesso ao servidores do CND desde
o verão de 2015 no hemisfério norte, enquanto o ATP28 desde a prima-
vera do ano seguinte – ambos extraíram grandes volumes de informação,
tais como os e-mails vazados (LIPTON; SANGER; SHANE, 2016). Cabe
ressaltar, o presidente Obama colocou a cibersegurança como um dos pon-
tos principais do seu governo, paradoxalmente, seu partido foi incapaz de
10
Esfera de atuação que não é nova, vale lembrar que tanto a propaganda nazista e antinazista na Europa da 2ª
Guerra Mundial, quanto as transmissões de rádio da USIA para o território da União Soviética foram casos de
mobilização de ferramentas de informação com objetivos militares e políticos especícos.
340
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
implementar medidas básicas de cibersegurança que evitariam essa invasão
(FIDLER, 2017).
Os hackers utilizaram da técnica de spear-phishing, isto é, direcio-
namento de e-mails com o objetivo de roubar informações. Assim, funcio-
nários do CND e de diversas instituições dos EUA recebiam e-mails com
aparência legítima (e-mails que pareciam enviados de remetentes coná-
veis) que continham ou links para a substituição de senhas, ou arquivos
anexos contaminados. Ao clicar no link, ou abrir o documento anexo,
os hackers conseguiam promover alterações no sistema operacional dos
computadores e instalar outros malwares, obtendo amplo acesso tanto aos
dados armazenados nos discos rígidos, quanto os dados disponíveis nas
contas de e-mail
11
.
Inicialmente, a atribuição desses ataques cibernéticos ao gover-
no russo pautava-se em indícios tais como as semelhanças com outros
ataques russos, a abertura de alguns documentos roubados em softwares
no idioma russo e a relação entre os horários dos ataques e o horário
comercial do fuso horário da Rússia, incluindo períodos de inatividade
durante os feriados nacionais desse país. A primeira atribuição ocial
dos ataques à Moscou por parte do governo dos EUA aconteceu em 7 de
outubro de 2016, numa declaração conjunta do Departamento de Segu-
rança Interior (Department Of Homeland Security – DHS) e do Escritório
do Diretor de Inteligência Nacional:
A Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos cona que o gover-
no russo dirigiu o recente comprometimento de e-mails de pessoas e
instituições estadunidenses, incluindo organizações políticas dos EUA.
As recentes divulgações de supostos e-mails hackeados em sites como
DCLeaks.com e Wikileaks e pela personagem online Guccifer 2.0 são
11
Trechos de um “documento secreto” da NSA vazados pelo site de notícias e Intercept em 05 de maio de
2017, especicam essa tática no caso das invasões às empresas fornecedoras de produtos relacionados às eleições
(COLE, 2016): “Os atores de ameaça cibernética [oculto] executaram uma campanha de spear-pishing do en-
dereço de e-mail noreplyautomaticservice@gmail.com em 24 de agosto de 2016 mirando vítimas que incluíram
empregados da empresa estadunidense 1, de acordo com informações que se tornaram disponíveis, em abril de
2017” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2017b, p. 2, trad. nossa) e “Os [oculto] atores estavam prova-
velmente tentando obter informações associadas com aplicações de hardware e software relacionadas com as
eleições. É desconhecido se o desdobramento do spear-phising mencionado acima comprometeu com sucesso
todas as vítimas pretendidas, e quais os dados potenciais das vítimas que puderam ser exltrados. Contudo,
baseado no ato subsequente, é provável que ao menos uma conta foi comprometida” (ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA, 2017b, p. 3, tradução nossa).
341
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
consistentes com os métodos e motivações de esforços direcionados
russos (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2016b, trad. nossa).
A declaração continua apontando que os ataques focaram não
somente os roubos de e-mails e dados, mas também atuaram sobre
empresas que fornecem equipamentos de software e hardware para as
eleições em diversos locais dos EUA, com o objetivo de obter acesso às
suas estruturas – apesar disso arma que não houve danos ao processo
de contagem dos votos.
As informações desse pequeno comunicado de imprensa fo-
ram complementadas com uma declaração conjunta do DHS e do FBI
(Federal Bureau of Investigation) de 29 de dezembro de 2016, cuja fun-
ção era fornecer uma análise das “ferramentas e infraestruturas utili-
zadas pelos Serviços de Inteligência Russos (RIS) civis e militares para
comprometer e explorar redes e endpoints associados com as eleições
dos EUA” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2016a, p. 1, trad.
nossa). Deixando claro que as declarações anteriores desses órgãos não
atribuíram os ataques “especicamente à países ou atores ameaçadores
o documento muda radicalmente o tom, armando que “a atribuição
pública dessas atividades aos RIS [Serviços de Inteligência Russos] é
suportada por indicadores técnicos da Comunidade de Inteligência dos
EUA, DHS, FBI, setor privado e outras entidades” (idem, trad. nossa),
ampliando a informação de 7 de outubro.
As declarações acima foram reforçadas com um versão pública
não-secreta” de um “relatório secreto” divulgado pelas principais agências
de inteligência dos EUA – FBI, CIA (Central Intelligence Agency) e NSA
(National Security Agency). Dentre os “julgamentos-chave” desse docu-
mento, há a clara menção da intenção russa de minar a democracia estadu-
nidense por meio dos ataques cibernéticos:
Os esforços russos para inuenciar as eleições presidenciais dos EUA
em 2016 representam a mais recente expressão do desejo de longa data
de Moscou em enfraquecer a ordem liberal democrática liderada pelos
EUA, mas essas atividades demonstraram uma signicativa escalada na
franqueza, nível de atividade e escopo e esforços comparados à ope-
rações prévias. (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2017a, p. ii).
342
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Contudo, esse relatório não aponta somente a culpa pelos ata-
ques. Há uma clara menção ao desejo russo de interferir no resultado das
eleições, favorecendo o presidente eleito Donald Trump em detrimento à
ex-Secretária Hillary Clinton:
Nós avaliamos que o presidente russo Vladimir Putin ordenou uma
campanha de inuência em 2016 visando a eleição presidencial dos
EUA. Os objetivos russos deveriam minar a fé pública no processo de-
mocrático dos EUA, denegrir [sic] a Secretária Clinton e prejudicar sua
elegibilidade e potencial presidência. Nós avaliamos ainda que Putin e
o governo russo desenvolveram uma clara preferência pelo presidente
eleito Trump. Nós temos alta conança nesses julgamentos. (ESTA-
DOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2017a, p. ii, trad. nossa).
E ainda em:
Nós também avaliamos que Putin e o governo russo aspiravam a aju-
dar as chances de eleição do presidente eleito Trump, quando possível,
desacreditando a Secretária Clinton e publicamente contrastando ela
desfavoravelmente a ele. Todas as três agências concordam com esse
julgamento. A CIA e o FBI têm alta conança nesse julgamento; a
NSA tem uma conança moderada. (ESTADOS UNIDOS DA AMÉ-
RICA, 2017a, p. ii, trad. nossa).
Quando parecia à Moscou que a Secretária Clinton provavelmente
venceria as eleições, a campanha de inuência russa começou a fo-
car mais em minar sua futura presidência. (ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA, p. ii, trad. nossa).
Ligam-se, assim, os ataques cibernéticos e as ações midiáticas
internacionais levadas à cabo pelo Departamento Central de Inteligência
Russo (GRU). As agências apontam coordenação do GRU com sites de
vazamento, tal como o Wikileaks e companhias ligadas ao setor da mídia.
Uma campanha de ataques e interferências “sem precedentes” na história.
Apesar disso, as agências não questionaram o resultado das eleições, nem o
impacto dos vazamentos na opinião pública:
Nós não zemos uma avaliação sobre o impacto que as atividades rus-
sas tiveram no resultado da eleição de 2016. A Comunidade de Inte-
ligência dos EUA é encarregada de monitorar e avaliar as intenções,
capacidades, e ações de atores estrangeiros; ela não analisa os processos
343
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
políticos dos EUA ou a opinião pública dos EUA. (ESTADOS UNI-
DOS DA AMÉRICA, p. i, trad. nossa).
Fica claro, a partir da discussão desenvolvida até agora, o caráter
inédito das invasões e vazamentos durante o período eleitoral de 2016. A
atuação de hackers russos – ligados ou não ao governo da Rússia – apon-
tou a capacidade de inuência estrangeira em um dos maiores “tesouros
nacionais” dos EUA: a democracia. Roubo de informação e vazamentos de
documentos ociais acontecem às centenas, diariamente (ZERO..., 2016).
Todavia, essa série de ataques em especíco representou, ao nosso ver, um
segundo ponto de inexão na capacidade das ferramentas trazidas pelo
ciberespaço. Seu objetivo era claramente o de inuenciar o pleito eleitoral,
por meio de ações que buscavam prejudicar um dos lados em disputa e
pautou-se na ação coordenada de invasão de computadores, roubo de da-
dos e midiatização dos mesmos dentro do ciberespaço.
A ciberização, nesse caso, indica a crescente dependência dos
Estados em relação à informação – principalmente nas democracias li-
berais do ocidente, submetidas periodicamente à processos eleitorais nos
quais a “opinião pública” é crucial para os resultados. No caso apresen-
tado, os bits transmitidos à velocidade da luz foram capazes de desaar o
Estado mais poderoso do mundo durante seu processo eleitoral. Fato que
agudamente demonstra a necessidade de atenção ao “mundo cyber” e ao
processo de ciberização.
5 – conclusões
Nosso texto teve por objetivo apontar dois casos que mar-
cam pontos de inexão no processo denominado por Kremer e Müller
(2014a) de ciberização das relações internacionais, no sentido de ilustra-
rem os impactos reais que o ciberespaço pode trazer e, além disso, indi-
carem tendências. De um lado, apresentamos o Stuxnet que demonstrou
pela primeira vez as capacidades de armas cibernéticas sosticadas. Não
queremos dizer, com isso, que ataques anteriores não tiveram sua im-
portância: o amplo uso de hackers em ações de “negação de serviço” na
Estônia em 2007 e na Geórgia em 2008 pelo governo russo são casos
344
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
marcantes do processo de crescimento das capacidades de ação por meio
do ciberespaço (MEHMETCIK, 2014) e apresentam os primeiros casos
de operações cibernéticas militares.
Contudo, o caso do ataque cibernético ao Irã apresentou carac-
terísticas inéditas: a sosticação do código do vírus e, principalmente, os
danos materiais ocasionados. Ao revelar a possibilidade de destruição de
infraestrutura física, o Stuxnet levantou debates em toda a comunidade
internacional sobre como agir em relação aos ataques cibernéticos. Al-
guns autores, chegaram a discutir, inclusive, se o acontecimento poderia
ser considerado um ato de guerra, por apresentar as características de uso
da força (KNOEPFEL, 2014). Portanto, o ponto de inexão causado
pelo caso Stuxnet conrma a tendência de ciberização e nos diz muito a
respeito da futura “ciberguerra”.
Do outro lado, o segundo caso elencado, a interferência de hacke-
rs nas eleições presidenciais de 2016 apresentam como o ciberespaço é um
elemento crucial na crescente dependência informacional das sociedades.
As características inéditas desse caso estão no alvo, o Estado que se conside-
ra “a maior democracia do mundo” e nos métodos coordenados de invasão,
roubo de dados e vazamentos para a mídia internacional para inuenciar
especicamente um processo eleitoral. Ressaltamos que é justamente o ob-
jetivo de inuenciar um processo eleitoral que distingue esse acontecimento
de outros casos, tal como o conhecido vazamento dos dados da NSA por
Edward Snowden em 2013.
Em suma, demonstramos a pertinência do argumento da ciberi-
zação e apontamos casos representativos, marcos no desenvolvimento des-
se processo que indicam tendências futuras. Cabe destacar ainda que ao
nosso ver o ciberespaço não é um ambiente homogêneo, a rede apresenta
desigualdades ao redor do globo. Existem pontos de extrema conectividade
e pontos de semi-isolamento. Os padrões de acesso também são desiguais
entre as nações e, mesmo dentro delas, entre as diversas instituições e clas-
ses sociais. Isso signica que um berbere do Marrocos, um estadunidense
no Vale do Silício e um chinês sob o “Grande Firewall” conectam-se ao
ciberespaço a partir de diferentes infraestruturas e padrões de acesso.
345
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Essa é uma posição teórica que permite considerar o cibe-
respaço como um ambiente de complexidade ímpar cujas tendências
apontadas neste texto são apenas alguns dos desdobramentos possíveis
e deve ser desenvolvida. Se nem a Grande Rede pode ser pensada como
um local homogêneo, o ciberespaço tampouco o é e exatamente por
isso a preocupação com sua securitização tornar-se-á pauta central den-
tro das agendas políticas dos Estados.
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351
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Kelly Silva
1 – introDução
Proponho-me a identicar e discutir, no presente artigo, certas
tecnologias pelas quais se disseminam práticas de governo em escala glo-
bal. Tangencio tal problemática por meio da abordagem de dinâmicas do
campo da cooperação internacional para o desenvolvimento (RIBEIRO,
2007) e do modo como ele se impõe sobre estruturas estatais de países de
independência recente dele dependentes. Considero tais tecnologias fer-
ramentas fundamentais de governança global (ROSENAU, 2000), a qual
se congura de modos difuso (MOSSE, 2005) e polinucleado (BARROS,
2005), mediante práticas de instituições públicas e privadas, governamen-
352
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tais e não-governamentais locais, nacionais ou internacionais; de pequena,
média ou grande escala
1
.
Faço uso da noção de governo nos termos em que é denida por
Foucault (2008): trata-se de uma forma particular de exercício de poder
que tem como m a gestão da diversidade constitutiva de formações sociais
complexas como cidades, nações e impérios. O governo é assim conside-
rado uma forma de poder do Estado que tem como objeto primordial as
populações. Ele objetiva a manutenção da segurança, entendida como uma
certa ordem das coisas passível de previsão e controle, tendo em vista deter-
minados ns. Os sistemas legais, os mecanismos disciplinadores e os dispo-
sitivos de segurança são, para Foucault, fontes de governo fundamentais,
que ganham vida social objetivados em poderes (instituições, leis, políticas
públicas), saberes (formas de produção e transferência de conhecimento)
e moralidades (valores) que conformam novas modalidades de subjetiva-
ção. Adoto um olhar desinstitucionalizante e desfuncionalizante do Estado
(FOUCAULT, 2008), das instituições e modos de gestão do social a m de
capturar o rizoma de uxos e nós interligados que condiciona e participa
da conguração do mesmo. Ao mesmo tempo, interessa-me reconhecer os
efeitos, previstos e imprevistos, produzidos por tais uxos, em suas múlti-
plas dimensões de existência.
Os uxos de práticas de governo são aqui considerados produtos
de processos históricos de longa e média duração (ELIAS, 1972), relacio-
nados à expansão do sistema capitalista em razão do qual o controle de
populações e territórios (FOUCAULT, 2008) se fez e se faz necessário.
Até o nal da II Guerra Mundial, os uxos promovidos pelos coletivos
coloniais (ROQUE, 2004) foram fundamentais na constituição e circula-
ção de modos de governo. No pós-guerra tal papel foi assumido, em uma
escala global, pelo campo da cooperação internacional para o desenvolvi-
mento. A institucionalização do campo da cooperação internacional para
Este texto é a versão em língua portuguesa do artigo originalmente publicado em 2012 sob o título Global
ows of government practices. Development technologies and their eects, na Revista VIBRANT – Virtual Brazilian
Anthropology 9(2). Ele foi produzido como produto nal de minha participação no projeto de pesquisa inti-
tulado ”Modelos e seus efeitos sobre uxos de desenvolvimento: Uma abordagem etnográca e comparativa da
transmissão do conhecimento e de estratégias de subsistência”, nanciado pela União Europeia. Registro meu
agradecimento à Gustavo Lins Ribeiro, Flávia Lessa de Barros, Gonzalo Diaz Crovetto, Taís Sandrim Julião e
Sandro Almeida pela interlocução e parceria na execução da pesquisa. O presente artigo vincula-se ainda à linha
de pesquisa intitulada “Processos de invenção, transposição e subversão da modernidade”, por mim coordenada
no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
353
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
o desenvolvimento no pós-guerra (do qual fazem parte os próprios Esta-
dos nacionais) é tributária das instituições, saberes e valores conformados
pelas práticas de colonização europeia (ESCOBAR, 1988; MITCHELL,
2002). À título de promover o desenvolvimento, formas e estratégias de
governo são elaboradas e introduzidas em diferentes contextos. Assim, nos
horizontes deste artigo o termo desenvolvimento será abordado como um
mobilizador político, apropriado por diferentes atores em múltiplas arenas
de embate para legitimar práticas diversas.
As análises apresentadas ao longo do texto tomam como obje-
to principal as práticas ociais de assistência/cooperação técnica para o
desenvolvimento internacional (AID), ou seja, executadas por órgãos go-
vernamentais, bi ou multilaterais em países de independência recente de-
pendentes de recursos internacionais. Assumo que tais práticas têm tido
inuência marcante na edicação dos Estados de tais países. A eleição da
cooperação técnica ocial para desenvolvimento para reexão ancora-se
no preceito de que ela gura como força política articuladora do siste-
ma mundial contemporâneo, da globalização (MOSSE, 2005; ONG;
COLLIER, 2010), impondo uma vinculação especíca dos países ditos
em desenvolvimento com os centros hegemônicos de poder (ESCOBAR,
1988; MONTÚFAR, 2001).
Montúfar (2001) sugere que a dinâmica do campo da AID deve
ser abordada a partir do modo como ela se congura na articulação de três
elementos: 1) os interesses dos doadores; 2) as estruturas organizacionais
por meio das quais os recursos circulam e, 3) as ideias e modelos de desen-
volvimento
2
. As discussões abaixo focam aspectos da segunda dimensão
proposta pelo autor e frisam a importância de técnicas de gestão do social,
como projetos e programas de desenvolvimento internacionais na edica-
ção da ordem global. Estão excluídas do horizonte de reexão deste artigo
formas de aliança político–militares e de integração econômica regional,
tal como manifestas na União Europeia ou no Mercosul, embora saibamos
que as mesmas operam de modo conjugado com o campo da AID.
Considero, contudo, que seja necessário a inserção de mais um elemento na análise: as apropriações e sub-
versões locais dos recursos disponibilizados pela AID que, a médio prazo, podem implicar na reformulação das
próprias dinâmicas de conguração do campo.
354
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Outra categoria que merece um comentário inicial é a de Estado.
Adoto a acepção de Barkey & Parikh (1991, p. 524), que o qualica como
um aparato administrativo no qual administração signica extração de
recursos, controle e coerção e manutenção de uma ordem normativa, legal
e política na sociedade”. Assim, por oposição a abordagens substantivistas
do que seja ou deva ser um Estado (e inspirando-me mais uma vez em Fou-
cault), o tomo como um conjunto mais ou menos articulado de técnicas
administrativas para ns de governo.
Articulações particulares de técnicas administrativas podem dar
origem a modelos de governo associados a um ou outro Estado ou coalisão
política internacional, assim reconhecidos uns diante dos outros a partir
de certas variáveis. No entanto, muitos são os custos políticos implicados
na difusão de práticas de governo via modelos, a qual implica um ali-
nhamento mais fechado dos países/populações receptores a certos pacotes
de tecnologias sociais, como ocorreu na guerra-fria, politizando sobrema-
neira as práticas de cooperação técnica internacional
3
. Parece-me, assim,
que a difusão internacional de modos de governo, sobretudo após 1989,
se dá pela circulação de técnicas administrativas estatais, mais ou menos
isoladas. Assim denominadas e organizadas, tais técnicas administrativas
contribuem para geração do efeito de despolitização tão característico do
campo da cooperação internacional para o desenvolvimento (RIBEIRO,
1991; FERGUSON, 1994; OLIVIER DE SARDAN, 2005), artimanha
fundamental para seu trabalho político.
As análises que seguem foram construídas a partir do diálogo
com literatura de inspiração histórica e etnográca, bem como a partir de
minhas pesquisas de campo a respeito do processo de formação nacional
em Timor-Leste. O artigo está estruturado em duas grandes partes. Na
primeira seção, abordo aspectos gerais da conguração desenvolvimentis-
ta contemporânea e seus modos típicos de por em circulação práticas de
governo por meio de tecnologias como projetos, programas, condiciona-
lidades, documentos etc. Na segunda parte, discuto alguns dos efeitos das
As tecnologias de governo empregadas para gestão da economia têm sido um dos sinais diacríticos mais pri-
vilegiados nas ciências sociais para elaborar tipologias de Estado a saber, Estado liberal, neoliberal, socialista,
estado de bem-estar social etc. No entanto, esse é somente um dos critérios possíveis para se discutir o perl dos
Estados, uma vez que a economia é uma dimensão de ação social produzida pela ação de outros dispositivos de
governo, como o direito, por exemplo.
355
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
práticas desenvolvimentistas para os processos de construção de Estado e
para outras dinâmicas políticas, seja entre países recipientes ou entre pa-
íses donatários da AID. Dentre as implicações da circulação de práticas
de desenvolvimento abordadas, destaco aquelas relacionadas a políticas de
construção de capacidades e o que denomino efeito de desconsideração.
Finalizo o artigo sugerindo que os efeitos advindos da cooperação técni-
ca internacional são gerados pela atuação conjunta de outras formas de
aliança (militares, econômicas) e de modos mais difusos de circulação de
discursos e práticas de governo.
2 – a comPlexa figuração Desenvolvimentista
Se é verdade que a palavra desenvolvimento compusesse, pelo me-
nos desde o século XVIII, parte do repertório da losoa política ocidental
em sua tentativa de compreender o nascimento do capitalismo nos séculos
XV e XVI e seu crescente complexar e anidades eletivas com o aden-
samento dos espaços urbanos e migrações (EDELMAN; HAUGERUD,
2008), é somente em meados do século XX que o termo passa a ser objeto
de saber, originando um campo discursivo justamente quando é alçado à
condição de importante mobilizador político. Tal campo de saber-poder
(FOUCAULT, 1979) produz seus próprios objetos de intervenção, os pa-
íses e/ou populações subdesenvolvidas (ou em vias de desenvolvimento)
(ESCOBAR, 1995). Embora o termo desenvolvimento evoque práticas de
dinamização social em prol do bem público, sua concretização em projetos
e programas é, na maioria das vezes, realizada tendo em conta também in-
teresses de capitais privados; uma reedição dos já conhecidos vínculos entre
exploração capitalista e processos de formação do Estado.
O desenvolvimento, como um mobilizador político, tem dado
origem a um complexo emaranhado institucional, cujos limites são de difí-
cil reconhecimento. Tais instituições e suas tecnologias políticas são instru-
mentos de governança global por cujas práticas se impõem aos Estados que
lhes são membros (e a suas respectivas populações) sensibilidades morais
e jurídicas negociadas entre elites transnacionais. Segundo Ribeiro (2007)
tal emaranhado institucional constitui um campo de poder no qual são dis-
putados modelos de desenvolvimento, em minha terminologia, modos de
356
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
governo de populações e territórios. Tal campo é conformado pelo univer-
so cosmopolita de especialistas, burocratas, funcionários de organizações
não-governamentais, pesquisadores, técnicos, agentes de campo e chefes
de projeto e as instituições nacionais e internacionais de que são parte,
bem como pelas populações-alvo dos projetos, que a eles resistem ou não.
Em outros termos, pode-se considerar que o campo do desenvolvimento
é conformado por redes políticas e epistêmicas (HAAS, 1992; MOSSE,
2005), pelas quais se disseminam práticas de governo.
Com vistas a domesticar minimamente nossa apreensão desse
campo, a classicação de Barros (2009) das variadas instituições que o
compõem é de muita utilidade. Ela classica as diversas instituições do
campo da cooperação internacional para o desenvolvimento em quatro
grandes categorias: 1) Agências de cooperação multilateral (AM); 2) Agên-
cias nanceiras de cooperação multilateral (AFM), 3) Agências de coopera-
ção bilateral (AB) e 4) Agências de cooperação não-governamentais.
Compõem o quadro das agências de cooperação multilaterais as
instituições responsáveis pela negociação de princípios morais e estabe-
lecimento de metas globais ou regionais consensuais relacionados com a
edicação e manutenção da ordem global hegemônica e promoção do de-
senvolvimento. São exemplares dessa categoria a ONU e a Organização
dos Estados Americanos (OEA). As agências nanceiras de cooperação são
aquelas responsáveis pela provisão de recursos nanceiros e regulamenta-
ção de suas condições de empréstimo e transferência em escala interna-
cional tendo em vista a manutenção da ordem econômica mundial hege-
mônica. Tais entidades são responsáveis pelo nanciamento das políticas
de desenvolvimento lideradas por seus Estados-membro, bem como pela
formulação das diretrizes políticas para o nanciamento das práticas de
desenvolvimento, em escala global ou regional. O Fundo Monetário In-
ternacional e o grupo Banco Mundial enquadram-se nesta categoria. As
Agências de cooperação bilaterais se caracterizam por serem braços de Es-
tados soberanos que tomam para si a função de execução de programas e
projetos de desenvolvimento em territórios extranacionais que respondem
a seus interesses de política externa. Por m, as agências de cooperação
não-governamentais internacionais são entidades de caráter privado com
ns públicos, que administram fundos, programas e projetos.
357
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
2.1 moDaliDaDes De assistência e cooPeração técnica
internacional
Não há um consenso na literatura a respeito do que caracterize,
strictu senso, a cooperação técnica internacional (SOARES, 1994). De fato,
técnica é uma palavra que denota procedimentos dos mais diversos. Técni-
ca é, antes de tudo, um meio de produzir diferentes coisas, pelo que pode
se aplicar aos mais diferentes campos e objetos. Práticas tão diversas como
empréstimos nanceiros, transferência de tecnologia nuclear e de capacity
building podem ser tomadas como diferentes faces da cooperação técnica
internacional. Seguindo a tipologia de Soares (1994) a cooperação técni-
ca internacional objetiva-se mediante: 1) transmissão de conhecimentos e
tecnologias (de produção e de gestão social, públicas e privadas) e; 2) trans-
ferência de capitais. A natureza dos recursos transferidos através da coope-
ração técnica internacional se ampliou à medida que a própria noção de
desenvolvimento foi sendo complexicada e novos regimes morais e legais
vão sendo construídos como alicerces para práticas de governança global.
a) Fluxos de conhecimento e tecnologias
Ofertas de bolsas de estudos nos países doadores, cursos de mé-
dio e curto prazo para desenvolvimento de capacidades locais para gestão
pública, treinamentos em técnicas legislativas, doação de equipamentos
administrativos – como computadores, carros, móveis – cursos de línguas,
transferência e/ou desenvolvimento de políticas públicas e projetos de lei,
nanciamento de assessores técnicos estrangeiros atuando como conselhei-
ros de autoridades políticas nacionais, entre outros, têm sido alguns dos
meios pelos quais os Estados doadores e outras agências, multilaterais e
bilaterais, vêm, a um só tempo, promovendo, intervindo e controlando os
processos de edicação institucional dos países de independência recente.
