Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
Organizadores
Gramsci
e seus contemporâneos
CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Gramsci e seus
contemporâneos
R D F  P
S A
(O)
Gramsci e seus
contemporâneos
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Diretor:
Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor:
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Ana Maria Portich
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Giovanni Antonio Pinto Alves
Marcelo Fernandes de Oliveira
Maria Rosangela de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília
G747 Gramsci e seus contemporâneos / Rodrigo Duarte Fernandes dos
Passos, Sabrina Areco (organizadores). – Marília : Ocina Uni-
versitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2016.
240 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-85-7983-880-4 (Impresso)
ISBN 978-85-7983-881-1 (Digital)
1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Comunismo. 3. Revoluções
e socialismo. 4. Sociologia política. 5. Trabalho. I. Passos, Rodrigo
Duarte Fernandes dos. II. Areco, Sabrina.
CDD 335.4
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabili-
dade do(s) autor(es) e não necessariamente reetem a visão da FAPESP.
Processo FAPESP Nº. 2017/07069 7
DOI https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-881-1
À memória de Edmundo Fernandes Dias e
Carlos Nelson Coutinho
Sumário
Prefácio
Alvaro Bianchi ................................................................................ 9
Apresentação
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Sabrina Miranda Areco .......... 15
Benedetto Croce
Fabio Frosini ................................................................................... 21
William James
Giovanni Semeraro .......................................................................... 47
Sigmund Freud
Livio Boni ....................................................................................... 65
Achille Loria
Gianfranco Ragona .......................................................................... 91
Max Weber
Michele Filippini ............................................................................. 115
Albert Mathiez
Sabrina Areco .................................................................................. 145
Os socialistas italianos
Daniela Mussi ................................................................................. 165
Robert Michels
Renato César Ferreira Fernandes ....................................................... 191
Rudolf Kjellen
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Erika Laurinda Amusquivar ... 213
Prefácio
Alvaro Bianchi
1
Há dez anos teve inicio na Universidade Estadual de Campinas
um seminário sobre os Quaderni del carcere, de Antonio Gramsci. O
estudo do problema da hegemonia na sociedade brasileira havia me
conduzido à obra de Antonio Gramsci, a qual estudei estimulado pelo
mestre e amigo Edmundo Fernandes Dias. Considerava que essa obra
tinha um enorme potencial analítico e que poderia ser uma ferramenta
importante para compreender a atualidade política. Mas as leituras
predominantes me incomodavam e avaliava que elas tiravam muito da
força do texto. Organizar um seminário de discussão era, assim, uma
tentativa de aprofundar os estudos, mas também de reorientar os estudos
gramscianos.
Coordenei, assim, o seminário, o qual reunia jovens
pesquisadoras e pesquisadores, em sua maioria estudantes de graduação
ou pós-graduação. O plano de estudos era fortemente inspirado na
leitura genético-diacrônica, sugerida por Giorgio Baratta (2004), e pelas
investigações lológicas promovidas no âmbito da International Gramsci
Society-Itália, em particular por Fabio Frosini (2003). Tais leituras e
investigaçõe pressupunham assumir como ponto de partida o caráter
fragmentário e incompleto da reexão gramsciana. Esse pressuposto era
um potente antídoto contra as leituras fechadas e dogmáticas, as quais
1
Professor Livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e coordenador cientíco da International Gramsci Societey-Brasil.
https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-881-1.p9-14
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)
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procuravam restabelecer a verdade do texto, uma verdade frequentemente
denida a priori em alguma instância externa a ele próprio.
Assumir o caráter fragmentário e incompleto dos Quaderni
implicava em procurar reestabelecer o ritmo do pensamento de Antonio
Gramsci no próprio processo de produção conceitual. Tínhamos em
mãos algumas ferramentas que permitiam procedermos dessa maneira:
acompanhávamos avidamente as pesquisas mais recentes que estavam
ganhando corpo na Itália; possuíamos a edição crítica dos Quaderni,
organizada por Valentino Gerratana (GRAMSCI, 1977), a edição mexicana
da editora Era (GRAMSCI, 1981ss) e a nova edição brasileira, organizada
por Carlos Nelson Coutinho (GRAMSCI, 1999ss); conhecíamos a
datação de seus parágrafos levada a cabo por Gianni Francioni (1984);
sempre que tínhamos dúvidas podíamos recorrer a Edmundo Fernandes
Dias e também contamos com a enorme generosidade de Carlos Nelson
Coutinho, o qual embora discordasse em vários pontos de nossa leitura,
se dispôs a colaborar conosco. Rapidamente estabelecemos uma rede de
relações nacionais e internacionais que permitiu um intenso intercâmbio
com outros pesquisadores.
O plano de estudos era bastante simples. Líamos os cadernos em
sua completude seguindo uma ordem bastante óbvia. Começamos pela
losoa nos cadernos 10 e 11, passamos à política no caderno 13 e 19 e
nalizamos com a questão dos intelectuais no caderno 12 e do americanismo
e fordismo no 22. Para cada caderno havia uma apresentação e um texto
introdutório elaborado por um dos participantes, o qual sumariamente
indicava os principais temas. A contextualização do caderno estudado no
plano geral de estudos de Gramsci era feita com base em Baratta e Frosini e
sempre que considerávamos necessário procurávamos comparar a primeira
com a segunda versão das notas de Gramsci. As dúvidas eram sempre
muitas, a discussão intensa e sempre muito produtiva.
Essa experiência extremamente rica de estudo coletivo revelou
rapidamente as diculdades impostas pelo método de investigação que
nos guiava. Ao longo dos Quaderni, Gramsci construía seus argumentos
de maneira dialógica, enfrentando as questões postas pela política e pela
cultura italiana da época. Nas páginas que líamos atentamente saltavam
nomes estranhos à cultura brasileira. Benedetto Croce era o primeiro deles;
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Gramsci e seus contemporâneos
mas havia outros, como Antonio Labriola, do qual conhecíamos umas
poucas linhas; Giovanni Gentile, que só sabíamos ter promovido uma
reforma educacional durante o regime de Mussolini; e ainda um grande
número de autores sobre os quais algumas vezes sequer tínhamos ouvido
falar.
Assim, no segundo ano de nossos estudos, nos dedicamos
ao pensamento daqueles autores com os quais Gramsci dialogava, ou,
ao menos, aqueles que julgávamos ser os mais importantes. De Croce
lemos Materialismo storico ed economia marxistica (1927 [1900]), Etica e
politica (1994 [1931]) e Cultura e vita morale (1993 [1914]); de Antonio
Labriola os Saggi sul materialismo storico (2000); de Sorel as Réexions sur la
violence (1981 [1908]); além de excertos de autores como Vilfredo Pareto,
Gaetano Mosca, Achille Loria, Vincenzo Cuoco e outros. Foi a partir
desses seminários sobre o pensamento de Antonio Gramsci e suas fontes
que escrevi O laboratório de Gramsci (2008), um livro no qual procurava
assentar as bases para uma nova leitura dos Quaderni del cercere no Brasil,
na qual essa perspectiva que hoje prero chamar de histórico-lológica
servia como guia metodológico.
Mas o efeito mais importante desses estudos, creio, foi o
desenvolvimento de importantes pesquisas sobre as fontes do pensamento
gramsciano. Daquelas leituras e discussões nasceram as investigações de
Luciana Aliaga (2011), sobre Vilfredo Pareto; de Leandro de Oliveira
Galastri (2015), a respeito de Georges Sorel; de Renato César Ferreira
Fernandes (2014), que estudou Robert Michels; de Daniela Mussi (2014)
que se debruçou sobre a estética de Francesco De Sanctis e Benedetto
Croce; e Sabrina Areco, a propósito de Albert Mathiez e a historiograa
da Revolução Francesa. A tentativa de reconstruir o processo de produção
do pensamento de Gramsci, a atenção ao contexto histórico, o cuidado
com as fontes e a diversidade dos autores tratados foram características
importantes desses estudos, os quais contribuíram, cada um a seu modo,
com a renovação dos estudos gramscianos no Brasil.
Este livro, organizado por Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
e Sabrina Areco, foi cuidadosamente planejado como uma continuidade
daqueles estudos sobre as fontes do pensamento gramsciano. Ele reúne
ensaios de importantes especialistas brasileiros e estrangeiros sobre autores
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)
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com os quais Antonio Gramsci estabeleceu um intenso diálogo. Não
se trata nunca de encontrar o que no pensamento do sardo pertence a
outros autores. Muito menos em insistir em uma mitologia da prolépsis,
procurando a antecipação ou a origem de ideias e conceitos desenvolvidos
nos Quaderni del carcere. Trata-se apenas de reconstruir esses importantes
diálogos, procurando compreender como por meio deles novas ideias
foram produzidas. Espera-se, com isso, contribuir para o desenvolvimento
das novas gerações de pesquisadores e dar continuidade aquele programa
de pesquisa que em 2016 completou dez anos.
referênciaS bibliográficaS
ALIAGA Luciana. Vilfredo Pareto: il più leale degl i avversari. In: D’ORSI,
Angelo. (Org.). Il nostro Gramsci: Antonio Gramsci a colloquio con i
protagonisti della storia d’Italia. Roma: Viella, 2011, p. 200-204.
ARECO, Sabrina. Antonio Gramsci e Albert Mathiez: jacobinos e jacobinismo
nos anos de guerra. Outubro, v. 24, p. 37-60, 2015.
BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio
Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
BIANCHI, Alvaro.O laboratório de Gramsci:losoa, historia e politica. São
Paulo, SP: Alameda, 2008.
CROCE, Benedetto. Cultura e vita morale: intermezzi polemici. Napoli:
Bibliopolis, 1993 [1914].
CROCE, Benedetto. Etica e politica: a cura de Giuseppe Galasso. Milano:
Adelphi, 1994 [1931].
CROCE, Benedetto. Materialismo storico ed economia marxistica. Bari: Laterza,
1927 [1908].
FERNANDES, Renato César Ferreira. O partido revolucionário e sua
degeneração: a crítica de Gramsci a Michels. Outubro, v. 21, p. 191-217, 2014.
FRANCIONI, Gianni. L’ocina gramsciana : ipotesi sulla struttura dei
“Quaderni del carcere”. Napoli: Bibliopolis, 1984.
FROSINI, Fabio. Gramsci e la losoa: saggio sui Quaderni del cárcere. Roma:
Carocci, 2003.
GALASTRI, Leandro de Oliveira. Gramsci, marxismo e revisionismo. Campinas:
Autores Associados, 2015.

Gramsci e seus contemporâneos
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999ss.
GRAMSCI, Antonio. Cuadernos de la cárcel. México: Era, 1981ss.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: edizione a cura di Valentino
Gerratana. Torino: Enaudi, 1977.
LABRIOLA, Antonio. Saggi sul materialismo storico: introduzioni e cura di
Antonio A. Santucci. Roma: Riuniti, 2000.
MUSSI, Daniela. Política e literatura: Antonio Gramsci e a crítica italiana. São
Paulo: Alameda, 2014.
SOREL, Georges.Reexions sur la violence.Paris: Slatkine, 1981 [1908]