Esse conjunto de práticas passou a ser denominado também, a partir da
década de 1970, capacity building.
Técnicas legislativas e outras modalidades de técnicas governa-
mentais – dentre as quais se destacam a educação, o planejamento, as prá-
ticas punitivas – foram e continuam a ser parte fundamental do repertório
de recursos transferidos por meio da cooperação internacional, a partir dos
358
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
quais os Estados doadores cultivam sua hegemonia sobre determinados
territórios. A transferência de tais técnicas e conhecimentos está sujeita a
fontes diversas de nanciamento.
Os regimes internacionais de patentes, bem como de propriedade
industrial, de direitos de marca são dimensões fundamentais da expansão
do capitalismo e das práticas de governança global, com implicações di-
reitas na democratização do acesso e irradiação de tecnologias das mais
variadas, necessárias à promoção do desenvolvimento em suas várias fren-
tes. A esse respeito, Soares (1994, p. 186) identica a tendência dos paí-
ses industrializados a substituir os lucros advindos pela circulação indireta
de tecnologia no comércio internacional (quando embutidas nos bens de
troca) “pelos movimentos de comércio da própria tecnologia, enquanto
bem válido por si mesmo”. O mesmo autor chama ainda atenção para a
polivalência semântica do termo transferência: ele pode implicar comércio,
passagem de titularidade, passagem de posse
4
. Além disso, destaca as di-
culdades que atravessam a transferência de tecnologia produtiva, em escala
internacional. Isso porque tais práticas são reguladas por contratos regidos
por direito privado que devem ser compatibilizados com as congurações
de um direito internacional público (SOARES, 1994).
b) Transmissão de Capitais
A transferência de capitais para ns de promoção do desenvol-
vimento também pode ser considerada uma modalidade de cooperação
técnica, viabilizada por meio de assistência nanceira com ns diversos,
desde incremento de investimentos produtivos, até busca de equilíbrio da
balança de pagamentos de um determinado país. Para tanto, os Estados ou
agentes privados podem recorrer a agências multilaterais globais e regionais
(note-se que alguns países dispõem de instituições nacionais para tanto)
especializadas no repasse de recursos para cada um desses ns ou se socor-
rerem em entidades de perl privado, como os bancos.
No Sistema das Nações Unidas há uma divisão social do tra-
balho entre o grupo Banco Mundial e o FMI no que diz respeito ao
uxo de capitais. Ao FMI cabe o provimento de recursos para man-
Para uma análise das várias modalidades de contrato para transferência de tecnologias produtivas ver Soares, 1994.
359
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ter estável o sistema nanceiro mundial. Ao Grupo Banco Mundial
5
cabe a disponibilização de capitais, mediante empréstimos, para ns
de investimento para incremento da produção e do desenvolvimento,
o que engloba, inclusive, ações para provisão de infraestruturas para o
crescimento econômico. As condicionalidades impostas por ambas as
instituições para a disponibilização de recursos são poderosos instru-
mentos de governo.
No campo da cooperação financeira, é importante também
destacar o papel das organizações regionais interestatais, que Soa-
res (1994) classifica entre: a) organizações de integração econômica
para constituição de mercados comuns, como a Comunidade Eco-
nômica Europeia (EEC) e o Mercosul e; 2) instituições financeiras
regionais, formadas por capitais de Estados de uma determinada
região do mundo e voltadas à assistência monetária emergencial ou
para promoção do desenvolvimento, tais como o Banco Interameri-
cano de Desenvolvimento, Banco Asiático de Desenvolvimento e o
Banco Europeu de Desenvolvimento.
Há que se considerar ainda o suporte das agências bilaterais de
desenvolvimento na provisão de recursos nanceiros para os países em si-
tuação de crise ou mesmo para investimentos ordinários para promoção
do desenvolvimento. Os bancos comerciais privados guram como fonte
de recursos adicionais importantes na cooperação técnica internacional.
Tais entidades podem oferecer recursos a agentes públicos e privados, mas
o fazem sob condições de mercado, reguladas por força de contratos não
suscetíveis de imposições de Estados.
Discuto abaixo certas formas típicas pelas quais a transferência
de conhecimento, de tecnologias e capitais tem se dado na cooperação
técnica internacional. Proponho que tais formas sejam tomadas como
importantes conduítes dos uxos contemporâneos de modos de governo
em escala global.
O Grupo Banco Mundial é composto pelas seguintes instituições: International Bank for Reconstruction and
Development (IBRD), International Development Association (IDA), International Finance Corporation (IFC),
Multilateral Investment Guarantee Agency (MIGA) and International Centre for the Settlement of Investment
Disputes (ICSID).
360
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
2.2 – os conDuítes Dos fluxos
As transferências de saberes, tecnologias, moralidades e capitais realizadas
por meio da cooperação internacional têm se realizado através de
vários conduítes, que guardam entre si relações hierárquicas e com
distintas implicações vinculantes. Meu objetivo nesta seção do texto é
caracterizar alguns desses conduítes, com ênfase nos projetos, programas e
condicionalidades.
Instrumentos jurídicos do direito internacional público como
tratados, convenções, pactos, declarações e regimes manifestam disposi-
ções e objetivos que servem de referência para a implementação das mais
diferentes atividades de cooperação técnica. A adesão a tais instrumentos
jurídicos implica a internalização doméstica dos mesmos entre suas partes
signatárias. Entre outras coisas, tal fato traz como consequência a reformu-
lação de discursos, legislações e políticas públicas nacionais de modo a se
adaptarem aos preceitos morais e técnicos inscritos em tais instrumentos
(CORTELL; DAVIS, 2000). Para tanto, desenvolvem-se programas e pro-
jetos que, entre outras coisas, procuram catalisar a internalização domésti-
ca dos tratados internacionais.
Os recursos que circulam por meio do campo da cooperação téc-
nica são regulados por dispositivos administrativos intitulados protocolos
que traçam, em linhas gerais, os objetos e objetivos da cooperação entre
as partes envolvidas. Tais dispositivos são orientados por estratégias de co-
operação dos doadores. A transguração de tais intenções em atividades
práticas se dá por meio de programas e projetos de cooperação. Os pro-
gramas tem um caráter mais englobante que os projetos, sendo compostos
por múltiplos projetos.
As unidades elementares das práticas de cooperação técnica inter-
nacional são os projetos. Assentes no pressuposto de que a dinâmica social
é coerente, sistêmica e passível de apreensão e controle, os projetos obje-
tivam-se como um conjunto de ações planejadas e, a seguir, executadas,
voltadas a um fenômeno especíco, cuja performance espera-se que traga
certos efeitos esperados. Os projetos têm um caráter focalizado, podendo
fazer parte ou não de programas mais abrangentes. O projeto é estrutura-
do em uma visão relativamente ideal do mundo, que não corresponde à
361
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
realidade. Em termos sintéticos, Olivier de Sardan (2005) sugere que os
projetos estão sujeitos a várias mediações: 1) coerência interna do modelo
técnico que o inspira; 2) compatibilidade do projeto com a política econô-
mica nacional; 3) conformidade com as normas dos doadores; 4) dinâmica
interna do próprio projeto.
Grosso modo, os programas são um conjunto de ações arti-
culadas, realizadas em várias frentes, cuja sinergia tem por objetivo
produzir um efeito especíco. Certos programas, como aqueles volta-
dos ao ajuste estrutural das economias nacionais impostos pelo Banco
Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional na década de 1990
como condicionalidades para provisão de recursos podem, inclusive,
ser considerados formas globais, na acepção que Ong e Collier (2010,
p.11) atribuem a tal categoria:
[…] they have a distinctive capacity for decontextualization and recon-
textualization, abstractability and movements, across diverse social and
cultural situations and spheres of life. Global forms are able to assimilate
themselves to new environments, to code heterogeneous contexts and ob-
jects in terms that are amenable to control and valuation. At the same
time, the conditions of possibility of this movement are complex. Global
forms are limited or delimited by specic technical infrastructures, ad-
ministrative apparatuses or value regimes, not by the vagaries of a social
or cultural eld.
Concebidas como formulas tecnocientícas, as formas globais
podem ser transportadas e reterritorializadas. No campo da cooperação
técnica internacional, tais formas globais podem tomar por objeto diferen-
tes domínios de ação social: desde técnicas de planejamento estratégico de
projetos – como o ZOOP (Zielorientierte Projektplanung) ou planejamen-
to de projeto orientado por resultado), difundido nas décadas de 1990 e
2000 pela cooperação alemã ao redor de todo mundo – até o know-how de
administração eleitoral, tal como o existente na ONU. Em outros casos,
o que está em causa é a pretensão de reorganizar as relações entre as partes
que compõem a própria ideia de sociedade, como nos programas de ajuste
estrutural, em que os papéis do Estado e da sociedade civil estão em jogo.
Assim, reformas legais e tributárias no campo do direito trabalhista, enxu-
gamento dos aparelhos e pessoal da administração pública, exibilização
362
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
das condicionalidades para circulação de capitais são práticas que traba-
lham para conformar a sociedade à imagem de mercado.
As condicionalidades constituem-se como um conjunto de práti-
cas colocadas pelos doadores como requisitos para os receptores se engaja-
rem em programas e projetos de cooperação internacional. Constituem-se
em uma das ferramentas mais ecazes para circulação e imposição de prá-
ticas de governo em escala mundial, na medida em que as respostas a elas
normalmente implicam a conguração das administrações públicas locais
aos moldes do que os doadores consideram ser boa governança.
6
Não há,
no entanto, consenso sobre o que seja boa governança. O que se pode ob-
servar, a partir das análises de Nanda (2006) e Dunning (2004) é que tal
categoria é mais uma mobilizadora política no campo do desenvolvimen-
to, utilizada para justicar diferentes posições de poder ao longo do tempo.
Outra técnica de governo cada vez mais presente no campo da
cooperação para o desenvolvimento é o princípio de seletividade, como
apontam Mosse (2005) e, de certa forma, Li (2009). Tal princípio estru-
tura a prática de provisão de recursos a Estados e populações levando-se
em conta resultados demonstrados em políticas executadas anteriormen-
te, de modo a impor, ao longo do tempo, uma antecipação dos resul-
tados buscados pelos doadores entre os atores que recebem recursos da
cooperação. Mosse (2005) indica também a consolidação de um novo
idioma no campo do desenvolvimento, baseado em ideias de apropriação
e co-responsabilidade. É certo que tais valores estão na base da ideia de
Ao analisar os signicados atribuídos a esse termo entre algumas instituições nanceiras multilaterais – que
apresentavam práticas de boa governança como condicionalidade – Nanda (2006) indica o quanto eles têm se
alterado ao longo do tempo. Na década de 1980, boa governança signicava, para o Grupo Banco Mundial,
capacidade de aplicar reformas que implicassem combate à corrupção, ao nepotismo, ao excesso de burocracia
e à má administração. Não se levavam em conta questões políticas relacionadas a regimes de governo. A partir
dos anos 1990 boa governança passou a ter um caráter mais englobante, referindo-se à maneira pela qual o
poder e a autoridade são exercidos para o desenvolvimento em relação aos recursos econômicos e sociais de um
país. A partir de 2005, na mesma instituição, novos critérios foram eleitos para mensuração de boa governança:
acountability; estabilidade política, efetividade do governo, qualidade regulatória, Estado de direito, e controle
da corrupção. No período em que prevaleceu o consenso de Washington, boa governança, no FMI, signica-
va, sobretudo, austeridade, liberalização, políticas orientadas para o mercado e privatização, incentivos para a
poupança e investimentos privados. Ao discutir o papel das condicionalidades nas dinâmicas de conguração
estatal na África entre 1975 e 1997, Dunning (2004) sugere que seu impacto foi bastante diferente nos períodos
de guerra-fria e pós-guerra fria. Durante a guerra fria, quando os interesses estratégicos dos doadores ligados a
OCDE em ampliar suas zonas de inuência eram mais importantes, fazia-se vistas grossas às condicionalidades
relacionadas a democratização dos regimes políticos. Com a dissolução da URSS, as condicionalidades rela-
cionadas à democratização passaram a ser mais cobradas. No caso da cooperação soviética, Areeva e Bragina
(1991) indicam que se impunham condicionalidades somente aos países de orientação claramente socialista
363
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
cooperação. Sabemos, contudo, que muitas das práticas realizadas em
nome da cooperação conguram-se como transferências ou imposições
(o que não exclui subversão) de conhecimento ou capitais. Assim, Mosse
(2005) sugere que ideias de parceria e apropriação são instrumentos de
governo que visam comprometer ainda mais as populações ou Estados
alvo das práticas de desenvolvimento com objetivos concebidos pelos do-
adores. Ademais, permitem também maior controle dos doadores sobre
as práticas de seus recipiendários.
A pretensa falta de recursos humanos devidamente capacitados
para empreender reformas legais e administrativas implicadas em respos-
tas a condicionalidades e programas nanciados por meio da cooperação
internacional transformaram as práticas de construção de capacidades em
tecnologias fundamentais de cooperação internacional. Embora sistemati-
zados pela primeira vez ainda na década de 1970, foi somente a partir de
1990, aproximadamente, que os programas em prol do desenvolvimento
de capacidades ganharam força na cultura institucional das agências de
cooperação técnica (CAMPOS, 2002). Estão compreendidas nos projetos
de construção de capacidades ações que permitam a disponibilização de re-
cursos humanos competentes para implementação e reprodução legítima e
sustentada de certas práticas institucionais. Nesse contexto, a formação da
própria burocracia do Estado é, ela mesma, objeto de um processo de ca-
pacitação levada a cabo por agentes estrangeiros. Considero as práticas de
construção de capacidades um dos principais instrumentos de difusão de
modos de governo em operação contemporaneamente, as quais são dina-
mizadas por comunidades epistêmicas cujas práxis têm efeitos importantes
nas dinâmicas de conguração estatal. Na próxima seção discutirei alguns
de seus efeitos
7
.
Cabe ressaltar ainda o papel de técnicas de produção e difusão
de informações tais como seminários, workshops, consultas populares,
Haas (1992) destaca a crescente inuência de comunidades epistêmicas transnacionais, operantes no campo da
cooperação técnica internacional, nas dinâmicas estatais contemporâneas, as quais são frequentemente chama-
das a se pronunciar sobre os mais diferentes eventos. Tal comunidade epistêmica é produto de: 1) um conjunto
de princípios normativos que operam como base de sua racionalidade e ação; 2) crenças de causas compartilha-
das, derivadas de análises precedentes e que servem de base para esclarecimentos dos múltiplos vínculos possíveis
entre ações políticas e resultados desejados; 3) noções partilhadas de validade; 4) uma agenda política comum.
Para o autor, as comunidades epistêmicas são canais pelos quais novas idéias circulam de sociedades para gover-
nos, entre governos e de país para país.
364
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
pesquisas, relatórios, documentos de projeto etc. nas práticas de governo
realizadas pelo campo do desenvolvimento. Parte signicativa dos recursos
votados à promoção do desenvolvimento são aplicados na produção de
tais técnicas, pelo que se faz necessário perguntar pelos seus efeitos. Elas
têm sido abordadas como instrumentos importantes de difusão de siste-
mas classicatórios e de construção de consensos entre elites transnacionais
(MOSSE, 2005). Por meio de tais técnicas são forjados os próprios objetos
de desenvolvimento e se legitimam escolhas políticas (ESCOBAR, 1995;
FEGURSON, 1994; MICHELL, 2002; SIMIÃO, 2007). Dada a hege-
monia da linguagem escrita, dos textos, no campo do desenvolvimento,
Mosse (2005) sublinha a importância de apreendermos a vida social dos
mesmos, analisando-os ora como epifenômenos de outros processos ora
como catalizadores de novas agências.
Vale mencionar que programas, projetos, condicionalidades, se-
letividade, seminários, documentos, entre outras tecnologias, dão origem
a mediações e mediadores pelos quais o campo da cooperação técnica atua
em diferentes lugares. Organizações não-governamentais, lideranças locais,
entre outros, compõem a performance de mediações (HOLMES; MAR-
CUS, 2010) pela qual diferentes agentes procuram induzir gurações so-
ciais particulares e pela qual a globalização se constrói.
3 Pticas De Desenvolvimento e Dinâmicas De construção
estatal
Meu objetivo nesta seção é explorar alguns dos efeitos produzidos
em razão das apropriações locais e nacionais de recursos disponibilizados
via cooperação internacional para o desenvolvimento. As práticas de coo-
peração técnica têm consequências diversas entre seus depositários, algu-
mas das quais imprevisíveis. Do ponto de vista metodológico, podemos
classicá-las em políticas, econômicas e identitárias. No entanto, sabemos
que há uma relação de retroalimentação entre elas, de modo que muitas
vezes são produzidas concomitantemente ou a partir de efeitos dominó.
É consenso na literatura crítica a respeito das práticas desen-
volvimentistas que os impactos da cooperação técnica devem ser ava-
liados prioritariamente pelos efeitos colaterais que elas geram, os quais
365
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
raramente aparecem de maneira explícita no repertório dos objetivos a
serem alcançados com os projetos de cooperação. Assim, os efeitos mais
signicativos das políticas de desenvolvimento são aqueles advindos de
suas apropriações sociais reais.
Não é minha intenção aqui indicar relações de causalidade di-
reta ou generalizáveis entre práticas de cooperação técnica e processos de
formação de Estado. As correlações entre tais fenômenos são complexas
uma vez que dependentes de congurações históricas e mediações sem-
pre particulares. É preciso alimentar uma vigilância epistemológica que
nos habilite a escapar de meta-narrativas que dicultam a compreensão
da vida social dos recursos colocados em circulação por parte da coope-
ração internacional, para além dos objetivos que lhes são formalmente
atribuídos. Além disso, uma vez que a ideia de desenvolvimento está em
constante disputa, os objetos de cooperação se alteram, bem como os
efeitos por eles produzidos.
A discussão a respeito do papel da cooperação técnica nas dinâ-
micas de conguração estatal está organizada em três partes. Na primeira
delas abordo alguns de seus efeitos políticos, econômicos e identitários
mais imediatos nas estruturas estatais receptoras. Entre outros, discuto cer-
tos impactos das práticas de construção de capacidades. Na segunda seção,
abordo o que denomino de efeitos de exclusão moral. Residualmente, ana-
liso alguns dos efeitos das práticas de cooperação técnica entre os países do-
adores ou sobre os fóruns multilaterais de negociação política. A compar-
timentação da discussão nestas três seções é uma estratégia metodológica.
3.1 efeitos e aProPriações Da cooPeração técnica entre os
Países Beneficiários
Análises vinculadas às mais distintas tradições intelectuais a res-
peito da AID indicam que os principais beneciados com as práticas de co-
operação técnica ociais nos países de descolonização recente são as elites
locais e a administração pública na qual estão envolvidas (FEGURSON,
1994; MITCHELL, 2002; OLIVIER DE SARDAN, 2005; UVIN, 1998;
SILVA, 2012 entre outros). Em muitos países da África e na Ásia, o Estado
gura como principal fonte de recursos nanceiros e atua como mediador
366
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
importante na organização de uxos de bens, capitais, saberes e moralida-
des que circulam em escala global. A título de exemplo, Mitchell (2002)
demonstra que metade da assistência econômica provida pela Agência dos
Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) ao Egito
com o m de apoiar o setor privado e o pluralismo, entre 1985 e 1990, foi
de fato canalizada ao Exército nacional, reforçando a principal instituição
do Estado ao mesmo tempo em que permitia o escoamento da produção
da indústria bélica americana, uma vez que obrigava a instituição egípcia à
compra de vários insumos militares dos EUA.
Sendo o campo da cooperação técnica internacional um campo
de saber-poder, um de seus principais instrumentos de produção e repro-
dução são os diagnósticos e prognósticos por ele produzidos. Tal campo de
saber é alicerçado em um sistema classicatório apologético que reete e
projeta modelos de como as sociedades deveriam ser e não de como elas de
fato são. A apropriação de tais discursos pelas elites locais a m de legiti-
mar-se no poder é parte fundamental dos efeitos gerados pela cooperação
técnica para o desenvolvimento. Na verdade, os discursos produzidos pelo
campo da cooperação técnica internacional participam, em muitos casos,
dos processos de elaboração de narrativas nacionais que passam a ser utili-
zadas para justicar diferentes políticas.
Ferguson (1994), por exemplo, indica que a cooperação técnica
internacional teve um papel fundamental na invenção do Lesotho como
uma unidade política autônoma, supostamente dotada de uma economia
nacional própria. Tal fato foi possível pela produção sistemática de silen-
ciamentos, dos quais se destaca a exclusão das relações de dependência
do Lesoto com a África do Sul. Nos documentos produzidos pelo campo
da cooperação internacional, o Lesoto era apresentado como um país de
economia agrícola, tradicional, a despeito da maior parte de sua economia
ser movimentada pelo uxo de recursos advindos do trabalho migrante
assalariado nas minas da África do Sul. Somente 6% de seu PIB advinham
de produção agrícola. Na mesma direção, Mitchell (2002) sublinha que
a abordagem do Egito como um país caracterizado por um descompasso
entre grande crescimento populacional e pequena área agricultável é parte
fundamental da retórica que justica os programas de cooperação técnica.
Em ambos os casos silenciam-se as relações de natureza transnacional e
367
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
as disputas entre segmentos populacionais domésticos que condicionam
os fatos que passam a ser objetos de políticas de desenvolvimento. Entre
os efeitos colaterais gerados, as economias nacionais aparecem como fatos
sociais discretos.
a) a invenção Das economias nacionais
Um dos efeitos mais importantes da cooperação técnica interna-
cional tem sido seu papel na conformação das economias nacionais. Uma
vez que o crescimento econômico foi considerado, por muito tempo, um
sinônimo de desenvolvimento, parte importante dos recursos disponibili-
zados pela cooperação voltou-se para constituição desta entidade chama-
da “economia nacional”. Diferentes formas de domesticar e gerenciar esta
economia nacional constituíram a base para elaboração do socialismo e do
capitalismo como modelos de governo distintos.
No entanto, desde há muito sabemos que o que se chama de eco-
nomia contemporaneamente – a soma das trocas nanceiras realizadas em
determinado espaço – é uma produção social, elaborada a partir de estra-
tégias de exclusão e de normatividade das mais distintas. Mitchell (2002)
nos lembra que as leis, o direito de propriedade, o direito administrativo,
as convenções internacionais, as políticas governamentais são todas con-
dições para que a economia possa existir como um campo relativamente
autônomo. Assim, as práticas envolvidas na estruturação da economia não
são somente aquelas que regulam os atos de troca mercantil, mas também
várias outras técnicas de governo. Se assim o é proponho que reitamos so-
bre a emergência de economias nacionais de fora para dentro, ou seja, dis-
cutindo certos fatos extraeconômicos (chamados de externalidades no pen-
samento econômico contemporâneo) que se impuseram na conformação
de suas constituições, particularmente aqueles relacionados à conguração
do Estado nacional e suas correlações com a cooperação internacional.
A nacionalização das economias foi um desao administrativo
com o qual muitos dos Estados pós-coloniais formados após 1945 se de-
frontaram. Na verdade, esse é um desao que se fez presente em todos os
processos de formação nacional. Um fato que de início faz-se necessário
relembrar é que as estruturas de governo pós-coloniais não foram cons-
368
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
truídas sobre uma tábua rasa. Elas foram produzidas em diálogo com as
práticas e instituições coloniais de governo que as antecederam e com as re-
des nas quais as economias imperiais estavam enredadas. Robinson (2009)
sugere que a formação de uma economia nacional relativamente autônoma
foi um dos principais objetivos perseguidos pelo governo de Sukarno na
Indonésia a partir da independência. Para tanto, era necessário desman-
telar a estrutura da economia colonial e incentivar a emergência de novas
forças socioeconômicas. Isso implicava substituir a economia colonial de
base exportadora para uma economia industrializada e autossuciente, es-
truturada no mercado doméstico. Para tanto, nacionalizaram-se os bancos,
disponibilizaram-se certos serviços básicos de infraestrutura, investiu-se na
implantação de indústria de base e se dissolveu o controle holandês do sis-
tema comercial de exportação e importação (SANDRIM 2010).
Mamdani (1998) classica as posturas cultivadas por certos Es-
tados pós-coloniais diante de legados coloniais em conservadora e radical.
As posturas conservadoras foram aquelas em que se equacionou a ordem
que se desejava construir com o legado colonial, reformando, readaptando
preceitos que vigoravam anteriormente. A resposta radical, por sua vez,
caracteriza-se pelo projeto de ruptura com a ordem anterior. Considerando
que as várias formas de administração dos Estados coloniais tinham por
objetivo, entre outros, promover a manutenção e expansão da exploração
capitalista, adotaram uma resposta radical todos os Estados que aderiram
a um regime socialista. De todo modo, em qualquer das posturas adotadas
pelas elites responsáveis pela edicação institucional de novos Estados a
cooperação técnica internacional ocial tem tido papel fundamental.
Como ressaltei acima, a ação da cooperação internacional sobre
seus chamados beneciários se faz mediante condicionalidades, programas
e projetos que são justicados em razão de diagnósticos e prognósticos re-
alizados em resposta a demandas políticas internas e externas advindas de,
entre outras, adesões a tratados, protocolos, regimes e mesmo contratos de
empréstimos internacionais (nos casos de uxo de capitais). Uma vez que
os atos ociais do Estado moderno devem ser regulados por lei, um dos
primeiros passos para a internalização doméstica de práticas de governo
negociadas (ou impostas) internacionalmente é a realização de reformas
legais. Para tanto, é comum a contratação de prossionais especializados
369
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
em tais práticas, aos quais é muitas vezes também atribuída a função de
construção de capacidades. Dada a importância de tais fenômenos no
campo da cooperação técnica internacional abordo, a seguir, certos traços
e implicações das práticas de construção de capacidades. Tais análises são
baseadas em minha pesquisa sobre tal problemática em Timor-Leste, onde
a cooperação técnica internacional pode ser tomada como um fato social
total (MAUSS, 1974) no processo de construção do Estado.
B) Políticas De construção De caPaciDaDes
As políticas de construção de capacidades são executadas por
meio de várias estratégias: cursos, treinamentos, worshops, on-the-job trai-
ning, etc. Designa-se de on-the-job training ao método de transferência de
conhecimento através do qual um advisor treina sua contraparte local en-
quanto ambos estão envolvidos na execução de uma mesma tarefa. A ideia
é que, ao fazê-la em conjunto com sua contraparte local o assessor a habi-
lite a, no futuro, executá-la sozinha.
Os cursos e demais treinamentos podem ser realizados no país
beneciário ou no exterior e podem ser nanciadas por um ou mais do-
adores ou serem pagos pelo próprio Estado beneciário. Podem durar de
uma semana a alguns anos, quando implicam, no último caso, a formação
de quadros em nível superior em universidades ou institutos de alta tecno-
logia. Os objetos de tais treinamentos podem ser os mais diversos: desde o
manejo de técnicas de mensuração de custos e planejamento de políticas
públicas até a operação de máquinas pesadas para construção militar e
civil, passando por cursos de línguas e de técnica legislativa. No caso da
formação acadêmica, as agendas de capacitação são ainda mais amplas e
geralmente implicam, potencialmente, algum tipo de identicação do es-
tudante com o perl nacional da formação que ele recebe.
Embora formalmente voltados para a transferência de conheci-
mentos ditos puramente técnicos, as práticas de construção de capacidades
são informadas por uma agenda moralizadora, que busca imprimir sobre
aqueles que tomam como “alvo” certos padrões de conduta considerados
ideais. Operam, assim, como mecanismos de construção de subjetividades,
de cultivo de certas disposições (BOURDIEU, 2002) Estímulo à discipli-
370
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
na no trabalho, condenação da corrupção, entre outros, constituem metas
de muitos programas dessa natureza em países de independência recente.
Além disso, as práticas de construção de capacidades são instrumentos fun-
damentais para a construção da hegemonia dos doadores sobre os Estados
aos quais prestam cooperação. Tal fato é consequência do modo pelo qual
as políticas de desenvolvimento de capacidades são implementadas.
Decisões relacionadas ao perl dos programas de construção de
capacidades a serem executados no âmbito de um determinado Estado
são consequências de diferentes níveis de negociação política. Alguns po-
dem ser impostos pelos doadores como condição para a disponibilização
de recursos via cooperação internacional. Outros se objetivam a partir de
demandas do próprio Estado beneciário, baseados em diagnósticos siste-
matizados em programas de desenvolvimento nacional, por exemplo. O
papel das preferências das elites locais na denição das estratégias e per-
s de capacitação a serem adotadas também varia muito e está conectado
ao menos a dois condicionantes: 1) o grau de conança que os governos
domésticos gozam entre os membros da comunidade internacional; 2) as
conexões informais entre autoridades políticas locais e estrangeiras. Uma
vez que muitos dos programas de construção de capacidades são emprega-
dos em países marcados por fragilidade institucional, os mesmos acabam
por ter papel importante na edicação da própria administração pública.
Nesses casos, construção de capacidades implica também construção de
instituições de Estado.
A execução de programas de construção de capacidades implica,
muitas vezes, a contratação de um ou de uma equipe de especialistas es-
trangeiros. Em sua atuação em empreendimentos de capacitação, os asses-
sores internacionais tendem a reproduzir in loco os princípios de fundação
e gestão da máquina pública existentes em seu país de origem, nos contex-
tos cosmopolitas nos quais adquiriram sua maior capacitação prossional
ou mesmo aqueles operantes nas instituições que o contrataram. Em mui-
tos casos, as capacidades a serem desenvolvidas estão relacionadas a mode-
los particulares de relação Estado-sociedade. As reformas trabalhistas e de
exibilização da circulação de capital presentes no modelo neoliberal de
desenvolvimento, implantadas em diferentes regiões do mundo na década
371
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
de 1990, são exemplares de tal tendência. Vejamos outros exemplos, que
têm como base o caso leste-timorense.
Até 2004, o Sistema de Orçamento do Estado de Timor-Leste
era bastante semelhante àquele praticado na Austrália, a começar pelos
períodos que deniam o início e o m de um ano scal. Isso se explica
pelo fato de ele ter sido elaborado por assessores técnicos formados e com
experiência no Estado australiano, os quais treinavam suas contrapartes
locais em técnicas de gestão típicas de seu país de origem. A mesma rede
de causalidade explica similaridades entre o Projeto de Lei Orgânica da
Defensoria Pública Timorense proposta pelo Poder Executivo em 2003
com aquele que regula as ações de órgãos congêneres no Brasil: ele foi
formulado por um assessor brasileiro. Da mesma forma, se compreende o
fato de a Constituição timorense ser tão similar à portuguesa. A lei máxima
do país foi elaborada com base em um projeto de lei apresentado por um
jurista português à pedido de autoridades timorenses, e com a colaboração
de uma grande missão de cooperação bilateral portuguesa. Tais fatos são
potencializados pela existência de novas tecnologias de comunicação como
a internet, que permitem o acesso aos dispositivos jurídicos operantes nos
países de origem dos assessores de maneira muito rápida e fácil. Muitos
diplomas jurídicos de países de independência recente são adaptações de
legislações operantes em outros países.
Tais implicações podem se impor em projetos nanciados bi ou
multilateralmente e podem chegar a extremos, de modo a condicionar o
sucesso de certas opções políticas e identitárias das elites nacionais, como
aquelas relacionadas às línguas ociais e nacionais de um país. Assim, a
língua de trabalho escolhida pelo assessor internacional para interlocução
com suas contrapartes têm impacto no fortalecimento ou enfraquecimen-
to das línguas nacionais no cotidiano de trabalho. Servidores públicos ex-
postos a treinamentos mais ou menos constantes com assessores anglófo-
nos terão suas habilidades linguísticas reforçadas nesse idioma. Se essa for
a língua nacional, tanto melhor. Contudo, se não for, tal fato pode gerar
constrangimentos, desconança política, uma vez que a língua é muitas
vezes tomada como parte importante da invenção da identidade nacional
(SILVA, 2012). Tais questões se mostram de forma ainda mais evidente
quando as práticas de cooperação implicam deslocamento para um outro
372
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
país, oportunidade pela qual as habilidades linguísticas em um ou outro
idioma serão ainda mais aprofundadas. Tais efeitos são gerados, entre ou-
tras coisas, pelo fato de as elites nacionais serem os objetos privilegiados das
políticas de construção de capacidades em contextos nacionais em que são
tomadas como modelos de sociabilidade.
Uma vez que muitos dos Estados ditos beneciários da AID não
dispõem de instrumentos de monitoramento e coordenação centralizados
das práticas de construção de capacidades, é muito comum a existência de
projetos de capacitação incoerentes e por vezes contraditórios. O caso ti-
morense é mais uma vez muito bom para pensar nisso. Os especialistas que
têm atuado nas práticas de construção de capacidades são das mais diferen-
tes origens nacionais. Assim, os modos de governo por eles propostos para
organizar as ações do Estado são muito distintos e por vezes, em seu con-
junto, incoerentes. Em 2003, os assessores de origem anglófona atuantes
no Estado local formulavam dispositivos legais inspirados em um sistema
de justiça de common law, enquanto os assessores de origem latina inspi-
ravam-se em um modelo civilista de justiça. Nesse contexto, é importante
sublinhar que a cultura burocrática de órgãos multilaterais de cooperação
como a ONU e outros baseados nos EUA tem forte inuência anglo-saxã,
fato que tende a se reproduzir nos diferentes contextos em que a ONU
atua.
8
Ademais, vale lembrar que uma vez que as práticas de construção de
capacidades são instrumentos de política externa entre os doadores, nem
sempre há entre eles a disposição de harmonizar suas práticas em razão
dos interesses nacionais. Ao contrário, as práticas de cooperação são trans-
formadas em munição em disputas entre diferentes projetos civilizatórios
(ELIAS, 1993).
Ao abordar a conguração e inuência de modelos de governo
americanos na New Order proposta por Suharto na Indonésia, Cribb &
Kahin (2004) destacam a importância da atuação dos economistas nor-
te-americanos lotados na Agência de Planejamento e Desenvolvimento
Nacional (National Development Planning Board). A chamada “máa de
Berkeley” teve grande inuência nas decisões nacionais do período, sobre-
tudo aquelas relacionadas a liberalização e nanceirização da economia in-
 Sobre o Banco Mundial, ver Ribeiro, 2002.
373
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
donésia. No entanto, com a crise do Petróleo nos anos de 1970, as relações
entre esse grupo e os ideólogos da New Order passaram a ser mais tensas:
new order ideologues use this notion to argue that any state economic policy
is formed in the national interest and is based on objective and universal
economic’ criteria, therefore casting critics as subversive in their actions
and sectional in their interests. In contrast, Western liberal economists im-
plicitly assign the labels ‘objective’ and ‘economic’ only to specic policies:
those which are guided by free-market, private-enterprise, open-door eco-
nomic principles as argued by IBRD and the IMF. (ROBINSON, 2009,
p. 108–109 apud SANDRIM, 2010, p. 52).
São quase auto-evidente os efeitos de hegemonia que as práticas
de construção de capacidades podem gerar nas relações entre os Estados,
mesmo quando nanciadas multilateralmente. A internalização de tecno-
logias de governo por um Estado receptor transforma o doador na prin-
cipal referência de know-how a respeito das mesmas. Ao mesmo tempo,
ao disponibilizar ao país receptor conhecimentos para execução de certas
políticas públicas o país doador torna-se um dos principais conhecedores
dos modos de governo empregadas por seu parceiro, o que potencializa seu
poder diante dele.
Muitos projetos de construção de capacidades vêm acompa-
nhados de condicionalidades que aprofundam a dependência do país re-
ceptor diante dos recursos oferecidos pelo doador. Dentre as estratégias
apoiadas pela USAID para potencializar a produção agrícola no Egito
entre 1979 e 1987, por exemplo, destacava-se a mecanização da produ-
ção agrícola. Ao analisar os impactos de tais projetos, Mitchell (2002)
indica que os recursos providos para construção de capacidades locais fo-
ram aplicados, sobretudo, na compra de tratores americanos e no treina-
mento de treinadores egípcios nos EUA para manuseio das máquinas. Os
principais beneciados com tais projetos foram as empresas produtoras
de tratores nos EUA e os importadores dos mesmos no Egito. Situação
similar congurou-se em Timor-Leste, no que diz respeito aos progra-
mas de desenvolvimento de capacidades levados a cabo pelo Japão para a
construção de capacidades na área de infraestruturas e construção civil.
Ao se incumbir da reconstrução de infraestrutura viária (estradas, pontes,
etc.), o Japão treinou a mão-de-obra local no manejo de tratores e gran-
374
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
des máquinas fabricados no Japão, de modo a torná-la dependente da
disponibilização deste tipo de equipamento, construindo assim um novo
mercado para escoamento da produção japonesa. Ao constatar que parte
signicativa da cooperação americana para o desenvolvimento no Egito
tem sido aplicada na compra de bens industriais americanos, quando não
é utilizada mesmo para o pagamento da dívida egípcia junto ao Estado
americano, Mitchell (2002, p. 240) qualica a USAID como “[...] a form
of state support to the American corporate sector, while working in Egypt to
dismantle state support.”
Nesse contexto, é importante observar a agência de outros fa-
tores, para além dos interesses de doadores e receptores da AID, condi-
cionando os uxos e impactos das práticas de cooperação internacional.
Entre eles destaco: 1) os vínculos políticos e identitários legados pelo
passado colonial e; 2) as trajetórias de diáspora e circulação internacional
das elites em posições de comando nos Estados de formação recente. O
passado colonial é parte fundamental dos processos de formação dos Es-
tados de independência recente. Muitas das legislações subsidiárias ope-
rantes em países com tal perl são heranças do período colonial. Outros
traços da cultura política hegemônica e das posições alimentadas por
diferentes grupos das elites lotadas na administração pública diante das
práticas de construção de capacidades têm como referência modelos e
práticas de governo existentes no período colonial, sobretudo nas primei-
ras décadas que seguem à independência (SILVA, 2012). No entanto, à
medida que a memória do passado colonial vai se diluindo no tempo, a
circulação internacional das elites passa a ter precedência na formação de
disposições de maior abertura ou crítica a certas políticas de desenvolvi-
mento associadas a distintos pers nacionais.
Obviamente, tais disposições operam junto a interesses políticos.
Assim, é importante observar que os recursos providos pela cooperação
internacional são muitas vezes subvertidos pelos diferentes grupos de elites
locais em disputa para fortalecer seus respectivos projetos de Estado e de
poder, com maior ou menor anuência, explícita ou implícita, das agências
e Estados doadores.
375
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
3.2 – efeitos De exclusão moral
Ao discutir o papel da cooperação técnica internacional na ges-
tação dos conitos étnicos que ocorreram em Ruanda em 1994, Uvin
(1998) demonstra que a promoção do desenvolvimento foi transformada
em ideologia de construção nacional, então retratada como uma revolu-
ção étnica de Hutus contra Tutsis. As elites de Hutus que controlavam o
Estado associavam as políticas públicas por ele implementadas como uma
revolução que tinha por objetivo fazer justiça às discriminações que Hutus
haviam sofrido ao longo da colonização belga do território, impingindo,
em decorrência disso, uma exclusão moral em massa de populações de ori-
gem Tutsi do acesso ao Estado e a suas políticas públicas. A partir da análise
das práticas do modus operandi local da cooperação técnica, Uvin (1998)
sugere que a forma pela qual o desenvolvimento é denido e promovido
interage com os processos de reprodução das elites, diferenciação social, ex-
clusão política e mudança cultural. A AID daria assim origem a uma classe
de Estado (state class) que se reproduz a partir da apropriação dos recursos
disponibilizados pela cooperação. Mitchell apresenta insights semelhantes
quando aborda os efeitos que a execução de políticas de descentralização
administrativa teve na zona rural do Egito. Em vez de ampliar a base de
apropriação de recursos disponibilizados pelo Estado, a descentralização
aumentou o grau de concentração dos mesmos nas mãos dos grandes pro-
dutores rurais. Nos termos do autor:
when they transferred resources to an existing system of inequality, des-
centralization and privatization were liable to reinforce that inequality.
e prots went to a large farmers and local state ocials, and the poor
received at best only certain opportunities of wage labors (MITCHELL,
2002, p. 228).
Embora seja abundante na literatura crítica sobre o campo da co-
operação internacional indicações de como ele agudiza as desigualdades so-
ciais – sobretudo após a crise do consenso de Washington – pouca atenção
é dada ao que proponho chamarmos aqui de efeito de desconsideração, o
qual considero fundamental para entender seu papel nas dinâmicas de for-
mação do Estado. Denomino de efeito de desconsideração aos sentimentos
de exclusão moral que emergem entre populações consideradas alvo dos
376
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
projetos de desenvolvimento em decorrência da armação sistemática da
inadequação de uma ou várias dimensões de seus modos de vida diante de
narrativas de boa vida veiculadas por agentes e agências do campo do de-
senvolvimento. Este efeito performa papel central na difusão e imposição
de modelos em escala global. No limite, o efeito de desconsideração ame-
aça a nação como uma comunidade política particular, caracterizada por
sujeitos que se pensam como portadores dos mesmos direitos.
Para construção desta ideia inspiro-me, sobretudo, nas análi-
ses de L. Cardoso de Oliveira (2007, 2007a) a respeito da desconside-
ração e na discussão de Uvin sobre o papel da cooperação internacional
no genocídio em Ruanda em 1994. Levo em conta também a clássi-
ca discussão sobre colonialismo interno inaugurada por Stavenhagen
([1969],1996) na antropologia.
Tendo como objeto de análise os conitos jurídicos e deman-
das políticas nos Estados Unidos, Canadá e Brasil, L. Cardoso de Oliveira
(2007) sugere que dimensões importantes dos embates existentes nas so-
ciedades contemporâneas são produzidas pela percepção de desconsidera-
ção, como o reverso do reconhecimento, apreendida por parte dos sujeitos
sociais como um tipo de insulto moral. Embora indicando que a percepção
do insulto moral se congure de maneira diversa em cada caso etnográco,
o autor sugere que normalmente ela é construída mediante a mobilização
de sentimentos que destacam uma atitude de distanciamento ou ausência
de deferência à identidade de um interlocutor, a qual condiciona o acesso
do mesmo a determinados direitos.
Ao retratar a postura de funcionários públicos ruandenses no
exercício de suas funções em projetos de desenvolvimento, Uvin (1998)
identicou uma atitude de desprezo e desconsideração por certos traços
dos modos de vida das populações que eram tomadas como objetos das
políticas de desenvolvimento. Ele indicou que era comum os “evolué”,
funcionários do Estado, abordarem as populações rurais de modo humi-
lhante, uma vez que apresentavam características de seu modo de vida (na
cidade) como único modelo de sociabilidade legítimo. Havia assim uma
associação entre desenvolvimento e estilo de vida urbano (celebrado pela
possibilidade de acesso a determinados serviços e bens) que promovia uma
diminuição da autoestima das populações as quais as práticas de desen-
377
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
volvimento eram voltadas, vulnerabilizando-as ainda mais. Tal fato, asso-
ciado à violência estrutural (percepção de exclusão sistemática produzida
em razão de desigualdade de expectativas de vida, injustiça, discriminação,
fome) a qual as pessoas estavam sujeitas e à convivência com as elites nacio-
nais e quadros estrangeiros que atuavam na indústria do desenvolvimento,
geraria uma auto-percepção de exclusão moral ou de desconsideração que,
manipulada politicamente, teria tido papel importante na catálise do en-
gajamento das pessoas em atos de violência que somados, caracterizaram o
que veio a ser chamado de genocídio. O genocídio, por sua vez, promoveu
uma reconguração da dinâmica de formação do Estado e de reprodução
das elites nacionais.
Os efeitos de desconsideração produzidos em razão da implemen-
tação de um estado socialista em Moçambique pela Frente de Libertação
de Moçambique (FRELIMO), na década de 1970, parecem também estar
na base do modos operandi pelo qual a Resistência Nacional Moçambicana
(RENAMO) mobilizou a oposição ao regime socialista entre as populações
rurais do país (FLORÊNCIO, 2005). Parte importante das práticas de
governo implementadas pela FRELIMO tinha por objetivo a destribaliza-
ção de Moçambique e a invenção e cultivo do que era então chamado de
Homem Novo. O Homem Novo era concebido como o africano liberto
de seus “usos e costumes”, de suas representações e práticas culturais pró-
prias, uma vez que elas eram tomadas pelas elites então no poder como
sinais de atraso e ignorância. Para tanto, entre outras coisas, o Estado criou
vários campos de reeducação, nos quais se aplicavam regimes de trabalho
compulsório e nos quais eram proibidas práticas religiosas associadas a ma-
gia, bruxaria, culto dos ancestrais etc. (THOMAZ, 2007). Foram também
banidos, mais que tudo em termos formais, os preceitos que orientavam a
tenência da terra entre as populações rurais.
Várias dimensões da sociabilidade das populações rurais eram
consideradas inadequadas para o país que se desejava construir e deve-
riam ser assim substituídas por novas formas de comportamento e con-
duta considerados modernos. Um dos segmentos sociais mais perseguidos
pelo Estado FRELIMO em Moçambique foram os chefes tradicionais os
quais, em muitos lugares, acumulavam funções políticas e religiosas em
razão mesmo das funções a eles atribuídas pelo Estado colonial português
378
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
(FLORÊNCIO, 2005)
9
. Destituídos de suas funções à seguir à proclama-
ção da independência, muitos deles juntaram-se à RENAMO, cuja agen-
da política era fortemente marcada pela restituição às autoridades locais
de seu poder e prestígio e por demandas de respeito à “cultura local”. As
disputas entre RENAMO e FRELIMO pela conquista do poder em Mo-
çambique deram origem a uma guerra civil que se estendeu até 1992. O
tratado de paz selado nesse período, mediado pelos EUA, Alemanha e Por-
tugal, implicou na reconguração do Estado moçambicano, que deixou de
ser unipartidário, bem como de todo sistema político que o estruturava.
Em alguma medida, considero que o revivalismo contemporâ-
neo em torno das noções de cultura e tradição (HENLEY; DAVIDSON,
2008), por diferentes atores e agências, pode também ser pensado como
uma resposta estratégica aos efeitos de desconsideração produzidos pelo
campo do desenvolvimento. Assim, parece-me que o efeito desconsidera-
ção pode ser útil para pensarmos diferentes contextos de disputa ou transi-
ção política em que a difusão e imposição de modelos de desenvolvimento
e governo existem.
3.3 efeitos Da cooPeração técnica entre as agências e
estaDos DoaDores
Sugeri, acima, que os efeitos da cooperação técnica para os países
receptores podem ser classicados em econômicos, políticos e identitários,
os quais guardam entre si relações dialéticas. Os efeitos econômicos se fa-
zem notar na construção e dinamização de economias nacionais, com suas
políticas públicas associadas; os efeitos políticos se objetivam nos processos
de construção do Estado, com suas instituições e normas correspondentes,
além de propiciarem disputas entre redes de poder; os efeitos identitários,
por sua vez, manifestam-se na potencial desconsideração à cosmologias e
modos de vida locais, bem como nos movimentos de resistência que daí
surgem, os quais, muitas vezes promovem uma revivicação/reinvenção de
culturas locais.
9
O projeto de banir as autoridades locais das estruturas políticas locais nunca foi de fato alcançado pela FRE-
LIMO. O Estado pós-colonial de Moçambique não tinha capacidade de estender seus tentáculos no interior do
país. Segundo Almeida-Santos (2010, p.48) o poder local no território era exercido mediante o “balanço entre
as políticas de linhagens e as boas relações com o poder centralizado”.
379
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Tal classicação é útil também para apreendermos as implica-
ções da cooperação para os seus doadores. Do ponto de vista político e
identitário, as práticas de cooperação técnica permitem que as agências
e Estados doadores reproduzam sua posição de centro irradiador e he-
gemônico de modos de governo no sistema internacional. Por consequ-
ência, contribuem também para reprodução da imagem e posição dos
países e populações “alvos” como subdesenvolvidos e atrasados. Assim, as
práticas de cooperação oportunizam a reprodução de um sistema classi-
catório hegemônico que está à serviço dos interesses daqueles que nele
detém maior poder.
Estudos de vários matizes (HANCOCK 1994; NEVES; HAMU-
TUK 2007; SILVA, 2008) indicam que parte signicativa dos recursos
nominalmente doados a título de cooperação técnica retornam aos países
doadores, inclusive aqueles classicados como fundo perdido. Como citei
acima, é bastante comum que acordos bilaterais de cooperação sejam es-
truturados por condicionalidades que impliquem compra de equipamen-
tos e contratação de pessoal técnico oriundo do país doador. Desse modo,
a cooperação técnica se congura como meio para escoamento da produ-
ção industrial dos países doadores, por meio da qual se conquistam novos
mercados consumidores, bem como novos mercados de trabalho os quais,
no limite, permitem o aquecimento da economia nacional do próprio país
doador. Tal fato se reproduz também, em certa medida, nas práticas mul-
tilaterais, embora de modo mais tênue, complexo e mediado. Isso porque
muitas iniciativas ocialmente multilaterais são nanciadas por doadores
especícos, cujas predileções acabam por ter precedência na gestão de pro-
gramas e projetos por eles apoiados.
Ressaltei acima os efeitos de hegemonia produzidos pela AID nas
dinâmicas de conguração estatal de países de independência recente. É
importante ressaltar que os recursos por ela disponibilizados estão longe
de ser consideradas como fatos meramente técnicos. Há entre doadores e
beneciários da cooperação uma constante politização dos mesmos, por
meio da qual eles cultivam suas respectivas identidades. A associação entre
o doador e o bem ofertado é uma regra compulsória no campo da AID,
e é destacada publicamente em eventos rituais e cotidianos. Verica-se,
assim, um tipo de personicação da relação entre doador e a coisa doada,
380
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
de maneira que o bem oferecido é, ele próprio, tomado pelos agentes deste
campo como parte da personalidade do sujeito que o doou (SILVA, 2008).
Neste contexto, recursos de natureza diversa, como pessoas, equipamentos
tecnológicos e mesmo dinheiro, são tornados dádivas (MAUSS, 1974),
atuando como instrumentos de construção e mediação de identidades (de
pessoas e coisas) e de relações sociais.
Se o vínculo entre a coisa doada e a identidade do doador é mais
evidente em projetos que envolvem recursos humanos, isto também pode
ser observado de forma mais sutil quando analisamos as prioridades de
cooperação de diferentes atores. Tipos diversos de políticas executadas
por variados doadores no campo da AID expressam interesses que se ma-
nifestam em projetos civilizatórios distintos. Assim, cada país privilegia
modalidades especícas de projetos, especializando-se em áreas distintas
de cooperação, as quais estão vinculadas à própria imagem que querem
cultivar de si para o mundo. Essa especialização da cooperação remete, de
algum modo, a ideologias nacionais. Vinculada a narrativas de formação
nacional, a especialização da cooperação de um país expressa a imagem e
os interesses que ele busca projetar de si mesmo. A especialização é produto
das diferentes prioridades de cooperação que, por sua vez, são denidas
em diálogo com os interesses dos parlamentos e dos governos que gerem
o Estado de cada país doador e com os projetos de narração nacional ali-
mentados por eles (SILVA, 2008). Mais uma vez, os efeitos políticos e
identitários da cooperação se retroalimentam.
Ademais, as cooperações técnicas bi ou multilaterais enlaçam os
países dela dependentes em relações de obrigação, que se manifestam em
espaços globais de negociação política. Nessas arenas, é muito difícil que
tais países sustentem posições distintas daquelas de seus grandes doadores
sem sofrer algum tipo de sanção no campo da AID. A assistência interna-
cional potencializa ainda os doadores em sua capacidade de exercer inu-
ência sobre a condução da política doméstica dos países nos quais atuam
com destaque. Em cenários de crise ou de grandes desaos políticos, os
doadores são muitas vezes convocados a diálogos junto aos governos lo-
cais. As doações guram também como fonte de prestígio e poder de seus
agentes em arenas regionais e globais de negociação, razão pela qual eles
disputam posições no ranking de grandes doadores em eventos de catás-
381
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
trofe natural, como vimos no caso do Haiti, em 2010 e dos tsunamis que
atingiram regiões do Sudeste Asiático em 2004.
4 – consiDerações finais
A crescente interdependência dos sistemas políticos e econômicos
mundiais vem transformando a cooperação técnica internacional em um
fato social total (MAUSS, 1974) nas dinâmicas de conguração estatal
em diferentes países, doadores ou receptores da AID, além de ter papel
fundamental na construção da ordem global. Por seu intermédio são ne-
gociadas práticas de governo relacionadas à criação e cultivo de econo-
mias nacionais, narrativas de identidade e formação nacional, bem como
os dispositivos que regulam a forma racional-legal de legitimidade política
contemporânea, somente para citar alguns exemplos. Os regimes, tratados,
programas e projetos de cooperação são os veículos pelos quais se promo-
vem, a um só tempo, harmonização de legislações, de técnicas produtivas,
bem como novas formas de conito pelos quais o sistema mundial vai se
reproduzindo à serviço de interesses políticos localizados.
Tais efeitos, conduto, se conguram a partir dos modos pelos
quais a cooperação técnica, em diferentes contextos, se conjuga com
outras modalidades de uxos globais e de cooperação internacional.