aPreSentação
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Sabrina Areco
Pode-se, portanto, dizer que um personagem é “nacional” quando é
contemporâneo a um nível mundial (ou europeu) determinado de cultura
e alcançou (é claro) este nível. (GRAMSCI, 1975, Q14, §7, p. 1660)
O alcance das interlocuções e elaborações gramscianas é
inestimável em face do caráter assistemático e incompleto de sua obra.
Tais características abrem um enorme potencial de discussão e elaboração
teórico-prática ao considerar-se o nexo de seus contemporâneos do
período de escrita de sua obra e suas interpretações posteriores, também
contemporâneas.
Esta coletânea reúne artigos que tratam do pensamento de
A. Gramsci considerando suas interações com a produção intelectual
e o ambiente político que lhe eram contemporâneos. Nos textos ora
apresentados, o tempo histórico de Gramsci - imperiosamente marcado
pela guerra, imperialismo, ascensão dos nacionalismos e do fascismo, a
experiência dos bolcheviques e de criação dos partidos comunistas - ganha
materialidade nos diálogos que o marxista estabeleceu com intelectuais
que pertenciam, com maior ou menor exatidão, à sua geração e que
produziram nas primeiras décadas do século XX. Os artigos aqui reunidos
tratam da produção gramsciana acentuando seu esforço de dialogar com as
questões de seu presente e as perspectivas abertas para o futuro, discutindo
as respostas que eram então elaboradas.
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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)
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O debate em torno do marxismo e dos dilemas do socialismo
italiano de Gramsci com Benedetto Croce é o tema do artigo de Fabio
Frosini que abre esta coletânea. Frosini discute as mudanças na forma de
apropriação, por parte de Gramsci, da losoa do espírito croceano. Esse
movimento teórico e político signicaria a superação de uma condição
subordinada, na qual o jovem Gramsci postulava a possibilidade de uma
combinação do idealismo croceano e a necessária renovação profunda do
socialismo italiano, para uma tradução daquela losoa no âmbito de sua
teoria política. A tradução é entendida como um tipo de assimilação, em
que o elemento traduzido é assimilado à própria perspectiva e portanto,
como arma Frosini, «traduzir quer dizer instituir uma hegemonia».
Se Croce era o adversário que representava a mais elaborada
cultura liberal da Itália, a produção do historiador Achille Loria teve uma
apreciação bastante negativa por parte de Gramsci. Loria colocava-se, em
determinada fase de sua trajetória, como o intérprete e continuador por
excelência do pensamento de Marx na Itália. Gianfranco Ragona mostra
em seu texto como a crítica de Gramsci a Loria parte de uma recusa ao
determinismo técnico presente na leitura que Loria fez do pensamento de
K. Marx. Essa crítica é formulada desde os escritos do período anterior à
prisão. Mais tarde, ele elabora uma categoria - o lorianismo. A categoria
tipica a produção intelectual não-sistemática, tratada por Gramsci como
um fenômeno não apenas italiano, mas internacional, e que teria como
origem a escassa organização dos intelectuais e fragilidade das forças
sociais, condições essa que geram um terreno pouco propício à crítica e
amadurecimento cultural.
O artigo que trata de Willian James, escrito por Giovanni
Semeraro, conduz-nos à análise feita por Gramsci do pragmatismo
americano, reputada como uma das frentes téoricas de batalha mais
avançadas para a losoa da práxis. Semeraro aponta como, para Gramsci,
o pragmatismo é tratado tanto como uma losoa intimamente conectada
com a modernidade e industrialismo dos EUA, mas também pode ser
considerada um desenvolvimento de correntes de origens europeias,
entre elas o próprio marxismo. Daí parece derivar a possibilidade de certa
inuência de James em Gramsci, que para Semeraro residiria especialmente
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Gramsci e seus contemporâneos
na forma como ambos pensam o processo de adaptação das subjetividades
às novas condições de vida impostas pela modernidade capitalista.
A atenção de Gramsci à novidade imposta pela organização
industrial do trabalho e da vida, capaz de criar um padrão antropológico
novo, é o tema que aproxima Gramsci do sociólogo alemão Max Weber.
Michele Filippini discute como a análise da psicofísica do trabalho industrial,
pouco conhecido estudo de Weber, encontra anidades com a análise do
americanismo e fordismo feita pelo italiano. A racionalização do trabalho
industrial é tratada, por ambos, como vinculada à racionalização da vida,
portanto à constituição de um novo homem adaptado à necessidade da
fábrica capitalista. Existiria ainda, para Filippini, uma inuência de Weber
sobre Gramsci no que diz respeito à análise da burocracia. Os funcionários
aparecem então como fenômeno típico da racionalização burocrática, o
que permite ao italiano a avançar na elaboração de uma «sociologia do
político».
Livio Boni nos apresenta a leitura de Gramsci sobre a psicanálise
de Sigmund Freud. Leitura indireta, baseada em comentadores, e mediada
por um eixo «vívido e afetivo»: Boni encontrou nas cartas de Gramsci a sua
companheira, Giulia Shucht, um verdadeiro diálogo sobre a psicanálise
e seus alcances. Ela havia se submetido a um tratamento psicanalítico na
URSS nos anos de 1930, onde essa corrente passava a encontrar oposição.
Para o autor, a análise de Freud feita por Gramsci encontra originalidade
no panorama intelectual do período entreguerras, distinguindo-se das
críticas de certas correntes, como a leitura marxista ortodoxa difundida
na III Internacional e que considerava «coincidentes a alienação sexual
e a alienação econômico-social». Nas Cartas, e também nos Cadernos,
Boni mostra como é sobre os efeitos e inuências da psicanálise, mais do
que em uma análise interna da disciplina, que se concentra a atenção do
marxista.
É no âmbito dos debates pós-1917 que se pode também ler a
contribuição de Sabrina Areco e seu artigo sobre o historiador francês Albert
Mathiez. A autora discute como a leitura de Gramsci sobre Mathiez situa-
se em uma disputa pelo passado (a Revolução francesa) e perpassa pelas
interlocuções entre duas culturas (a francesa e a italiana). O historiador
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)
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aparece então como uma inuência fundamental para a superação do anti-
jacobinismo de juventude de Gramsci.
O artigo de Daniela Mussi trata dos debates entre os socialistas
italianos no período que antecede tal inexão acerca do jacobinismo. Ela
nos mostra como a reexão sobre a cultura passava a assumir uma posição
de relevância entre os socialistas, no momento em que as disputas entre as
frações internas se tencionavam entre a esquerda maximalista e o reformismo
atávico. Gramsci aproxima-se dos culturalistas em suas intervenções entre
os anos de 1914-1916, tendo como referências fundamentais Angelo Tasca
e Gaetano Salvemini.
A questão da tradutibilidade como recurso teórico e metodológico
em Gramsci aparece também no artigo de Rodrigo Passos e Erika
Amusquivar, que aborda a leitura elaborada no cárcere acerca da obra
de Rudolf Kjellen. Pouco conhecido no Brasil, assim como nos meios
anglo-saxônicos, os autores discutem como o pioneiro da geopolítica como
campo disciplinar, cujas formulações caracterizam-se pelo determinismo
geográco e a ideia de potência germânica, foi traduzido na losoa da
práxis. A dimensão geográca e a geopolítica são assimiladas em uma
perspectiva não positivista e as relações entre os Estados são tratadas como
um nível das relações sociais e de forças, na qual o nacional e o internacional
completam-se e se determinam mutuamente.
Finalmente, mas não menos importante, o artigo de Renato
César Ferreira Fernandes trata de Robert Michels e a crítica de Gramsci
a sua teoria dos partidos. Fernandes chama atenção a um elemento pouco
explorado no pensamento de Michels: o papel do aspecto organizacional
no processo de oligarquização dos partidos. Fernandes mostra como em
Gramsci a ideia de transformismo ajuda a tratar de forma não essencializada,
tal como em Michels, a distinção entre dirigentes e dirigidos. E é através
da análise das relações entre partido e classe e dos diferentes estratos do
partido entre si, assim como a questão dos intelectuais, que Gramsci
encontra frestas para desaar teoricamente a lei de ferro de oligarquia.
Os temas que se sucedem neste livro demonstram a grande
curiosidade intelectual e o esforço constante de sistematização presente na
reexão de Gramsci desde os primeiros escritos. Mais tarde, ele elaborou
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Gramsci e seus contemporâneos
uma losoa coerente - a losoa da práxis - apesar de fragmentária e
inconclusa. Para tal, ele apoiou-se na produção intelectual mais proeminente
de seu tempo, não por meio de uma assimilação subordinada e sim através
da tradução de categorias à losoa da práxis. Esse procedimento de
tradução é uma das chaves às quais os autores recorreram para tratar da
relação de Gramsci com seus contemporâneos.
Ao evidenciar o aspecto dialógico da reexão gramsciana, este
livro pretende contribuir com a difusão de um pensamento coerente e
aberto a diferentes fontes e debates e que, mesmo em sua fase de isolamento
carcerário, foi fortemente conectado ao seu tempo coevo. Para Gramsci,
o presente corresponde a um amalgamado de passado que insistia em
resistir com um conjunto de possibilidades indenidas de surgimento
do novo. O contemporâneo tratado como um agregado compósito de
diferentes tempos históricos. É esse aspecto pouco homogêneo do presente
de Gramsci que também pretendemos explorar neste livro. Acreditamos
que esta coletânea pode contriubir para elucidar um pouco das motivações
e fontes de elaboração do pensamento gramsciano e sua inesgotável
contemporaneidade. Boa leitura!
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benedetto croce
Fabio Frosini
a comPlexa PerSonalidade de benedetto croce
Em uma carta da prisão à cunhada Tatiana Schucht, falando de
Umberto Cosmo seu professor de literatura italiana na Università di Torino,
Gramsci resume assim a corrente cultural na qual militava então:
Quando era aluno de Cosmo não estava de acordo com ele em muitas
coisas, naturalmente, se bem então não tivesse precisado minha
posição e, à parte o afeto que me ligava a ele. Mas me parecia que
tanto eu, como Cosmo e muitos outros intelectuais naquele tempo
(pode se dizer nos primeiros 15 anos do século), nos encontrávamos
em um terreno comum que era este: participávamos no todo ou em
parte do movimento de reforma moral e intelectual promovido em
Itália por Benedetto Croce, cujo primeiro ponto era este, que o homem
moderno pode e deve viver sem uma religião revelada, ou positiva ou
mitológica ou como se quiser dizer (GRAMSCI, 1996, p. 446-447).
Em que sentido é posta essa consideração? Acima de tudo ela
não delimita uma verdadeira ortodoxia losóca, mas um amplo “terreno
comum”, bastante elástico para permitir aos intelectuais, os quais estavam
em desacordo sobre muitas coisas, tomar parte de um “movimento de
reforma moral e intelectual promovido na Itália por Benedetto Croce” (e
de fazê-lo “em todo ou em parte”). Naquele “terreno comum” é central a
referencia à religião, isto é, à inspiração ética do movimento patrocinado
por Croce. Este era, a saber – ou pelo menos foi compreendido assim por
Gramsci e muitos outros como ele –, um discurso voltado a estimular e
https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-881-1.p21-46
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)
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sustentar uma forma de vida, uma civilização: aquela moderna, oposta à
clerical-medieval, fundada respectivamente sobre a imanência e a religião
e sobre a transcendência e a revelação. A “reforma” promovida por Croce
é para Gramsci, em suma, uma armação dos valores da modernidade,
acima de tudo, do fato de que a cultura moderna “basta a si própria”,
está em condições de fundar autonomamente uma ética e um abrangente
projeto de civilização.
Como é interpretada a periodização xada nos “primeiros 15
anos do século”? Na Storia d’Italia dal 1871 al 1915, publicada em 1928,
Croce xa na entrada da Itália na guerra uma distinção decisiva para a
periodização: a guerra com a explosão do irracionalismo, do imperialismo,
do nacionalismo e, por outro lado, das reivindicações ideológicas das
massas operárias e camponesas assinala o m do mundo liberal (CROCE,
1928, p. 250-257). Com a guerra tudo muda e o lósofo neoidealista
muda, por consequência sua própria atitude, passando de um inovador
que na virada do século ertou bastante – mas sempre a partir de posições
revisionistas – com o socialismo
1
a um porta-estandarte da restauração
dos valores liberais contra o comunismo e, a partir de um certo momento,
também contra o fascismo.
A aversão de Croce ao fascismo ocorre apenas em 1925, quando
no dia 1º de maio publicou o Manifesto degli intellettuali antifascisti.
Ocorre, pode se dizer, quando cou claro que Mussolini não se limitaria
a recolocar em seu lugar a burguesia ameaçada pelo avanço socialista e
comunista, mas havia transformado a própria estrutura constitucional da
Itália (de fato, a fundação do Estado “totalitário” fascista iniciou-se depois
do discurso de Mussolini à Câmara do dia 3 de janeiro de 1925).
2
Mas, no
dia 9 de julho de 1924, em plena crise Matteotti,
3
, em uma entrevista ao
Giornale d’Italia, Croce armou:
Não se podia esperar, nem querer, que o fascismo caísse de repente.
Não era um arrebatamento ou um truquezinho. O fascismo respondeu
às necessidades graves e tem feito muita coisa boa, como cada alma
1
De fato, Gramsci considera nos Quaderni a gura de Benedetto Croce fundamentalmente como um leader do
revisionismo europeu (GRAMSCI, 1975, p. 1082, 1207, 1213-1214).
2
Sobre a construção do Estado totalitário na Itália ver Aquarone (1966).
3
O deputado Giacomo Matteotti foi raptado por um bando fascista no dia 9 de junho 1925 e seu cadáver
encontrado no dia 16 de agosto. O episódio desencadeou uma severa crise parlamentar.
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Gramsci e seus contemporâneos
justa reconhece. Ele avançou com a aprovação e aplausos da nação.
Assim, por um lado, há, agora, na mente do público, o desejo de
não deixá-lo dispersar os benefícios do fascismo, e não retornar à
fraqueza e à inconclusividade que o precederam; e, por outro, há a
sensação de que os interesses criados pelo fascismo, mesmo aqueles
que não são louváveis nem benécos, são uma realidade de fato, e não
se pode dispersá-la assoprando sobre. Deve-se, portanto, dar tempo
para o desenrolar do processo de transformação. (CROCE apud DE
NAPOLI; BOLOGNINI; RATTI, 1985, p. 35).
4
Gramsci estava então na Itália, havia retornado de Viena no dia
12 de maio de 1924, eleito para a Câmara dos deputados na lista do Partito
Comunista d’Italia (PC d’I), e certamente leu essa intervenção. Como mais
tarde leu no cárcere e comentou o ensaio croceano Antistoricismo (CROCE,
1930b). Nele o lósofo napolitano promove uma dura requisitória contra
um “irracionalismo” por ele pensado como um monstro bicéfalo: futurista-
anarquista e absolutista-autoritário, hiper-historicista e anti-historicista. Croce
não dá “exemplos” e “ilustrações” destas denições, mas nos dois fenômenos,
que para ele se convertem continuamente um no outro, de modo que ao nal
hiper-historicismo e anti-historicismo são idênticos, não é difícil reconhecer
o fascismo e o comunismo, em uma medida igual e embaralhada. Do
comunismo se diz, de fato, que “com relação à vida social [...] põe seu ideal
em ordenações que suprimem a iniciativa pessoal e com isso a concorrência,
a competição, a luta”; e que é uma “imposição pelo alto do ritmo da vida
racionalista e abstrata, uma “regra que em vez de ser criada pelo homem como
seu instrumento deva ela criar o homem”. É evidente a alusão ao primeiro
plano quinquenal soviético (lançado em 1928-1929), com sua ênfase sobre o
domínio da política sobre a história (CROCE, 1930b, p. 402-403, 405-406).
Até a guerra, ou seja, até a crise irreversível do Estado liberal,
Croce representava, então, aos olhos de Gramsci, uma função de inovação
Sobre o nexo Croce-fascismo Eugenio Garin escreveu páginas denitivas: “Na medida em que Croce e outros
com ele não podiam mais aprovar uma operação que depois de 1924-1925 não seguia o plano pré-estabelecido,
falavam de um tipo de invasão bárbara que vinha perturbar o luminoso desenvolvimento da vida italiana. Mas
aqueles bárbaros não vinham de fora: eram os companheiros fraternos de ontem; apelavam a um magistério
comum; e muitas vezes diziam as mesmas coisas”. O “antifascismo de tipo observador” teve isto de particular:
ele foi “simétrico ao fascismo e interno a uma práxis política que o fascismo representava, uma degeneração
anormal, mas apenas porque ele escapou, em algum momento, ao controle de quem queria fazer dele uma
ferramenta contra as forças populares ascendentes, contra o despertar provocado pela tragédia da Primeira
Guerra Mundial.” (GARIN, 1963, p. 22-23).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

da cultura burguesa na Itália, contra o positivismo dominante na losoa
acadêmica e no pensamento socialista, evolucionista e fatalista, o qual
desembocou algumas vezes no misticismo e no abraço com o catolicismo e,
geralmente, era matriz daquele “anticlericalismo fanfarrão, que não veta[va]
depois, no campo dos fatos, o acordo com os padres e seus interesses”, em
síntese, aquela que Croce denominou a “mentalidade maçônica”.
Dentro deste quadro de garantias, regras, balanço de forças (mas
com o evidente predomínio de uma delas, a burguesia), a losoa do espírito
permitia pensar o conito mesmo que duro. Uma vez que a contradição
dialética era reduzida a forma subordinada e interna às distinções – para a
qual a luta podia dar-se entre os contrários no interior de cada uma das
formas eternas do espírito que eram por isso matrizes de história, mas não
eram sobrepostas à historicidade,
5
Croce havia preso a história ao estágio
da sociedade liberal, em cujo horizonte eram possíveis mudanças e também
lutas dramáticas – como a guerra, as mudanças de governo e até mesmo
a hipótese de armação do socialismo (BADALONI, 1975, p. 82-84) –,
mas não eram possíveis mutações que, como pretendiam os socialistas,
abolissem os Estados, isto é, “o político” tal qual Croce pretendia que
tivesse sempre existido e sempre existiria.
Vou me deter mais adiante sobre o modo no qual o jovem
Gramsci acredita poder fundir em um nexo inédito esta losoa do espírito
com o projeto de um socialismo profundamente renovado. Por enquanto
é suciente dizer que o neoidealismo italiano é por ele visto como uma
tentativa grandiosa de restituir ao homem a responsabilidade plena de sua
vida, de sua história, de colocá-lo de frente a suas responsabilidades. E a
seu ver esta posição não era enfraquecida nem por aquele tipo de horizonte
transcendental liberal que Croce lhe tinha assinalado, nem pela separação
programática entre o projeto de reforma cultural neoidealista e a prática
política. Tudo isso demonstra certa subalternidade de Gramsci à perspectiva
croceana, como se ele, pelo menos entre 1914 e 1918, não se desse contra
do fato de que o idealismo croceano, como tinha sido pensado, não podia,
estruturalmente ser combinado com a perspectiva do socialismo e que o
seu modo de fazer política consistia precisamente em separar a teoria da
5
Este é o sentido da grande operação revisionista que Croce (1913) conduz sobre a dialética de Hegel. Sobre o
signicado político desta operação ver Valentini (1966).

Gramsci e seus contemporâneos
prática, a losoa da política, e em transformar a losoa em um tipo de
atividade política mais verdadeira e mais apropriada do que a atividade
política comumente (e de modo utilitário) levada a cabo.
Política e idealiSmo: Sobre o jovem gramSci
O jovem Gramsci acredita que era suciente fazer a soma do
idealismo + política de massa para ter uma completa teoria e prática socialista
revolucionária. Certamente, mesmo no período juvenil, principalmente
depois de 1918, ou seja, na fase mais intensa do movimento dos conselhos
de fábrica, se notam uma série de mudanças e transformações internas.
Tomemos como o condutor o tema da religião católica. A
antítese é, como se há visto entre catolicismo e modernidade,
6
isto é aquela
“’losoa moderna’ [...] que desconsidera a hipótese de Deus em sua visão
do universo, aquela que apenas na história coloca sua fundamentação,
na história da qual somos as criaturas do passado e criadores do futuro.
(GRAMSCI 1980, p. 329). A redução de toda realidade à história,
compreendida como razão e imanência, portanto como coincidente com
a ação humana, com o “espírito” (GRAMSCI, 1982, p. 566-567), é o
elemento mais visível e importante que Gramsci retoma do idealismo. O
próprio socialismo, em sua globalidade, é pensado como uma extensão do
idealismo, mais do que um desenvolvimento crítico: “O socialismo crítico
repousa, graniticamente, sobre o idealismo alemão do século XVIII”
(GRAMSCI, 1980, p. 392); o “pensamento marxista” não é, senão, o
senso hegeliano da história” (GRAMSCI, 1984, p. 35).
7
Onde está, então, a diferença entre idealismo e socialismo? Ou,
de que maneira esta concepção da história pode tornar-se uma losoa
da revolução, da transformação das relações sociais? Em um primeiro
momento, para Gramsci, trata-se de “realizar” o idealismo, isto é, de
relê-lo a partir das divisões em classes da sociedade (elemento estranho ao
6
“[...] tudo aquilo que pode ser historicizado não pode ser sobrenatural, não pode ser o resíduo da revelação
divina. […] E assim é que nos sentimos inevitavelmente em antítese com o catolicismo e que nos dizemos
modernos” (GRAMSCI, 1980, p. 514).
7
Conforme também Gramsci (1980, p. 69-72). Em outro lugar fala de “hegelianismo marxista” como sinônimo
de “realismo” histórico (GRAMSCI, 1984, p. 33).
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
idealismo) (GRAMSCI, 1984, p. 183). Gramsci parece não se dar conta,
em um primeiro momento, de quão contraditória era essa pretensão de
reler o pensamento idealista à luz das divisões reais da sociedade em classes
contrapostas. Ele acredita que no momento em que a losoa do espírito
e de sua liberdade não fosse mais apenas patrimônio das classes dirigentes,
mas se tornasse “íntima convicção das classes subalternas”, se produziria
uma sublevação material e na ordem histórica (GRAMSCI, 1982, p. 498-
499, 1980, p. 477). Aqueles acontecimentos que as massas populares
privadas de iniciativa histórica agora aceitavam com resignação, como uma
coisa que não poderiam controlar, sobre a qual não poderiam inuir, como
uma “fatalidade”, apareceriam como aquilo que são: o produto de forças em
conito entre si. O acontecimento seria reabsorvido na esfera da vontade
e, portanto, da liberdade humana. É evidente que aquilo que acima de
tudo interessa a Gramsci é fazer as massas sair da passividade: uma saída
que, para ser coletiva, precisa ser primeiramente individual. Ou seja, não
se trata de criar uma vontade coletiva heterodirigida mas de fazer com que
cada indivíduo adquira consciência de si, “acima de tudo espírito, isto é,
criação histórica e não natureza” (GRAMSCI, 1980, p. 101), que se torne,
a seguir, princípio do próprio agir e como consequência disto reconduza a
própria liberdade consciente à interpretação (teórica e prática) da história
como coincidente com a vontade, como modicável pela ação coletiva,
de classe. A aparência de fatalidade na história deriva apenas do fato da
indiferença e da passividade das massas.
8
Eliminando esta, é eliminada
também aquela e, a seguir, a própria necessidade histórica. Em 1914-1918,
Gramsci considerava como uma mera construção ideológica a constante
referencia às forças produtivas, à economia como uma objetividade que
não poderia ser transformada pelos homens a seu bel prazer, ou seja,
aquilo que era o principal suporte do socialismo positivista e da Segunda
Internacional.
9
8
A indiferença opera potentemente na história. Opera passivamente, mas opera. […] A fatalidade que parece
dominar a história não é, senão, […] que a aparência ilusória desta indiferença, deste absenteísmo” (GRAMSCI,
1982, p. 13-14). É preciso substituir “a vida ao pensamento […] à inércia, à indiferença” (idem, p. 281).
9
A redução das leis cientícas a expressões das relações de forças: “Todas as leis, mesmo aquelas que parecem
mais metafísicas, mais impalpáveis, são na realidade expressão de um estado de fato, cujas responsabilidades
se poderiam sempre personicar ou melhor, se fosse possível dizer, classicar” (GRAMSCI, 1980, p. 288).
[Gramsci utiliza em italiano o neologismo inclassare, representar como classe, como contraponto de impersonare,
que signica representar como pessoa. Utilizou-se aqui a palavra classicar em seu sentido de representar em
uma classe. N. do T.].

Gramsci e seus contemporâneos
O programa teórico (e, consequentemente, político) de Gramsci
consiste, denitivamente, em dissolver os mitos da objetividade e da
necessidade histórica na medida em que favorecem a permanência do
proletariado fora da história. Seu objetivo é o de reduzir progressivamente
à vontade, à política, e com esse propósito se serve do idealismo,
aceitando-lhe a posição fundamental, segundo a qual ser e conhecer “se
identicam” (GRAMSCI, 1984, p. 348). Mas esta aceitação, mesmo
que convicta, é contudo funcional com relação ao propósito que
quer alcançar e à intuição que está em sua base. “Os revolucionários
concebem a história como criação do próprio espírito, feita por uma
série ininterrupta de diculdades que operam sobre outras forças ativas
e passivas da sociedade” (GRAMSCI, 1980, p. 11-12). Nesta passagem,
muito precoce, escrita em outubro de 1915, resulta já evidente o nexo
que há pouco mencionei: a história é reduzida a um entrelaçamento de
práticas complexas e diversicadas (ativas-passivas, etc.) atravessadas
todas pelas lutas de classe. Mas esta posição, plenamente correspondente
à intuição mais profunda e genuína do jovem intelectual socialista, é
nessa mesma passagem reduzida aos termos do idealismo (“concebem a
história como criação do próprio espírito”). No entanto, entre as duas
posições não existe uma conexão necessária. Ela pode, pelo contrário,
vincular-se sistematicamente a uma impostação completamente diferente
e colocar-se em um contexto teórico diverso e se pode armar que a
análise da realidade como uma trama de relações de forças permanece
substancialmente intacta ao longo de todo o itinerário de Gramsci, o qual
pode então ser lido como uma contínua e cansativa pesquisa do contexto
teórico adequado no qual colocá-la, para justicá-la a sua luz e impedi-la
de cair vítima de uma hegemonia adversária.
filoSofia como diSPoSitivo de tradução-aSSimilação-redução
O contexto justo para a análise da realidade em termos de
relações de força” na perspectiva dos subalternos é a losoa da práxis,
sobre a qual não por acaso Gramsci escreve autobiogracamente nos
Quaderni:
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
Em fevereiro de 1917, numa breve nota que precedia a reprodução do
escrito de Croce Religione e serenità (cf. Etica e politica, p. 23-25) na
época recentemente publicado na “Critica” escrevi que, assim como
o hegelianismo fora a premissa da losoa da práxis no século XIX,
nas origens da civilização contemporânea, da mesma forma a losoa
croceana poderia ser a premissa de uma retomada da losoa da práxis
em nossos dias, para nossas gerações. A questão era apenas acenada de
uma maneira certamente primitiva e evidentemente inadequada porque
naquele tempo o conceito de unidade de teoria e prática, de losoa e
politica não era para mim claro e eu era, sobretudo, tendencialmente
croceano. Mas agora, mesmo sem a maturidade e a capacidade
necessárias para tratar o assunto, parece-me que a posição deva ser
retomada e apresentada de maneira criticamente mais elaborada. Ou
seja: deve-se refazer para a concepção losóca de Croce a mesma
redução que os primeiros teóricos da losoa da práxis zeram para a
concepção hegeliana. (GRAMSCI, 1975, p. 1233).
Não seria possível desejar maior clareza: agora (estas linhas foram
escritas em 1932) Gramsci sabe que sua posição de 1917 era subalterna à
perspectiva croceana porque “o conceito de unidade de teoria e prática, de
losoa e politica” não era ainda “claro” e ele era “sobretudo, tendencialmente
croceano”. Não era claro: como demonstrei, aquele conceito já existia,
mas, por assim dizer, no estado prático, enquanto tentativa de pensar a
realidade como um conito permanente de forças e “série ininterrupta de
diculdades que operam” cada uma “sobre outras forças ativas e passivas
da sociedade”. Mas aquela concepção era neutralizada e despotencializada
se o vocabulário teórico permanecesse aquele do neoidealismo. Note-se,
além disso, que não por acaso, a relação com Croce é retomada de novo
nos Quaderni, sobre o tema da religião, ou seja, da ética da modernidade
como imanente e, portanto, autônoma com relação à religião revelada ou
mitológica.
A religião permanece o núcleo gerador seja da relação com Croce,
seja (agora) da necessidade de criticar-lhe suas posições (se verá mais adiante
de que modo). Mas com relação às posições juvenis, a grande e decisiva
novidade presente nos Quaderni del carcere, novidade que depende da
conquista teórica da unidade de teoria e prática, está no reconhecimento
do caráter político da losoa croceana, ou seja, de seu caráter de classe.
Dizer que todo o pensamento de Croce é um grande projeto político

Gramsci e seus contemporâneos
voltado a justicar e reforçar o poder da burguesia não signica desvalorizar
ou ignorar o conteúdo especicamente teórico, losóco; signica, pelo
contrário, valorizar aquele conteúdo à luz de um conceito de losoa e
de verdade diferente e independente, um conceito que a losoa da práxis
dene de maneira completamente diversa do idealismo croceano e de
qualquer outra “losoa tradicional”. Aquilo que Gramsci desenvolve nos
Quaderni, libertando-se da tutela croceana, é, em suma, não apenas uma
“losoa da revolução:”, mas de modo inseparável também uma teoria da
losoa e uma teoria da verdade, as quais somente tornam possível uma
crítica que não é reducionista, nem exterior, enm, nem subalterna do
croceanismo, bem como de qualquer outra losoa.
A crítica do pensamento de Croce que Gramsci deseja interpretar,
foi visto, consiste em “reduzir” a losoa do espírito da mesma maneira
que Marx e Engels “reduziram” a losoa de Hegel. O termo “redução
é, entretanto, compreendido em um sentido particular. De fato, nos
Quaderni, Gramsci o utiliza com dois signicados diferentes e opostos: no
sentido usual, segundo o qual a redução é uma simplicação inadequada
e uma mutilação interessada do objeto sobre o qual se exercita (p. ex. a
redução do materialismo histórico a um mero cânone empírico de
metodologia histórica” por Croce (GRAMSCI, 1975, p. 503) e, em um
sentido particular segundo o qual a “redução” é um sinônimo de “tradução”,
no sentido especíco que Gramsci atribui a essa expressão no contexto
da losoa da práxis. O lugar no qual a acepção especíca comparece de
maneira mais clara e abrangente é o seguinte, escrito no mesmo Quaderno
(o 10, La losoa di Bendetto Croce) do qual foi extraído o precedente:
Traducibilidade das linguagens cientícas. As notas escritas nesta rubrica
deverão ser recolhidas exatamente na rubrica geral sobre a relação da
losoa especulativa e a losoa da práxis e da própria redução a esta
como momento político que a losoa da práxis explica ‘politicamente’.
Redução a ‘política’ de todas as losoas especulativas, a momento da
vida histórico-política; a losoa da práxis concebe a realidade das
relações humanas de conhecimento como elemento de ‘hegemonia
política. (GRAMSCI, 1975, 1245).
Aqui Gramsci recorda que as notas pertencentes à rubrica
traducibilidade das linguagens cientícas” são consideradas como um caso
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
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
particular de um fato universal, que é o encontro ideológico entre losoas
ou visões de mundo. Ter desenvolvido a teoria da traducibilidade de modo
orgânico e profundo” é a característica que distingue a losoa da práxis
de qualquer outro enfoque,
10
na medida em que ela não apenas traduz,
mas teoriza até mesmo essa tradução como um fato que sempre ocorre no
momento em que duas posições entram em relação. A diferença é decisiva.
Traduzir é efetivamente uma forma de “redução”, na medida em que devendo
expressar uma perspectiva linguística nos termos de outra é destinada a ignorar
as margens de irredutibilidade (ou intraducibilidade) dos dois horizontes
linguísticos. Traduzir é, portanto, uma operação redutiva, mas precisamente,
assimilativa. Quem traduz “reduz a si” ou “assimila” à própria perspectiva
uma outra perspectiva. E dado que o caráter essencialmente pragmático da
linguagem, segundo o qual a “comunicação” é sempre também “ação” – a
tradução é um primeiro instrumento de intervenção sobre outras identidades
e, portanto, é organização de uma rede estruturada de relações de dominação
e de subordinação. Em certo sentido, traduzir quer dizer instituir uma
hegemonia, enquanto faz entrar dentro da própria perspectiva uma série de
outras perspectivas que o fazem de maneira subordinada.
A diferença introduzida pela losoa da práxis no momento em
que desenvolve, apenas ela, a teoria da traducibilidade encontra-se em que
aquela “tradução-assimilação-redução que as losoas sempre praticaram
no momento em que se reportam ao outro vem por ela reconhecida como
um “momento da vida histórico-política”. Dito de outra maneira, graças à
teoria da traducibilidade a losoa da práxis pode reconhecer, por trás do
véu especulativo, “a realidade das relações humanas de conhecimento” e de
analisar tal realidade “como elemento de ‘hegemonia’ política”. “Realidade”,
obviamente, que deve ser entendida como ecácia prática, política, como
capacidade que uma visão de mundo tem de fazer-se história, hegemonizando
dentro de sua própria perspectiva uma série de outras posições que por isso
tornam-se “subalternas”.
10
“Precisa ser resolvido o problema: se a tradutibilidade recíproca das várias linguagens losócas e cientícas
é um elemento ‘crítico‘ próprio de toda concepção de mundo ou somente próprio da losoa da práxis (de
maneira orgânica) e apenas parcialmente apropriável por outras losoas […] Parece que se possa dizer
exatamente que apenas na losoa da práxis a ‘tradução’ é orgânica e profunda, enquanto de outros pontos
de vista frequentemente é simplesmente um jogo de ‘esquematismos’ genéricos” (GRAMSCI, 1975, p. 1468).
Os “outros pontos de vista” são aqueles das teorias pragmatistas sobre a linguagem como “causa de erro” (cf.
principalmente GRAMSCI, 1975, p. 1426-1428). Infelizmente não posso me deter o quanto seria necessário
sobre a teoria gramsciana da traducibilidade das linguagens, sobre isso ver Ives e Lacorte (2010).

Gramsci e seus contemporâneos
religião e religião da liberdade
Podemos agora compreender o que Gramsci queria dizer quando
escrevia que a conquista da unidade de teoria e prática torna possível, a seus
olhos, realizar uma “redução” do pensamento de Croce análoga àquela que
Marx e Engels zeram com Hegel. É porque Gramsci sabe ter – graças ao
desenvolvimento da teoria da traducibilidade e da hegemonia e do conceito
de unidade de teoria e prática, de losoa e política – desenvolvido um
dispositivo teórico que lhe permite fazer reemergir o signicado, o valor
e a função política de uma posição como a de Croce, que ele pode propor
esta tarefa sem arriscar cair em uma relação meramente especulativa (que
terminaria com a vitória de Croce, ao menos porque deste modo a losoa
da práxis não seria mais aquilo que é, ou seja, um movimento de massa
e uma nova posição da questão da verdade). “Redução” da losoa de
Benedetto Croce quer dizer agora tradução dessa em termos histórico
políticos, ou seja, compreensão do modo especíco em que ela é constituída
como uma elaboração hegemônica na Itália do século XX.
Aqui, mais uma vez, encontramos a noção de religião. Gramsci
de fato identica na denição da “religião” como “uma concepção da
realidade e [...] uma ética correspondente”, levada a cabo na Storia
d’Europa (CROCE, [1932] 1965, p. 20), o selo de um percurso –
croceano – que tenta identicar e ao mesmo tempo ocultar o ponto em
que a losoa possa realmente, ou seja politicamente, reformular-se como
matriz de uma hegemonia. Apenas quando anuncia a nova noção de
religião, implicitamente Croce revê a distinção fundamental entre teoria
e prática, entre losoa e política, sobre a qual seu pensamento, antes de
1915, repousava. Deste modo, nota Gramsci, ele confessa não estar mais
em condições de manter distintas, sequer formalmente, ideologia e losoa.
Comentando a Storia d’Europa, Gramsci escreveu:
Parece-me que Croce não consegue, nem mesmo de seu ponto de
vista, manter a distinção entre ‘losoa’ e ‘ideologia’, entre ‘religião
e ‘superstição’, distinção essencial em seu modo de pensar e em sua
polêmica com a losoa da práxis. Acredita tratar de uma losoa e
trata de uma ideologia; acredita escrever uma história da qual tenha
sido exorcizado o elemento de classe e, ao contrário, descreve com
grande acuidade e mérito a obra-prima política através da qual uma
determinada classe consegue apresentar a fazer aceitar as condições
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
de sua existência e de seu desenvolvimento de classe como princípio
universal, como concepção de mundo, como religião, isto é, descreve
em ato o desenvolvimento de um meio prático de governo e de domínio.
O erro, de origem prática, não foi cometido, neste caso, pelos liberais
do século XIX, os quais, pelo contrário, triunfaram praticamente e
atingiram os ns a que se propuseram; o erro, de origem prática, foi
cometido pelo seu historiador Croce, que depois de ter distinguido
losoa da ideologia termina confundindo uma ideologia política com
uma concepção de mundo, demonstrando na prática que a distinção
é impossível, que não se trata de duas categorias, mas de uma mesma
categoria histórica e que a distinção é apenas de grau. (GRAMSCI,
1975, p. 1231).
Com a noção de “religião” (e com a consequência da identicação
do liberalismo e “religião da liberdade” Croce traz, em suma, à evidência
plena seu pensamento de sempre, ou seja, a ideia de que fazendo losoa,
fazendo cultura, se complete uma “obra política, de política em sentido
lato” (CROCE, [1915] 1931, p. 388) e que efetivamente, é fazendo
cultura e losoa que se faz a verdadeira política (“alta política” como diz
Croce em 1925).
11
Nessa altura, a teoria das “distinções” não está mais
em condições de dar conta do modo de funcionamento do conceito de
religião”. Esta, de fato, não é uma “”, de bom grado denida por Croce
como a consequência (a “lha”) da losoa na vida prática (um tipo de
orthé dóxa que guia a ação do “não lósofo”, Croce, 1931, p. 21, 32-33,
38, 85, 156-158), nem é uma ideologia, ou seja, uma “psdeudoteoria que
não lhe serve [ao partido político] a outro que m que não o de suscitar
a aparência de ter aliada a si a Verdade, a Razão, a Filosoa, a Ciência e a
História.” (CROCE, [1925] 1967, p. 193, [1912] 1926, p. 191-198)
12
.
Em vez disso, a religião é agora diretamente uma dimensão do espírito na
11
“Por que desejei assinalar novamente e com maior exatidão a distinção entre teoria e prática, entra a losoa
da política e a política? Para recomendar modéstia aos lósofos [...]? Sim, certamente também tive esse
pensamento. Mas confesso de ter sido movido principalmente pela preocupação oposta, que é aquela de salvar
o juízo histórico das contaminações com a prática política que lhe priva a amplidão e a ausência de preconceito.
Preocupação que é, em seguida, também, a seu modo, política e alta política; se é verdade o que o velho
Aristóteles, pai da ciência política, disse sobre o contraste entre vida ativa e contemplativa: que não são práticas
apenas as operações que se voltam para os fatos, mas também muito mais e as contemplações e reexões que
têm por origem e m a si mesmas, e que educam a mente, preparando a eupraxia” (CROCE, 1915 [1931], p.
388). [Eupraxia, do grego clássico, quer dizer bom comportamento. Aristóteles emprega a palavra em sua Ética a
Nicômaco para denir o comportamento de acordo com as regras e as leis, o qual se opõe à dispraxia, à conduta
desregrada (Aristóteles, VI, 5, 1140 b 7). N. do T.].
12
Sobre essas ideias, ver Gramsci (1975, p. 888-889).

Gramsci e seus contemporâneos
qual teoria e prática, verdade e moralidade se misturam e se alimentam
entre si, é uma forma de unidade real, histórica, do teorético e do prático.
A teoria das distinções havia servido egregiamente para
delimitar o caráter político do trabalho intelectual, salvaguardando-o
do amesquinhamento “frenético” na política-paixão. Com a “religião da
liberdade” somos colocados, em vez, em um plano no qual os intelectuais
se veem destinados a uma tarefa sacerdotal, cuja diferença com relação às
outras religiões consiste precisamente em seu conteúdo e não mais em sua
forma (SARTORI, 1997, p. 169-201). A religião da liberdade enquanto
tradução ativista da losoa liberal representa, portanto, a renúncia
croceana (ainda que nunca admitida por ele) a mover-se sobre o plano da
imanência identicado com as “distinções”.
Gramsci vê nesta passagem, ao mesmo tempo, uma anação
da impostação croceana e seu enredamento: o intervencionismo mais
decidido vai unido, de fato, necessariamente, a uma maior abstração, a
ecácia prática da religião da liberdade deriva da ênfase colocada sobre o
caráter metapolítico de seu conteúdo, sobre a perfeição e universalidade
de seu ideal. Em outras palavras, a teoria dos distintos, na medida em
que havia colocado arreios e tornado inecaz o negativo, fazendo-o andar
em círculos dentro das quatro formas sempre iguais, permitia pensar a
abertura da história, as innitas combinações dos quatro momentos. Em
vez disso, a explosão do “negativo” no pós-guerra havia tornado necessário,
por um lado circunscrever e esclarecer e, por outro, alargar e confundir
o objetivo; por um lado, materializar os distintos em instâncias políticas
precisas (ou “ético-políticas”) e proceder à construção de uma hierarquia
entre eles em nome de uma instância sobreimposta à história, por outro
lado, usar aquela instância – a “religião da liberdade” – precisamente
em sua absoluta imprecisão dos conteúdos sociais e políticos, como um
potentíssimo motor para revitalizar, em escala não apenas italiana mas
europeia (e até “mundial), um processo hegemônico “burguês” colocado
em questão pela falta das margens sociais e políticas da mediação (com o
nascimento do comunismo e, mais tarde, da crise de 1929). Esse projeto era
adequadamente manejável apenas uma vez que a “burguesia” fosse negada
enquanto “classe”, esvaziada de conteúdos econômicos e naturalizada como
um modo de ser do homem moderno em geral, especicamente daquela
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
parte da humanidade moderna que, como “classe não classe” e “estrato
geral” tem particularmente “vivo o sentimento do bem público” (CROCE,
[1928] 1967, p. 282-283).
Negando que a burguesia seja uma classe, Croce tenta naturalizar
o papel de leadership exatamente no momento em que tal função é posta
em discussão mais seriamente em toda a Europa. Assim, a losoa torna-
se mais exível e capaz de aderir ao “mundo”, precisamente porque é
necessário enrijecer o desenho “prático” que é necessário estender sobre
o “mundo” para poder reconduzi-lo à ordem. Dessa maneira, a “religião
da liberdade” da Storia d’Europa assume o aspecto de uma conrmação:
conrmação do motivo político do losofar croceano e do entrelaçamento
entre a mundanização da noção de “losoa” e o efeito de neotranscendência
produzido por ela.
“...ele continua a conSiderar-Se o líder intelectual doS reviSioniStaS
Gramsci escreve no Quaderno 10:
Elaboração da teoria da história ético-política. [...] contudo o mais
signicativo da biograa cientíca de Croce é que ele continua a se
considerar líder intelectual dos revisionistas e sua elaboração ulterior
da teoria historiográca é conduzida com essa preocupação: ele quer
chegar à liquidação do materialismo histórico, mas pretende que este
desenvolvimento ocorra de modo a identicar-se com um movimento
cultural europeu. A armação, feita durante a guerra, de que a própria
guerra pode ser chamada de ‘guerra do materialismo histórico
13
e os
desenvolvimentos históricos e culturais ocorridos na Rússia de 1917 a
nossos dias, esses dois elementos levam Croce a desenvolver com maior
precisão sua teoria historiográca, a qual deveria liquidar qualquer
forma, mesmo atenuada, da losoa da práxis. (GRAMSCI, 1975, p.
1214-1215).
14
13
Cf. Croce (1928, p. 294-295) que se refere à opinião dos neutralistas (e socialistas), segundo a qual a guerra não
era “clara guerra de ideias”, mas ditada por razões “industriais e comerciais”, “um tipo de guerra do ‘materialismo
histórico’ ou do ‘irracionalismo losóco”. Cf. também uma citação de Guido de Ruggiero, “Le pensée italienne
et la guerre” na Revue de métaphysique er de morale, 1916: “Um pensador italiano – (era eu que havia dito isso
em uma conversa) – resumiu de maneira cientíca essa concepção armando que esta guerra lhe aprecia ser ‘a
guerra do materialismo histórico’. É uma observação feliz que convida à reexão” (CROCE, 1928, p. 347n).
14
Conforme ainda Gramsci (1975, p. 1207): “Croce de 1912 a 1932 (elaboração da teoria da história ético-
política) tende a permanecer o líder das correntes revisionistas para conduzi-las até uma crítica radical e à
liquidação (político-ideológica) até mesmo do materialismo histórico atenuado e da teoria econômico-jurídica.