Para citar um contexto que está na ordem do dia, a superação da crise
econômica que assolou o Egito entre os anos de 1990–91 passou pelo
perdão de parte da dívida externa que ele tinha com os EUA e outros
membros da OTAN – o que permitiu aumentar bastante o seu nível
de reservas monetárias – em troca de seu apoio à invasão americana do
Iraque (MITCHELL, 2002).
Os modos difusos de circulação de discursos tais como a mídia,
a ação missionária, entre outros que, como sugere Ribeiro (2011), multi-
temporais, multilocais e multiescalares, são todos condições para a sedi-
mentação dos modos concentrados de disseminação de práticas de gover-
no, objetivados no campo da cooperação internacional para o desenvolvi-
mento. Ambos os modos de difusão são fundamentais para os processos
de construção de hegemonia que têm permitido a articulação do sistema
político mundial contemporâneo.
382
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
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 I  C 
S P
Ana Cristina Braga Martes
eo Lovizio de Araujo
1 – introDução
O Brasil tem recebido um número bastante modesto de imi-
grantes e refugiados, se comparado aos países da Europa e da América do
Norte, especialmente Alemanha, Estados Unidos e Canadá. O número
de entradas regulares no Brasil, é de 1,8 milhão, segundo estatísticas da
Polícia Federal de março de 2015. A relativa baixa entrada de imigran-
tes e refugiados no país tem sido uma tendência vericada nas últimas
décadas. Contudo, estão sendo anunciadas diversas barreiras de entrada
em países tradicionalmente receptores de imigrantes, como os Estados
388
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Unidos por exemplo, que poderão vir a demarcar uma nova etapa nos
processos internacionais de mobilidade humana. Vivemos um momento
de grande incógnita e apreensão, com a ampliação das divergências sobre
a responsabilização dos Estados Nacionais e Blocos Regionais pela garan-
tia de direitos sociais básicos às populações imigrantes, especialmente o
acesso à saúde e educação.
No Brasil, especula-se sobre tratativas internacionais para o re-
cebimento de novos refugiados. Caso isso venha a ocorrer de fato, seria
urgente a formulação de uma política nacional de imigração, para que essa
população possa ser acolhida e incorporada às instituições e políticas pú-
blicas. Embora tenham sido criadas instituições e instâncias responsáveis
pela gestão das migrações internacionais, tal como o Conselho Nacional
de Imigração, a gestão pública das migrações internacionais no Brasil ainda
precária e, via de regra, tenta responder apenas a problemas pontuais e que
exigem resposta imediata. Recém aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei
nº 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Imigração, foi um
passo importante para o reconhecimento dos direitos básicos da população
imigrante, adequando-se à Constituição Federal de 1988. Tais diretos não
eram garantidos pelo Estatuto do Estrangeiro de 1980, gerando grande
incerteza jurídica. Espera-se que a nova lei possa abrir caminhos, capazes
de assegurar o exercício dos direitos nela previstos. Se isso ocorrer, a nova
lei poderá ter impacto nas políticas públicas, no sentido de promover a
inclusão desta população nos programas e ações governamentais, por um
lado, e de combate à discriminação e xenofobia, por outro
1
.
Se vericada a tendência ao aumento do número de entrada de
imigrantes, torna-se ainda mais urgente a elaboração de uma política na-
cional de imigração, assim como de políticas públicas de abordagem mul-
ticultural, capazes de incorporar os diversos grupos imigrantes no quadro
da diversidade sociocultural no Brasil.
É urgente a formulação de uma política migratória de âmbito nacional, inclusive porque há problemas federa-
tivos a serem equacionados, como cou evidente com a chegada dos haitianos no estado do Acre. Os haitianos
necessitavam imediatamente de trabalho e assentamentos que o estado do Acre alegava não ter recursos para
prover. Deu-se um embate federativo cuja solução foi a de transportá-los para o sul do Brasil. Difícil imaginar
que a complexa dimensão federativa contemplada nos processos migratórios possa ser equacionada sem a elabo-
ração de uma política nacional de imigração capaz de equacionar problemas federativos.
389
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Queremos destacar um ponto que tem recebido pouca atenção
por parte da bibliograa especializada em políticas públicas, assim como
dos órgãos governamentais: no debate sobre diversidade no Brasil as po-
pulações imigrantes não têm sido devidamente contempladas. Na área da
Educação, por exemplo, as diretrizes, programas e propostas elaborados na
esfera federal evidenciam que os imigrantes não ocupam lugar de centra-
lidade na área. No cenário federal, via de regra, sequer são considerados
como parte da diversidade sociocultural brasileira. Isso pode ser constata-
do mesmo quando projetos são realizados em conjunto com organismos
internacionais como a UNESCO, por exemplo, que defende a inclusão
dos imigrantes para promover a diversidade nas políticas públicas em ou-
tros países. De acordo com a Declaração Universal da UNESCO Sobre a
Diversidade Cultural, a diversidade deve ser incorporada nas estratégias de
desenvolvimento, de modo a favorecer o intercâmbio de conhecimentos e
de práticas recomendáveis em matéria de pluralismo cultural, com vistas a
facilitar, em sociedades diversicadas, a inclusão e a participação de pesso-
as e grupos advindos de horizontes culturais variados (UNESCO, 2002).
Contudo, os imigrantes sequer são citados nos documentos que orientam
tais ações no Brasil, intitulados Notas Técnicas, produzidos a partir dos
anos 2000 pelaSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diver-
sidade e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura e UNESCO
2
.
Referências sobre as desigualdades étnico-raciais no Brasil tratam
particularmente da população negra e indígena. A diversidade também
incorpora gênero (identidade de gênero e orientação sexual) e população
do campo. A questão central é que não há transversalidade nas políticas
públicas quando o tema é imigração. As exceções podem ser encontradas
apenas nos níveis locais de governo, como veremos.
Os direitos sociais básicos relativos à saúde e educação são pon-
tos críticos para a existência de uma política migratória inclusiva. As duas
áreas estabelecem o acesso universal, ou seja, o acesso universal à saúde é
formalmente garantido pelo SUS, e a rede de educação pública garante for-
malmente o acesso universal até o ensino médio. Na prática, no entanto,
as garantias de acesso universal no caso especico dos imigrantes depen-
 As Notas Técnicas estão disponíveis online no Portal do MEC.
390
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
dem da remoção das barreiras linguísticas e de preconceitos socioculturais,
como veremos nesse trabalho, cujo foco é a cidade de São Paulo
3
.
Os objetivos deste artigo são: (1) chamar a atenção para a inclu-
são dos imigrantes nas políticas de promoção da diversidade, ao lado dos
negros, índios, etc. (2) contribuir para o aperfeiçoamento do acesso aos
imigrantes nas áreas de saúde e educação. Com estes dois objetivos, en-
fatizamos a potencialidade de uma abordagem multicultural das políticas
públicas, tendo em vista a promoção da diversidade sociocultural do país.
Optamos por saúde e educação, em detrimento dos demais
direitos sociais, por vários motivos. Primeiro porque, concordando
com Assis e Jesus (2012), entendemos que o acesso aos serviços de
saúde e o acesso à educação devem ser vistos como duas das principais
dificuldades a serem enfrentadas pelos imigrantes. Em segundo lugar
porque o Sistema Único de Saúde, assim como a rede municipal e es-
tadual de educação, tem como característica comum a universalidade
e a integralidade do atendimento, ao menos do ponto de vista formal.
Contudo, tal formalização não é suficiente para a inclusão da popu-
lação imigrante, uma vez que as barreiras de acesso não se restringem
a impeditivos exclusivos à entrada formal no sistema. Adicionalmen-
te, o atendimento integral se traduz no maior gasto orçamentário
dentre os demais setores, isto é, os gastos municipais com saúde e
educação previstos para 2017, correspondem, respectivamente a R$
9.875.027.000 (18,50%) e R$ 11.054.097.661(20,71%), sendo que
as funções de educação e saúde somam quase 40% do orçamento
municipal. Excluída a previdência (R$ 10.203.928.560 equivalente a
19,12%), o valor chega à metade do orçamento. Apesar do volume de
gastos, há problemas de acesso, como veremos.
Finalmente gostaríamos de registrar que ainda é pequeno o nú-
mero de trabalhos acadêmicos sobre a situação dos imigrantes nas áreas de
saúde e educação e não por acaso, alguns pesquisadores tem identicado
esta lacuna (MAGALHÃES; SCHILLING, 2012). Esperamos que este ar-
tigo possa contribuir para esse debate.
De acordo com Assis e Jesus (2012) o acesso contempla cinco dimensões: (1) disponibilidade ou não do
serviço; (2) distância entre moradia/trabalho e unidades de saúde; (3) serviços ofertados; (4) recursos disponí-
veis; (5) capacitação técnica dos prossionais nas unidades incluindo sua responsabilização pelos problemas da
população. Neste artigo trataremos da disponibilidade ou não do serviço e dos problemas a serem enfrentados.
391
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
2 – Políticas universalistas são suficientes?
A discussão sobre acesso à saúde e à educação para grupos e
populações especícas nos remete a duas questões que vêm sendo enfa-
tizadas por autores que se valem de uma abordagem multicultural das
políticas públicas
4
: da universalidade, por um lado, e do foco, por outro.
No caso em questão, da equidade dos imigrantes em relação os nativos
(acesso universal) por um lado, e de políticas de ação armativa para gru-
pos formados por populações vulneráveis com necessidades especícas,
por outro (políticas focalizadas).
Um dos autores emblemáticos nessa discussão é Chales Taylor
(1994). O autor critica as políticas igualitárias, ou universalistas, que ele
chama de “inóspitas às diferenças”, por apresentarem os seguintes proble-
mas: (a) insistem na aplicação uniforme de regras denidas como direitos,
sem estabelecer exceções; (b) estabelecem metas formuladas a partir de um
julgamento da sociedade majoritária com base em “o que torna a vida boa”,
sem considerar as variações socioculturais. Tais políticas são “inóspitas
às diferenças” porque não contemplam grupos minoritários, como, por
exemplo, os imigrantes (TAYLOR, 1994, p.61).
O embate entre políticas universalistas e políticas particularistas
é identicado por Taylor (1994) como um dos problemas centrais na
virada do século XX para o XXI porque, ao mesmo tempo em que as
políticas públicas devem ter uma base universal, indivíduos ou coletivi-
dades precisam ser diferenciados pelo que os distinguem dos demais. A
província de Quebec (Canadá) é utilizada como exemplo por ter estabe-
lecido a língua francesa na educação infantil e ter mantido, ao mesmo
tempo, o inglês como a língua ocial no resto do país. Especicamente
em relação aos imigrantes, Taylor enfatiza a valorização das culturas não
hegemônicas dentro de uma mesma nação, ou seja, a valorização das
culturas de origem dos imigrantes, como forma de se promover a incor-
poração desses grupos.
O termo multiculturalismo refere-se à coexistência de diferentes grupos culturais, étnico-raciais ou minorias
num mesmo território e as formas adotadas para equacionar os problemas que surgem na interação tais dife-
rentes grupos em uma sociedade plural. (MARTUCCELLI, 1996; A abordagem multicultural originou-se nos
países constituídos por imigrantes (Estados Unidos, Canadá e Austrália), no momento em que a identidade
social (étnica, racial, etc.) passou a ser incorporada nas políticas públicas, por meio dos direitos universais
(MARINO, 2010).
392
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Aprofundando o debate, Boa Ventura dos Santos (2003) pro-
põe o “multiculturalismo emancipatório” como forma de evitar que o
universalismo reproduza localismos globalizados que possam acarretar
conitos culturais extremos. A crítica ao universalismo dos direitos,
especialmente aos direitos humanos, deve-se ao fato de tais direitos
terem adotado modelos ocidentais. O autor propõe uma transformação
no conceito e nas práticas dos direitos humanos como política emanci-
patória, com a nalidade de torná-los cosmopolita. Para isso, identica
dois princípios competitivos de vínculo hierárquico: o da igualdade, ou
seja, de uma hierarquia entre unidades homogêneas (como os estratos
socioeconômicos), e o da desigualdade entre identidades que compor-
tam diferenças únicas. A importância da distinção desses dois princí-
pios justica-se pela armação de que “uma política emancipatória de
direitos humanos deve saber distinguir entre a luta pela igualdade e a
luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a m de poder tra-
var ambas as lutas ecazmente” (SANTOS, 2003, p. 443). Tal ecácia,
segundo ele, deverá ser garantida pelo diálogo intercultural. O autor
conclui, armando que as políticas multiculturais emancipatórias par-
tem de uma concepção culturalmente híbrida sobre a dignidade huma-
na, como fruto de um processo diferente de criação de conhecimento,
enquanto obra “coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reti-
cular, baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermé-
dio do aprofundamento da reciprocidade entre elas” (SANTOS, 2003,
p. 451). Sem isso, não será contornado o dilema assimilação versus
incorporação das culturas minoritárias.
A abordagem multicultural das políticas públicas, ainda que
com amplas variações, está voltada para os aspectos especícos das cultu-
ras minoritárias, particularmente das populações indígenas e imigrantes,
que devem ser valorizados pela cultura do país receptor como forma de
incorporação. A língua, os símbolos, e as crenças presentes nas culturas
de origem dos imigrantes são pontos cruciais dessa valorização que visa a
incorporação. De fato, este trabalho rearma que a dimensão cultural se
faz presente no acesso e atendimento à população imigrante, especialmente
os imigrantes de primeira e segunda geração por trazerem consigo práticas
393
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
culturais especicas, crenças populares e religiosas relativas à saúde e à do-
ença, assim como à educação e às práticas escolares.
3 os imigrantes na ciDaDe De são Paulo origem,
localização e contexto De recePção
No início deste século, três fenômenos chamam atenção com re-
lação à imigração internacional no estado de São Paulo. O primeiro deles
ocorre no início dos anos 2000, quando se verica na capital do estado, o
aumento da população de imigrantes sul-americanos, asiáticos, africanos
e caribenhos. O Censo de 2010 registra a entrada de bolivianos, chineses,
sul-coreanos, argentinos e chilenos a partir do ano 2000 que, somados,
atingem a ordem de 12,3% em números absolutos (SÃO PAULO, 2015)
5
.
O segundo diz respeito à chegada de haitianos no estado de São
Paulo, que teve em 2014 o seu auge
6
. Paralelamente, e este é o terceiro
ponto a ser destacado, verica-se a entrada de imigrantes não apenas na
capital, como também nas cidades localizadas no interior do estado como,
por exemplo, Limeira, Piracicaba, Campinas, Nova Odessa e Jundiaí. Estas
cidades situam-se relativamente perto da capital, mas outros municípios
paulistas como Santa Fé do Sul, por exemplo, situados na fronteira com o
Mato Grosso do Sul, também têm atraído imigrantes por causa dos inves-
timentos internacionais no setor agroexportador
7
.
De acordo com o Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Es-
trangeiros
8
, a cidade de São Paulo possui um total de 641.700 estrangeiros
documentados, advindos de 212 países. Agregados por continente, os três
maiores grupos são: europeus (242.132); sul-americanos (181.416); asiáti-
cos (133.973); africanos (11.675), conforme tabela abaixo.
Italianos, portugueses e espanhóis também compõem esta população, mas se destacam dos demais porque sua
chegada ao Brasil é menos recente e estão numa faixa etária mais alta. Os portugueses são a maior população de
imigrantes registrados pelo Censo 2010 na cidade de São Paulo.
 Entre 2010 e 2015, estima-se a entrada de 40 mil haitianos no Brasil (OLIVEIRA, 2015).
Observatório das migrações em São Paulo: migrações internas e internacionais contemporâneas no estado de
São Paulo (nº 2014/04850-1). Projeto Temático. Pesquisadora responsável Rosana Aparecida Baeninger (Nepo/
Unicamp).
Nesses números não estão contabilizados os imigrantes não documentados. Os tipos de visto contabilizados
são: permanente, temporário, provisório, refugiado, asilado e outros. Quanto ao ano de 2017 está computado
até 24/04.
394
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Tabela 1 – Estrangeiros registrados na cidade de São Paulo, por
continente de origem, em 2017.
Continente Quantidade %
Europa 242.132 37,73%
América do Sul 181.416 28,27%
Ásia 133.973 20,88%
América do Norte 33.828 5,27%
América Central e Caribe 10.948 3,26%
Oriente Médio 15.154 2,36%
África 11.675 1,82%
Oceania 1.259 0,20%
Apátridas 1.315 0,20%
Total 641.700 100%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Sistema Nacional de
Cadastro e Registro de Estrangeiros (2017).
O ano 2000 registra a entrada de 5.091 estrangeiros na cidade de
São Paulo e a partir deste ano dois grandes saltos podem ser observados. O
primeiro em 2006, quando o número de entradas cresce de 7.797 (2005)
para 16.222 (2006). O segundo em 2009, quando a o número de entradas
chega a 36.777.
Figura 1 – Estrangeiros registrados, por ano, de 2000 a 2016.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Sistema Nacional de
Cadastro e Registro de Estrangeiros (2017)
395
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Os locais de residência dos imigrantes em São Paulo encontram-
-se espalhados na malha urbana do município. A distribuição geográca
dos locais de residência de imigrantes evidencia que, embora espalhados,
apresentam uma maior concentração nas áreas centrais da cidade de São
Paulo. Também o Censo Escolar 2015 aponta a concentração de estudan-
tes imigrantes sul-americanos nos distritos mais centrais da cidade, com
destaque para o Pari e o Brás, como veremos adiante.
Figura 2 – Percentual de estrangeiros residentes em São Paulo, por
subprefeitura, em 2010.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Censo (2010)
Quanto à hospitalidade e acolhimento, o contexto de recepção
dos imigrantes na cidade de São Paulo é marcado pelo trabalho oferecido
por instituições religiosas de diversas denominações e por ONGs, espe-
cialmente ligadas à Igreja Católica, como a Pastoral do Imigrante. Este é o
caso, por exemplo, da Missão de Paz, da congregação católica da Ordem
Scalabriniana, que oferece alimentação e abrigo, encaminhamento médico
e psicossocial, assim como auxilio para aquisição de documentos. Também
396
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
se destaca o Centro Social Nossa Senhora Aparecida da Associação Palotina
– Congregação das Irmãs do Apostolado Católico e o Arsenal da Esperança
Servizio Missionario Giovani (SERMIG).
Na área pública estadual, o governo do estado de São Paulo,
por meio da Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana
(CROPH), oferece o Abrigo Terra Nova. Na rede pública Municipal,
a Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana (CROPH)
do Estado de São Paulo, tem os CRAIS Centro de Referência e
Acolhimento do Imigrante, em parceria com outras organizações
(SPOLON; SOUZA, 2016).
Quanto à gestão pública, na cidade de São Paulo destaca-se a cria-
ção da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig), na Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania em 2013, com o objetivo de
auxiliar na facilitação da abertura de contas bancárias, encontrar vagas de
trabalho e ofertar abrigos. A CPMig busca articular junto a outros órgãos
públicos o acesso à saúde, à educação e à assistência social. A coordenação
se destacou no cenário nacional por inaugurar o debate sobre políticas
públicas voltadas para a população imigrante e, procurando superar a ine-
xistência de transversalidade nas políticas migratórias – como menciona-
mos na introdução, a Coordenadoria realizou um esforço de articulação e
diálogo com as demais Secretarias do município, como veremos.
A seguir abordaremos cada uma das duas áreas, saúde e educação,
lembrando que os registros existentes sobre imigrantes documentados não
distinguem esta população por níveis de renda. Esta consideração é impor-
tante uma vez que os imigrantes que usam os serviços públicos de saúde e
educação tendem a ser aqueles que não têm condições de arcar com o custo
econômico dos serviços oferecidos na área privada.
4 – saúDe: acesso, coBertura e PrinciPais DificulDaDes
Desde 1988, a Constituição Brasileira estabelece como direito o
acesso integral e universal à saúde
9
. Nesse sentido, considerando-se a lei,
não pode haver barreiras de acesso ao sistema de saúde. A documentação
9
Artigo 196, da Constituição da República Federativa do Brasil.
397
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
necessária para a obtenção do Cartão do SUS não se refere à regularidade
da situação migratória, mas sim ao lugar de residência, uma vez que segue
a lógica territorial do próprio SUS. O atendimento é formalmente garan-
tido aos brasileiros e estrangeiros, sem diferenciação, bastando, apenas o
cadastramento da pessoa a ser atendida
10
. Para se cadastrar é necessário um
dos seguintes documentos: RG, CPF, Carteira de Motorista, certidão de
nascimento do país de origem) e comprovante de residência. O Cartão do
SUS não pode ser negado devido à falta dos documentos (VACCOTTI,
2016)
11
. De acordo com Martes e Faleiros (2013, p. 357) “tal documento é
popularmente chamado de ‘carteirinha do SUS’ e é muito valorizado pelos
imigrantes, especialmente pelos recém-chegados”. A obtenção deste docu-
mento não tem sido apontada como uma barreira de entrada, ao sistema
de saúde, com raras exceções, ou seja, relatos tópicos e temporários.
12
O programa Estratégia Saúde da Família (ESF) é a porta de
entrada no Sistema Único de Saúde em São Paulo. No que se refere
ao atendimento básico nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), o acesso
é garantido em suas diversas modalidades de atendimento, preventivas
e curativas, e em modalidades especícas como Agentes Comunitários.
Imigrantes, documentados ou não, também têm acesso formal aos pro-
cedimentos de maior complexidade como partos e cirurgias que exigem
internação hospitalar.
Até fevereiro 2015 estavam cadastrados 39.474 imigrantes no sis-
tema Cartão Nacional de Saúde no Município de São Paulo. Dentre eles,
encontram-se 12.368 bolivianos (31,3%), 9.319 portugueses (23,6%),
2670 italianos (6,8%) e 2636 japoneses (6,7%). Considerando-se os imi-
10
Apesar de a Carta Magna Brasileira de 1988 assegurar a saúde enquanto direito universal a ser garantido pelo
Estado, a despeito dos avanços conquistados, ainda se convive com a realidade desigual e excludente do acesso
ao Sistema Único de Saúde (SUS). A garantia na legislação brasileira foi apenas mais uma etapa alcançada na
construção do SUS, para se concretizar o direito à saúde é necessário ter como alicerce um modelo social funda-
mentado na “solidariedade humana e na igualdade social”
(ASSIS; JESUS, 2012).
11
Tal informação foi conrmada pelos autores deste artigo.
12
Os resultados da pesquisa realizada entre os imigrantes latino-americanos em São Paulo mostram que não
existe problemas de acesso ao documento do SUS entre os migrantes regionais, principalmente entre os setores
de baixa renda. (VACCOTTI, 2016). O mesmo foi constatado por Martes e Faleiros, 2013. A “carteirinha do
SUS” é apontada como o primeiro documento a que os imigrantes têm acesso quando chegam em São Paulo.
Ver também Xavier, 2010. As pesquisas não apontam diculdade de acesso por conta da exigência de documen-
tos, na cidade de São Paulo.
398
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
grantes mais recentes sobressaem 1.689 paraguaios (4,3%) e 918 peruanos
(2,3%). (SÃO PAULO, 2015).
Dados oferecidos pela Prefeitura de São Paulo (2015) mostram
que, exceto os imigrantes europeus residentes na cidade de São Paulo,
os demais são jovens, sendo que muitos tiveram lhos nesta cidade, re-
cebendo, para isso, assistência ao parto e internação hospitalar. As bo-
livianas representam 53% das mães imigrantes atendidas nos hospitais
e as chinesas, 15%. O crescimento relativo de partos registrados entre
imigrantes nos últimos anos incidiu sobre as angolanas, nigerianas e hai-
tianas (SÃO PAULO, 2015).
A doença que mais afeta a população imigrante é a tuberculose.
Este dado é disponibilizado pela PMSP e também rearmado por vários
autores (BATAIERO, 2009; MELO; CAMPINAS, 2010; XAVIER, 2010,
GOLDEMBERG, 2009; FALEIROS, 2012). De acordo com a Prefei-
tura de São Paulo (2015), nos Distritos Administrativos do Pari e Bom
Retiro o diagnóstico de tuberculose em imigrantes sul-americanos incide
sobre mais da metade dos casos registrados. Embora em número menor,
o mesmo se verica nos Distritos Administrativos de Belém, Vila Gui-
lherme, Vila Medeiros e Vila Maria. Doenças do aparelho circulatório e
do aparelho respiratório são responsáveis por cerca de 70% das mortes de
imigrantes recentes na cidade, o que está de acordo com as características
demográcas desta população.
Importante notar que os casos informados são aqueles em tra-
tamento e não há registros de que haja pessoas já diagnosticadas e ainda
desassistidas. Os registros sobre atendimento ambulatorial não informam
a nacionalidade do paciente, dicultando, assim, uma análise detalhada
sobre o acesso à rede de atenção básica.
13
Segundo a Assessoria Técnica da Tecnologia da Informação/
SMS–SP, as UBS e as respectivas equipes de saúde de cada uma das
unidades tentam desenvolver relações de vínculo e responsabilização
com a população de suas áreas. De acordo com o relatório da Prefeitura
de São Paulo,
13
Políticas públicas de saúde devem considerar condições especícas ligadas à imigração e aos imigrantes. Dis-
ponível em <hp://www.cdhic.org.br/?p=1075>. Acesso em: 08 de out. 2015.
399
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
a presença de imigrantes nestes territórios traz desaos especícos
aos serviços de saúde, pois os imigrantes podem apresentar padrões
de morbidade e de comportamento próprios em relação aos cuidados
com a saúde. Para tanto, os serviços precisam se estruturar para aten-
der as necessidades dessas populações, com qualicação de pessoal
para responder de forma adequada a cada situação (SÃO PAULO,
2015, p. 27).
Alguns levantamentos foram elaborados com a nalidade de
avaliar a atendimento da assistência à saúde aos imigrantes apresentando
resultados interessantes
14
. Especicamente em relação ao tipo de estabele-
cimento e serviço, as UBS registraram o maior número de atendimentos,
seguido pela AMA, serviços de saúde mental e especializados em DST/
Aids. Alguns nas CRS Sudeste e Centro registraram o atendimento de mais
de 10 nacionalidades, sendo mais de 80 deles bolivianos, depois haitianos,
e em números menores nigerianos e angolanos, sírios, chineses, peruanos,
paraguaios, argentinos e libaneses.
Especicamente em relação aos bolivianos, a pesquisa de Faleiros
(2012) revela que o atendimento foi relatado pelos imigrantes entrevista-
dos, em todos os níveis:
o nível primário, ou atenção básica, que constitui a proteção da saúde,
a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e
a manutenção da saúde; o nível secundário, que incorpora os centros
de especialidades, responsáveis por procedimentos que precisam de
internação; e o nível terciário, que é composto pelos hospitais de
referência, onde são realizados os procedimentos de alta complexidade
(FALEIROS, 2012, p. 117).