Gramsci e seus contemporâneos
Os estímulos à elaboração da história ético-política são dois: a
guerra mundial e a revolução soviética, ou seja, o m do mundo liberal
com a organização e a consequente entrada na vida política de massas
imensas de populações e a tentativa de direcionar essa mobilização na
constituição de uma nova civilização. Eis porque Croce dene a história
ético-política como seu “cavalo de batalha contra o materialismo histórico
e seus derivados” (cf. a carta de Croce ao diretor da Nuova Rivista Storica,
Corrado Barbagallo, Croce, 1929, p. 130-133).
15
Croce pretende,
portanto, retomar em condições diferentes a linha daquele movimento
decisivo na determinação da crise do socialismo na passagem do século.
A seguir, Croce, juntamente com Sorel e Bergson (GRAMSCI, 1975, p.
421-422) trabalhou na absorção do marxismo pela losoa idealista e na
transformação do socialismo em uma opção interna à sociedade burguesa.
No artigo de 1911 (o ano da guerra da Líbia e da divisão interna no PSI entre
favoráveis e contrários a ela), “La morte del socialismo”, Croce escreveu
que Georges Sorel “assimilou o movimento operário àquele cristão, [...]
concedeu-lhe, com a ideia da greve geral, o conforto do mito e o armou do
sentimento de cisão”. Mas “uma cisão teorizada é uma cisão desatualizada
e o mito mantido por uma “explicação doutrinal” é “dissipado” (CROCE,
[1911] 1926, p. 157-158). Aquilo que permanece, o produto inerte da
reação química desencadeada pelo mito é uma organização sindical que
pode egregiamente servir para organizar a função “trabalho” dentro das
relações de força da sociedade liberal, mas não, certamente, para projetá-lo
em direção a uma alternativa global de civilização. Mas também no curso
dos anos 1920 e 1930, quando insiste sobre o caráter metafísico e pré-
moderno do pensamento de Marx ele, na realidade, tem sempre presente
a questão da organização e do disciplinamento das massas trabalhadoras
como encruzilhada decisiva da legitimação na sociedade pós-bélica.
Naquele contexto, a crítica em relação a Marx é desdenhosa.
Contemporaneamente ao congresso losóco de Oxford foi publicada no
número de outubro da revista La Nuova Italia, sob a rubrica Commenti e
schermaglie, a “carta de um dos participantes”, cujo nome não é citado, mas
que Gramsci, como escreve a Tatiana Schucht no dia 1º de dezembro de
15
Esse texto faz parte de uma troca epistolar pública entre Croce e Barbagallo entre 1928 e 1929 e é recordado
por Gramsci em um texto dos Quaderni intitulado “Croce e Marx” (GRAMSCI, 1975, p. 436).
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Sabrina Areco
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
1930, supõe que fosse “talvez [...] o próprio Croce ou pelo menos [...] um
de seus discípulos”. Nela, prossegue Gramsci,
[...] se fala do debate, ocorrido no Congresso internacional dos
lósofos, entre Benedetto Croce e Lunacharski a propósito da questão
de se existe ou possa existir uma doutrina estética do materialismo
histórico. [...] Desta carta aparece que a posição de Croce em relação ao
materialismo histórico mudou completamente daquela que mantinha
até alguns anos atrás. Agora Croce mantém, nada menos, que o
materialismo histórico assinala um retorno ao velho teologismo [...]
medieval, à losoa pré-kantiana e pré-cartesiana. Algo surpreendente.
(GRAMSCI, 1996, p. 368-369).
Naquele texto, Croce armava:
Devo pois observar ao senhor Lunacharski que contrariamente a sua
crença de que o materialismo histórico seja uma concepção secamente
antimetafísica e sumamente realista, aquela doutrina é pior que
metafísica, é mesmo teológica, dividindo o único processo do real em
estrutura e superestrutura, noumeno e fenômeno, e colocando na base,
como noumeno, um Deus oculto, a Economia, que puxa todos os
os e que é a única realidade nas aparências da moral, da religião, da
losoa, da arte e assim por diante. (CROCE, 1930a, p. 432).
16
Gramsci nota, pontualmente, como essa mudança permaneceu
inexplicável se considerada no plano teórico. Embora nunca tenha aderido
ao marxismo, ainda na Prefazione à edição de 1917 de Materialismo storico
ed economia marxistica, Croce mostrava nutrir uma grande admiração
intelectual por Marx, a quem atribuía dois temas a respeito dos quais se
declarava em débito: a “rme asserção do princípio da força, da luta, da
potência” (CROCE, [1900] 1968, p. XIII) e o conceito de economia. E
exatamente por essa razão no mesmo texto arma que “aquele que dirigir
seu pensamento à história italiana dos últimos decênios não poderá, a meu
ver, não advertir a longa e benéca ecácia exercitada pelo marxismo sobre
os intelectuais italianos entre 1895 e 1900. [...] O pensamento losóco
foi assim estimulado pela retomada da atividade que estava então se
preparando” (idem, p. XIV). E na Prefazione à primeira edição desse texto
16
Conforme também Croce ([1921] 1947, v. 2, p. 136): “O dualismo metafísico entre natureza e espírito, a
despeito de toda ‘tendência ao monismo’ [Labriola] persistia em sua crueza.

Gramsci e seus contemporâneos
(1900) chegou mesmo a denir a obra de Marx como “genial” (CROCE,
[1900] 1968, p. X).
Entre a apreciação e a liquidação de 1930 não há, efetivamente,
um nexo lógico. A explicação deve, por isso, ser procurada na mudança
da realidade que obriga Croce, como foi, dito a se engajar diretamente na
batalha, a transformar a losoa em instrumento direto de luta ideológica.
croce e o faSciSmo: umaconcordância da maiS íntima e eficaz
A impressão suscitada em Gramsci pela leitura da Nuova Italia de
outubro de 1930 e depois da conferência croceana em Oxford, publicada
de antemão no número da Critica de 20 de novembro do mesmo ano
(CROCE, 1930b) deve ter sido forte. Como escreve em 1932 em um
texto que já foi aqui recordado, Gramsci pensa que Croce “deseja alcançar
a liquidação do materialismo histórico, mas deseja que esse resultado ocorra
de modo a identicar-se com um movimento cultural europeu” (GRAMSCI,
1975, p. 1214, grifos meus). Ora, a qual movimento cultural europeu se
alude aqui?
Dar uma resposta a esta pergunta é mais difícil do que possa
parecer, mesmo porque, como logo se verá, Gramsci se opõe à leitura
dominante que vê Croce em companhia de Mann, Ortega y Gasset,
Huizinga e Curtius (GIAMMATEI, 2009, p. 119-126) reetir, no
começo dos anos 1930, a partir do liberalismo, sobre a crise profunda da
Europa perante o surgimento do totalitarismo. Em vez disso, no primeiro
comentário escrito em novembro de 1930, imediatamente após ter lido o
texto, Gramsci observa
O discurso de Croce no congresso de losoa de Oxford é na realidade
um manifesto político de uma união internacional dos grandes
intelectuais de todas as nações, especialmente da Europa, e não se
pode negar que isso possa se tornar um partido importante, que possa
ter uma função que não seja pequena. Hoje se verica no mundo
moderno um fenômeno similar aquele de separação entre ‘espiritual’ e
temporal’ na Idade Média [...]. Os reagrupamentos sociais regressivos
e conservadores se reduzem sempre mais a sua fase inicial econômico-
corporativa, enquanto os reagrupamentos progressivos e inovadores se
encontram ainda na fase inicial, precisamente econômico-corporativa;
os intelectuais tradicionais, destacando-se do reagrupamento social ao
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
qual haviam dado até então a forma mais elevada e inclusiva e, portanto,
a consciência mais vasta e perfeita do Estado moderno, na realidade
desempenham um ato de incalculável dimensão histórica: assinalam e
conrmam a crise estatal em sua forma decisiva. (GRAMSCI, 1975,
p. 690-691).
Gramsci se refere, provavelmente, à seguinte passagem:
[...] e farei a hipótese de que eu [...] não seja capaz de ver o quid maius
que vem sendo preparado entre a rudeza e barbárie daquele movimento
e troque por depressão aquilo que é elevação, por enfermidade
um frutífero trabalho espiritual, por insanidade terrena a sagrada
loucura da cruz. Dada essa hipótese, posto o caso de que uma nova
civilização esteja em elaboração, o que deveríamos esperar, lósofos
e historiadores, que vemos entretanto ser jogado fora com desprezo
tudo aquilo que para nós tem mérito supremo, nossos conceitos sobre
as vias necessárias da verdade e do bem e sobre o caráter sagrado do
trabalho levado a cabo pelas gerações humanas? Deveremos, por um
presumido quid maius, o qual bem merece desta vez ser acompanhado
pelo néscio, ajudar à obra de destruição e abandonar nosso posto de
combate para seguir a turba inimiga em direção a um sinal que não
conhecemos? [...] se concedendo que o novo povo, a nova história,
a nova civilização italiana nasceram das invasões bárbaras, vivendo
um de nós, cultivadores da verdade, no quinto ou no sexto século, no
tempo dos lombardos, teríamos escolhido um posto ao lado de um
Totila ou de um Albino, ou em vez disso, ao lado de um Boécio e de
um Gregório? – A estes últimos que continuaram a tradição romana
e não àqueles que rapinaram e massacraram com os godos e com os
sórdidos lombardos, se deve a que estes bárbaros cessaram, pouco a
pouco, de serem bárbaros e, dando e recebendo, concorreram a gerar os
italianos das Comunas e aqueles do Renascimento. (CROCE, 1930b,
p. 408-409).
Na medida em que se admite que as mudanças contemporâneas
são o anúncio confuso e rude de uma nova civilização e não uma mera
doença” da atual, a tarefa do sacerdote da verdade é a de “deter” a história
e não de acelerá-la, porque apenas detendo-a se dá verdadeiramente
alimento à civilização nascente, que será verdadeira civilização e saberá
reviver em si a herança do velho mundo como zeram as Comunas e o
Renascimento.

Gramsci e seus contemporâneos
Gramsci não partilha do diagnóstico croceano: a nova Europa
anti-historicista não é uma doença do liberalismo mas a expressão de
um choque hegemônico entre a burguesia e a classe operária, ambas,
entretanto, incapazes de prospectar um projeto articulado e completo
e, portanto apegadas especularmente à fase “econômica-corporativa”.
A seguir, a estratégia de “detenção” da história proposta por Croce à
união internacional dos grandes intelectuais”, em vez de salvaguardar
a herança da cultura da barbárie temporária termina por acelerar a crise
do Estado moderno. O manifesto político croceano seria, em suma, a
expressão da crise e não ainda o encaminhamento de sua solução, porque
aquele desenho político (favorecer o surgimento de uma nova civilização
burguesa precisamente graças à não participação ativa nos processos em
curso) nem leva em conta o fato de que (como Gramsci escreve mais
adiante no mesmo texto) “hoje o ‘espiritual’ que se separa do ‘temporal’ e
não se distingue como a si própria, é uma coisa não orgânica, descentrada,
uma poeira instável de grandes personalidades culturais ‘sem Papa’ e sem
território” (GRAMSCI, 1975, p. 691).
O germe da crise do Estado não era novo. Exatamente em 1930,
no dia 27 de outubro (poucos dias antes de Gramsci escrever essa nota),
no Messaggio per l’anno IX, Mussolini havia armado:
Isso explica como a luta se desenvolva agora sobre um terreno mundial
e como o fascismo esteja na ordem do dia em todos os países, aqui
temido, lá implacavelmente odiado, mais além ardentemente invocado.
[...] Hoje armo que o fascismo enquanto ideia, doutrina, realização,
é universal: italiano em suas instituições particulares ele é universal
no espírito, nem poderia ser de outro modo. O espírito é universal
pela sua própria natureza. Se pode então prever uma Europa fascista,
uma Europa que inspire suas instituições com a doutrina e a prática
do fascismo. Uma Europa, isto é, que resolva, em sentido fascista o
problema do Estado moderno, do Estado do século XX, muito diferente
dos Estados que existiam antes de 1789 ou que se formaram depois.
O fascismo hoje responde a exigências de caráter universal. Ele resolve
de fato o triplo problema das relações entre Estado e indivíduo, entre
Estado e grupos, entre grupos e grupos organizados. (MUSSOLINI,
1958, p. 283).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
Neste discurso, do qual Gramsci teve seguramente notícia
pela imprensa cotidiana e pelas crônicas do mensário fascista Gerarchia,
Mussolini pontilha o desenho de uma expansão do fascismo na Europa
graças sua capacidade de resolver a crise do Estado moderno criando uma
nova unidade entre Estado e sociedade civil. Era um tema que não era novo
na propaganda fascista – boa parte dos artigos publicados em Gerarchia
naqueles anos discorrem sobre este ponto (POMBENI, 1984, p. 165-167,
205-208) – mas que agora tornava-se o pivô de uma nova concepção do
fascismo como fato “universal”, capaz de hegemonizar a nova Europa, a
Europa acometida do que Croce chamava doença anti-historicista.
Não é casual que nesta nota gramsciana se encontre uma das
raras apreciações de Gentile com relação a Croce: “Deve-se ver em que
medida o ‘atualismo’ gentiliano corresponde à fase estatal positiva, à qual,
porém, se opõe Croce. A ‘unidade no ato’ dá a Gentile a possibilidade
de reconhecer como ‘história’ aquilo que para Croce é anti-história
(GRAMSCI, 1975, p. 691). Ou seja, Gentile conseguiu reconhecer
positivamente no recrudescimento da crise de hegemonia que agitava a
Europa o delineamento de uma possível nova ordem (fascista), à qual Croce
permaneceria cego porque estava concentrado sobre o lado dissolutivo do
velho liberalismo e projetando em direção a um horizonte futuro sobre o
qual, entretanto, se recusa a dizer positivamente qualquer coisa.
O comentário ao discurso de Oxford é, entretanto, apenas o
início de uma reconsideração abrangente do pensamento de Croce que
Gramsci desenvolve ao longo do ano de 1931 e que o conduz ao juízo sobre
a “religião da liberdade” como síntese entre uma posição losocamente
transcendente e uma forte capacidade de intervenção política. Àquela
síntese Gramsci atribui um nome preciso, “revolução passiva” reconhecendo
nalmente em todo o pensamento de Croce posterior a 1915 a elaboração
desta teoria que tem valor ao mesmo tempo losóco e político. Assim,
quando em 1932 sai a Storia d’Europa nel secolo decimonono, que Gramsci
pode ler em parte, ele já tem pronto um juízo elaborado e completamente
original que deixa para trás as cautelas do outono de 1930 e termina por
reconhecer entre o antifascismo croceano e o fascismo um parentesco
orgânico, embora não aparente.
17
O livro de Croce, ele arma
17
Gramsci anuncia a chegada da Storia d’Europa na carta de 9 de maio de 1932, precisando, entretanto que

Gramsci e seus contemporâneos
[...] é um tratado das revoluções passivas, para dizer com a expressão
de Cuoco, que não podem justicar-se ou compreender-se sem a
revolução francesa, que foi um evento europeu e mundial e não
apenas francês. (Pode ter esse tratamento uma referência atual? Um
novo ‘liberalismo’, nas condições modernas, não seria exatamente o
fascismo’? Não seria o fascismo precisamente a forma de ‘revolução
passiva’ própria do século XX, como o liberalismo foi para o século
XIX?) (...). (Pode-se assim conceber: a revolução passiva se vericaria
no fato de transformar a estrutura econômica ‘reformistamente’ de
individualista a economia segundo um plano (economia dirigida) e o
advento de uma ‘economia média’ entre aquela individualista pura e
aquela segundo um plano em sentido integral, permitindo a passagem
a formas políticas e culturais mais avançadas, sem cataclismos radicais
e destrutivos de forma exterminadora. O ‘corporativismo’ poderia ser
ou tornar-se, desenvolvendo-se esta forma econômica média de caráter
passivo’. (GRAMSCI, 1975, p. 1088-1089).
Aqui não há mais nada nem daquele juízo de 1930 sobre o
fascismo como “regressão corporativa”, nem da valorização da atividade
de Croce como “dissolutiva” do Estado. Pelo contrário, objetivamente,
enquanto teorização da revolução passiva, a historiograa croceana
apoia o fascismo como tentativa de sair da crise de hegemonia de uma
maneira não catastróca. Na Europa dos anos 1930, é necessário projetar
uma nova forma de hegemonia, capaz de absorver o choque das massas
mobilizadas e sindicalizadas e da revolução de 1917. O fascismo é o
equivalente da Restauração pós-napoleônica e objetivamente Croce,
teorizando a revolução passiva como estratégia política liberal, favorece
uma aproximação orgânica entre o liberalismo em crise e os novos regimes
populistas que se armam em muitos países europeus. Ele aceita, então,
implicitamente, o fascismo como fato “europeu” mais que italiano porque
ele se demonstra capaz de reintroduzir as massas no Estado graças ao
corporativismo, ou seja, a superação gradual do individualismo econômico,
o livro não lhe tinha sido ainda entregue (GRAMSCI, 1996, p. 572). Ainda em agosto de 1932 escreve uma
requisição a Mussolini para obter a leitura, requisição que, entretanto, não foi expedida. O volume, agora no
Fondo Gramsci, tem o carimbo da prisão mas não a assinatura do diretor e, por isso, provavelmente não foi
entregue ao prisioneiro. Em maio de 1932, entretanto, Gramsci havia lido o “capítulo introdutório” da Storia,
contido em um opúsculo (CROCE, 1931) que chegou na prisão de Turi provavelmente entre o nal de 1931 e
o início de 1932. Cf. a carta de 18 de abril de 1932 (GRAMSCI, 1996, p. 562 – “que apareceu já […] há alguns
meses” – e 1975, p. 3045-3046).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
e desta maneira consegue, mais uma vez, reabsorver as classes subalternas
dentro da estratégia burguesa.
Este texto pertence ao início de maio de 1932. Pouco depois na
carta de 6 de junho, Gramsci chega a um juízo denitivo sobre o nexo entre
Croce e o fascismo exatamente em relação à capacidade de atrair de modo
passivo as classes subalternas dentro do Estado. Muitos fascistas, arma
Gramsci, “estão persuadidos da utilidade das posições tomadas por Croce,
que cria a situação na qual é possível a educação real para a vida estatal
dos novos grupos dirigentes que aoraram no pós-guerra” (GRAMSCI,
1996, p. 586). A absorção das classes subalternas de forma passiva dentro
do Estado:
[...] assume uma dimensão imponente no pós-guerra, quando aprece que
o grupo dirigente tradicional não está mais em condições de assimilar
e dirigir as novas forças que se expressaram nos acontecimentos. Mas
este grupo dirigente é mais ‘malin
18
e capaz do que se poderia pensar:
a absorção é difícil e custosa, mas ocorre apesar de tudo, por muitas
vias e com métodos diversos. A atividade de Croce é uma destas vias e
destes métodos; seu ensinamento produz talvez a maior quantidade de
sucos gástricos’ presentes no trabalho de digestão. Colocada em uma
perspectiva histórica, da história italiana naturalmente, a atividade de
Croce aparece como a mais potente máquina para ‘conformar’ as forças
novas aos seus interesses vitais (não apenas imediatos, mas também
futuros) que o grupo dominante possui hoje e que eu creio aprecie
justamente, não obstante qualquer aparência supercial. Quando se
atiram em fusão corpos diversos dos quais se deseja obter uma liga,
a efervescência supercial indica precisamente que a liga está se
formando e não vice-versa. De resto, nestes fatos humanos a concórdia
se apresenta sempre como discurso, como uma luta e uma briga e não
como um abraço teatral. Mas é sempre concórdia e da mais íntima e
ativa. (idem, p. 596-597).
Aqui estamos, em certo sentido, no nal de um percurso que
apenas aparentemente reconduz ao escrito de 1926, Alcuni temi dela
questione meridionale, no qual Benedetto Croce e Giustino Fortunato são
denidos como “os reacionários mais ativos da península” (GRAMSCI,
1971, p. 155). A teoria da revolução passiva permite a Gramsci reconhecer
agora o surgimento de uma nova organização abrangente da relação entre
18
Em francês no original: malicioso (N. do T.).

Gramsci e seus contemporâneos
Estado e sociedade. A atividade de “detenção” é agora reconhecida como
absorção na organização do novo Estado fascista dos leader das camadas
subalternas (os “novos grupos dirigentes que aoraram no pós-guerra”)
graças exatamente ao antifascismo metapolítico.
Croce acredita “salvar” os grandes valores do humanismo, mas
para armar qual objetivo? “Para obter uma atividade reformista pelo
alto que atenue as antíteses e as concilie em uma nova legalidade obtida
transformistamente’” (GRAMSCI, 1975, p. 1261). Deste modo, Croce
contribuiria “a um reforço do fascismo, fornecendo-lhe indiretamente
uma justicativa mental depois de ter contribuído a depurá-lo de algumas
características secundárias” (GRAMSCI, 1975, p. 1228) e faria assim de
passagem entre a estabilização do capitalismo, à qual a socialdemocracia
tendia na Europa desde o pós-guerra, e aquela realizada na Itália pelo
fascismo” (ROSSI; VACCA, 2007, p. 53). Se isto é verdade, não joga,
então, uma luz retrospectiva também sobre a “reforma intelectual e moral”
promovida por Croce na Itália do início do século com o qual se iniciou
este escrito? Não era já aquela uma forma de absorção dos leader das classes
subalternas (também de Antonio Gramsci) dentro da estrutura do Estado?
E não suscita, então, o confronto com Croce nos Quaderni del carcere,
a necessidade de repensar as formas da autonomia política das classes
subalternas e, principalmente, da democracia como forma de luta mais do
que regime político?
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Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
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
William jameS
Giovanni Semeraro
William jameS e o PragmatiSmo americano
Na carta de 25 de março de 1929, Gramsci menciona o livro de
William James Princípios de Psicologia, “traduzido em italiano e publicado
pela Libreria Milanese”, denindo-o “o melhor manual de psicologia
e comenta logo em seguida que “a psicologia tem se desligado quase
completamente da losoa, para tornar-se uma ciência natural como a
biologia e a siologia: de modo que para estudar a psicologia é preciso ter
muitos conhecimentos especialmente de siologia” (LC, p. 249)
1
. A carta
é um documento precioso não apenas pela referência a W. James, um dos
pioneiros do pragmatismo americano, mas também porque sintetiza em
três pontos essenciais a diversidade de temas enunciados nos vários planos
de trabalho que Gramsci vinha esboçando no cárcere desde o início de
1927: “Resolvi concentrar-me prevalentemente e escrever anotações sobre
esses três assuntos: - 1º A história italiana no século XIX, com particular
atenção à formação e ao desenvolvimento dos grupos intelectuais; - 2º A
teoria da história e da historiograa; 3º O americanismo e o fordismo”.
No contexto da carta, portanto, a referência a W. James aparece associada
ao interesse de Gramsci pelo “Americanismo e fordismo”. O novo sistema
de produção e de cultura em fermento nos Estados Unidos da América, na
verdade, é um fenômeno tão importante aos olhos de Gramsci que aparece
já enumerado nos “Temas principais” da primeira página do Caderno
1
GRAMSCI, Antonio. Lettere dal carcere, Edição de Antonio Santucci, 2 vols, Palermo, Ed. Sellerio, 1996, p.
249 (doravante citado com as letras LC, seguidas pelas indicações das datas).
https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-881-1.p47-64
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

1, escrita em 8 de fevereiro de 1929
2
. Recorrente em diversas anotações
esparsas nos Cadernos do cárcere, o tema vai encontrar sua condensação no
Caderno especial 22, escrito em 1934, no auge da maturidade dos escritos
carcerários. O que nos revela que, na estruturação dos Cadernos, além de
questões relativas à Itália e à Europa, Gramsci volta suas atenções críticas
para a sociedade industrial e a crescente concepção de mundo em formação
nos Estados Unidos.
A América do Norte, para Gramsci, mostrava-se como o terreno
mais moderno na “organização de uma economia programática”, com um
modo de vida e a formação de uma civilização em consonância com “uma
composição demográca racional” inserida no mundo produtivo sem a
formação de “classes parasitárias”, como ocorria ainda em boa parte da
Itália e da Europa refratárias à “civilização industrial”. Não tendo o estorvo
das tradições feudais e das corporações cristalizadas no velho Estado, a
América apresentava condições mais favoráveis para deslanchar uma
sociedade de caráter industrial, onde o sistema organizativo expressado
nos métodos de Ford conseguia “racionalizar a produção e o trabalho,
combinando habilidosamente a força (destruição do sindicalismo operário
com base territorial) com a persuasão (altos salários, diversos benefícios
sociais, propaganda ideológica e política habilíssima), conseguindo assim
centrar toda a vida do país sobre a produção. A hegemonia nasce da fábrica
e para se exercer só precisa de uma quantidade mínima de intermediários
prossionais da política e da ideologia” (Q 22, § 2, p. 2145-2146).
Como na carta de 1929, também nas análises de “americanismo
e fordismo” do Caderno 22, o “pragmatismo americano (de James, etc)”,
está associado às transformações na América, onde: “a racionalização
tem determinado a necessidade de elaborar um novo tipo humano, em
conformidade com o novo tipo de trabalho e de processo produtivo [...]
em fase de adaptação psicofísica à nova estrutura industrial” (Q 22, p.
2146). A ligação explícita que Gramsci estabelece entre o “pragmatismo
americano” e a psicologia de James, marcada pela “biologia e a siologia”,
aparece clara nas suas anotações, particularmente no Q 1, § 34 e no Q
17, § 22. A avaliação, portanto, de James não está separada das ideias que
2
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere, Edição crítica de Valentino Gerratana, v. 4, Torino, Ed. Einaudi,
1975. (doravante citado pela letra Q, seguido pela indicação do parágrafo e o número da página).

Gramsci e seus contemporâneos
Gramsci expressa em relação ao pragmatismo, uma concepção de mundo
que sente os reexos da losoa da práxis. Nos Cadernos, de fato, Gramsci
procura mostrar que a losoa da práxis “tem determinado ou fecundado
algumas correntes” da cultura moderna, gerando variadas combinações e
sofrendo deturpações nesse processo. Para rejuvenescer suas teses, “a escola
historiográca” e o pensamento de Croce assimilaram aspectos da losoa
da práxis, mas a “reduziram a cânon empírico de pesquisa histórica”. Assim,
sem se deixar impressionar pelas semelhanças exteriores”, seria preciso
analisar cuidadosamente como a losoa da práxis “tem modicado os
velhos modos de pensar por ações e reações nem sempre aparentes e
imediatas”. Neste sentido, além de Croce, Gentile, Sorel, etc.: “o estudo
mais importante parece ser o da losoa bergsoniana e o pragmatismo [para
ver como certas suas posições seriam inconcebíveis sem o elo histórico da
losoa da práxis]” (Q 16, § 9, p. 1856). Oportunamente, portanto, G.
Baratta (2000, p. 148) observa que desde o Caderno 1, Gramsci “ventila
a hipótese de que o terreno de confronto teórico mais avançado [para a
losoa da práxis] vem a ser o pragmatismo.
Como se sabe, W. James é um dos pioneiros do pragmatismo,
uma corrente de pensamento que, entre nal de 1871 e início de 1872, teve
início nos Estados Unidos de América quando um grupo de intelectuais
se reúne periódica e informalmente em Cambridge, Massachusetts, para
conversar sobre losoa, psicologia, ciência, cultura, política, dando
origem ao que passam a chamar de “Metaphysical Club”. Na realidade,
uma denominação irônica para um círculo de estudiosos determinados
a minar radicalmente a metafísica. Suas ideias convergem sobre diversas
questões, mas logo emergem pontos comuns:
Mostravam-se convencidos de que as ideias não estavam ‘lá fora
esperando para serem descobertas, mas eram instrumentos inventados
para enfrentar o mundo [...] Acreditavam que, por serem reações
provisórias a circunstâncias particulares e únicas, as ideias não estavam
vinculadas à imutabilidade, mas à adaptabilidade” (MENAND, 2001,
p. 12).
Seus debates, no entanto, não se limitam apenas a romper
com a velha tradição losóca da Europa, mas avaliam as repercussões
do industrialismo, da tecnologia e das novas descobertas cientícas
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

na conguração da identidade dos Estados Unidos da América. Entre
as teorias e os diversos autores examinados no Club, ocupam lugar de
destaque os escritos de C. Darwin, publicados naqueles anos: “A origem
das Espécies” (1859) e “A descendência do Homem” (1871). Ao minar
qualquer forma de dualismo, dogmas consagrados pela religião e convicções
cristalizadas no senso comum, a evolução e a biologia darwiniana abriam
o caminho para as teorias de interação entre organismo e ambiente, para
o entendimento do conhecimento como um instrumento que surge e se
modica constantemente na luta pela sobrevivência. Darwin, de fato,
apontava que o cérebro se desenvolve ao longo do processo evolutivo para
solucionar problemas e indicava na linguagem o lugar mais apropriado
para o surgimento da consciência. A mente, portanto, não podia ser mais
entendida como uma faculdade autônoma e espiritual superior, mas como
um órgão especializado do corpo para analisar o ambiente, para adaptar-se
e construir instrumentos úteis ao prolongamento da espécie. A biologia
evolucionista oferecia, portanto, munição para a lógica genética e para
analisar os mecanismos do conhecimento como uma operação estimulada
pelos interesses e os impulsos vitais.
Charles Sanders Peirce (1839-1914) é o pensador mais
perspicaz e produtivo do “Metaphysical Club”. As primeiras formulações
do pragmatismo podem ser observadas nos ensaios que ele escreve
na década de 1870. Em e xation of belief (A xação da crença), de
1877, Peirce mostrava que precisava sair das “crenças” fundadas sobre
bases inconsistentes como a tradição, a obstinação, a autoridade e as
ideias a priori. Para “xar crenças” que são sempre falíveis e mutáveis
seria necessário, ao contrário, “inquirir” seus fundamentos com espírito
cientico e vericá-las continuamente. No ano seguinte, no ensaio How
to make our ideas clear [Como tornar nossas ideias claras], aprofunda suas
análises entre a conduta humana e a lógica, sustentando que o signicado
racional de uma palavra ou de outra expressão se percebe pelos reexos
sobre a conduta de vida. Ou seja, o valor de uma ideia está relacionado
aos seus efeitos, à ação que produz e à crença que se xa em nós. Devem,
portanto, ser consideradas verdadeiras as ideias cujos efeitos são vericados
e comprovados na prática e que nos levam a agir e organizar o futuro.
Não tendo autonomia e substância próprias, as ideias não são compêndios

Gramsci e seus contemporâneos
de verdade, mas são instrumentos operativos que se expressam nos sinais
que construímos. Neste sentido, Peirce (1980, p. 83ss) desenvolve uma
teoria dos sinais onde mostra que “todo pensamento é sinal e participa
essencialmente da natureza da linguagem” que se forma a partir de três
termos: o sinal, o objeto e o intérprete.
Se C. Peirce concentra suas pesquisas sobre a lógica e a
semiótica, W. James (1842-1910) se dedica particularmente aos estudos
de psicologia, criando em Harvard o primeiro laboratório de psicologia
experimental e divulgando o pragmatismo no mundo. Suas pesquisas
desmentem a concepção substancialista tradicional que separava a alma
do corpo, as teorias baseadas sobre as estruturas centrais e periféricas e
a relação mecânica de estímulos e respostas. Ao contrário, para James, a
psique humana está estritamente ligada à vida corporal, sente o inuxo do
ambiente e reage ativamente a ele, é uma atividade integrada e coordenada
de estímulo-movimento-sensação-unidade. No seu livro mais importante,
Princípios de psicologia (1890), James mostra que as emoções têm base
na experiência siológica e que a mente não é uma realidade distinta do
mundo natural, mas um aspecto desse, um instrumento para se adaptar ao
ambiente. Qualquer conexão que acontece na psique não é uma relação
colocada pela mente soberana sobre os átomos dispersos da experiência,
como ocorria com as “formas transcendentais” de I. Kant. Para James, as
elaborações teóricas são experimentáveis e materializáveis e acontecem na
própria experiência. Desta forma, mais do que pelo seu conhecimento
abstrato, o valor da psicologia se mede pelos seus efeitos, pela sua ecácia,
pela sua engenharia de adaptação e melhorias da vida.
A partir dessas premissas, em Existe a consciência? (1904), James
tenta mostrar que a “consciência” não passa de uma corrente de pensamento
(stream of thought) que ui e muda a cada momento, que evolui com a
uidez do indivíduo, e é impossível capturá-la em doutrinas metafísicas.
Originada na experiência, a nossa consciência, de um lado, é individual,
privada, transeunte (‘percepto’, percebido), e de outro, é intersubjetiva e
compartilhada, de modo a formar ‘conceitos’ comuns. Em relação ao que
se costuma chamar de verdade, James sustenta que o nosso conhecimento
é a capacidade de operar, é uma relação satisfatória (satisfactoriness) com
outras partes da nossa experiência, é mensurado pela sua adequação
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

e utilidade. Quer dizer, uma ideia é tornada verdadeira pelos fatos que
podemos vericar e conrmar e “na medida em que acreditar nela pode ser
útil para nossas vidas” (JAMES, 1979, p. 67).
Para James, mais do que a mente, é a ação da vontade subjetiva
que orienta de forma utilitarista as atividades intelectuais. Imbuído de
otimismo, acreditava que o mundo poderá ser melhor, se acreditarmos
nessa possibilidade. Em A vontade de crer (1897), arma que “na nossa
natureza a área da vontade domina tanto a área da conceitualização quanto
a dos sentimentos” (JAMES, 1984, p. 138). Neste sentido, tanto as “nuas
verdades da física”, como as mais elevadas atividades intelectuais de criar
conceitos e de prever, são movidas pelas nossas paixões e pelas intenções
subjetivas (JAMES, 1984, p. 143-153).
Sem desvalorizar o método cientíco, que nos garante a delidade
aos fatos e à realidade, James sustenta que é preciso consultar as “razões do
coração” quando se trata das questões fundamentais da existência humana,
quando se faz necessário encontrar o sentido da vida, tomar as decisões
pessoais e estabelecer os valores a serem seguidos. São essas razões que nos
dizem se determinados fatos satisfazem ou não as nossas exigências. Assim,
também, são a capacidade de iniciativa e a criatividade do indivíduo, o
relacionamento com os outros, a tolerância e a pluralidade das opiniões
que nos fazem sentir parte do “grande partido internacional e cosmopolita
da liberdade, o partido da consciência e da inteligência”.
Longe da metafísica e das teorias epistemológicas clássicas, o
pragmatismo inaugurado por Peirce e James apresentava-se como “um
método, e em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por
verdade” (JAMES, 1980, p. 25). Desta forma, o conhecimento e a verdade
se fazem na pesquisa, na experiência, no ato de cognição, em operações que
se podem justicar e convalidar. Ancorada na realidade concreta e avaliada
pelos efeitos, a verdade não depende da adequação a princípios estabelecidos
nem de teorias representacionais, mas da vericação na prática: “Verdadeiro
é um nome para qualquer ideia que inicie o processo de vericação, útil
é o nome para a sua função completada na experiência” (JAMES, 1980,
p. 73). Não tendo como objetivo descobrir “os princípios”, as primeiras
coisas, como na losoa tradicional, mas os “frutos, as consequências, os
fatos”, o pragmatismo repele as questões inúteis e visa a prática, a utilidade,