Contudo, na modalidade consultas pré-natal, as mulheres
bolivianas têm uma baixa participação, o que se deve a uma questão
cultural, uma vez que na Bolívia este tipo de acompanhamento não é usual
(VACCOTTI, 2016).
Um levantamento realizado pela Prefeitura de São Paulo buscou
detectar as principais diculdades vericadas no atendimento, e que im-
14
GT “Imigrantes e Refugiados da SMS-SP. Disponível em <http://sms.sp.bvs.br/ relatosexperiencia/?rela-
to=rodas-de-conversa-saude-imigracao-e-refugio>. Acesso em: 22 de jun. 2017.
400
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
pactam negativamente no acesso. Os problemas mais recorrentes dizem
respeito, primeiramente, ao idioma local (abarcando 86% dos estabeleci-
mentos) seguido de “diferenças culturais” (12,0%) e “adesão ao tratamento
proposto” (10,3%). Importante registrar que 6,0% dos estabelecimentos
não informaram ter havido qualquer diculdade no atendimento aos imi-
grantes (SÃO PAULO, 2015). Observa-se que estes dados foram forneci-
dos pelos funcionários que trabalham nos estabelecimentos das unidades de
saúde. Contudo, pesquisas feitas diretamente com imigrantes bolivianos,
realizadas em espanhol, também constataram um grau satisfatório com
o atendimento recebido (MARTES; FALEIROS, 2013; WALDMAN,
2011; VACCOTTI, 2016). Xavier (2010) também, encontrou, em sua
pesquisa, uma boa avaliação do SUS entre os imigrantes, inclusive quanto
aos tratamentos especícos.
Importante frisar que esta avaliação positiva deve ser interpre-
tada não como uma armação ingênua de que não haveria problemas na
atenção à saúde oferecida ou ao modo de funcionamento do SUS, mas
sim como o resultado de uma comparação entre a saúde pública no Brasil
e nos seus respectivos países de origem. Nesse sentido, um dos pontos
acentuados é a distribuição gratuita de remédios, da qual muitos países não
dispõem. Por outro lado, a demora entre agendamento e consulta, assim
como as las de espera, são vistas como um problema que não se restringe
aos imigrantes, mas que atinge todos os usuários do sistema. (FALEIROS,
2012; VACCOTTI, 2016). Da mesma forma que os brasileiros, os imi-
grantes que podem pagar por um plano de saúde privado não optam pelo
sistema público, o que denota que a satisfação com o sistema deve ser rela-
tivizada também se considerados rendimentos e classe social.
Ainda com relação aos bolivianos, vale registrar a experiência no
Bom Retiro do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), que busca
criar e fortalecer vínculos da população imigrante com os prestadores de
serviços de saúde pública. Com essa nalidade, a UBS faz o cadastro dos
bolivianos segundo a área de atuação prossional e não apenas de residên-
cia, e tenta acompanhar o tratamento preventivo e curativo dos pacientes,
mesmo quando mudam de endereço.
Já os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) encontram maior
diculdade em lidar com a língua mãe dos diferentes grupos imigrantes
401
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
em São Paulo, especialmente os asiáticos. Tais diculdades também
afetam a contratação de agentes comunitários sul-coreanos ou chineses.
(WALDMAN, 2011), ao contrário do que ocorre com os falantes de língua
portuguesa ou espanhola.
A Prefeitura de São Paulo (2015) não sabe informar exatamente
qual é o número de atendimentos prestados aos imigrantes, uma vez que
não há dados sucientes para quanticar tal atendimento. Soma-se a isso
o fato de que o número de excluídos do sistema público de saúde é des-
conhecido, especialmente em função da condição de não documentados
de uma parcela deles. As principais diculdades apontadas pela prefeitura
são: 1) barreiras culturais e linguísticas
15
; 2) baixa capacitação dos pros-
sionais para lidar com os problemas de saúde especícos da condição de
imigrantes (devem ser consideradas as concepções de saúde que trazem
da sua cultura de origem e a experiência que tiveram com atendimento
e tratamentos anteriores); 3) ausência de um trabalho de sensibilização
da condição imigrante junto aos funcionários; 4) baixa capacitação para
lidar com a diversidade cultural, podendo levar a atitudes preconceituosas
e de discriminação, inclusive racial, especialmente em relação aos países de
origem mais pobres.
Embora fuja ao escopo deste artigo, é importante considerar
que as condições de trabalho a que são submetidos tendem a afetar nega-
tivamente a saúde desta população. Longas jornadas de trabalho, locais
de trabalho insalubres (sem ventilação, luz, etc.), ausência de scalização
para evitar acidentes, sendo que muitos são obrigados a morar no mes-
mo lugar em que trabalham, predispõem essa população a constantes
problemas de saúde. Este é o caso, especialmente, das algumas ocinas
de costura que submetem os trabalhadores imigrantes à degradada con-
dição de trabalho escravo e, portanto, sem nenhuma garantia de seus
direitos trabalhistas. Nesse sentido, a condição de melhoria da saúde dos
imigrantes trabalhadores passa pela extinção do trabalho escravo e pela
garantia de direitos trabalhistas.
15
De acordo com Martes e Faleiros (2012, p. 262): “É curioso observar que a língua aparece nos estudos sobre
saúde e migração como um fator que diculta o acesso dos imigrantes à saúde, mas no caso dos bolivianos, a
situação mostrou-se ambígua porque, por um lado, a semelhança entre o português e o espanhol apareceu como
um ponto francamente facilitador. Por outro, sentem diculdades para expressar sintomas e sentimentos em
português com exatidão”.
402
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
5 – eDucação: acesso à reDe, Perfil e PrinciPais DificulDaDes
A educação, assim como a saúde, se estabelece como direito social
fundamental – com caráter universal e obrigatório – na legislação brasilei-
ra desde a Constituição Federal de 1988. Segundo o Artigo 205 da carta
constitucional, a educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
deve ser regida pelos princípios de igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola, liberdade e pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas e gratuidade do ensino público em estabelecimentos ociais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado pela Lei nº 8.069, de
13 de junho de 1990, destaca a criança e o adolescente como portadores de
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo vedada
qualquer forma de discriminação. No mesmo sentido, o Brasil é signatário
de diversos tratados e convenções internacionais que raticam a educação
pública e universal como direito humano fundamental e dever do Estado
(WALDMAN, 2012).
Na esfera subnacional, no entanto, diversas normas infralegais
exigem a regularização da situação migratória dos estudantes como pres-
suposto para a matrícula, ainda tendo como base o Estatuto do Estran-
geiro, legislação notadamente inconstitucional. Ainda hoje existe incer-
teza jurídica a respeito dos direitos dos estudantes estrangeiros indocu-
mentados, o que se espera que seja solucionado com a recente aprovação
na nova Lei de Imigração.
Em São Paulo, desde meados dos anos 1990, a Secretaria Esta-
dual de Educação tem normatizada a matrícula de estudantes imigrantes
independentemente de estar ou não regularizada a sua situação migratória.
A Resolução SE nº 10, de 02 de fevereiro de 1995, garante o acesso à edu-
cação nas escolas públicas, independentemente da nacionalidade ou do-
cumentação, devendo a direção da escola proceder à matrícula dos alunos
estrangeiros sem qualquer discriminação. O reconhecimento deste direito
é fruto de intensa mobilização social de diferentes grupos de defesa de
direitos humanos, como o Centro Pastoral do Imigrante e a Comissão de
Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo (WALDMAN, 2012).
Quanto ao perl dos estudantes imigrantes na educação básica
no município de São Paulo, de acordo com o Censo Escolar da Edu-
403
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
cação, a cidade de São Paulo contava em 2015 com 18.001 estudantes
oriundos de outra nacionalidade, sendo 15.772 estrangeiros e outros
2.229 naturalizados brasileiros. Em relação ao total de alunos matri-
culados nas redes pública e privada de educação, o número total de
estrangeiros não chega a 0,6%.
Com relação à distribuição dos imigrantes pelas diferentes regiões
de São Paulo, o Censo Escolar 2015 aponta a concentração desta popula-
ção nos distritos mais centrais da cidade, com destaque para o Pari e o Brás,
nos quais o percentual de estudantes matriculados chega a quase 5% do
total de estudantes, frequência dez vezes maior do que a média da cidade.
Tratam-se de regiões que tradicionalmente vêm sendo ocupadas por imi-
grantes latino-americanos.
Quanto à raça e à cor da população imigrante, O Censo Escolar
2015 destaca uma signicativa porcentagem de amarelos e índios. Ambos so-
mam aproximadamente 18% do total de respondentes, enquanto que, dentre
a população total de estudantes, amarelos e índios representam apenas 1%.
A análise da relação entre idade e série denota que estudantes imi-
grantes possuem média de idade maior para as mesmas fases de ensino, o
que nos leva a cogitar uma maior distorção idade-série para esta população.
Dentre a nacionalidade dos estrangeiros, de acordo com o Censo
Escolar 2015, destacam-se os bolivianos, com aproximadamente 87% do
total de estudantes identicados. Argentinos e angolanos somados repre-
sentam outros 11% desta população, que conta ainda com imigrantes de
outros 15 países. Embora o Censo Escolar seja uma importante fonte de
informações educacionais, os resultados parecem não reetir a heteroge-
neidade da população de estudantes imigrantes, uma vez que estão ausen-
tes os haitianos, japoneses, peruanos e paraguaios, por exemplo
16
.
Um estudo realizado pela Secretaria Municipal de Educação a
partir de dados de matrícula na rede municipal apresenta uma maior distri-
buição da nacionalidade de alunos estrangeiros: 74 nacionalidades dentre
os 1.812 estudantes matriculados em 2016. O principal país de origem
16
O Censo Escolar 2015 aponta que apenas 66% dos estrangeiros identicaram seu país de origem, de
modo que não é possível saber se existem outras nacionalidades que deixaram de ser representadas no uni-
verso de estrangeiros. Os totais calculados neste estudo consideram apenas os estudantes que informaram
sua nacionalidade.
404
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
é a Bolívia, com cerca de um terço do total da população imigrante. Em
seguida, Angola, com 11,75%, Japão, com 8% e Haiti, com 6,25% são os
únicos países com mais de 100 alunos matriculados.
Tabela 2 – Número de alunos estrangeiros matriculados na rede munici-
pal de educação, por país de origem, 2016.
País Alunos Proporção
Bolívia 609 33,61%
Angola 213 11,75%
Japão 145 8,00%
República do Haiti 113 6,24%
Peru 88 4,86%
Argentina 85 4,69%
Paraguai 82 4,53%
Congo 59 3,26%
Portugal 48 2,65%
Colômbia 46 2,54%
Espanha 36 1,99%
Síria 29 1,60%
Outros 259 14,29%
Fonte: SÃO PAULO (2016).
Com relação aos principais problemas e diculdades enfrentados
pela população imigrante no acesso à educação, a falta de informação e
de conhecimento seguem sendo fatores de discriminação e obstáculo para
estrangeiros indocumentados no ingresso ao sistema público de ensino.
Embora exista a regulamentação que impede a discriminação, as secre-
tarias das escolas frequentemente cobram documentos que a população
imigrante não possui, como certidão de nascimento. Esta população, por
sua vez, conhece pouco sobre a legislação brasileira e enfrenta diculdades
em buscar informações sobre como fazer valer o seu direito à educação
(MAGALHÃES, 2010).
Fazer valer o direito à matrícula é apenas o primeiro obstáculo
imposto ao estudante imigrante em busca do acesso à inclusão educacio-
405
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
nal. Ao ingressar no ambiente escolar, a barreira mais evidente à inclusão
dos alunos estrangeiros é a do idioma. A insegurança no domínio da língua
inibe os imigrantes recém-chegados de buscar o acesso à educação formal.
A adaptação à língua é feita fora do ambiente escolar. Como relata Maga-
lhães (2010, p.129), na ausência de espaços institucionais de sociabilida-
de e convivência com os colegas brasileiros, imigrantes recém-chegados
ambientam-se à língua com escutando a programas de rádio brasileiros,
ouvindo músicas e, principalmente, assistindo à televisão, “principal aliada
para a aprendizagem do idioma”.
O pouco domínio do idioma acaba por afetar signicativamente
a capacidade de aprendizagem, especialmente com relação à língua escrita.
De um lado, os alunos relatam diculdade em acompanhar o que está
sendo ensinado. De outro, professores mencionam falta de tempo para dar
atendimento individualizado aos estrangeiros, ainda que sejam capazes de
identicar diculdades de entendimento. (BARRETO et al., 2011). Em-
bora este seja um problema que afeta a capacidade de aprendizagem dos
alunos e a própria dinâmica educacional, especialmente em escolas com
alto número de estrangeiros, as secretarias estadual e municipal de educa-
ção de São Paulo não possuem quaisquer programas especícos de apoio
pedagógico aos estudantes estrangeiros para sua adaptação ao conteúdo
curricular brasileiro, em especial à língua portuguesa.
A diculdade com o idioma é apontada como o principal en-
trave com relação à inserção, quando vinculada ao aprendizado Ma-
galhaes e Shilling (2012). A Prefeitura Municipal de São Paulo criou
o curso “Português e Cultura Brasileirapara imigrantes e também em
2015, o PRONATEC ofereceu cursos de português para estrangeiros
em parceria com o Instituto Federal
e com o SENAC.
17
Na cidade
de São Paulo são oferecidos vários cursos gratuitos de português para
imigrantes de diversas nacionalidades. Dentre eles, destacam-se a Mis-
17
Segundo a CPMig as turmas concluídas foram: 04 turmas do nível básico do curso de Língua Portuguesa e
Cultura Brasileira para Estrangeiros, realizadas durante o ano de 2014. Duas delas foram ofertadas pelo Instituto
Federal (IF) e ocorreram na sede do Instituto, no Pari, e na Biblioteca Mario de Andrade, no Centro. Duas delas
foram ofertadas pelo SENAC (Consolação e Penha) que ocorreram na Biblioteca Monteiro Lobato, no Centro
e no Centro Cultural da Penha, respectivamente. Havia 138 imigrantes inscritos, dos quais 102 frequentaram
as aulas, num total de 10 nacionalidades: Argentina, Bolívia, Colômbia, África do Sul, Peru, Síria, Burkina
Faso, Gana, República Democrática do Congo, Haiti. Prefeitura de São Paulo, 08/07/2014. In: Silva, 2015
Disponível:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias. Acesso em: 03 fev. 2015.
406
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
são Paz, da Pastoral dos Migrantes, no bairro do Glicério; o Centro de
Amparo ao Migrante (CAMI) no bairro do Pari; Centro de Direitos
Humanos e Cidadania dos Imigrantes (CDHIC) no bairro do Tatuapé;
o Coletivo Si Yo Puedo, na Praça Kantuta (SILVA, 2015). Em que pe-
sem essas iniciativas, não há programas de ensino da língua portuguesa
como segunda língua na rede pública.
Outro fator que diculta aos estrangeiros o acesso à educação é
que parte dos jovens imigrantes está inserida no mundo do trabalho, uma
vez que a busca de oportunidades é, em muitos casos, a própria motivação
da imigração. O alto número de horas dedicadas ao trabalho acaba incen-
tivando evasão da população imigrante (MAGALHÃES, 2010). Este fator
de desincentivo ao estudo não é exclusivo da população imigrante, uma
vez que parcela signicativa dos jovens brasileiros tem a necessidade de
conciliar trabalho e estudo. Porém, dadas suas fragilidades sociais, as con-
dições de trabalho parecem prejudicar notadamente os jovens imigrantes.
6 Promover a inclusão valorizanDo a DiversiDaDe:
Preconceito e treinamento intercultural Dos funcionários
Embora não exista política pública institucionalizada e focalizada
para alunos estrangeiros da rede pública de ensino de São Paulo com a na-
lidade de promover a inclusão e combater a xenofobia, Organizações Não
Governamentais, como o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante, atu-
am em escolas com grande concentração de imigrantes com o objetivo de
conscientizar sobre os efeitos perversos da discriminação e do preconceito.
Nesse sentido, um marco importante deu-se no ano de 2005,
com a CPI do Trabalho Escravo, que apresentou sugestões de políticas
públicas também para a área de saúde e educação. No âmbito da Saúde,
foi proposto um treinamento especializado para os prossionais que aten-
dem as populações imigrantes nas regiões centrais da cidade (onde se con-
centram ocinas de costura e se detectou trabalho escravo de imigrantes).
Com o objetivo de melhorar o atendimento prestado e divulgar cuidados
de higiene, saúde e direitos do usuário do SUS. Na área da educação, as
sugestões apresentadas foram: criação de cursos gratuitos de português em
lugares como escolas, albergues, salões paroquiais, podendo-se estabelecer
407
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
convênios com entidades da sociedade civil para tal nalidade; promoção
de campanhas de conscientização de direitos e deveres dos migrantes e das
normas legais e procedimentos para obtenção do visto; a divulgação dos
direitos humanos fundamentais e dos direitos trabalhistas, por meio da pu-
blicação de cartilhas e outros veículos de divulgação (SÃO PAULO, 2006.)
Durante o governo Fernando Haddad foram realizadas várias
iniciativas no sentido de responder aos desaos de gestão das migrações
internacionais no município, incluindo-se as áreas de saúde e educação.
Uma parceria entre a CPMig/SMDHC e a Secretaria Municipal de Saú-
de, em 2014, resultou na realização de um curso de atualização para 20
agentes multiplicadores municipais tendo em vista a capacitação de 500
servidores para atuar junto aos imigrantes. O conteúdo do curso constou
de itens como: mobilidade humana, direitos de imigrantes e refugiados;
perl dos novos uxos de migração e especicidades em seu atendimento.
(COSMÓPOLIS..., 2014).
Tais iniciativas são, contudo, ainda tímidas tendo-se em vista
os problemas que precisam ser enfrentados no dia-a-dia das instituições
envolvidas. Questões relativas ao preconceito e à xenofobia extrapolam
os muros das escolas e das UBS e, por isso, necessitam da criação de
campanhas de conscientização e valorização das múltiplas culturas com
as quais imigrantes e nativos devem aprender a conviver e a lidar. Assim,
sete anos após a CPI mencionada, ou seja, em 2012, ocorreu a morte
de uma estudante angolana no bairro do Braz, na cidade de São Paulo,
o que motivou a formação da rede “Zulmira Somos Nós” integrada por
estudantes de diversas nacionalidades, organizações e movimentos sociais
(LEÃO; DEMANT, 2016).
A discriminação e o preconceito são recorrentes no cotidiano da
população imigrante. Estudantes bolivianos são tachados de “vagabun-
dos”, mães bolivianas são obrigadas a ouvir comentários nas UBS como
vocês têm lhos sem parar”. Frases como estas mostram que, apesar da
garantia formal de acesso, o preconceito e a falta de treinamento intercul-
tural dos funcionários são barreiras críticas a serem enfrentadas e merecem
tratamento focalizado.
408
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
De acordo com Xavier (2010), as mães bolivianas que têm seus
lhos em escolas públicas enfatizam não apenas a discriminação, mas tam-
bém a falta de compromisso dos professores e a baixa qualidade do ensino.
As mães, adotando uma perspectiva comparativa, avaliam constantemente
as escolas bolivianas, valorizando mais o sistema educacional da Bolívia
(maio rigor com a didática e com a disciplina) do que o brasileiro. As
professoras, por outro lado, declaram ter diculdade para lidar com os
estudantes bolivianos (XAVIER, 2010).
Pesquisando a área da saúde, Faleiros (2012) também encontrou
muitos relatos espontâneos em que as mães entrevistadas estabeleciam
comparações entre o serviço de saúde público do Brasil e o da Bolívia.
Porém, no caso da saúde ocorre uma inversão, uma vez que eles preferem
o sistema de saúde no Brasil.
Como compreender tal diferença? Por que a escola aparece como
um local onde a discriminação é aberta e os locais de atendimento à saúde
tendem a ser positivamente valorizados, sendo mais raros os casos de discri-
minação? Na escola se estabelece uma convivência diária entre estudantes
nativos” e estudantes imigrantes, assim como professores e funcionários. O
atendimento à saúde, além de ser periódico ou até ocasional, não propicia
o advento de relações competitivas. Na escola alunos competem por nota,
atenção e recursos a serem compartilhados, o que é especialmente relevante
quando os estudantes começam a trabalhar. Em 2015, uma pesquisa reali-
zada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, concluiu
que 31% dos entrevistados consideram que os imigrantes ocupam vagas de
trabalho que deveriam ser dos paulistanos. A proporção foi maior entre os
entrevistados com renda familiar abaixo de R$ 3.152,00 (NOZAKI, 2015).
De fato, o preconceito é apontado como uma das motivações
para evasão escolar
18
. A evasão é maior entre os adolescentes migrantes e
lhos de migrantes bolivianos. De acordo com a pesquisa de Magalhães
(2010, p. 144):
A falta de sentimento de pertencimento e as experiências de discri-
minação que sofrem no ambiente escolar, somadas às possibilidades
18
Embora fuja do escopo deste artigo, seria interessante realizar uma pesquisa sobre a abstenção escolar e a não
frequência a UBS e/ou não participação em programas de saúde preventiva, por medo de represálias, quando o
imigrante não tem sua situação de imigração legalizada.
409
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
de inserção no trabalho que oferece a comunidade boliviana, parecem
explicar esta tendência.
Alunos e professores relatam casos de discriminação explícita, na
qual os estrangeiros são tratados como inferiores, vítimas de violência físi-
ca e moral perpetrada pelos colegas brasileiros. Em alguns casos, o medo
da violência acaba afetando o desempenho dos alunos, provocando evasão
escolar (MAGALHÃES; SCHILLING, 2012). Estes autores, relatam casos
especícos de discriminação de estudantes de ascendência andina (bolivia-
nos e peruanos) tanto no interior dos grupos imigrantes latino-americanos,
quanto dos brasileiros em relação eles. Afora os grupos latinos, os africanos e
haitianos relatam discriminação e preconceito por parte dos brasileiros.
7 – consiDerações finais
O acesso universal à saúde e à educação não garante por si só nem
o atendimento nem a efetividade esperada, uma vez que os imigrantes pos-
suem características distintas da população nativa, que devem ser conside-
radas na elaboração e implementação de políticas públicas, para se garantir
efetividade de acesso e de atendimento a essa população.
O perl sociodemográco da população migrante contribui para
a baixa utilização dos sistemas públicos de saúde, pois são predominante-
mente jovens saudáveis em idade economicamente ativa. No que se refere
à educação, a análise da relação entre idade e série denota que estudantes
imigrantes possuem média de idade maior para as mesmas fases de ensino,
podendo signicar uma distorção idade-série para esta população. Uma
vez que há grande concentração de moradias de imigrantes nos distritos
mais centrais da cidade (Pari e o Brás) poderiam ser desenvolvidos progra-
mas de reforço do aprendizado da língua portuguesa nas escolas de região,
tendo em vista o enfrentamento da diculdade com o idioma nativo. Seria
importante também que as unidades de ensino desta região fomentassem
espaços para discussão do tema da imigração e da inclusão do aluno estran-
geiro, promovendo a socialização e estimulando o combate ao preconceito.
Uma vez que os processos migratórios tendem a alterar hábitos
que podem afetar a saúde e o bem-estar, os procedimentos de acesso à
saúde no país receptor demandam tempo, aquisição de direitos e disse-
410
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
minação de informações. Para os imigrantes sem documentação o qua-
dro de diculdades é mais grave, pois, junto ao medo de utilizar serviços
públicos, constata-se o desconhecimento da língua nativa e das espe-
cicidades culturais relativas ao comportamento sobre doenças, contá-
gio, epidemias e tratamentos, entre outros (ADAY; ANDERSEN, 1974;
MARTES; FALEIROS, 2013).
Embora a promoção da diversidade sociocultural e o reconheci-
mento de direitos a grupos minoritários tenham sido gradativamente in-
corporados às políticas públicas brasileiras, os imigrantes não participam
como grupos especícos que compõem a diversidade a ser abarcada.
Para se ter um quadro mais amplo, tendo em vista o aperfeiço-
amento do atendimento ao imigrante, deve-se considerar não apenas o
contexto de recepção, mas também as características prévias à emigração
das culturas de origem, tais como hábitos culturais relacionados à saúde,
por exemplo. Esse é um desao urgente e que se amplia com o passar do
tempo, uma vez que a tendência do Brasil como país receptor de novos
imigrantes, inclusive refugiados, tende a aumentar e se diversicar, com
relação aos países de origem dessa população.
Para que o Brasil possa desenvolver uma política de atração ou
de hospitalidade para os novos imigrantes e refugiados será necessária a
discussão de uma política nacional de gestão da mobilidade urbana interna
e a elaboração de políticas públicas que possam enfrentar as diculdades
de acesso à saúde e educação dessa população, promovendo a diversidade
e a efetivação dos direitos sociais formalmente garantidos na Constituição.
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D
415
D, R
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 R B  C  A
Q  E-M
Hermes Moreira Jr.
1 – introDução
Em julho de 2017, grande parte da imprensa brasileira repercutiu
o fato da China ter sido o destino de 25% das exportações brasileiras no
primeiro semestre do ano. Há mais de dez anos nenhum país, sozinho,
era responsável por “abocanhar” ¼ de tudo que o Brasil vende ao exterior.
Ao nos determos sobre o que esses dados informam, veremos que parte
signicativa das exportações brasileiras para a China se trata de uxo de
commodities primárias, tendo como principais produtos a soja, o minério
de ferro, petróleo bruto e celulose.
416
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Na América do Sul, esse quadro não é exclusividade das relações
entre brasileiros e chineses. Nosso principal parceiro comercial é também
o maior comprador de produtos de argentinos e chilenos, por exemplo.
Repete-se, em cada um desses casos, o predomínio padrão de produtos
primários no rol de itens da pauta exportadora desses países para a China.
E o apetite chinês por produtos primários é apenas uma das vertentes da
relação que o gigante asiático estabelece com nossa região
1
.
Uma reexão mais detida sobre esse processo nos leva a proble-
matizar o impacto dessas relações a partir de três questões que se colocam
como desaos para a economia nacional e a inserção internacional do
Brasil nos próximos anos. São elas: a desindustrialização, a reprimariza-
ção das exportações e a dependência econômica e tecnológica em relação
à China. Nesse sentido, ao nal do texto pretende-se reetir sobre alter-
nativas que o Brasil pode adotar em detrimento de um aprofundamento
das relações com a China, em virtude do entendimento que esse pro-
cesso, como está delineado atualmente, é prejudicial a um projeto autô-
nomo e estratégico de desenvolvimento. Para tanto, o ponto de partida
é o diagnóstico das três questões levantadas pelo aprofundamento das
relações entre Brasil e China.