Gramsci e seus contemporâneos
a ação. Orienta o conhecimento para resolver problemas, busca melhorias
para a vida humana, procura pragmaticamente o equilíbrio e o consenso
entre as partes sem recorrer a teorias especulativas, doutrinas e ideologias:
O pragmatismo volta as costas de uma vez por todas a uma série de
hábitos inveterados, caros aos lósofos prossionais. Afasta-se da
abstração e da insuciência, das soluções verbais, das más razões a
priori, dos princípios xos, dos sistemas fechados, com pretensão ao
absoluto. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação
e a força, o que signica fazer prevalecer a atitude empirista sobre
a racionalista, a liberdade e a possibilidade sobre o dogma, sobre o
artifício e a pretensão da verdade denitiva (JAMES, 1980, p. 80).
James e os pragmatistas procuravam mostrar suas posições
avançadas estabelecendo uma contraposição entre a Europa especulativa,
tradicional, retórica, ideológica e autoritária e o espírito americano prático,
aberto, livre, dotado de capacidade criativa, de dinâmica cientíca e de
propulsão para o futuro. Mas, Gramsci não se deixa levar por impressões.
Embora apresentasse algumas assonâncias com a losoa da práxis, o
empirismo-pragmatismo” (Q 1, § 105, p. 97) - como o qualica - não
podia ser entendido “sem levar em conta o quadro histórico anglo-saxão em
que nasceu e se difundiu. Se é verdade que toda losoa é uma ‘política’ e
que todo o lósofo é essencialmente um homem político, isto é tanto mais
verdade para o pragmatista que constrói a losoa ‘utilitaristicamente’ em
sentido imediato” (Q 17, § 22, p. 1925). As “novidades” trazidas pelo
pragmatismo americano, na verdade, não conseguiam eliminar o fato de
que antes do seu surgimento diversos autores e movimentos culturais,
aprofundando um processo desencadeado desde o início da modernidade
na própria Europa e indo além do empirismo, haviam praticamente
golpeado de morte a metafísica e a velha ordem amalgamando a losoa
com a ciência, fermentando revoluções sociais e políticas e originando a
losoa da práxis, culminância desse processo. A novidade que pretendia
o pragmatismo, portanto, não podia ser estabelecida nesse sentido.
Pelo contrário, em comparação com o imediatismo e a praticidade do
pragmatismo, observa Gramsci, o lósofo tipo italiano ou alemão vincula-
se à prática por meio de diversas mediações e acaba se tornando “mais
prático’ que o pragmatista que julga a partir da realidade imediata, muitas
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

vezes vulgar, enquanto o outro se coloca um objetivo mais elevado e
procura assim elevar o nível cultural existente (quando consegue, é claro)”
(Q 17, § 22, p. 1925).
Mais do que uma fronteira avançada em termos teóricos, o
pragmatismo era a expressão, isto sim, das novas formas de produção de
um capitalismo de ponta, em um país que se estruturava para assumir a
hegemonia mundial. Entre o nal do século XIX e o início de XX, de
fato, os Estados Unidos despontavam como um mundo promissor diante
da Europa convulsionada por crises e grandes conitos. A expansão da
indústria, da ciência e da tecnologia, o ritmo vertiginoso das atividades
econômicas e dos investimentos, a organização social e urbana, a difusão
da democracia e de uma nova cultura liberal exigiam um pensamento ágil,
experimental, prático, capaz de promover as liberdades e os interesses do
indivíduo, de atender às mudanças, de prever resultados e consequências.
Contra os sistemas burocratizados e esclerosados, os autoritarismos
religiosos e ideológicos, os pragmatistas passavam a considerar a ciência
e as novas descobertas como caminho prático a ser percorrido para
a constituição de uma sociedade livre e criativa, organizada por um
liberalismo renovado, capaz de neutralizar as lutas de classes e deter o avanço
do comunismo, tidos como elementos desagregadores (DEWEY, 1997,
p. 112-114). Era o que sustentava John Dewey (1859-1952), o terceiro
pioneiro do pragmatismo, aluno de Peirce na universidade J. Hopkins.
Fascinado pelos escritos e as experiências psicológicas de James, que o
afastam de Kant e de Hegel, Dewey dedica-se a ampliar a nova concepção
de mundo que está se desenhando nos Estados Unidos (DEWEY, 2002) e
orienta seus estudos para desenvolver “uma adequada losoa americana
(DEWEY; HICKMAN, 1967-1991, v. 3, p. 144) em sintonia com o
modelo democrático de vida” (DEWEY; HICKMAN, 1967-1991, v. 8,
p. 22) e a construção de uma “nova civilização” (DEWEY, 1968, p. 109).
Esta “concepção americana da vida”, reivindicada pelos pragmatistas e
difundida no mundo por diversos intelectuais e escritores (Q 1, § 105, p.
97), chamava a atenção de Gramsci.

Gramsci e seus contemporâneos
ecoS de W. jameS em gramSci
Não é possível estabelecer com exatidão o conhecimento que
Gramsci tinha de W. James e da literatura do pragmatismo americano,
hoje, muito extensa e disponível. Nas Cartas do cárcere, W. James aparece
explicitamente só na carta de 1929, mencionada acima, e nunca se fala
de Peirce ou Dewey. Nos Cadernos do cárcere, há algumas referências a W.
James, enquanto J. Dewey é mencionado uma só vez (Q 4, § 76, p. 516) e
nunca C. Peirce. Pode-se alegar que Peirce, embora tenha sido o iniciador
do pragmatismo, na verdade, teve seu reconhecimento tardiamente,
enquanto os primeiros escritos de Dewey começaram a circular na Itália
quando Gramsci estava preso e a maioria depois da sua morte. De qualquer
modo, nas anotações de Gramsci, a referência a W. James é mais recorrente
e vinculada ao pragmatismo americano.
Além das referências diretas, um eco das teorias de W. James
pode ser percebido quando Gramsci se adentra na análise dos hábitos e
dos comportamentos coletivos, das habilidades para o trabalho industrial,
da disciplina e das aptidões ao estudo que os subalternos precisam adquirir
com muito esforço (Q 12, § 2, p. 1549). Atento aos processos produtivos
da indústria moderna, à psicologia e à política de massa, Gramsci encontra
nos escritos de W. James elementos para compreender como “os novos
métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver,
de pensar e de sentir a vida” (Q 22, § 11, p. 2164) e de que modo o
americanismo se tornava “o maior esforço coletivo até hoje ocorrido para
criar com inaudita rapidez e com uma consciência do m nunca vista na
história, um novo tipo de trabalhador e de homem” (Q 22, § 11, p. 2165).
Ainda que de forma indireta, é possível encontrar em Gramsci
reexos de algumas ideias de W. James sobre o “hábito”, os atos voluntários
e involuntários, a atividade muscular-nervosa e a centralidade da
vontade. O psicólogo americano sustentava que nós tendemos a seguir
comportamentos repetidos e a adquirir hábitos ao longo do tempo que
nos servem para canalizar energias individuais, sem reprimi-las, de modo a
impedir a sua dispersão e economizar tempo e esforço diante de situações
semelhantes. A conduta persistente de tornar automáticos e habituais a
maioria dos atos úteis, assimilada principalmente na juventude, geraria
uma gradual mutação da estrutura nervosa facilitando os movimentos,
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

tornando-os mais uentes e ‘espontâneos’, evitando que o individuo
tenha um dispêndio de energias excessivo na ativação do autocontrole
ou quando se depara diante de uma nova situação. Com isso, sem muito
esforço, se conseguiriam dominar também diversas atividades necessárias
para viver em sociedade, como, por exemplo, seguir leis estabelecidas,
respeitar direitos, observar convenções coletivas, etc. Tais mecanismos
criariam um “conformismo útil” que permitiria deixar a mente mais livre
para desempenhar suas tarefas (JAMES, 1950, v. 1, cap. 5). Desta forma,
a continuidade dos hábitos adquiridos e educados daria estabilidade à
democracia e a própria coerção do poder político seria reduzida ao mínimo.
De fato, para James, não há sistema mais sólido e legítimo do que aquele
construído sobre a ‘espontaneidade’ e a conrmação dos hábitos.
Há reexões em Gramsci que parecem comungar com a separação
estabelecida por James entre atividade muscular-nervosa nas modernas
habilidades de trabalho e cérebro que ganha mais liberdade para outras
ocupações (Q 22, §12, p. 2170-71) e na disciplina que é preciso adquirir,
principalmente na infância e juventude. O que tem levado alguns analistas
a armar que a relação entre moral e psicologia, entre atos voluntários
e involuntários presente em Gramsci deve muito a James (MANCINA,
1999, p. 326). Um eco das ideias de James pode ser ouvido, também,
em algumas armações de Gramsci sobre o conformismo: “Há um
conformismo ‘racional’, ou seja, correspondente à necessidade, ao mínimo
esforço para obter um resultado útil e a disciplina de tal conformismo
deve ser valorizada e promovida, de modo a torná-la ‘espontaneidade’ ou
sinceridade’” (Q 14, § 61, p. 1719-20). A própria construção do “senso
comum”, de um consenso assimilado pelos hábitos, dos comportamentos
sociais e dos códigos linguísticos que cimentam a sociabilidade, pode ser
vista em conexão com a visão de James. Também as considerações deste
sobre a religião têm dado margem para deduzir que, mais do que de Weber,
são do pragmatista americano as inuências que devem ter levado Gramsci
a ponderar a ecácia prática do marxismo entendido como fé religiosa.
Contrariamente aos empiristas e materialistas que vinculavam a experiência
religiosa a fenômenos primitivos e alienantes, de fato, James reconhece que
o universo da religião abre os homens para um mundo fascinante que pode
mudar sua existência. O estado místico, para James, amplia a capacidade

Gramsci e seus contemporâneos
perceptiva e as possibilidades de conhecimento restritas à razão. Mas, é
preciso ressaltar que analisando o livro de James sobre As diversas formas
da ciência religiosa. Estudo sobre a natureza humana, de 1904, Gramsci
observa que pela falta de separação entre religião e vida cultural, já ocorrida
na Europa desde a “Renascença e a Contrarreforma”, se explica como “o
pragmatismo torna-se um ‘partido ideológico’ [imediato] mais do que
um sistema de losoa”, revelando assim “o imediatismo do politicismo
losóco pragmatista” (Q 17, § 22, p. 1925).
Gramsci chega a essas avaliações porque conhece também o
pragmatismo italiano. De Mario Calderoni e Giovanni Vailati possui o
livro O pragmatismo. No cárcere, consegue a coleção da revista “Leonardo
(LC, 14/05/31), “o melhor repertório de cultura geral” (LC, 23/03/31), na
qual colaboram Giovanni Papini, Giuseppe Prezzolini, Giovanni Vailati e
Mario Calderoni, mas também W. James, C. Peirce e Schiller. Reconhece
na revista “Leonardo” um instrumento signicativo voltado para uma
reforma moral e intelectual da vida italiana” (Q 5, § 34, p. 570). Levando
em consideração esse clima, é possível ver uma ressonância e um contraponto
à revista dos pragmatistas italianos no ideal de educação do tipo “moderno
de Leonardo” retratado na carta do cárcere de 1 de agosto de 1932. Gramsci
acompanha as discussões dos pragmatistas italianos sobre a distinção entre
conhecer e querer” enfrentadas por Vailati, entre “atos voluntários e
involuntários” enfatizados por Calderoni, sobre a inuência da vontade
nas ações e no conhecimento evidenciada por Papini e Prezzolini. Estes
últimos, de fato, pendiam mais para um pragmatismo psicológico/místico,
enquanto Vailati e Calderoni ressaltavam as contribuições do pragmatismo
na lógica e na semiótica, uma separação de campo que na Itália reproduzia
as diferenças de temas que haviam caracterizado os pioneiros americanos.
Em relação à questão da linguagem, menciona os escritos de Vailati e anota
que “a concepção da linguagem de Vailati e de outros pragmatistas não lhe
parece aceitável” (Q 10, § 44, p. 1330).
A ligação de Papini com os temas de estudo de W. James também era
conhecida na Itália. No Prefácio escrito para o livro “Ensaios pragmatistas
de W. James, traduzido em italiano, Papini expressa abertas simpatias com
uma losoa voluntarista e pluralista” (PAPINI, 1910, p. 7). Tendências
que se manifestam também no seu próprio livro “Pragmatismo”, onde
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Papini descreve o pensamento americano como uma losoa que promove
uma reforma dos instrumentos do pensamento [...] com sua aspiração a
uma maior potência da vontade e a uma ecácia direta do espírito sobre as
coisas.” (PAPINI, 1913, p. 10).
A centralidade da vontade tem levado alguns analistas a enfatizar
as inuências de James (e do pragmatismo) sobre o pensamento de
Gramsci. Assim, C. Mancina (1999, p. 325) procura mostrar não apenas
que os conceitos de previsão e de psicologia do pragmatismo “se colocam
plenamente dentro da losoa da práxis em sentido próprio”, mas, que
apresentam “indubitáveis tonalidades pragmaticistas”. No mesmo sentido,
N. Urbinati (1997, p. 296) arma que “Gramsci pode ser aproximado
dos pragmatistas americanos porque, como eles, compreendeu a natureza
hegemônica da democracia propondo-a como trincheira avançada da
modernidade.
PragmatiSmo e marxiSmo: uma hiStória de confrontoS
Autores que apontam anidades entre o marxismo e o pragmatismo
não faltam nos estudos comparados dessas duas correntes de pensamento,
praticamente contemporâneas. Já em 1912, R. Mondolfo (1968, p. 97-99)
indicava diversas semelhanças entre pragmatismo e “losoa da práxis
entendida simplesmente como “losoa da ação”. Poucos anos depois, G.
Preti (1975, p. 273-275), ao considerar Marx como lósofo da ação, do
pragma”, do “trabalho”, o aproximava do pragmatismo norte-americano
que “parecia seu irmão mais jovem”. Também, para B. Russell (1951, p.
138-143), o pragmatismo se sintonizava com as formulações de Marx nas
Teses sobre Feuerbach porque “para os dois o que importava não era conhecer
o mundo, mas transformá-lo”.
Como evidencia recentemente C. Meta (2004, p. 41-53),
não faltariam também assonâncias entre o pensamento de Gramsci e o
pragmatismo. Nos escritos de Gramsci, de fato, podem ser encontrados
elementos que fazem pensar a essa sintonia: a concepção imanente de
losoa (Q 11, § 28, p. 1438; Q 16, § 80, p. 1226); o m da losoa
tradicional essencialista, inatista ou transcendental (Q 1, § 132, p. 119); a
oposição ao positivismo e a crítica ao racionalismo e ao idealismo (Q 11,

Gramsci e seus contemporâneos
§ 15, p. 1403-58); a superação de dualismos e dicotomias (Q 11, § 37, p.
1457); o abandono das abstrações e dos problemas inúteis e a construção
experimental e histórica do conhecimento (Q 11, § 22, p. 1426); a ênfase
na ação, nas práticas concretas, nos resultados vericáveis coletivamente
(Q 10, § 44, p. 1330); a valorização da ciência e da experiência (Q 11, §
45, p. 1467); a busca do consenso e o reconhecimento do senso comum (Q
11, § 12, p. 1380); o caráter histórico, social e superável do conhecimento
(Q 1, § 123, p. 114); a construção de uma educação democrática, criativa,
elaborada em conjunto, não hierárquica e autoritária (Q 10, § 44, p.1330).
Estas e outras questões, juntamente com uma certa proximidade
de linguagem, têm levado alguns autores a ignorar ou a secundarizar as
diferenças e as contraposições entre Gramsci e o pragmatismo. Pelos dados
que evidenciamos acima, no entanto, tais interpretações perdem de vista
o embate de fundo que Gramsci travou nos Cadernos com o neoidealismo
e o pragmatismo, consideradas como correntes modernas de pensamento
que assimilaram partes da losoa da práxis e desguraram seu sentido
revolucionário. Além disso, mesmo com a elegância que o caracteriza e
as cautelas intelectuais que o levam a não aceitar um antiamericanismo
gratuito (Q 4, § 76, p. 515-16), Gramsci tem deixado juízos severos sobre
o pragmatismo. Não apenas em relação a Papini, retratado como “um
pequeno burguês cético e árido, sem caráter” (Q 14, § 14, p. 1670), com
um “diletantismo moral” e uma “atividade canalha” (Q 17, § 24, p. 1926),
mas, também, em relação a W. James e ao pragmatismo norte-americano
(e italiano). Ainda que reconheça a relevância de alguns aspectos, Gramsci
acima de tudo, ressalva neles insuciências, contradições e perigos. De um
lado, anota: “Parece que eles [os pragmatistas] tenham percebido algumas
questões reais e as tenham ‘descrito’ com uma certa exatidão, embora não
tenham conseguido impostar os problemas e indicar a solução” (Q 10, §
44, p. 1330). Mas, por outro lado, deixa claro que o pragmatismo está
marcado pelo “imediatismo”, o “politicismo” e o “ideologismo”, que o
tornam menos “prático” do “lósofo italiano ou alemão” (Q 17, § 22, p.
1925). Na dinâmica do seu “pensamento em movimento”, a pergunta que
Gramsci se coloca no primeiro Caderno: “Pode o pensamento moderno
difundir-se na América, superando o empirismo-pragmatismo, sem uma
fase hegeliana?” (Q 1, § 105, p. 97), encontra uma resposta no Caderno 17,
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

onde se arma que, à diferença de “Hegel [que] pode ser considerado como
o precursor teórico das revoluções liberais do séc. XIX, os pragmatistas, no
máximo, têm ajudado a criar o movimento do Rotary Club ou a justicar
todos os movimentos conservadores e reativos” (Q 17, § 22, p. 1926). O
americanismo, conclui no Caderno 22, “não é um novo tipo de civilização
pelo fato de que nada tem mudado no caráter e nas relações dos grupos
fundamentais” (Q 22, § 15, p. 2180).
Tais armações podem parecer duras e extremadas, mas, retratam
essencialmente as posições sobre as quais Gramsci se atesta quando enfrenta
o pragmatismo. De fato, da mesma forma como desvela as armadilhas do
materialismo mecanicista, da losoa de Croce e do seu transformismo,
deixa claro que a losoa americana, por trás de sua aparência inovadora,
mina os horizontes da losoa da práxis voltada a construir a hegemonia
das classes subalternas. A concepção evolucionista e naturalista do
pragmatismo, de fato, não se coaduna com as perspectivas histórico-
dialéticas e revolucionárias do marxismo. Não surpreende, portanto, se
Gerratana (1951, p. 478-487) enfatiza a incompatibilidade entre os
pressupostos do marxismo e os do pragmatismo e Lukács (1959, p. 787ss)
aponta no pragmatismo uma ideologia funcional ao imperialismo e ao
capitalismo americano.
As interpretações que vislumbram anidades ou até inuências de
W. James e do pragmatismo sobre Gramsci perdem ainda mais consistência
quando se examinam de perto os contrapostos signicados que emergem
de conceitos aparentemente comuns. Há uma profunda diferença, por
exemplo, entre o conceito central de experiência no pragmatismo e o
conceito de práxis que congura o marxismo de Gramsci (SEMERARO,
2008, p. 13-28). Enquanto a losoa “prática” do pragmatismo é moldada
pela inteligência experimental e procura a utilidade e o resultado para
melhorar o que está estabelecido, a losoa da “práxis” de Gramsci é uma
ação revolucionária dos subalternizados que se organizam politicamente a
partir das contradições e das injustiças que inviabilizam a própria existência.
Em Gramsci, não se trata de chegar a um ajuste com o ambiente, mas,
de elaborar um projeto político alternativo de sociedade, construído pelas
classes subalternas em disputa hegemônica com as classes dominantes.
Neste sentido, para Gramsci, a vontade não é só uma expressão otimista

Gramsci e seus contemporâneos
de empreendimento individual, mas a ação de uma “vontade coletiva
nacional-popular”, de uma “consciência operosa da necessidade histórica,
protagonista de um real e efetivo drama histórico” (Q 13, § 1, p. 1559).
Assim, também, quando se confrontam o conceito de “hábito” de James
e o de “conformismo” de Gramsci emergem profundas diferenças. Mais
do que uma adequação ao ambiente, em Gramsci o “conformismo” está
relacionado ao conceito de “catarse”, um processo de subjetivação e de
transformação consciente da realidade objetiva colocado em marcha
por trabalhadores politizados. Neste horizonte, o árduo processo de
modernização do trabalho e da cultura (Q 22, § 10, p. 2161) não prepara
apenas pessoas mais adaptadas e ecientes, mas forma sujeitos livres e
socializados porque voltados a criar uma “sociedade regulada”, dirigida
por eles mesmos. Por isso, Gramsci sinaliza a grande distância entre a
noção naturalista de “instinto construtivo” dos trabalhadores evocado
por James e a distinção feita por Marx entre o instinto das abelhas e a
criatividade consciente do trabalhador (Q 7, § 32, p. 880). Em Gramsci, a
regulação dos instintos” pela educação, pelo trabalho e a cultura, embora
disciplinar, não é um mecanismo coercitivo para se adaptar a um sistema
estabelecido, mas um processo teórico-político consciente conduzido pelas
classes subalternas em vista de uma sociedade dirigida por autoprodutores
e autogovernantes. Estes, na criação de uma verdadeira civilização do
trabalho, precisam “encontrar o sistema de vida ‘original’ e não de marca
americana, para tornar ‘liberdade’ o que hoje é ‘necessidade’ (Q 22, §
15, p. 2179). Trata-se, portanto, de uma outra concepção de sociedade
que não se conjuga com o liberalismo naturalista, mas visa subverter a
estrutura social, política e econômica do próprio sistema capitalista que os
pragmatistas nunca questionam, pelo contrário, modernizam e fortalecem.
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
Sigmund freud
Livio Boni
1
Para introduzir a relação de Gramsci com o fundador da
psicoanálise é preciso partir de uma primeira constatação histórico-
lológica: Gramsci não teve oportunidade de conhecer Freud e é provável
que ele o tenha lido apenas indiretamente, como sugerido em uma carta
escrita a Tania em 20 de abril de 1931 em que se declara interessado em
receber a tradução francesa de Introduzione alla psicoanalisi [Introdução à
psicanálise], indicada por Sraa, para em seguida adicionar: “Li algumas
coisas sobre a psicanálise, artigos de revistas especialmente; em Roma,
Rambelinsky me emprestou alguma coisa para ler sobre este tema.” (L, p.
415)
2
.
Declaração lacônica porém precisa o suciente para conrmar a
impressão provocada pela leitura dos vários apontamentos nos Quaderni
em que está em questão Freud, o “freudismo” ou a “psicanálise”
3
: o juízo
moldado por Gramsci sobre a psicoanálise deriva de uma avaliação de seus
efeitos ideológicos indiretos, ou de seu impacto cultural, mais do que de
um juízo de mérito sobre a disciplina e a racionalidade freudiana enquanto
tal. No entanto, Gramsci poderia ter acesso mais direto à fonte freudiana,
não apenas por ser poliglota (quase toda obra de Freud foi traduzida para
1
Tradução Sabrina Areco.
2
“L” refere-se às Lettere dal carcere (GRAMSCI, 1996) e “Q” aos Quaderni del carcere (GRAMSCI, 1975).
3
Gramsci hesita, nas Lettere como nos Quaderni, entre os termos “psicoanálise”, mais próximo da variante alemã
de “psico-análise”, e a forma “psicanálise”, mais coloquial e afrancesada, e termina por optar pela última forma.
https://doi.org/10.36311/2017.978-85-7983-881-1.p65-90
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

o italiano somente mais tarde
4
), mas também em razão de sua estadia
em Viena, onde permaneceu entre dezembro de 1923 e abril de 1924 na
qualidade de delegado do Comintern, ou na Rússia em meados dos anos
de 1920, quando a psicoanálise era ainda debatida entre os bolcheviques e
na Internacional.
Apesar da ausência de uma relação direta, orgânica e aprofundada
de Gramsci com Freud e a psicoanálise, a leitura das notas “freudianas
espalhadas pelos Quaderni constituem muito mais do que uma mera
curiosidade erudita, revelando os rudimentos e as premissas de uma
reexão de absoluta originalidade, tanto em relação ao panorama losóco-
ideológico da Itália entre a I e II Guerra Mundial, quanto no contexto do
pensamento marxista em geral e não deixa de suscitar certa inexão em
alguns temas maiores da reexão gramsciana.
Seu exame exigirá, portanto, uma reconstrução paciente das
passagens dos Quaderni, esporádicas mas repletas de tensões teóricas,
através das quais se pode dar conta - mas também colocar em perspectiva -
a singularidade da reexão de Gramsci em relação à cultura marxista da III
Internacional e ainda em relação à cultura italiana, dominada no período
do entre guerras pelo idealismo na losoa, pelo positivismo no campo
cientíco e pelo pedagogismo católico em matéria de moral
5
.
À este primeiro volet, conduzido sobretudo nos Quaderni, pode-se
adicionar ou sobrepor um segundo, relativo ao confronto com a psicoanálise
que Gramsci estabelece nas Lettere del carcere. Neste segundo, a relação com
Freud se estabelece de fato sempre indiretamente, através da mediação de
sua esposa Giulia que se valeu de um “tratamento psicanalítico” na URSS
no início dos anos de 1930 para curar um grave exaurimento acompanhado
por esporádicas crises de epilepsia. Infelizmente, não existem documentos
sobre a terapia de Giulia Shucht e nem testemunhas diretas (pelo menos de
acordo com o nosso conhecimento), em uma época em que a psicoanálise,
do ponto de vista ideológico, não era mais bem aceita na União Soviética.
Nos anos de 1920 somente alguns escritos de Freud, como I tre saggi sulla teoria sessuale [Três ensaios sobre
teoria da sexualidade] e Cinque conferenze di psicoanalisi [Cinco lições de psicanálise], ambas traduzidas por
Levi Bianchini; ou Introduzione alla psicoanalisi [Introdução à psicanálise] e Il delirio e il sogno nella Gradiva di
Wilhelm Jensen [Delírios e sonhos em “Gradiva” de Wilhelm Jensen], traduzidos por Edorado Weiss, estavam
disponíveis em italiano.
5
Para uma compreensão histórica geral da inuência cultural da psicoanálise na Itália entre as duas guerras
mundiais, cf. David (1990).

Gramsci e seus contemporâneos
O fato é que tal circunstância dará ensejo para um verdadeiro
diálogo entre Gramsci e Giulia sobre o alcance da ciência freudiana, ou ao
menos para um monólogo dialogante nas Lettere; diálogo cuja consistência
e importância parecem, em grande parte, ter escapado aos intérpretes de
Gramsci e que deve ser apresentada em sua textualidade a m de analisar
este segundo aspecto da relação oblíqua absolutamente mediada de
Gramsci com Freud.
Somente no curso desta revisão e a partir de articulações precisas
será possível estabelecer os pontos de convergências e de distanciamentos
entre a elaboração mais abstrata dos Quaderni e aquela vívida e subjetiva,
mas nem por isso irreetida, das Lettere.
a PSicoanáliSe como ProSSeguimento daS luzeS
Dispondo-se a conar no o condutor da cronologia dos Quaderni,
sempre frágil e incerto (FRANCIONI, 1984), umas das primeiras notas
sobre o tema encontra-se já no Quaderni 1:
A difusão da psicologia freudiana parece ter como resultado o
nascimento de uma literatura típica do século XVIII; o ‘selvagem’, em
sua forma moderna, é substituído pelo tipo freudiano. A luta contra
a ordem jurídica é feita através da análise psicológica freudiana. Este
é um aspecto da questão, ao que parece. Não tenho podido estudar a
teoria de Freud e não conheço outro tipo de literatura assim chamada
freudiana’: Proust-Svevo-Joyce (Q 1, § 33, p. 26).
Por trás da aparência extemporânea, esta primeira ocorrência de
Freud entre as notas carcerárias contém diversas estraticações destinadas
a se repetirem e a perdurarem:
− a analogia entre a psicanálise e um revival do rousseaunismo;
− a localização da ruptura introduzida por Freud em um plano mais
antropológico-jurídico do que epistemológico ou psicológico;
− a conrmação da ausência de aproximação direta com a obra de Freud;
− a percepção diante dos efeitos estéticos-literários da subversão freudiana.
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Quanto ao primeiro ponto - a analogia entre o homo psicoanaliticus
e o bon sauvage - ele aparece em uma passagem de uma carta a Giulia quase
contemporânea à nota citada acima:
É estranho e interessante – escreve Gramsci em 30 de dezembro de
1930 – como a psicoanálise de Freud está criando, especialmente na
Alemanha (o que me parece a partir das revistas que leio), tendências
similares àquelas existentes na França do século XVIII e vai formando
um novo tipo de ‘bom selvagem’ corrompido pela sociedade, isto é,
pela história. O resultado é uma nova forma de desordem intelectual
muito interessante (L, p. 302).
Não há dúvida que o paralelo entre o bom selvagem e a concepção
da sexualidade infantil freudiana pode parecer um tanto ingênuo para
quem conhece a concepção freudiana do “perverso polimorfo
6
e parece à
primeira vista endossar a vulgata freudo-marxista segundo a qual a pulsão
7
nada mais é do que energia positiva corrompida e pervertida pela ordem
social e familiar.
No entanto, observando mais de perto, a questão não pode
ser colocada propriamente nestes termos: o que interessa a Gramsci, ao
estabelecer o paralelo Freud-Rousseau, não é tanto uma identicação
teórica e sim uma analogia entre os efeitos ideológicos suscitados pela
psicoanálise através da criação de “tendências” - ou de um “tipo” - em
nítida contradição com a moral de origem jesuítica (Q 1, § 123). A
espontaneidade” rousseauniana é para Gramsci um mito pedagógico cujo
alcance, em r
elação ao império do educatio jesuítico, deve ser avaliado
dialeticamente. E aos seus olhos algo semelhante parece reproduzir-
se no freudismo, sobretudo na medida em que este dá origem a um
questionamento da moral paternalista dominante e sua expressão jurídica
através da exaltação do conito pais-lhos:
A teoria de Freud, o complexo de Édipo, o ódio pelo pai-patrão,
modelo, rival, expressão primeira do princípio de autoridade –
colocado na ordem das coisas naturais. A inuência de Freud sobre
a literatura alemã é incalculável: ela está na base de uma nova ética
revolucionária (!). Freud deu um aspecto novo ao eterno conito entre
6
cf. Sigmund Freud, Tre saggi sulla sessualità (1905).
7
N.T.: No original, pulsionalità.

Gramsci e seus contemporâneos
pais e lhos. A emancipação dos lhos da tutela paterna é a tese em
voga entre os romancistas atuais. Os pais abdicam de seu “patriarcado
e fazem uma honrosa reparação suas culpas diante dos lhos, cujo senso
moral ingênuo é o único capaz de quebrar o contrato social tirânico e
perverso, de abolir as coerções de um dever mentiroso (Q 3, § 3, p
288)
8
.
Assim, se a analogia entre Rousseau e Freud subsiste, ela se baseia
na comum função dialética de ruptura com a moral dominante e não em
uma anidade losóca tout court. A elaboração de tal analogia, aliás, não
impedirá Gramsci de se mostrar bastante crítico diante da reabilitação das
teses neo-rousseaunianas na União Soviética em uma carta importante à
Giulia que teremos oportunidade de rever.
A partir destas primeiras conexões, baseadas na avaliação
presente nos Quaderni da contribuição freudiana indireta (a inuência
“incalculável” de Freud na literatura alemã), pode-se inferir um primeiro
postulado gramsciano relativo à psicoanálise e ao freudismo, válido para
a maioria de suas reexões sobre o assunto: a psicoanálise constitui uma
forma de racionalismo moderno e de prolongamento do Iluminismo e
não é, de nenhum modo, uma forma de indulgência irracionalista como
sugerido pela vulgata marxista de matriz terceiro-internacionalista
9
.
a
ideologia versus a ideologia?
Uma mudança implícita, mas substancial, de Gramsci em relação
à abordagem marxista da psicoanálise está na nota “Conceito de ideologia
do Quaderni 4, retomada quase literalmente no Quaderni 11. Esboçando
uma verdadeira arqueologia sumária do conceito, Gramsci recorda como:
A ‘ideologia’ era um aspecto do ‘sensualismo’, ou seja, do materialismo
francês do século XVIII. O seu signicado originário era ‘ciência
das ideias’ e, uma vez que a análise era o único método reconhecido
e aplicado na ciência, signicava ‘análise das ideias’, isto é, ‘busca da
origem das ideias’. As ideias devem ser decompostas em seus ‘elementos
8
Gramsci enumera alguns exemplos ‘menores’ deste gênero de literatura em âmbito alemão.
9
O que vale para o importante escrito de Mikhail Bachtin, Il freudismo [O freudismo], de 1927. Note-se como
mesmo o termo “freudismo” estava estabelecido no ambiente marxista e designava uma indevida extensão da
psicoanálise como Weltanschauung, como “visão de mundo” (ASSOUN, 2001, p. 32-35).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

originais e estes não podem ser outra coisa que não as ‘sensações’: as
ideias derivam das sensações (Q 11, § 63, p. 1490).
No prosseguimento da nota Gramsci acena para os limites de
tal abordagem, muito facilmente conciliável com a fé na “potência do
Espírito”, como em Manzoni, ao menos até a descoberta do pensamento
de Rosmini. Um papel privilegiado é reconhecido a Destutt de Tracy,
como “ecaz propagador literário da ideologia”, juntamente com Cabanis
(Rapports du Physique et du Moral), Bourget, Taine e Stendhal. E neste
ponto insere a menção a Freud como o “último dos Ideólogos” (no sentido
de Idéologues):
Como o conceito de Ideologia de ‘ciência das ideias’ de ‘análise sobre
a origem das ideias’ passou a signicar um determinado ‘sistema de
ideias’ deve ser examinado historicamente, pois logicamente o processo
é fácil de entender e compreender. Pode-se armar que Freud é o
último dos Ideólogos e que um ‘ideólogo’ é De Man, pelo o que é
tanto mais estranho o entusiasmo de Croce e dos croceanos por De
Man, se não existisse uma justicação ‘prática’. Deve-se examinar como
o autor do Ensaio Popular tenha permanecido ligado à Ideologia, ao
passo que a losoa da práxis representa uma nítida superação que
se contrapõe historicamente à Ideologia. Mesmo o signicado que o
termo ‘ideologia’ assumiu na losoa da práxis contém implicitamente
um juízo de desvalor e exclui que para os seus fundadores a origem das
ideias deve ser procurada nas sensações e portanto, em última análise,
na siologia: esta mesma ‘ideologia’ deve ser analisada historicamente,
segundo a losoa da práxis, como uma superestrutura (Q 11, § 63,
p. 149I).
Sem se deter nesta ocasião em referências conjunturais à gura
de Henri De Man, que é muitas vezes discutida nos Quaderni
10
, pode-se
extrair desta passagem uma série de posições fundamentais do pensamento
de Freud destinada a se tornar um plano de fundo no confronto teórico de
Gramsci com o fundador da psicoanálise:
10
Henri de Man (1885-1953), intelectual, homem político e diplomata belga, inuente no milieu progressista
entre as duas guerras mundiais, é autor de alguns importantes ensaios como Zur psychologie des Sozialismus
(1925), Der kampfe um die Arbeitsfreude (La joie du travail, 1927), Le socialisme constructif (1933) e ainda Au-
delà du nationalisme (1946). Alvo polêmico importante nos Cadernos, De Man não hesitava aplicar paradigmas
psicologizantes na análise das relações sociais para enfrentar o marxismo, encontrando apoio, entre outros,