2 – DesinDustrialização
País de extensões continentais e integrante do grupo das dez
maiores economias do mundo, o Brasil passou por uma intensa transfor-
mação social e econômica ao longo da segunda metade do século XX a
partir da consolidação de seu processo de industrialização. Forjou, até o
nal da década de 1980, um parque industrial capaz de produzir bens de
capital e bens de consumo de média complexidade, com alguns nichos
especícos de alta intensidade tecnológica (KOHLI, 2004). O processo
de industrialização foi orientado para satisfazer necessidades do mercado
interno, na tão debatida dinâmica de Substituição de Importações. Desse
Durante fórum dos BRICS realizado no Brasil, em 2014, o presidente da China, Xi Jinping, anunciou a es-
tratégia do país para a América Latina e o Caribe, através da “1+3+6 cooperation framework”. A proposta é que
a partir da fórmula “1+3+6” (“um plano”, “três motores” e “seis setores”) fossem aprofundados no âmbito do
China-CELAC Cooperation Plan (2015-2019) os negócios chineses nas áreas de comércio, investimento e coope-
ração nanceira, orientando recursos chineses para geração de energia, construção de infraestrutura, agricultura,
indústria, inovação e tecnologias de informação em toda região.
417
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
modo, fosse através da constituição de empresas estatais, de investimentos
públicos para nanciamento e viabilização de indústrias de capital nacio-
nal ou pela atração e instalação de empresas multinacionais, o Brasil criou
uma estrutura industrial diversicada que, a despeito de sua concentração
na região centro-sul, foi responsável por alterar a estrutura econômica e
social de todo o país.
Todavia, duas situações ao longo dos anos 1980 colocaram em
xeque a indústria nacional. A primeira diz respeito ao foco no mercado do-
méstico. Justamente por possuir um grande mercado consumidor interno,
a indústria no Brasil não orientou sua produção para as exportações, como
fora a estratégia dos novos países industrializados do Leste Asiático. Sem
nenhum ímpeto em se expor à competição internacional, e contando com
forte protecionismo governamental à concorrência de produtos importa-
dos no mercado doméstico, nossa indústria nacional foi se tornando cada
vez menos competitiva e mais atrasada em relação aos avanços tecnológicos
de seus concorrentes.
A segunda está relacionada com aquilo que economistas costu-
mam chamar de “armadilha da renda média” (BRESSER PERREIRA,
2009; GALA, 2017). Trata-se de uma perda de competitividade da indús-
tria em virtude da valorização da margem salarial de trabalhadores sem que
isso venha associado a um salto tecnológico da indústria capaz de colocá-la
em níveis mais sosticados de produção de bens com valor agregado. Essa
equação torna menos rentável e pouco competitiva a indústria nacional em
virtude do repasse de custos feito ao produto nal.
Postos estes dois problemas, do atraso tecnológico e do alto custo
da produção, a competitividade da indústria nacional foi sendo minada ao
mesmo tempo. Ao mesmo tempo, o protecionismo arcaico, que fechava o
mercado brasileiro à exposição da concorrência internacional, dava sobre-
vida à indústria nacional, ao preço de produtos com menor qualidade e
baixa diversicação e sosticação. Tal situação se alterou a partir da década
de 1990 com a adoção de uma série de reformas econômicas alinhadas à
onda neoliberal que tomava a América Latina e propunha, dentre outras
agendas, abertura comercial e redução do protecionismo aos mercados na-
cionais (CRUZ, 2007).
418
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Especialmente no caso brasileiro, nosso parque industrial foi ex-
posto à concorrência estrangeira e se viu extremamente fragilizado. Isso
ocorreu num contexto de extinção de barreiras não-tarifárias a bens es-
trangeiros; queda nas taxas aduaneiras; forte valorização cambial; e libera-
lização do mercado de capitais do país (FIORI, 2003). Ademais, o atraso
tecnológico reetia na baixa produtividade industrial, pouco competitiva
frente aos índices de produtividade de norte-americanos e europeus. A
armadilha da renda média elevara o salário de nossa mão-de-obra e o custo
nal de nossos produtos, dicultando a atração de novas plantas indus-
triais para o território nacional e fazendo com que nos tornássemos presa
fácil da jovem indústria asiática, mais produtiva e menos onerosa. Assim,
apenas alguns setores já consolidados conseguiram sobreviver à competi-
ção internacional, mesmo que com foco de atuação bastante especíco: o
mercado doméstico brasileiro e as Américas.
Este quadro se mantivera mais ou menos estável ao longo de toda
década de 1990. A indústria nacional fragilizada não conseguia alcançar o
mesmo nível de modernização de suas concorrentes internacionais, mas foi
bastante beneciada pelas políticas macroeconômicas advindas do Plano
Real, que a despeito de ter adotado uma política de câmbio sobrevalori-
zado, estabilizou a inação e os preços (incluindo os salários) no país. A
manutenção da indústria no período se dava, portanto, ainda em virtude
da capacidade de absorção de seu mercado doméstico, cujo impulso ao
consumo de bens foi bastante signicativo face a valorização do poder de
compra do trabalhador médio em razão do aumento relativo de sua renda
(LOUREIRO, 2007).
Por sua vez, a despeito da manutenção de uma indústria, ela já
dava sinais de alteração em sua estrutura. A facilidade para importação de
bens de capital com a valorização cambial, somada à baixa competitividade
da indústria de transformação nacional, zeram com que a capacidade de
autorreprodução sustentável endógena do capital industrial fosse perdendo
fôlego, dando indícios que o processo de industrialização nacional corria
sérios riscos em virtude das distintas formas de concorrência internacional.
Não obstante, o quadro seria alterado a partir de 1999. Decor-
rente da necessidade de ajustes macroeconômicos, pelos quais as econo-
mias emergentes precisaram passar na segunda metade dos anos 90, e na
419
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
esteira das crises nanceiras do México e da Ásia, o governo brasileiro pro-
moveu uma intensa desvalorização cambial que impactou diretamente sua
indústria. Além disso, 1999 foi o ano de aprovação pelo Congresso norte-
-americano de um grande acordo comercial entre Estados Unidos e China,
elemento-chave para ingresso do gigante asiático na Organização Mundial
do Comércio (OMC) dois anos depois. Este, portanto, foi o momento
crítico de deterioração da indústria brasileira.
A entrada da China na OMC não desencadeou apenas uma sé-
rie de ajustes na economia interna dos chineses para se adaptar às normas
da organização e transitar a uma economia de mercado, ou algum mode-
lo que se assemelhasse a tal. Também, incidiu na dinâmica das relações
econômicas internacionais, pois sobrepôs o mercado chinês, tal qual sua
imensa quantidade de trabalhadores, como variável da divisão interna-
cional do trabalho.
O aprofundamento das relações comerciais da China com o res-
tante do mundo trouxe impactos a todas economias. Estabeleceu novas
proporções ao processo de transição do eixo produtivo global rumo ao
Oriente, um dos desdobramentos da reestruturação produtiva que vi-
nha ocorrendo já desde meados da década de 1980 (CASTELLS, 1999;
CHESNAIS, 1996; GILPIN, 2004; HARVEY, 1989). A atração de inves-
timentos estrangeiros e corporações multinacionais para o território chi-
nês, devido sua abundante possibilidade de acesso à mão de obra barata,
sua estrutura institucional centralizada a partir de uma estratégia governa-
mental rígida e planicada, e seu mercado gigante consumidor potencial,
afetou a indústria de economias desenvolvidas e subdesenvolvidas. Talvez o
caso da região de Detroit, nos Estados Unidos, seja a síntese desse processo.
Ícone da indústria pesada norte-americana no século XX, a cidade perdeu
praticamente todo seu parque industrial para as Zonas Econômicas Espe-
ciais chinesas, nas quais se concentra grande parte da produção industrial
oriunda de investimentos estrangeiros no país (ARRIGHI, 2008).
Não obstante, países como Estados Unidos, Alemanha, França,
conseguiram minimizar impactos negativos da migração da indústria de
transformação e de bens de capital e de consumo para a China com o
aprofundamento da industrialização em setores de maior complexidade,
áreas como nanotecnologia e biotecnologia. Ainda assim, o recurso à
420
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
expansão do setor de serviços e à nanceirização, com menor participa-
ção da indústria na composição do PIB, cobrou seu preço em menos de
uma década, como foi possível acompanhar nas crises de 2008 e 2011
(HARVEY, 2011).
Em contrapartida, o caso brasileiro se mostrou mais crítico. Em
meio à instabilidade econômica e à crise scal, frutos da desvalorização
cambial dos anos anteriores (GIAMBIAGI; AVERBUG, 2000), o país não
possuía fundamentos para um salto tecnológico semelhante às economias
desenvolvidas e não reunia condições de concorrer com a mais competitiva
indústria chinesa. Setores industriais que haviam se beneciado da estabili-
dade macroeconômica alcançada com o Plano Real, e que guravam ainda
como alternativas viáveis para a indústria nacional – notadamente o de
têxteis, vestuário e calçados, brinquedos e materiais de construção civil –
foram praticamente dizimados pela concorrência chinesa. O resultado dis-
so foi a desmobilização de setores industriais inteiros, declínio econômico
e social de regiões, e materialização da incapacidade da indústria brasileira
em concorrer no mercado internacional, fosse ao fazer frente a indústria
estrangeira na manutenção ou conquista de mercados no exterior ou para
atender às demandas do mercado doméstico.
A absorção efetiva da China à economia-mundo capitalista teve
como efeito novas acomodações na divisão internacional do trabalho e na
dinâmica das relações econômicas internacionais. Para o Brasil, o impacto
ocorreu com a aceleração e o aprofundamento de um processo de desin-
dustrialização que já vinha se desenhando desde o momento de abertura da
indústria doméstica à concorrência internacional. Nesse sentido, a partici-
pação da indústria na composição do PIB brasileiro e a importância dela
na sustentação dos indicadores econômicos nacionais foram se tornando
cada vez mais frágeis à medida que a presença chinesa no comércio inter-
nacional se congurou como uma realidade.
3 – rePrimarização
A entrada da China na OMC foi um dos marcos da nova fase da
economia-mundo capitalista. Simbolizou a absorção de praticamente 1/6
da população mundial e de uma das dez maiores economias do mundo à
421
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
lógica sistêmica. Fora, ainda, o impulso nal para que a China pudesse,
poucos anos mais tarde, se tornar a segunda potência econômica mundial.
As repercussões dessa nova posição da China afetaram diretamente a parti-
cipação do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Escolher a chamada estratégia de Ascensão Pacíca (NIU, 2013)
não impediu a China de recongurar boa parte da dinâmica econômica
internacional. Em pouco mais de uma década de integração ao comércio
internacional via OMC, o país se tornou o maior produtor industrial do
mundo, o maior exportador de manufaturas e principal parceiro comercial
de mais de uma centena de países, incluindo o Brasil.
Ao desbancar os Estados Unidos e se tornar o maior parceiro
comercial brasileiro, a China empolgou acadêmicos, empresários e polí-
ticos. Muitos enxergavam nessa nova grande parceria a possibilidade de
alçar o Brasil a um novo patamar no comércio internacional, de forma
mais globalizada e autônoma em relação a nossos vizinhos hemisféricos.
Não foram poucas as parcerias acadêmicas, comerciais e institucionais que
visavam fortalecer laços entre os dois países ao longo da última década.
Essa perspectiva ganhara força, ainda, com a estratégia de inserção interna-
cional brasileira durante o governo Lula da Silva (2003–2010), que visava
diversicar nossas parcerias comerciais (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007)
e fortalecer uma nova espécie de arranjo político internacional via BRICS
(MOREIRA JR., 2017).
No entanto, a intensicação das relações sino-brasileiras ao longo
da última década reforçam a parceria estratégica estabelecida entre os paí-
ses já no início dos anos 1990 (YONAMINE, 2017). A grande mudança
se dá no desenho que essa parceria assume à medida que a China consolida
seu processo de modernização do parque industrial e exportação de manu-
faturas, e o Brasil vê sua indústria sucumbir à concorrência internacional,
sobretudo a de origem chinesa. Desse modo, a ampliação da parceria es-
tratégica e o aprofundamento das relações comerciais entre Brasil e China
reforçam uma lógica de especialização produtiva, com a China exportando
ao Brasil uma grande sorte de produtos manufaturados de média e alta
tecnologia, e o Brasil provendo a China com commodities minerais, energé-
ticas e agrícolas, e produtos manufaturados baseados em recursos naturais,
ou seja, de baixa complexidade.
422
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Com o crescimento do mercado interno chinês e a abertura
de novos mercados consumidores para suas exportações, sua demanda
por matérias-primas e gêneros alimentícios apresentou uma explosão
na última década. Conhecemos assim um período de forte alta dos
preços das commodities no mercado internacional, que beneciou,
de maneira pontual, a balança comercial brasileira. À medida que o
apetite chinês por commodities foi crescendo, o Brasil surfou na onda
da valorização dos produtos primários, o que acarretou um período de
bonança econômica ao país.
Durante esse período, todo arranjo scal e orçamentário do gover-
no federal foi elaborado com base na dinâmica das exportações brasileiras.
Políticas de distribuição de renda, obras públicas de infraestrutura, com-
pras governamentais, investimentos em educação e tantas outras políticas
públicas foram traçadas a partir da composição do PIB brasileiro, com um
percentual cada vez maior de participação do setor primário-exportador
em detrimento da indústria. Como poderemos ver indicado abaixo, desde
o início da década de 1990 a exportação de produtos industrializados vem
perdendo espaço para a exportação de produtos primários. Isto leva a uma
série de prejuízos à economia nacional, sendo o mais signicativo deles a
dependência da demanda internacional.
Como foi possível perceber após a crise econômica mundial e,
posteriormente, após o ajuste chinês para um novo patamar de crescimen-
to, também conhecido como “novo normal” (PIRES; PAULINO, 2016),
a redução da demanda e a desvalorização do preço das commodities pri-
mário-exportadoras repercutiu nas contas nacionais, desidratando a taxa
de crescimento brasileira e reduzindo o tamanho do PIB. Ademais, cris-
taliza-se uma estrutura social extremamente desigual em virtude do perl
econômico do modelo utilizado pelo país para atender essa demanda por
commodities primárias. Qual seja: grandes concentrações fundiárias, com
mão-de-obra pouco especializada e de baixa remuneração, baixa incorpo-
ração de novas tecnologias com potencial de transbordamento para outros
setores da sociedade, e ausência da formação de uma burguesia nacional
industrializante, com a manutenção de elites locais baseadas na lógica do
coronelismo tradicional ou apropriação do modelo por grandes conglome-
rados transnacionais do agronegócio.
423
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
4 – DePenDência
Ao mesmo tempo que entusiasmou um conjunto de atores, o
aprofundamento das relações sino-brasileira alertou aqueles que já obser-
vavam um perl menos autônomo para o Brasil nesta relação. Voltaram
a ser mobilizados conceitos do estruturalismo cepalino, bastante caros à
teoria econômica latino-americana do século XX. A teoria estruturalista,
desenvolvida por Raul Prebisch, Celso Furtado, Álvaro Pinto, Fernando
Fajnzylber, entre outros, caracterizava a condição de subdesenvolvimento
dos países periféricos por meio da disparidade de seus modelos de inserção
na divisão internacional do trabalho, xando países periféricos como res-
ponsáveis pelo provimento de produtos primários, ao passo que economias
centrais seriam dotadas de condições tecnológicas de produção de manufa-
turas (RODRIGUEZ, 2009).
Nessa acepção, devido à possibilidade de incremento de técni-
cas e processos capazes de aumentar produtividade e valor agregado dos
produtos manufaturados ser amplamente maior que para produtores de
gêneros primários, trocas comerciais efetuadas entre economias periféricas
e centrais levariam ao prejuízo daquelas. Assim, a deterioração dos termos
de troca alargaria o abismo entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos,
restando como forma de superação da condição de subdesenvolvimento
o processo de industrialização e modernização da estrutura produtiva das
economias periféricas.
Permeado de acertos e erros, o Brasil se engajou nesse processo
ao longo da segunda metade do século XX, cenário que passa a ser rever-
tido, como vimos anteriormente, a partir da dupla condução de desindus-
trialização da economia nacional e reprimarização da pauta exportadora
brasileira. Ambos processos foram fortemente impulsionados dentro da
recente amplitude alcançada pela economia chinesa no quadro da econo-
mia-mundo capitalista. Desse modo, não demoraria para que surgissem
interpretações de que o Brasil entraria em uma nova fase de dependência,
não mais em relação às economias tradicionais ocidentais, tal qual ocorreu
desde a colonização até a primeira metade do século XX com países como
Inglaterra e Estados Unidos, mas agora em relação à China, novo gigante
econômico internacional.
424
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Alguns indicadores podem demonstrar essa nova fase da depen-
dência. Desde o ano de 2009, exportações brasileiras têm como principal
destino a China. Em 2017, muito provavelmente, a China será responsá-
vel por consumir praticamente 1/4 dos produtos exportados, com grande
destaque para soja em grãos ou triturada, minério de ferro, óleos brutos de
petróleo, pasta de celulose e carnes processadas ou cortes congelados. De
acordo com dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento, Indús-
tria e Comércio Exterior, dentre os 10 principais itens da pauta exporta-
dora brasileira para China, apenas a exportação de veículos aéreos pode ser
considerada como de bens industrializados de alta intensidade tecnológica.
Ainda assim, com valores bastante inferiores aos produtos que ocupam o
topo da lista, soja, minério de ferro, petróleo cru e pasta de celulose.
Na esteira da maior presença chinesa no Brasil, o país passou -
gurar como um dos principais aportadores de investimento externo direto
em território brasileiro. Segundo estatísticas do Banco Central do Brasil,
entre 2001 e 2010, a China gurava como 15
o
principal investidor no país,
com parcela inferior a 1% do total de investimentos no país. Realidade esta
que começa mudar à medida que o país asiático altera sua estratégia de in-
serção internacional e passa direcionar signicativos investimentos mundo
afora, ultrapassando o Japão para se tornar a quinta maior fonte global de
investimento externo direto.
De acordo com a Câmara de Comércio Brasil-China, o período
2010–2011 marcou uma nova fase na relação de investimentos entre os
dois países, caracterizada pela entrada signicativa de investimentos diretos
da China no Brasil. Tais investimentos visavam garantir o fornecimento
a longo prazo de commodities, por isso grande parte deles foram direcio-
nados às empresas do setor agrícola, exploração de petróleo e extração de
minerais. Ademais, também passaram a ter como estratégia a constituição
de uma plataforma de exportações direcionada para toda América Latina
a partir do Brasil, canalizando investimentos em áreas comoindústria de
produtos químicos, indústria alimentícia, fábricas de equipamentos de in-
formática e materiais elétricos, indústria de máquinas e de equipamentos.
Nos anos mais recentes, indústrias chinesas entenderam que o mercado
consumidor brasileiro poderia ser uma nova porta a ser explorada, des-
se modo, uma nova natureza de investimentos foi realizada nas áreas de
425
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
telecomunicações, eletricidade e gás, atividades imobiliárias, instituições
nanceiras, serviços de tecnologia e setor automotivo.
Com o impacto sofrido pela economia brasileira em função da
grave crise política e do severo ajuste scal implementado nos últimos
anos, dois novos campos passaram a ser aproveitados pelo capital chinês.
O primeiro deles trata do nanciamento da infraestrutura nacional, prin-
cipalmente com a aquisição por parte de grupos chineses de uma série
de ativos estratégicos, como campos de exploração de petróleo, aquisição
de hidrelétricas, além de investimentos em rodovias, portos e aeroportos
via contratos de concessão. Outro aspecto recente se refere ao controverso
fenômeno da estrangeirização de terras, ou land grabbing (McMICHAEL,
2013; SASSEN, 2013), cuja nova regulamentação está em debate no con-
gresso nacional e já faz parte do conjunto de relações entre Brasil e China
(HAGE; PEIXOTO; VIEIRA FILHO, 2012; SILVA; LEITE, 2016). A
aquisição de terras no território brasileiro por grupos chineses está anco-
rada a interesses vinculados ao agronegócio, em áreas como o cultivo de
grãos, cana-de-açúcar, pecuária e extração vegetal. De acordo com estudos
de movimentos de defesa da soberania nacional, o fenômeno da estrangei-
rização de terras faz com que vinte grupos transnacionais, dentre os quais
estatais chinesas, sejam detentores de 2,74 milhões de hectares, equivalente
ao território do Haiti.
A China também passou a gurar, ao lado dos Estados Unidos,
como principal fonte dos produtos importados pelo Brasil. No topo dos
produtos exportados pelos chineses para nossas empresas estão equipamen-
tos de alta tecnologia das áreas de informática e telecomunicações, assim
como máquinas e acessórios para produção industrial. Essa disparidade
entre o perl de produtos importados da China e exportados para a China
indica os termos de nossa relação comercial hoje.
A manutenção de uma balança comercial superavitária com a
China possui algumas explicações que não podem deixar de ser percebi-
das. Primeiramente, a grande demanda chinesa por nossas commodities
primárias em função do enorme mercado interno chinês a ser atendido.
Em segundo lugar, a valorização do preço dessas commodities em virtude
de uma ampliação da demanda por parte de economias emergentes que
foram alçadas à condição de novos consumidores na esteira do crescimento
426
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
econômico mundial da última década. Por m, somadas a desindustriali-
zação da economia nacional e a grave crise econômica em que o país está
mergulhado, fruto de sua deterioração scal e instabilidade política, levam
a uma retração das importações brasileiras, contribuindo para manutenção
do superávit na balança comercial, mesmo frente a desvalorização de algu-
mas commodities e uma acomodação momentânea da demanda chinesa.
Não obstante, o que parece mais relevante para demonstrar os
riscos da relação de dependência que se estabelece a partir do aprofun-
damento das relações entre Brasil e China, é a possibilidade do Brasil
perder de vista a materialização de uma estratégia de desenvolvimento
econômico autônoma. A partir de 2004, o governo brasileiro demons-
trou empenho em articular uma estratégia nacional de desenvolvimento
e inserção internacional a partir da formulação e implantação da PITCE,
a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior. A PITCE foi
sucedida, quatro anos depois, pela PDP, a Política de Desenvolvimento
Produtivo e, posteriormente, pelo Plano Brasil Maior, em 2011 (STEIN;
HERRLEIN JÚNIOR, 2016).
Tais políticas tinham como objetivo articular a política indus-
trial brasileira a uma estratégia de desenvolvimento e inovação que esti-
vesse alinhada a uma plataforma de inserção internacional soberana do
país. Porém, a despeito do desenho institucional proporcionar as bases
para efetivação dessa estratégia, alguns dos principais setores apoiados pela
política de criação das campeãs nacionais, plataforma oriunda dessa estra-
tégia, foram aqueles cuja inserção internacional estava vinculada à deman-
da chinesa. Desse modo, os vultosos investimentos governamentais para
a consolidação de grandes grupos industriais competitivos internacional-
mente não se deram em setores de média e alta tecnologia, como deveriam
ser privilegiados segundo os documentos, sendo eles: softwares, fármacos e
biotecnologia. Mas sim na indústria de manufaturas baseadas em recursos
naturais, como de carnes processadas, papel e celulose, petroquímico, ou
engenharia e construção civil.
Tal opção fortaleceu esses grupos internacionalmente em um
curto espaço de tempo, os colocando, na maioria das vezes, na liderança
do mercado global em seus setores. Contudo, a partir deles não há uma
contribuição capaz de inuenciar positivamente, a médio e longo prazo, a
427
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
alteração da estrutura econômica e social brasileira, ao passo que a capaci-
dade desses grupos em proporcionar saltos tecnológicos e de inovação em
áreas sensíveis, assim como de incidir na variação do padrão de inserção do
país na divisão internacional do trabalho, é muito limitada. Desse modo,
mesmo investimentos nacionais em política industrial, característica his-
tórica de nossa trajetória de desenvolvimento, estariam aprisionados pela
dependência brasileira em relação ao mercado chinês.
5 – consiDerações finais
Quando Immanuel Wallerstein propõe a análise sistêmica como
método de compreensão da realidade política, econômica, social e cultural
do mundo contemporâneo, ele indica que não é possível fragmentar a rea-
lidade, bem como o estudo das “ciências sociais” (WALLERSTEIN, 2004;
WALLERSTEIN, 1991). Nesse sentido, o “sistema-mundo moderno”,
como ele denomina a realidade em que estamos inseridos, trata-se de um
sistema social com dimensões denidas e com um modelo de reprodução
econômica especíco. Vivemos, portanto, em um sistema social total, em
que, geogracamente, todos países (ou unidades políticas, em sua deni-
ção) estão abarcados, e somos parte de um mecanismo de regulação econô-
mica único, cujas cadeias produtivas e mercantis estão espalhadas por todo
o sistema, na assim chamada economia-mundo. O que difere nosso papel
enquanto indivíduos nessa economia-mundo é a função que exercemos
em cada nódulo das cadeias. No caso das unidades políticas, a diferença de
sua posição na hierarquia desse sistema está demarcada de acordo com a
inserção que possuem na divisão internacional do trabalho.
Posto isso, cada uma das unidades políticas trabalha para reunir
condições de ocupar, nessas cadeias produtivas e mercantis, e por sua vez
na divisão internacional do trabalho, uma posição que permita maiores
possibilidades de acumulação de capital, lógica regente da economia-mun-
do do sistema-mundo moderno. A principal forma de acumulação de ca-
pital nesse modelo é o monopólio de atividades econômicas. Logo, quanto
maior o número de atividades em que determinada unidade política pos-
sua monopólio (ou esteja mais perto dessa situação), mais destacada será
428
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
sua condição de acumulação de capital na divisão internacional do traba-
lho e sua posição hierárquica na economia-mundo.
A principal maneira de alcançar estes monopólios se dá através
de processos de modernização e inovação tecnológica. O domínio sobre
os processos de modernização e inovação garantem o monopólio, mesmo
que momentâneo, sobre novas descobertas e a consequente acumulação
provinda da exploração de seus mercados consumidores. Por isso, o ponto
fundamental de qualquer estratégia de catching-up, que vise saltos den-
tro da hierarquia da economia-mundo, requer altos investimentos na área
de inovação. O que, segundo a literatura especializada (NELSON, 1993;
FREEMAN, 1995; CASSIOLATO; LASTRES; ARROIO, 2005; ARBIX,
2010), demanda um processo de industrialização sustentável e nancia-
mento à pesquisa e desenvolvimento cientíco-tecnológico.
Como apontado ao longo do texto, o Brasil tomou um rumo
diferente do que a literatura indica como caminho para ascensão na
hierarquia da economia-mundo. Ao adentrar em um processo de desin-
dustrialização e retomar um padrão de crescente primarização da pauta
exportadora, voltando à característica tradicional de suas exportações ao
longo de sua história (LOPES, 2017), a economia brasileira se distanciou
cada vez mais das possibilidades de constituir monopólios tecnológicos e
ocupar nódulos de destaque nas cadeias produtivas e mercantis globais.
Por sua vez, o aprofundamento das relações com a China benecia o
gigante chinês, que caminha a passos largos para o topo da hierarquia da
economia-mundo, ao se destacar na vanguarda de diversos setores de alta
intensidade tecnológica e constituir monopólios em áreas que lhe garan-
tem grandes mercados consumidores, e alto potencial de acumulação de
riquezas. A análise do perl das trocas comerciais entre Brasil e China,
bem como a avaliação dos investimentos chineses no Brasil, indicam o
perl que cada um dos dois países vem consolidando na divisão interna-
cional do trabalho da economia-mundo.
Portanto, é preciso estabelecer um projeto de desenvolvimento
autônomo que vise uma ascensão do Brasil na hierarquia da economia-
-mundo e uma nova posição na divisão internacional do trabalho. Para
que assim possibilite ao país a redução de suas disparidades e um cresci-
mento econômico sustentável com distribuição de renda e justiça social.
429
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Demandando, portanto, uma reorientação na trajetória estabelecida nos
últimos anos, de aprofundamento desse modelo de relações comerciais en-
tre Brasil e China, que tem conduzido à ampliação da desindustrialização
e da reprimarização das exportações, e também à reorientação da indústria
prevalecente para atuação em setores cuja possibilidade de guiar a disputa
global por monopólios tecnológicos é extremamente limitada.
Para o Brasil assumir esse papel, os fatores a serem adotados
perpassam pela retomada de um projeto de industrialização moderno e
competitivo, que seja capaz de concorrer pelos principais mercados inter-
nacionais nos setores de mais alta intensidade tecnológica. Pela revisão da
balança comercial brasileira, que não pode se limitar a oferecer superávits
por meio da abundância de recursos oriundos das commodities primárias,
sem que haja uma participação signicativa de itens de alta complexidade
econômica e um uxo intenso de importação de bens de alta tecnologia
para consumo do mercado doméstico. E, principalmente, uma estratégia
nacional que valorize os ativos estratégicos do país e garanta a soberania so-
bre eles, entendendo os mesmos como vetores essenciais para a execução de
uma política nacional de desenvolvimento baseada na constituição de um
sistema nacional de inovação autônomo, que incentive o desenvolvimento
cientíco e tecnológico em nosso país.
referências
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sociologia da USP, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 167–185, 2010.
ARRIGHI, G. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São
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I E, C
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Isabella Alves Lamas
1 – introDução
Moçambique dispõe de uma oportunidade única de consolidar a descober-
ta de vastos recursos naturais que, se forem bem geridos, irão permitir que
o país alcance os seus objetivos de desenvolvimento social e ultrapasse a sua
dependência da ajuda externa
Doris Ross, Fundo Monetário Internacional (FMI, 2014).
Em 1999, no lançamento do Ano Internacional da Cultura da Paz,
Ko Annan, então secretário-geral da ONU, declarava que a verdadeira
paz é muito mais do que a ausência de guerra, já que é um fenômeno que
434
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
envolve desenvolvimento econômico e justiça social (UNESCO, 1999).
Sua fala simboliza a incorporação nas Nações Unidas do conceito transfor-
mador da paz positiva (paz enquanto integração humana e justiça social)
formulada no âmbito da tradição teórica dos Estudos para a Paz a partir
das ideias de Johan Galtung (GALTUNG, 1969). Apesar de essa ideia ter
sido absorvida como parte do discurso da construção da paz, particular-
mente de missões de peacebuilding realizadas em cenários de pós-conitu-
alidade, o que vemos na realidade em muitos contextos que foram alvos
dessas operações de paz é justamente a perpetuação de formas diversas de
violência – não só a violência física e direta que pode ser medida através
de indicadores como o número de morte de civis, mas também violências
estruturais e culturais
1
. O programa da paz positiva foi usado como for-
ma de legitimar esquemas de engenharia social e política formulados pela
governação global liberal (PUREZA, 2011). Os processos de pacicação
que ocorreram através de liberalização politica e econômica incluídas no
escopo das missões de paz geraram consequências profundas em países que
foram alvos dessas operações.
Moçambique é um desses países e foi durante muito tempo
reconhecido como um caso de sucesso do processo de construção da
paz. Uma análise das violências cotidianas e dos conitos socioam-
bientais, mais concretamente aqueles que emergiram ao redor de um
mega projeto de exploração de carvão de uma corporação multinacio-
nal brasileira, fornece elementos para descontruir essa ideia e adicionar
novos prismas para o entendimento do atual momento do país. Nas
discussões recentes sobre a instabilidade econômica e política do país é
muito comum visões que expressão uma lógica preventiva de potenciais
focos de turbulência que eventualmente se transformariam em violên-
cia armada e direta. Não obstante, a promoção de uma qualidade de
Em Violence, Peace and Peace Research, Galtung dene a violência direta como quando os “meios de realização
não são retidos, mas diretamente destruídos” (GALTUNG, 1969, p. 169) e elabora pela primeira vez o conceito
de violência estrutural, chave em seu pensamento, como denúncia de violências invisíveis, e muitas vezes não
intencionais, porém, reais. Quando apresenta o conceito de violência estrutural, Galtung o associa à paz positi-
va, no entanto, consciente dos perigos decorrentes da transformação da paz em uma categoria semanticamente
negativa, faz uma nova associação: a ausência de violência estrutural passa a ser presença de justiça social e, con-
sequentemente, de uma paz verdadeiramente positiva. Já nos anos 1990, o autor introduz uma nova dimensão
da violência que viria a compor o famoso triângulo das violências de Galtung: a violência cultural, ou seja, “os
aspectos da cultura – a esfera simbólica de nossa existência – exemplicada pela religião e ideologia, linguagem
e arte, ciência empírica e ciência formal (lógica, matemática) – que pode ser usada para justicar ou legitimar as
violências diretas ou estruturais” (GALTUNG, 1990, p. 291).
435
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
vida digna, de justiça social e, como não poderia faltar, da igualdade
de oportunidades são parte fundamental de uma análise coerente com
busca pela concretude da construção do horizonte de uma paz verda-
deiramente positiva. Moçambique é hoje um país formalmente pací-
co mas que vive inúmeras situações de violência – mais espetaculares
como os eventuais confrontos entre a FRELIMO e a RENAMO – e
mais sutis como as opressões decorrentes da exploração de minérios da
Vale na Provincia de Tete na região central do país.
Na fala de Doris Ross, diretora assistente do departamento de
África do FMI, que consta na epígrafe do texto há três elementos impor-
tantes que gostaria de destacar: a) Moçambique é rico em recursos natu-
rais, b) estes recursos, se bem governados, podem gerar desenvolvimento
social no país e c) ajuda-lo a superar a dependência de ajuda externa. Mais
concretamente, os recursos são vistos como uma oportunidade para fechar
as lacunas do décit de infra-estrutura do país (como portos, estradas, fer-
rovias ausentes ou destruídas nos tempos da guerra), investir em setores
prioritários como saúde e educação, além de servirem como subsidio eco-
nômico para o apoio de um modelo de crescimento mais inclusivo. A
aqui nada de muito novo, uma vez que este é o discurso comum sobre
recursos naturais e suas oportunidades de desenvolvimento propagado por
governos, corporações multinacionais, instituições nanceiras internacio-
nais e organizações internacionais.
Para o FMI, ascender requer resiliência. Assim, Moçambique
tem que ser resiliente na transformação em curso de sua economia de
uma base na agricultura familiar para uma centrada na mineração, no
agronegócio, no processamento e em serviços (ROSS, 2014) (é claro
que com esta nova base econômica grande parte desse serviço é decor-
rente do próprio funcionamento e demanda da indústria extrativa).
Não obstante, as oportunidades dessa nova base econômica não foram
traduzidas em desenvolvimento econômico e social: estamos diante de
um país de baixa renda, em situação de pós-conitualidade que não
compartilhou os benefícios de duas décadas de crescimento robusto e
paz com a maior parte de sua população.
436
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
2 a economia Política Da mineração De moçamBiQue:
crescimento econômico via ieD, DesigualDaDe e exProPriação
Classicado como economia de baixa renda
2
, Moçambique é um
país da África Subsaariana com 28 milhões de pessoas que faz fronteira
com África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe, Zâmbia, Malawi e Tanzânia.
Ao contrário dos países centrais que implementaram progressivamente po-
liticas neoliberais principalmente a partir dos anos 70, Moçambique apre-
senta uma trajetória econômica enquanto país independente muito recen-
te. O país teve a sua independência conquistada em 1975 após um período
de pouco mais de uma década de luta armada pela libertação nacional e a
FRELIMO – primeiro e único partido no poder central após a indepen-
dência – constituiu um governo inicialmente de inspiração marxista-leni-
nista. Pouco após a independência, o país viveu anos de uma intensa guerra
civil que ocialmente teve m em 1992 com a assinatura do Acordo Geral
de Paz entre a FRELIMO e a RENAMO, antigo movimento guerrilheiro
que se transformou em partido de oposição.
Foram implementadas reformas de ajuste estrutural do Banco
Mundial e do FMI em Moçambique a partir de 1987 com o Programa
de Reabilitação Econômica – PRE
3
. O PRE marca a transição do país
de uma economia socialista marcada por controle estatal, planejamento
econômico centralizado e preços administrados (FMI, 2014, p. 14) para
uma economia de mercado e tinha como grande objetivo a implementa-
ção de medidas neoliberais para a inserção de Moçambique na economia
internacional e a atração de uxos de investimento externo para o país.
A racionalidade central vigente é que seriam os excedentes gerados atra-
vés destes inuxos de capital que assegurariam a possibilidade de desen-
volvimento social desse que era, e continua sendo, um dos países mais
pobres do mundo. No último ranking de IDH divulgado pelo PNUD,
Moçambique cou na posição 181 num conjunto de 188 países (PNUD,
2016). Além disso, Moçambique é um país rural e apesar de a população
urbana estar crescendo signicativamente esta ainda representa menos de
O critério usado pelo Banco Mundial para classicar economias é o PIB per capita. Uma economia de baixa
renda é aquela cujo PIB per capita não ultrapassa $1025 (BANCO MUNDIAL, 2017b, p. xvii).
Nos anos 80, o FMI e o Banco Mundial passaram a demandar reformas econômicas de acordo com princípios
neoliberais como garantia para empréstimos realizados a países em desenvolvimento altamente endividados
(STEGER; ROY, 2010, p. 98).
437
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
um terço da população total (SANTOS; ROFFARELLO; FILIPE, 2016).
Entre os inúmeros efeitos perversos que as reformas tiveram na economia
e na sociedade moçambicana, um dos mais relevantes foi o declínio na
produtividade da agricultura que contribuiu para acentuar a existência de
uma economia de consumo ao invés de produção (CUNGUARA, 2012;
MASCHIETTO, 2016).
Apesar disso, o desempenho de Moçambique no período pós
guerra foi usado como exemplo de sucesso pelo FMI, Banco Mundial e
comunidade de doadores internacionais (IDA, 2009; NUCIFORA; SIL-
VA, 2011). O ‘queridinho dos doadores’ (HANLON, 2010) também foi
retratado como um caso de sucesso de peacebuilding e reconstrução pós-
-guerra (ASTILL-BROWN; WEIMER, 2010; PNUD, 2005), principal-
mente devido à estabilidade política pós-acordo de paz e aos indicadores
macroeconômicos que mostram uma recuperação econômica substancial
em relação ao estado da economia pré-reformas (MASCHIETTO, 2016;
PHIRI, 2012). Moçambique é hoje considerado um país formalmente pa-
cíco, apesar das recorrentes manifestações de violência e conitualidade
que vão além das eventuais tensões políticas e militares entre a FRELIMO
e a RENAMO.
Durante os anos de guerra civil e no pós-guerra, a economia de
Moçambique esteve altamente dependente dos uxos de capital prove-
nientes da ajuda externa da comunidade de doadores internacionais. No
entanto, a dependência da ajuda externa no orçamento do estado dimi-
nuiu consideravelmente em 2010 devido principalmente a um avanço na
arrecadação de receitas internas e às especulações em torno da exploração
e/ou descoberta de novas reservas de recursos naturais. Segundo relatório
do FMI de 2014, o crescimento econômico do país pode ser entendido
a partir de dois períodos temporais: um primeiro que vai de 1992–2002
marcado pela liberalização do mercado e políticas de privatização que se
desenvolvem em um contexto geral de reabilitação do país no pós-guerra
e estabelecimento das bases da economia de mercado e um segundo que
vai de 2002 em diante no qual o crescimento foi impulsionado em larga
medida pelos investimentos em megaprojetos (FMI, 2014, p. 10).
De fato, devido a estes projetos, em 2011 o volume de IED ul-
trapassou pela primeira vez o volume de ajuda externa no orçamento do
438
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
estado (TOLLENAERE, 2013). Junto com a África do Sul e a Nigéria,
Moçambique se tornou um dos três principais destinos de IED na África
Subsaariana (CASTEL-BRANCO, 2015). Segundo relatório do African
Economic Outlook (2017), desde os anos 2000 o alumínio, o gás e o carvão
constituem a espinha dorsal da indústria moçambicana. Não obstante, o
desequilíbrio na destinação do IED predominantemente para áreas como a
de construção de infra-estrutura direcionada para exploração dos recursos
e o crescente endividamento público interno e externo ocorreu em detri-
mento de um nanciamento substancial em setores sociais e serviços bási-
cos. Cunguara (2012) critica o crescimento centrado em megaprojetos por
estes terem poucas ligações locais, criarem pouco emprego, serem bene-
ciados por importantes isenções scais, dependerem de bens importados e
serem voltado para exportação.
De maneira geral, a narrativa do caso de sucesso é desacredita-
da pelo paradoxo central da economia política contemporânea do país:
apesar de o crescimento econômico entre a década passada e 2016
4
ter
girado em torno dos 7% e a inação ter se mantido controlada (dois dos
mais importantes indicadores macroeconômicos), a desigualdade tem se
acentuado nos últimos 6 anos e estima-se que mais de 50% da população
viva com menos de 1 dólar por dia (SANTOS et al., 2016). Há uma im-
portante disparidade entre os altos índices de crescimento econômico e a
estagnação dos níveis de pobreza notada principalmente a partir de 2010.
Uma importante parcela da população vive com menos de US$1 dólar
por dia, sofre com doenças como a malária e o HIV e não possui acesso
a infra-estruturas básicas como água potável, centros médicos e escolas.
Este paradoxo é central na reexão do economista moçambicano Carlos
Nuno Castel-Branco sobre as características da porosidade econômica mo-
çambicana: “a ineciência na retenção de excedente não cometido, que
poderia ser utilizado para o desenvolvimento da economia como um todo
(CASTEL-BRANCO, 2015, p. 125). O argumento de Castel-Branco é
que a característica dominante da economia política moçambicana é o foco
Houve uma forte desaceleração do crescimento no ano de 2016 que na média cou em 3,8%. Não obstante,
segundo relatório do Banco Mundial, 2017 já mostra sinais de melhora principalmente devido a melhoria
dos preços das matérias primas e a recuperação da indústria do carvão (BANCO MUNDIAL, 2017a, p. 1). A
associação direta entre a guinada positiva do crescimento econômico de Moçambique devido a alta no preço e
recuperação do preço do alumínio e do carvão é um dos indícios da complexa conguração do sistema global
da mineração.
439
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
na formação de oligarquias nanceiras nacionais através de um processo
clássico de acumulação primitiva de capital. Por conta da historia recente
de colonialismo e a posição anticapitalista do primeiro governo do pós
independência, estas classes ainda estão em fase inicial de formação. É por
meio da porosidade da economia e do apoio do estado que as ligações
entre o capital doméstico e o capital multinacional é desenvolvida. Assim
a porosidade não é só resultado de limitações institucionais do estado e da
incapacidade de assegurar rendimentos das corporações em operação no
país, mas também esta profundamente relacionada com um processo de
expropriação social que tem como objetivo o desenvolvimento de classes
capitalistas nacionais (CASTEL-BRANCO, 2015).
Seguindo esta lógica, para além dos largos incentivos scais con-
cedidos às multinacionais em operação no país
5
e eventuais fugas ilícitas
de capital, um papel importante deve ser creditado também às ações de ex-
propriação do estado para garantir com que a classe capitalista emergente
pudesse se apropriar de uma parte dos lucros do IED. Esforços investigati-
vos no âmbito do Centro de Integridade Pública, mostram a sobreposição
existente entre a elite política e econômica do país e a consequente ausên-
cia de distinção clara entre a esfera pública e privada do país: “nos últimos
cinco anos, praticamente, todos os membros do Executivo procuraram
constituir empresas cujo objeto social prioriza o exercício de atividades no
sector extrativo” (FAEL; CORTEZ, 2013, p. 6). Altos dirigentes do estado
e do partido político FRELIMO são participantes ativos de grandes con-
cessões realizadas em formas de parceria público-privada como o do Porto
de Nacala e a Linha do Norte, empreendimentos recentemente associados
a exploração de carvão da Vale (NHAMIRE; MATINE, 2015).
Os maiores beneciados destes esquemas de expropriação são
as elites e o grande capital internacional no qual estão ancoradas. Os
maiores prejudicados, quase não é nem preciso dizer, são todo o restan-
te da população do país, principalmente os 70% que vivem no campo,
crescentemente desempoderados com a destituição de seu meio de sobre-
Segundo o economista do FMI Yi Xiong o principal objetivo dos primeiros megaprojetos era tornar Moçam-
bique um destino atrativo para o IED depois de longo período de instabilidade e guerra civil. Por este motivo,
Moçambique teria estabelecido contratos muito favoráveis às empresas estrangeiras (FMI, 2014, p. 34). O con-
trato de concessão da Vale é um exemplo e possui inúmeras clausulas e condições de isenção scal (REPÚLICA
DE MOÇAMBIQUE, 2006).
440
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
vivência mais básico que é a terra e distanciados de seu próprio mundo
através de artefatos e ideias importados do estrangeiro (i.e. eleições de-
mocráticas, direitos humanos, intervenções de engenharia, desenvolvi-
mento sustentável) sobre os quais eles/as não tem controle (MACAMO,
2005) e/ou participação ativa. A porosidade vista desta maneira é uma
estratégia de acumulação primitiva de capital, ie. o processo através do
qual os produtores são separados dos seus meios de produção, que tem
início com a expropriação da terra. Da mesma forma que as revoluções
agrárias historicamente foram processos conituosos, a expropriação da
população rural de sua terra e meios de subsistência em um país iminen-
temente agrário como Moçambique tem resultado inexoravelmente na
emergência de cenários de conitualidade socioambiental.
3 inDústria Do carvão e a entraDa Da vale em moçamBiQue
Com a estabilidade política gerada pelo Acordo Geral de Paz de
1992 relatada acima, a riqueza praticamente inexplorada de Moçambique
em recursos minerais passou a ser alvo de investidores internacionais. Foi
nesse período que tiveram início a implantação de megaprojetos econômi-
cos no país que segundo a lei de investimento moçambicana são os pro-
jetos que demandam um investimento inicial de mais de 500 milhões de
dólares (ver, CASTEL-BRANCO, 2014)
6
. A partir de 2004, uma série de
empreendimentos foram desenvolvidos no setor extrativo, sendo os prin-
cipais o projeto de áreas pesadas da Kenmare em Moma, o de gás da Sasol
em Pande e Tamene, os de carvão em Tete pela Vale e a Rio Tinto (que ven-
deu seus ativos para a ICVL) e o projeto de exploração de gás da ENI e da
Anadarko na Bacia de Rovuma ainda em fase de instalação (ITIE, 2015).
Moçambique possui extensas reservas de carvão que compõe o
Supergrupo do Karaoo, sendo a mais importante delas a Bacia Carboní-
fera de Moatize localizada na Província de Tete que ca na região central
do país. Nestas bacias, os aoramentos de carvão são muito comuns e as
populações locais utilizam extensamente o recurso como forma de com-
bustível (VASCONCELOS; MUCHANGOS; SIQUELA, 2009). Circu-
A fundição de alumínio da Mozal foi o primeiro megaprojeto em Moçambique no pós –guerra e o maior
projeto do setor privado no país (FMI, 2014).
441
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
lando pela região de Moatize, é possível notar sempre na beira das estradas
pessoas vendendo carvão para o uso local. Além da escala artesanal, as
reservas de carvão de coque já foram exploradas em escala industrial para
exportação no período colonial por empresas de capital majoritariamen-
te belga (através da La Societé Geologique et Minerale du Zambeze que
operou de 1922–1948) e sul-africano (através da Companhia Carbonífera
de Moçambique) (CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ECONÔMICA,
1977; MATOS; MEDEIROS, 2015) e no período pós-colonial pela Car-
bomoc, empresa estatal moçambicana, hoje extinta que teve sua produção
interrompida no período da guerra, entre outros, pela obstrução da linha
ferroviária de transporte (SELEMANE, 2009).
O carvão mineral é um recurso que atualmente conta com uma
dose extra de polêmica por conta dos problemas ambientais associados,
entre outros, a liberação de dióxido de carbono durante o seu processo
de queima para transformação em energia. Isso faz com que na teoria este
esteja mais sujeito à políticas nacionais e regulamentos internacionais sobre
mudança climática (VALE S.A., 2016, p. 14). No entanto, esta questão
ambiental não foi alvo de políticas nacionais moçambicanas e nem obstá-
culo para o interesse dos investidores estrangeiros. Na realidade, Tete atraiu
recentemente uma grande quantidade de investimento estrangeiro direto e
de corporações destinadas a exploração dessas reservas de carvão.
Depois de ganhar uma licitação internacional na qual o gover-
no moçambicano foi assessorado pela International Finance Corporation
(IFC) em 2004, a CMN Vale S.A. obteve em 2007 a maior concessão da
província, através do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT)
durante 35 anos de uma vasta área de 23.780 mil hectares para imple-
mentação do Projeto Carvão Moatize (INTERNATIONAL FINANCE
CORPORATION, 2013). Como aponta o Relatório de Insustentabilidade
da Vale 2012, “com a obtenção deste DUAT, a Vale tornou-se um dos
principais protagonistas do processo de expropriação, usurpação, aquisi-
ção, controle e partilha de terras em Moçambique” (ARTICULAÇÃO IN-
TERNACIONAL DOS ATINGIDOS PELA VALE, 2013, p. 15). Esse
foi o primeiro investimento greeneld, projeto inicial e 100% desenvolvido
pela Vale fora do Brasil (VALE S.A., 2014, p. 2). A corporação explora car-
vão metalúrgico (coque) – matéria prima para a produção de ferro e aço – e
442
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
térmico (de queima) – usado em usinas termoelétricas – em minas à céu
aberto. Segundo relatório do Centro de Integridade Pública, “consta que
a CVRD pagou pela concessão de Moatize cerca de 120 milhões de USD,
mas essa verba nunca foi inscrita no Orçamento do Estado(SELEMANE,
2010, p. 21). Ou seja, há poucos indícios de transparência principalmen-
te por parte do governo moçambicano, mas também da corporação, na
maneira como a contrato foi conduzido. A questão da transparência se
estende para a inacessibilidade de acordos entre empresa e governo. Con-
forme pude notar em Tete, esta é uma constante do relacionamento entre
o governo e a CMN.
Além de operar as minas em Moatize (através do Projetos Car-
vão Moatize e Moatize II), a Vale também tem participações no Corredor
Logístico de Nacala através da aquisição do controle da Sociedade de De-
senvolvimento do Corredor do Norte (SDCN). O projeto do corredor
consistiu na reabilitação e construção de novos trechos dos 912 km de
ferrovia entre Moatize e Nacala (passando pelo Malauí) e na construção de
um novo terminal portuário de carvão no Porto de Nacala
7
.
Esta inserção da Vale tem como pano de fundo um processo
de internacionalização das grandes empresas brasileiras apoiadas pelo
estado brasileiro principalmente através de dois eixos fundamentais:
uma política externa marcada pelo aprofundamento das relações sul-sul
e uma política de crédito armativa por meio de generosos emprésti-
mos subsidiados pelo BNDES (ver GARCIA, 2012). No entanto, junto
com as nossas empresas exportamos também conitos socioambientais
com as populações atingidas pelos empreendimentos – uma realidade
muito presente aqui no Brasil também anal segundo a Global Witness
somos o país que mais ativistas socioambientais no mundo e a maior
parte das mortes esta associada a conitos que acontecem na mineração
(GLOBAL WITNESS, 2016).
A Vale negociou a venda para Mitsui de 15% das participações do total de 95% da companhia na Vale Mo-
çambique (os restantes 5% são a participação do governo moçambicano no empreendimento através de uma
empresa nacional de exploração mineira) e metade dos 70% de participação que a corporação tinha no CLN em
2014 (VALE S.A., 2017, p. 151). Os termos do acordo foram renegociados e a transação que faz parte do plano
de desinvestimento da CMN foi concluída em 2017.
443
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
4 tete: o el DoraDo Que nunca começou e a emergência
De conflitos socioamBientais
Seis anos após o início das operações do maior projeto de inves-
timento brasileiro em Moçambique, nas ruas de Tete é possível sentir a
frustação da promessa de um Eldorado que nunca começou. O discurso
divulgado pelo governo e pela companhia de que a exploração mineral
traria prosperidade e bem-estar para a população não se concretizou. Ao
contrário, o cenário é de conitos socioambientais e casos de violação dos
direitos humanos.
Chipanga Premium HCC é o nome que foi dado pela Vale ao
carvão de classe mundial produzido por ela na Mina de Moatize. Mas Chi-
panga muito antes de ser marca de carvão é o nome de um dos bairros de
comunidades que foram reassentadas pela empresa para viabilizar a instala-
ção do empreendimento. A entrada da companhia no país foi, e continua
a ser, marcada por uma série de conitos socioambientais relacionados à
contestações por parte das populações atingidas às formas de implementa-
ção e condução do projeto.
Neste cenário, os conitos estiveram relacionados principalmen-
te a uma implementação problemática das ações de reassentamento das
populações que viviam na área de operação do projeto da Vale. A constru-
ção da infraestrutura relacionada à exploração e à abertura das minas foi
responsável por uma série de deslocamentos populacionais a partir do ano
de 2009. A própria empresa foi responsável por encaminhar a elaboração
de um plano de reassentamento e posteriormente implementá-lo. Dessa
maneira, a Vale, devido à mina de Moatize, reassentou as comunidades
de Chipanga, Bagamoyo, Mithete e Malabwe para as novas comunidades
de Cateme e 25 de Setembro. No entanto, a supervisão governamental foi
severamente criticada, uma vez que o governo teria se mostrado mal pre-
parado e/ou com pouca vontade política de exercer uma atividade rigorosa
(HUMAN RIGHTS WATCH, 2013). A maneira desastrosa através da
qual a Vale realizou os reassentamentos necessários para a viabilização de
seu mega empreendimento econômico gerou uma importante repercussão
nas organizações de justiça ambiental que têm tido uma participação ativa
444
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
na revindicação dos direitos das populações atingidas
8
. O sistema de terras
públicas na verdade acentuou a gravidade das violações que caracterizaram
os processos de espoliação das populações rurais frente aos megaprojetos
uma vez que muitas pessoas não possuíam qualquer comprovação legal
de usufruto da terra. Inclusive, as populações reassentadas reclamam não
terem recebido DUAT referente as novas casas (Pop-Moz-1).