Gramsci e seus contemporâneos
- a psicoanálise é uma ideologia no sentido iluminista de uma análise
materialista dos elementos que constituem o pensamento;
- Freud é, portanto, considerado e criticado como o último
representante de uma ideologia cujo signicado foi superado pela
concepção dialética-materialista (marxiana) da ideologia, mas
cuja mudança de sentido permanece ainda por “ser considerado
plenamente, “historicamente”;
- a losoa da práxis reconhece, portanto, o valor dialético da
ideologia iluministicamente compreendida e ao mesmo tempo
apreende o seu “desvalor” como redução siologista e mecanicista,
no fundo ainda compatível com a sua própria suplementação
espiritualista (Manzoni, Cabanis, Bourget, Taine, Maurras,
Stendhal).
Poderia-se então concluir que a psicoanálise, aos olhos de Gramsci,
permanece assentada em um sicalismo ingênuo e em tudo superado pelo
materialismo histórico. Mas esta seria uma conclusão tanto precipitada
quanto parcial. Melhor seria aplicar na leitura de Gramsci a mesma lógica
que ele utiliza na avaliação da função ideológica da psicoanálise: o fato de
que Freud pode ser indicado como “o último dos Ideólogos” na década
de 1930 revela uma função histórica-prática (no sentido da losoa da
práxis) da psicoanálise que excede a sua genealogia ideal abstrata. Em
outros termos, trata-se para Gramsci de valorizar a importância (in)atual
do freudismo, os efeitos que ele pode produzir, mantendo o fato de que sua
“busca pela origem das ideias” permanece abstrato (“deshistorizado”) como
é o materialismo sensualista e, como tal, está exposto ao risco de prestar-se
como suplemento da consciência espiritualística.
Veremos na continuidade desta apresentação do confronto
indireto de Gramsci com Freud, tão fragmentário quanto singularmente
nos idealistas italianos e em Croce. Gramsci denúncia a incoerência teórica e o interesse puramente “prático
da simpatia de Croce com as contribuições de De Man (cf. Q 10, § 26), recordando como tanto Croce como
seu aluno Guido De Ruggiero, autor da inuente Storia della losoa [História da Filosoa] em treze volumes
(1918-1948), tinham demonstrado desprezo e indiferença em relação a Freud (Gramsci considera, de forma
inapropriada, a obra Il superamento del marxismo de De Man como “uma derivação da corrente psicanalítica”).
Para uma análise minuciosa, ver Boni (2003). Sobre a relação geral entre o idealismo de Croce e Gentile com a
psicoanálise, cf. David (1963).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

pertinente, como esta tensão entre a ecácia crítica da psicoanálise e a
sua pretensa ingenuidade epistemológica (do ponto de vista da losoa da
práxis) revela-se fértil em Gramsci.
O que já pode ser estabelecido e destinado a não ser contradito
adiante é a tendência geral de Gramsci de não liquidar a psicoanálise
como ideologia, no sentido de pura construção superestrutural da má
consciência da moral burguesa, mas no lugar disso recuperar a “ciência
das ideias” iluminista, recuperação aparentemente anacrônica, mas que é
feita sob “a base de uma nova ética revolucionária”, com a ampliação de
seu campo de aplicação: já não é mais apenas a crítica da metafísica, da
teologia, da autoridade e da moral religiosa, mas a crítica estendida para as
formas fundamentais da sociedade burguesa, como o paternalismo, que a
psicoanálise ataca em sua base sexual:
Também a literatura ‘psicanalítica’ - escreve Gramsci em uma
importante nota de Americanismo e fordismo – é um modo de criticar
a regulamentação dos instintos sexuais de modo ‘iluminista’, com a
criação de um novo mito do ‘selvagem’ com uma base sexual (incluídas
as relações entre genitores e lhos) (Q 22, § 3, p. 2148.).
É possível nalmente esclarecer os termos da contradição aparente
do juízo gramsciano sobre a natureza iluminista da psicoanálise: embora
ele pareça recuperar sic et simpliciter alguns temas losócos fundamentais
do iluminismo (elogio dos instintos + análise materialista de ideias morais),
tal recuperação é acompanhada por um deslocamento e alargamento de
perspectiva concernente agora à ordem familiar burguesa pós-iluminista,
na qual a “regulamentação dos instintos sexuais” coincide com uma certa
ordem simbólica e política.
É preciso, portanto, considerar os juízos gramscianos
dialeticamente sem reduzi-los ao âmbito gnoseológico ou epistemológico,
na medida em que a losoa da práxis tenta conciliar a análise losóca
com a abordagem da função histórico-prática das construções ideológicas,
recusando manter-se no plano puramente especulativo. A complexidade de
tal abordagem renuncia de uma vez por todas qualquer teoria do reexo,
da emanação da superestrutura pela estrutura, para restituir à ideologia sua
própria autonomia dialética.

Gramsci e seus contemporâneos
Esta será a razão maior, no caso de Freud e da psicoanálise, pela
qual o interesse de Gramsci recai justamente em uma série de contradições
internas entre a subversão ética que suscitam e a sua sobredeterminação
losóca materialista-espiritualista.
centralidade e autonomia daqueStão Sexual
Neste confronto à distância, indireto e fragmentário estabelecido
com Freud, um lugar de importância primordial e de particular densidade
crítica é ocupado pela nota “Alguns aspectos da questão sexual” e, mais em
geral, no Quaderni 22: Americanismo e fordismo. Caderno sui generis, como
já foi observado, devido ao fato de que Gramsci parece, em certa medida,
suspender a abordagem historicista da losoa da práxis adotando uma
perspectiva mais estrutural e sociológica.
Desde o primeiro parágrafo a “questão sexual” foi inserida entre
os nove argumentos para reexão indicados em seu plano de trabalho
provisório, que convergem justamente na análise do fordismo como
uma nova forma de racionalização não apenas produtiva mas totalizante
(ideológica, demográca, jurídica e “sexual”). O interesse pela psicoanálise é
apresentado sob uma luz um pouco diversa em relação às notas precedentes
no oitavo ponto do plano de trabalho redigido em 1934: “A psicoanálise
(sua enorme difusão no pós-guerra) como expressão do aumento da coerção
moral exercida pelo aparato estatal e social sobre os indivíduos singulares e
da crise mórbida que tal coerção determina” (Q 22, § 3, p. 2140).
A avaliação da função da psicoanálise parece então colocar-
se em um horizonte preciso: o problema mais geral imposto pela
regulamentação dos instintos” na sociedade taylorizada e na formação de
uma ética compatível com a massicação do trabalho produtivo. Este é
um aspecto fundamental e rico dentre os apontamentos esboçados por
Gramsci em Americanismo e fordismo, que partem da questão da regulação
econômica dos “instintos sexuais” para então indicar a contribuição central
da psicoanálise na edicação de uma nova ética de relação entre os sexos
11
.
11
Outro polo da análise psicológica do taylorismo e de suas formas disciplinares é representado, em Americanismo
e fordismo, pela psicologia de William James e, em particular, pela original recepção por parte de Gramsci da
noção de “habit”. cf. Mancina (1994).
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Reconstruamos, então, a passagem da questão sexual à questão feminina,
feita através da mediação discreta mas essencial da psicoanálise sem perder
de vista que esta transição teórica corresponde também a um certo balanço
feito por Gramsci a partir da “crise mórbida” da esposa Giulia e de um
diagnóstico sobre o “aumento da coerção moral exercida pelo aparato
estatal e social sobre os indivíduos singulares” na União Soviética – o que
será visto no item seguinte, em particular através das Lettere.
Por enquanto, voltamos à longa nota sobre a “questão sexual”,
que demanda uma análise minuciosa e completa e que constitui um “texto
C” substancialmente homogêneo para uma nota do primeiro caderno,
embora essa tenha assumido um alcance diferente na organização geral do
Quaderni 22.
A psicoanálise é evocada já no nal do primeiro parágrafo do
Quaderni 22. Gramsci parte da hipótese segundo a qual o naturalismo dos
utopistas em matéria sexual corresponde a um tipo de sublimação do mal-
estar real imposto por toda construção social:
Obsessão pela questão sexual e perigos de tal obsessão. Todos os
projetistas sociais’ colocam em primeira linha a questão sexual e a
resolvem ‘candidamente’. É de se notar como em utopias a questão
sexual tem amplíssimo destaque e mesmo preponderância (a observação
de Croce de que as soluções de Campanella na Cidade do Sol não
podem ser explicadas através das necessidades sexuais dos camponeses
calabreses é inepta). Os instintos sexuais são aqueles que têm sofrido
a maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento; o seu
‘regulamento’, pelas contradições a que dá lugar e pelas ‘perversões
que a eles se atribuem, parece mais ‘não-natural’ quando mais
frequentes neste campo as referências à ‘natureza’. Também a literatura
psicoanalítica’ é uma forma de criticar a regulamentação dos instintos
sexuais de forma por vezes ‘iluminista’, com a criação de um novo
mito do ‘selvagem’ com uma base sexual (incluídas as relações entre
genitores e lhos) (Q. 22, § 3, p. 2147-2148).
A nota prossegue articulando diversos aspectos sociológicos da
questão”: as diferenças entre campo e cidade (Gramsci recusa a ideia, de
ascendência lombrosiana, segundo a qual as populações “degeneradas
seriam os subproletariados de recente imigração urbana, uma vez que
observou que o “incesto” e outras “perversões” são comprovadas no

Gramsci e seus contemporâneos
campo e nas organizações familiares patriarcais); as mudanças na estrutura
da família também em razão dos “progressos da higiene” e do aumento
da expectativa média de vida; o problema da urbanização maciça como
mutação sócio-política da cidade que coloca “continuamente sobre novas
bases o problema da hegemonia”.
Somente ao m desta breve e substancial discussão é anunciado
aquilo que, aos olhos de Gramsci, constitui o problema fundamental
colocado pela questão sexual:
A questão ética-civil mais importante ligada à temática sexual é aquela
da formação de uma nova personalidade feminina: até que a mulher
alcance não apenas uma real independência em relação ao homem,
mas também um novo modo de conceber a si mesma e a sua parte nas
relações sexuais, a questão sexual permanecerá repleta de características
mórbidas e necessitará ser cautelosa toda inovação legislativa.
Para depois prosseguir:
Toda crise de coerção unilateral no campo sexual carrega consigo um
desencadeamento ‘romântico’ que pode ser agravado com a proibição
da prostituição legal e organizada. Todos estes fatores tornam dicílima
a regulamentação do ato sexual e qualquer tentativa de criar uma nova
ética sexual que seja conforme com os novos métodos de produção e
de trabalho. Por outro lado, é necessário realizar tal regulamentação
e a criação de uma nova ética. Deve-se notar como os industriais
(especialmente Ford) são interessados nas relações sexuais de seus
funcionários e na sistematização geral de suas famílias; a aparência
de ‘puritanismo’ que assumiu este interesse (como no caso do
proibicionismo) não deve levar ao engano, a verdade é que não se pode
desenvolver o novo tipo de homem demandado pela racionalização
da produção e do trabalho até que o instinto sexual não esteja
conformemente ajustado e seja também esse racionalizado (Q 22, §
3, p. 2150).
Portanto, não existe para Gramsci nenhuma adaequatio entre
estrutura econômica e “ética sexual” - como sustenta uma grande parte do
marxismo ortodoxo, seguindo Engels (2006) - embora os dois planos devam
ser pensados em suas articulações fundamentais, como explicita o caso do
fordismo. A alternativa parece estar entre a hetero-coerção de tipo fordista,
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

imposta pelo modelo produtivo e suplementada pelo “puritanismo”, e o
desencadeamento ‘romântico’” que se opõe a ele (Gramsci menciona
várias vezes o fracasso do proibicionismo e fala muitas vezes de uma “crise
de libertinagem”)
12
.
Nesta falsa alternativa de soluções, que são no fundo solidárias,
Gramsci contraporá o ideal de uma certa auto-regulamentação dos instintos
sexuais: “uma coerção de tipo novo, exercida por uma elite de uma classe
sobre a própria classe, não pode ser senão uma auto-coerção, isto é, uma
autodisciplina (Aleri que se amarra em uma cadeira)” (Q 22, § 10, p.
2163)
13
.
A solução gramsciana parece aparentemente distante da perspectiva
psicoanalítica, na medida em que adota uma moral humanística ‘clássica’ de
autolimitação e de superação dos instintos. Mas, ainda uma vez, tal tomada
de posição deve ser compreendida dialeticamente e não axiologicamente.
O ideal de “autodisciplina” não constitui um modelo em si, mas a tentativa
de superar a falsa alternativa disciplinamento/libertinagem. Sem contar
o fato de que Gramsci não apenas compartilha a tese ‘antropológica’ de
Freud segundo a qual “os instintos sexuais são aqueles que têm sofrido a
maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento” (Q 22, § 3,
p. 2147) - resumida exemplarmente em O mal-estar da civilização (1930),
um texto pouco anterior a Americanismo e fordismo e que Gramsci não
teve certamente acesso - mas também reconhece na questão sexual uma
autonomia substancial em relação à questão econômica:
Os progressos da higiene – lê-se ainda na nota ‘Sobre a questão
sexual’ - que elevou a média da vida humana, colocam sempre mais
a questão sexual como um aspecto fundamental e distinto da questão
econômica, o que por sua vez coloca problemas complexos do tipo de
superestrutura” (Q 22, § 3, p. 2149).
Tal reconhecimento da centralidade e da autonomia da questão
sexual em relação à questão econômica distingue Gramsci tanto do
12
Como em “’Animalidade’ e industrialismo”, no Q 22, § 10, que deve ser lida em paralelo com a nota “Sobre
a questão sexual”.
13
N.T.: Diz-se sobre o literato Vittorio Aleri (1749-1803) que amarrava a si próprio em uma cadeira para
fazer suas leituras.

Gramsci e seus contemporâneos
economicismo do marxismo ortodoxo quanto da abordagem freudo-
marxista, que concordam ao considerar coincidentes a alienação sexual e a
alienação econômico-social.
Então, uma vez reconhecida a singularidade da abordagem
gramsciana, o problema será o seguinte: de que modo a psicoanálise pode
contribuir com a tarefa histórica que consiste em conceber uma nova e
superior forma de auto-regulamentação dos instintos? Antes de prosseguir
com a leitura dos fragmentos teóricos dos Quaderni para buscar os ulteriores
apontamentos que responderiam este problema, será indispensável realizar
um longo détour através das Lettere, onde a questão se apresenta de uma
forma diversa - menos reexiva, mais subjetiva e quase performativa -
através do confronto com Giulia. Somente após este détour será possível
retornar aos Quaderni para apreciar em toda sua extensão as conclusões
formuladas pela reexão gramsciana.
o encontro indireto com a PSicoanáliSe: o tratamento de giulia
(1929-1932).
A questão do “mal-estar” de Giulia constitui um dos temas centrais
da produção epistolar gramsciana e não apenas nas Lettere endereçadas
diretamente para a esposa, mas do epistolário em geral. É, portanto,
surpreendente constatar a pouca atenção que o diálogo de Gramsci com
Giulia acerca das razões de sua “doença” recebeu na abundante literatura
crítica sobre as Lettere, que alcançaram na Itália o lugar de um clássico
literário no período imediato do pós-guerra.
O tema biográco - ou a leitura que reconduziu as Lettere ao gênero
de “escritos carcerários” ou da psicologia a que ele corresponde - parece ter
negado a peculiaridade e a singularidade do confronto de Gramsci com
a psicoanálise, que tem em Giulia um motivo subterrâneo e constante,
em particular na segunda parte. Outro ‘obstáculo epistemológico’ para a
valorização deste tema é sem dúvida a tendência à saturação do sentido
político das Lettere, fazendo da evolução da relação entre Giulia Schucht e
Gramsci um tipo de metonímia da evolução da relação entre o fundador
do partido comunista italiano e a URSS.
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
Sabrina Areco
(Org.)

Quanto a nós, tentaremos restituir a pertinência e a complexidade
da referência à psicoanálise na correspondência carcerária de Gramsci no
que diz respeito à questão feminina, cuja centralidade ética é apontada
nos Quaderni, mas que tem nas Lettere a sua transcrição subjetiva. Não se
trata, portanto, de psicologizar a leitura das Lettere, mas ao contrário, de
reconhecer-lhe uma modalidade própria de transcrição do pensamento e
da experiência de Gramsci, complementar embora diversa daquela presente
nos Quaderni.
Para tal, deve-se partir da carta a Giulia de 4 de novembro de 1930,
primeira ocorrência na qual a enfermidade da última foi explicitamente
tematizada:
Enquanto isso, aviso-lhe – escreve Gramsci – que ‘tudo está claro’,
que não existem mais mistérios para mim, ou seja, que estou
minunciosamente informado de suas verdadeiras condições de saúde.
Para dizer a verdade, era o que na Itália se chama ‘o mistério das coisas
óbvias’, no sentido de que eu havia compreendido que você estava
bastante mal ou, pelo menos, atravessava uma crise psíquica que deveria
ter uma base siológica; seria um ‘literato’ bem mesquinho se não
compreendesse isso lendo as suas cartas, que depois da primeira leitura
que chamaria de desinteressada, na qual somente o afeto por você
me guia, são relidas, por sim dizer, segundo a posição de um ‘crítico
literário e psicanalítico. Para mim, a expressão literária (linguística)
é uma relação de forma e conteúdo: a análise me demonstra ou me
ajuda a compreender se entre forma e conteúdo existe adesão completa
ou se existem brechas, dissimulações, etc. Pode-se também errar,
especialmente quando se quer deduzir demais, mas, se há critério,
pode-se compreender bastante, pelo menos o estado de espírito geral.
Escrevo tudo isso para lhe avisar que, agora, pode e deve me escrever
com extrema franqueza (L, p. 363).
De fato, Gramsci foi informado explicitamente sobre a natureza
psíquica da enfermidade da esposa pela primeira vez em uma carta de
Tatiana poucos dias antes:
Quanto a sua enfermidade – escreve Tania Schucht em 22 de
outubro – disse-me ela mesma: os sintomas principais são amnésia,
devido a qual em determinados momentos não lembra do signicado
das palavras. Em algumas situações perdeu a consciência; mas isto
aconteceu somente 6 ou 7 vezes nos últimos anos. Os médicos não
estão de acordo sobre o diagnóstico: um diz tratar-se de psicastenia,

Gramsci e seus contemporâneos
outro de histerismo. O médico que a trata atualmente pensa que não
é nenhuma dessas enfermidades, mas acredita que essas amnésias
estão relacionadas com sua habitual insegurança, especialmente para
encontrar as palavras, acentuada pelas provações pelas quais passou nos
últimos anos (L, p. 844).
Não que a notícia dos problemas psíquicos de Giulia fosse uma
novidade. No nal de 1927 Gramsci foi informado da “grande depressão
psíquica” que a aigiu e da “angústia” que a inquietava e que justicava sua
diculdade em escrever. Sem contar o fato de que Gramsci conhecia desde
antes do cativeiro a fragilidade nervosa das irmãs Schucht, em particular de
Eugenia, “Genia”, convencida de ser a segunda mãe de Delio, primogênito
de Gramsci, desenvolvendo um apego prejudicial no momento de seu
nascimento, em Moscou, que ocorreu na ausência do pai (LEPRE, 1998,
p. 77).
O verão de 1930, no entanto, representa uma virada por duas
razões essenciais: Sraa visita a União Soviética e, entre outras coisas,
encontra Giulia em um sanatório em Sochi, no Mar Negro, dando-se conta
que a “crise” por ela atravessada por quatro anos não é provisória e cíclica,
mas profundamente enraizada, e sugere a Tania informar Gramsci; a outra
novidade é constituída pelo fato de que Giulia começa, também neste
período, um tratamento psicoanalítico
14
.
Infelizmente não sabemos nada, ou quase nada, sobre as
circunstâncias desta experiência: nem o nome do analista de Giulia, nem a
escola psicoanalítica a qual pertencia, nem detalhe algum sobre o curso do
tratamento
15
. Isso é justicado provavelmente, ao menos em parte, pelo fato