Entre as violências relacionadas a este reassentamento, estão a fu-
são de diversas comunidades e a separação de membros de uma mesma
comunidade devido à atividade que exercem, se dependentes da proximi-
dade de um centro urbano, ou não. Além disso, as terras fornecidas para
algumas famílias não são aráveis, comunidades ribeirinhas foram transfe-
ridas para locais que sofrem de falta da água, muitas das casas fornecidas
apresentaram rachaduras e a uma fundação defeituosa, pessoas que viviam
em comunidades que antes eram próximas à aglomerados urbanos (onde
conseguiam complemento da alimentação de fácil acesso e podiam exercer
atividades complementares à renda familiar) foram transferidas para locais
distantes, entre outros.
Em 2012, o conito entre a Vale e os(as) reassentados(as) foi mar-
cado por uma ação de repressão violenta da FIR (Força de Intervenção
Rápida) dentro da área de reassentamento à manifestações que posterior-
mente caram conhecidas como Revolta de Cateme que reivindicavam
aspectos problemáticos do processo de reassentamento através de, entre
outros, o bloqueio da linha férrea que liga a vila de Moatize ao porto da
Beira. O envolvimento da Vale com o nanciamento de unidade da FIR
próxima a área de reassentamento, bem como com a manutenção do posto
policial comunitário até hoje dias atuais evidenciam como os aparatos de
segurança do estado trabalham em sinergia com o das companhias para
Em um diálogo com os movimentos de justiça ambiental, uma linha da ecologia política tem se desenvolvido
a partir principalmente do trabalho das EJOs (environmental justice organizations) através da elaboração de
mapas que sistematizam visualmente os conitos socioambientais no mundo e discorrem sobre suas principais
características e impactos (MARTINEZ-ALIER et al., 2014). Esses esforços são de extrema importância para o
alargamento da compreensão de dinâmicas violentas operadas por processos gerados a partir de megaprojetos de
investimento e desenvolvimento da indústria extrativista. Entre as iniciativas mais recentes se encontra o Atlas of
Environmental Justice (EJOLT, 2014) desenvolvido pelo projeto EJOLT (Environmental Justice Organizations,
Liabilities and Trade), cuja plataforma online foi lançada no ano de 2014 e se caracteriza como um work in
progress na medida em que a quantidade e o alto dinamismo faz com que alguns conitos socioambientais ainda
não estejam incluídos no escopo do mapa. Entre os muitos que já estão incluídos, está o já emblemático caso da
extração de carvão mineral pela corporação multinacional Vale S.A. em Moçambique. O caso descrito é intitula-
do como Vale desloca agricultores em Moçambique e se refere aos processos de reassentamento aqui referenciados.
445
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
proteger o investimento e garantir o uxo contínuo dos recursos. Sobre os
funcionários do posto policial de Cateme, um dos moradores alega: “olha
a Vale trabalhou assim, sempre foi assim. Pagava polícias e formou algumas
pessoas que servem como agente de trabalho sendo segurança da Vale. Es-
tão aqui, a Vale montou estas pessoas. São paredes da Vale que controlam
o reassentamento” (Pop-Moz-3).
De maneira geral, não houve espaço de participação da po-
pulação atingida. A “participação” foi limitada à fase de execução e
concebida apenas enquanto parte integrante do desenho institucional
do Plano de Reassentamento para legitimar o projeto. O connamento
da população enquanto agentes beneciários e não como agentes exe-
cutores e promotores no modelo de gestão dos reassentamentos é um
dos pilares centrais para compreender os conitos socioambientais que
resultaram deste processo. A falta de espaço de participação da popula-
ção atingida e algumas das práticas desta política são relatadas por uma
das reassentadas de 25 de setembro:
Eu sai de Chipanga para aqui. Sou reassentada desde 2010 até agora,
estou aqui. Mas a Vale quando chegou lá em Chipanga estava a falar
as coisas boas. Disse vamos fazer a mudança da vivência né, mas nós
não queria não queria mesmo. Estava legal, nós ia ver casa que ela fez lá
em Cateme, amostra. Nós começamos a reclamar que esse tipo de casa
aqui não existe, precisamos casa com fundação, alicerce. Eles continu-
am a fazer, nós ia fazer visita. Sempre estava a reclamar! Na nossa re-
clamação chegou o governador. Chegou ali, convidou população, tirou
comida, bebida diz: vocês fazer um festejos. Lá pra nós despedirmos
dos nossos espíritos: vocês comer, beber, car feliz. Nós pensava que
há de falar as boas maneira, preparamos comida, bebemos sim. Aquele
que queria beber bebeu, aquele que não bebia comia coisa, comida.
Chegou a chegada de governador, nós recebemos lá começamos a falar,
o bairro tinha escolhido as pessoas de qualidade de conseguir falar com
eles. Não deu espaço de falar com população, só ele decidiu! Decidiu
realmente vocês não podem negar sair. Saem aqui em Chipanga porque
vocês estão a cagar em cima do dinheiro. Deve sair nem se vocês irem
reclamar que não queremos sair mas os documentos já está assinado de
que vocês devem sair e assim ele como governador, estou aqui ser uma
despedida com vocês que estão a deslocar daqui, para lá! Onde que
escolheu a empresa. Dai população cou enfraquecida porque o gover-
no mesmo, o próprio governo realmente de população falou, decidiu.
Como que nós poderia falar? (Pop-Moz-1).
446
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
A festa dos recursos – banquete de comida e bebida à vontade
para uma população extremamente pobre – promovida pelo governo e
pela Vale mostra a atuação pró-empresa do primeiro. A decisão arbitrária
do governo – já estava tudo decidido – de certa forma é um reexo do
próprio sistema político do país no qual os governadores são eleitos pelo
presidente, o que enfraquece a preocupação com o estabelecimento de um
vinculo efetivo mais direto com a população. Uma das dinâmicas centrais
da conitualidade entre a FRELIMO e a RENAMO é a ausência de re-
cursos da RENAMO decorrente da centralização excessiva do governo.
Nas eleições de 2014 houve uma sobreposição entre algumas das áreas ge-
ogracamente ricas em recursos naturais e as que a RENAMO venceu nas
urnas (MACUANE; BUUR; MONJANE, 2017). O partido venceu em
Tete, por exemplo, e algumas de suas principais reivindicações estiveram
relacionadas a possibilidade de eleições independentes à nível provincial.
Para além dessa face mais conhecida do conito da mineradora
com os/as reassentados/as pelo Projeto Carvão Moatize descrita acima, que
ganhou a atenção pública internacional com a publicação da Human Rights
Watch em 2013 do relatório What is a House Without Food?, há outra face
menos visível do desentendimento entre mineradora e moradores/as locais.
As comunidades de Capanga (também atingida pelas operações da Rio
Tinto, atualmente sob concessão da indiana ICVL) e Ntchenga não foram
reassentadas pela companhia, mas se encontram em área de inuencia
direta da mineração. Ntchenga está localizada dentro da área de concessão
da companhia, porém, atualmente não dentro da zona operacional. A
poucas centenas de metros da exploração, sofre com poeiras e o ruído. De
acordo com um funcionário da Vale Moçambique em entrevista, estas são
comunidades residuais que hoje não inuenciam a produção e, portanto, a
empresa não tem necessidade de reassentá-las (Cmn-Moz-2). Além disso,
a Vale alega seguir a orientação do Banco Mundial para reassentamentos
involuntários que devem ser evitados sempre que possível.
O resultado são 70 famílias que se encontram em situação pro-
visória desde 2010. Por estarem dentro da “área da Vale” são sitiadas por
empresas de segurança privada que controlam, através de cancelas e tendas
com a presença 24 horas de funcionários, todos os caminhos de acesso,
bem como as pessoas que desejam visitar a comunidade. Apesar de a única
447
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
fonte de água, que passa em um pequeno riacho, estar contaminada, quan-
do a mineração começou a empresa dizia que não havia qualquer impacto
das atividades na água (Pop-Moz-10). Após a população começar a sentir
problemas de saúde, estudos independentes foram conduzidos atestando
a contaminação da água. Foi necessária mobilização popular e pressão ao
governo distrital de Moatize para que a Vale passasse a ser responsável por
um abastecimento precário e insuciente de água potável para essas famí-
lias. Além disso, as pessoas costumavam usar infra-estruturas como escola
da comunidade vizinha Mithethe. Com o reassentamento que levou a ex-
tinção de Mithethe, o local mais próximo passou a ser a Vila de Moatize
que ca a aproximadamente 20 quilômetros de distância. Nessas comuni-
dades também sente-se uma presença ativa da companhia no dia-a-dia da
população, mas expressa por outros meios: severos impactos ambientais e
formas diversas de controle.
Se pouco fala-se sobre a conitualidade socioambiental gera-
da pelo modelo de crescimento que tem os mega projetos como pila-
res centrais para a promoção do desenvolvimento no país, denunciado
por investigadores independentes e organizações como a Human Rights
Watch, menos ainda se fala sobre essas comunidades não reassentadas.
Estas são vitimas de formas de violência cotidiana e estrutural de um
modelo de desenvolvimento que deteriorou ao invés de melhorar a sua
qualidade de vida.
5 – consiDerações finais
Partindo de um amplo espectro do entendimento da paz, ou seja
da ideia de que quando falamos em paz falamos também em desenvol-
vimento econômico e justiça social, a proposta deste texto foi discutir a
economia política do contexto pós-conito civil em Moçambique. O país
foi palco de um processo de desenvolvimento que não trouxe aumento do
bem-estar para a maior parte de sua população. Ao contrário dos efeitos
esperados, a vida de muitas pessoas piorou e, de maneira geral, a relação es-
tado-cidadão não mudou substancialmente desde a paz mesmo com todas
as formas de intervenção que aconteceram no país. Moçambique continua
sendo um estado paternalista e altamente centralizado em que ao mesmo
448
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
tempo que o governo é visto enquanto pai da população, há um envolvi-
mento seletivo e arbitrário em relação a promoção de políticas sociais.
Há uma ideia bastante difundida de que seria a fraqueza institu-
cional de Moçambique e a pouca capacidade regulatória, pra alguns inclu-
ída no conceito de estado falido, que teria dado lugar pra conitualidade
socioambiental em torno da exploração da Vale, além de mais poder para
corporações como a Vale dentro do país. O argumento da fraqueza ins-
titucional é também um dos fundamentos básicos para legitimar as mais
diversas intervenções que aconteceram no país e em outros países africanos
a partir do discurso de que estes necessitavam de ajuda e aconselhamento
técnico dos países desenvolvidos. Não obstante, o governo moçambicano
tem exemplos de bolsões de eciência como na área de administração da
renda proveniente da exploração de recursos cuja formação é bastante sele-
tiva (MACUANE; BUUR; MONJANE, 2017) e não inclui o campo das
políticas sociais para a população.
A conitualidade está presente na sociedade moçambicana em
conexão direta com a estratégia de economia política adotada pelo país de
atração de investimento estrangeiro direto, impulsionada pelas instituições
nanceiras internacionais e, de maneira mais ampla, pelo processo de cons-
trução da paz. Estes investimentos foram usados pela elite política e econô-
mica, altamente sobrepostas como discutido aqui, para atingir ganhos de
curto prazo ao invés de objetivos inclusivos e de longo prazo. Ao mesmo
tempo, corporações como a Vale, que representam o capital internacio-
nal no qual estas elites estão ancoradas, agem de maneira desrespeitosa e
violam sistematicamente os direitos humanos no país. De maneira geral,
estes conitos escancaram os paradoxos de Moçambique contemporâneo e
alguns dos efeitos problemáticos das reformas econômicas e de construção
do estado no âmbito da construção da paz. Estes paradoxos são indícios
dos desaos das análises e da complexidade que temos a nossa frente quan-
do o assunto é paz e Relações Internacionais.
Resta perguntar: até quando os moçambicanos deverão ser resi-
lientes e manter a esperança?
449
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
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452
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
Acrônimos:
Consult = consultoria
Moz = Moçambique
Pop = população atingida
Sociv = sociedade civil
Entrevistas:
Cmn-Moz-1: Representante da Vale na área social nacional, Maputo, 28 de junho de
2016
Cmn-Moz-2: Representante da Vale na área social local, Vila de Moatize – Provincia de
Tete, 8 de julho de 2016
Consult-Moz-2: Consultor/a da Diagonal Transformação de Territórios, Maputo, 14 de
julho de 2016
Pop-Moz-1: Reassentado/a do 25 de setembro, Vila de Moatize - Provincia de Tete, 7 de
julho de 2016
Pop-Moz-3: Reassentado/a, Reassentamento Cateme, Provincia de Tete, 6 de julho de
2016
Pop-Moz-10: Membro da comunidade de Ntchenga, Provincia de Tete, 7 de julho de
2016
Pop-Moz-11: Representante dos oleiros, Provincia de Tete, 6 de julho de 2016
Sociv-Moz-1: Representante da ONG Justiça Ambiental, Maputo, 13 de julho de 2016
S  A
455
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
ana cristina Braga martes
Professora da Fundação Getúlio Vargas – SP desde 2000. Doutora em Ci-
ência Política pela Universidade de São Paulo (USP) tendo feito parte do
seu doutorado noMassachusetts Institute of Technology (MIT). Foi pesqui-
sadora visitante naBoston University (2002) e fez pós-doutorado no Kings
College-Londres. Foi pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Cientíco. Tem pesquisas na área de Sociologia, com ênfase em Mi-
grações Internacionais, Sociologia Econômica, Mobilização e Participação
Social. (ana.cristina.braga.martes@gmail.com)
ana maura tomesani
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2002),
com mestrado em Ciência Política pela mesma Universidade (2005). É
atualmente doutoranda no Instituto de Relações Internacionais da Univer-
sidade de São Paulo (IRI–USP), tendo cursado disciplinas na Université
Laval (Canadá) e estágio de pesquisa na Université de Montreal (Canadá).
Foi participante da Cátedra José Bonifácio 2014 do Centro Ibero-Ameri-
cano da USP (CIBA), é organizadora e parte da Rede de Pesquisa em Paz,
Conitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS), integrante do Lepif
(Laboratório de Estudos e Pesquisas Internacionais e de Fronteira) e parti-
cipante do grupo de estudos Mercados Ilícitos Transnacionais e Coopera-
ção Policial, credenciado no CNPq. (anamaura@gmail.com)
augusto zanetti
Professor de Relações Internacionais da UNESP – Campus de Franca/SP
e da FMU. Doutor em História pela UNICAMP e mestre em História
Social pela USP. Cursou disciplinas econômicas e sociais na Universitá
Comerciale Luigi Boccone (Itália). Suas pesquisas enfocam organizações do
trabalho que abrangem pequenas e médias empresas de gestão familiar no
Brasil, no nordeste da Itália e no âmbito do Mercosul. Estuda também as
relações comerciais internacionais analisando o contexto e a atuação da
OMC. (augustozanetti@ig.com.br)
456
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
eDuarDo Heleno De jesus santos
Professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacio-
nais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF). Doutor em Ciência Política pela UFF, tem pesquisas sobre
forças armadas e sociedade, história do jornalismo, ditadura militar, polí-
ticas públicas de defesa, relações internacionais e integração sul-america-
na. Membro da Rede de Segurança e Defesa da América Latina (Resdal)
e do Núcleo de Estudos Estratégicos Avançados do Instituto de Estudos
Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (NEA/INEST–UFF).
(eduheleno@gmail.com)
floriano Peixoto vieira neto
Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras e da Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército, e Assessor militar Brasileiro jun-
to a Academia Militar de West Point – EUA. No âmbito das operações
de paz foi ocial de operações do primeiro contingente brasileiro eForce
Commanderdo contingente militar da MINUSTAH no Haiti. Foi mem-
bro do Painel Independente de Alto Nível sobre Operações de Paz, convo-
cado pelo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon,em 2014. (fphaiti@
hotmail.com)
freDerico carlos De sá costa
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1996), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2002) e doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitá-
rio de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro – IUPERJ (2008). Professor
Adjunto da Universidade Federal Fluminense, na cadeira de Teoria Política
dos Estudos Estratégicos Tem experiência na área de Ciência Política, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: relação civil-militar, soberania,
exceção. (fcarlos@id.u.br)
457
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
frieDricH maier
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho – UNESP (Faculdade de Filosoa e Ciências –
campus de Marília) e mestrando em Ciências Sociais – Linha Relações
Internacionais e Desenvolvimento (UNESP/FFC). Realizou atividades de
complementação de estudos em período de intercâmbio na Universidade
de Santiago de Compostela (USC), com foco em Sociologia e Ciência
Política. Atualmente tem foco de pesquisa em questões que envolvem ci-
berespaço, cibersegurança, pensamento gramsciano e poder. Participa do
Grupo de Pesquisa Marxismo, Estado, Política e Relações Internacionais
e do Grupo de Estudos em Teoria de Relações Internacionais, ambos se-
diados no Campus de Marília da Unesp. Bolsista de Iniciação Cientíca
(IC) da Fapesp com vigência de 01/10/2016 a 30/09/2016. (fmaier250@
gmail.com)
Hermes moreira júnior
Professor Adjunto do Curso de Relações Internacionais da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador da área de Relações
Internacionais do CEDEC. Doutor em Relações Internacionais pelo Pro-
grama de Pós-graduação San Tiago Dantas – UNESP/PUC/UNICAMP.
Desenvolve estudos nas áreas de Economia Política Internacional, Desen-
volvimento Econômico e Política Externa. Ocupou o cargo de Pró-Reitor
de Assuntos Comunitários e Estudantis da UFGD na gestão 2011–2015.
(hermes.moreira.jr@gmail.com)
isaBella alves lamas
Bacharel em Relações Internacionais pela PUC–SP e pós-graduada em
Economia Social pela Faculdade de Economia da Universidade de Coim-
bra. Doutoranda em Relações Internacionais no programa Política Inter-
nacional e Resolução de Conitos do Centro de Estudos Sociais e da Fa-
culdade de Economia da Universidade de Coimbra. Bolsista da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia de Portugal. Suas investigações centram-se
nas áreas de Estudos para a Paz, continente africano, corporações multina-
cionais e exploração de recursos naturais. (isaalamas@gmail.com)
458
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
josé estanislau Do amaral souza neto
Graduado em Administração de Empresas FGV. Entrou no Instituto Rio
Branco em 1982, foi professor de História das Relações Diplomáticas no
Brasil no Instituto Rio Branco e na FAAP. Ocupou cargos na Secretaria de
Estado de Relações Exteriores e em outras agências governamentais, entre
as quais adjunto da Assessoria Diplomática da Presidência da República e
assessor do Ministro da Fazenda. No exterior, foi embaixador na Tunísia e
encarregado de negócios em Damasco. Serviu na Delegação Permanente
do Brasil em Genebra e em algumas embaixadas. E assumiu a Direção-Ge-
ral do Instituto Rio Branco em 2016. (jose.estanislau@itamaraty.gov.br)
juan martín loDoño zuluaga
Graduando em Ciência Política e Economia, bem como membro do gru-
po de Análises Político Internacional e da Sociedade de Debate da Univer-
sidad del Rosario, Bogotá, Colombia. (juanma.londono@urosario.edu.co)
kai enno leHmann
Professor de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (USP).
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Liverpool – Rei-
no Unido com pós-doutorado no German Institute of Global and Area Stu-
dies (GIGA) – Alemanha. Foi professor da Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro (PUC–Rio). Tem experiência na área de Ciências
Política, com ênfase em Política Internacional, atuando principalmente
nos seguintes temas: políticas externas, complexidade, união europeia e
integração regional. (klehmann@usp.br)
kelly cristiane Da silva
Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasí-
lia (UnB). Doutora em Antropologia pela UnB com pós-doutorado pela
Australian National University. É consultora ad hoc da Coordenação de
Relações Internacionais da CAPES e consultora no programa Country of
Origin Information Expert no Reino Unido. É pesquisadora associada do
459
Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
Institut de Recherche pour le Développement na França. Sócia fundadora da
Associação Ibero-Americana de Estudos do Sudeste Asiático. Trabalhou
na Unidade de Coordenação de Desenvolvimento de Capacidades do Ga-
binete do Primeiro-Ministro da República Democrática de Timor-Leste.
(kellysa@uol.com.br)
mamaDou alPHa Diallo
Professor do curso de Relações Internacionais e Integração da Universida-
de Federal de Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Estudos
Estratégicos Internacionais pela UFRGS e pesquisador associado ao Cen-
tro Brasileiro de Estudos Africanos, do Instituto Sul-Americano de Política
e Estratégia (ISAPE). Tem experiência na área de Relações Internacionais,
Estudos Estratégicos e Administração. Pesquisa temas como análise das Re-
lações Internacionais contemporâneas, processos de construção de Estados,
conitos armados na África, relações inter-africanas e integração e segurança
regional na África e no Oriente Médio. (mamadou.diallo@unila.edu.br)
miriam gomes saraiva
Professora de Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-
-graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Doutora em Ciência Política pela Universidade Complutense
de Madri e mestre em Relações Internacionais pela PUC–Rio. Bolsista de Pro-
dutividade em Pesquisa do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Integração na
América do Sul e o papel do Brasil. Foi visiting fellow no Instituto Universitário
Europeu (Florença/Itália) e fellow da Cátedra Rio Branco na Universidade de
Oxford. Desenvolve seu trabalho com ênfase nos temas de política externa e
integração regional. (miriamgsaraiva@gmail.com)
renata reis
Advogada e jornalista. Mestra em Políticas Sociais pela UENF e Doutora
em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Prossional de advocacy (especia-
460
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
lizada em questões de saúde) com mais de 13 anos de experiência em
organizações de HIV e organização humanitária internacional. Profes-
sora de lobby/advocacy no Mestrado Prossional em Análise e Gestão
de Políticas Internacionais: Resolução de Conitos e Cooperação para
o Desenvolvimento – PUC–Rio. Atualmente é Especialista em Acesso
Humanitário para a América Latina em Médicos Sem Fronteiras – Brasil.
(renata@igarape.org.br)
roBerta HolanDa mascHietto
Pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos sobre Humani-
dades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) da Universidade de
Coimbra – Portugal. Doutora em Estudos para a Paz pela Universidade
de Bradford – Reino Unido, mestre e bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília (UnB). Realizou Pós-graduação em Métodos
de Pesquisa em Ciências Sociais na Universidade de Bradford – Reino Uni-
do. Pesquisa processos de construção da paz, a promoção de empodera-
mento e apropriação local dentro destes processos, bem como seus efeitos
de longo prazo no cotidiano. (rhmaschietto@gmail.com)
susana i. Q. Paulino Dos Passos De Deus
Graduada em Relações Internacionais e pós-graduada em Estudos Euro-
peus possui também Mestrado em Desenvolvimento, Diversidades Locais
e Desaos Mundiais pelo Instituto Universitário de Lisboa. Trabalhou em
diversos países assumindo funções de coordenação desde 1998. Entre os
países em que esteve baseada a trabalho estão: Angola, Brasil (Amazonas e
Rio de Janeiro), Zimbábue e Guatemala. Supervisionou também projetos
na América Central tais como Nicarágua, El Salvador, Honduras, Cuba
e Haiti. Para além de Médicos Sem Fronteiras, trabalhou em organiza-
ções humanitárias renomadas, como a Federação Internacional da Cruz
Vermelha, Médicos do Mundo e Oxfam. Atualmente é Diretora Geral de
Médicos Sem Fronteiras – Brasil.
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Os Desafios da Política Externa e Segurança no século XXI
tHaiane calDas menDonça
Mestre em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos da
Universidade Federal Fluminense (2017). Membro do projeto de pesquisa
Narcotráco, Militarização e o Entorno Estratégico Nacional: lições para o
Brasil&quot; nanciado pelo Ministério da Defesa (Intituto Pandiá Caló-
geras) e pelo CNPq. Membro do Laboratório de Política Externa Brasileira
(LEPIN) da UFF. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade
Federal Fluminense (2014). Tem experiência na área de Relações Internacio-
nais, Segurança, Pacicação e Contrainsurgência. (thaiane.cm@gmail.com)
tHayná gava Borges
Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Santos (2016).
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, Traba-
lhista e Tributário. Mestranda em Direito Internacional pela Universidade
Católica de Santos. É membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos
e Vulnerabilidades (Unisantos). Desenvolve pesquisa na área de Direitos
Humanos, com ênfase em questões de gênero. (gavathayna@gmail.com)
tHéo lovizio De araujo
Possui graduação em Administração Pública pela Fundação Getulio Var-
gas/SP e e é mestre em gestão e políticas públicas pela FGV. Atualmente é
servidor público do Governo do Estado de São Paulo, ocupante do cargo
de Especialista em Políticas Públicas. É também Pesquisador do Centro de
Estudos em Administração Pública e Governo CEAPG/FGV, onde estuda
a participação e a mobilização social. (lovizio@gmail.com)
vivien fialHo Da silva isHaQ
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é pes-
quisadora e especialista de nível superior da Coordenação Regional do Ar-
quivo Nacional no Distrito Federal. Ocupou o cargo de Coordenadora Re-
gional do Arquivo Nacional. Em 2012 ingressou como assessora e depois
assumiu a função de gerente-executiva do Relatório da Comissão Nacional
462
Sérgio Luiz Cruz Aguilar e Isabela Zorat Alonso (Orgs.)
da Verdade. Atuou como Assessora Técnica e Coordenadora Substituta da
Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, super-
visionando as atividades do Núcleo de Acervos do Regime Militar. (vivie-
nishaq@gmail.com)
vicente torrijos rivera
Profesor Emérito de Ciencia Política e Relações Internacionais na Univer-
sidad del Rosario, Bogotá, Colômbia. É analista político e periodista, fez
mestrado em Estudos Políticos, pós-graduação em Altos Estudos Inter-
nacionais, doutorado em Relaciones Internacionales e pós-doutorado em
Estratégia e Defesa. (vicente.torrijos@urosario.com.co)
Catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
Normalização
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Elizabete Cristina de Souza de Aguiar Monteiro
CRB - 8/7963
Capa e diagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção gráca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
Assessoria Técnica
Maria Rosangela de Oliveira
CRB - 8/4073
Renato Geraldi
Ocina Universitária
Laboratório Editorial
labeditorial@marilia.unesp.br
2018
Impressão e acabamento
Gráca e Editora Shinohara
Marília, SP
Formato
16X23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento
Grampeado e colado
Tiragem
150
soBre o livro